-
1
De cidade/city/cit a Babel
Raul Antelo O historiador cultural americano Carl Schorske
chamou nossa ateno, nos anos 80, para a configurao do espao urbano
como problema terico-poltico. A despeito de suas diferenas,
Voltaire, Adam Smith ou Fichte coincidiam em que a cidade era a
sede das virtudes civilizatrias, argumentava Schorske, ao passo
que, para o mrbido olhar de um William Blake, no entanto, a cidadee
o exemplo caracterstico sempre Londres, a da biopoltica alegoria de
Jeckyl e Hydeno passava do territrio por excelncia dos vcios e da
degradao. s com Baudelaire, entretanto, que esse carter bifronte se
condensaria, no por esquecimento, mas por abandono, na viso de
Paris como um espao situado para alm do bem e do mal, um hic et
nunc eterno, cujo contedo, embora transitrio, tornava essa mesma
transitoriedade permanente1. Da deriva, com efeito, a idia de uma
cidade disseminada2. Schorske estava de fato preocupado em traar um
percurso evolutivo da idia de cidade europia, de Voltaire a
Spengler, mas cabe-nos contudo agora esboar uma genealogia
suplementar, a da gnese da cidade euro-atlntica, de Nietzsche a
Derrida. Digamos, ento,
1 Cf. SCHORSKE, Carl E.- Pensando com a histria. Indagaes na
passagem para o modernismo. So
Paulo, Companhia das Letras, 2000. Mesmo na fase de ensaios de
interpretao nacional, boa parte das
diagnoses latino-americanas partiam da questo da cidade.
Lembremos, por exemplo do argentino
Ezequiel Martinez Estrada, autor de Radiografia de la pampa
(1933) e La cabeza de Goliath (1940, que
alude macrocefalia da capital sobre o interior); ou do ensaio
seminal de Srgio Buarque de Holanda,
Razes do Brasil (1936), com sua discriminao entre semeadores
(portugueses) e ladrilhadores
(espanhis), a construrem cidades como tabuleiros de xadrez. Com
eles comea, de certo modo, o debate
latino-americano em torno idia de cidade. Ver, a esse respeito,
HARDOY, Jorge Enrique- "El rol de la
urbanizacin en la modernizacin de Amrica Latina" in IDEM - Las
ciudades en Amrica Latina: seis
ensayos sobre la urbanizacin contempornea. Buenos Aires, Paids,
1972; ROMERO, Jos Luis Latinoamrica: las ciudades y las ideas.
Mxico-Buenos Aires, Siglo XXI, 1976; RAMA, ngel La ciudad letrada.
Hanover, Ediciones del Norte, 1984; MORSE, Richard M. Los
intelectuales latinoamericanos y la ciudad (1860-1940) in HARDOY,
Jorge E.; MORSE, Richard M. & SCHAEDEL, Richard P. (ed.)
Ensayos histrico-sociales sobre la urbanizacin en Amrica Latina.
Buenos Aires, Ediciones SIAP, 1978, p.91-112; RAMOS, Julio
Desencuentros de la modernidad en Amrica Latina. Literatura y
poltica en el siglo XIX. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1989;
SARLO, Beatriz Modernidade e mescla cultural in Risco. Revista de
Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo, EESC- USP, So Carlos, n 4,
2006, p.87-92 ; IDEM - Cenas da vida ps-moderna. Trad. Srgio
Alcides. Rio de
Janeiro, Ed. da UFRJ, 1997; IDEM - Instantneas. Medios, ciudad y
costumbres en el fin de siglo.
Buenos Aires, Ariel, 1996; IDEM La ciudad vista. Buenos Aires,
Siglo XXI, 2009; FRANCO, Jean - Decadencia y cada de la ciudad
letrada. La literatura latinoamericana durante la Guerra Fra.
Madrid,
Debate, 2003. Em linha dissidente com o enfoque maciamente
dialtico acima apontado, ver JITRIK,
No - Bipolaridad en la historia in Ensayos y estudios de
literatura argentina. Buenos Aires, Galerna. 1971. 2 Jean-Luc Nancy
descarta a questo da cidade e prefere falar do problema da cidade.
Le bidonville est
la djection de la ville, sa violence ramasse dans la boue. En un
sens, ce serait comme une exaspration
du dclassement de Los Angeles, de son bricolage et de son
dglingage. Cf. NANCY, Jean-Luc Au loin, Los Angeles in La ville
inquite. Le temps de la rflexion VIII. Paris, Gallimard, 1987,
p.26.
-
2
para incio de conversa, que essa outra configurao urbana, a da
cidade disseminada, configura uma rede incessante de deslocamentos
e usos, no s do prprio e do alheio, mas tambm do pblico e do
privado, em que toda noo de origem surge como plenamente ilusria j
que, para sua cabal manifestao, so indispensveis os forasteiros. So
eles, atravs do nomadismo, que mostram o trnsito ininterrupto da
natureza cultura e, alm do mais, de uma a outra cultura, i.e. de
tcnica a tcnica, sempre exibindo o enigma de um percurso sem fundao
nem orientao final: uma circulao que no cessa de atiar mas, ao
mesmo tempo, de contrariar tambm a necessidade de dominar o espao e
mesmo a reivindicao irrecusvel quanto justa partilha desse mbito,
para rechaar, enfim, toda apropriao comunitria irreversvel. H uma
cena emblemtica, a meu ver, na arte moderna, que so os ensaios de
Marcel Duchamp por cubificar uma cidade modernizada. Ele no escolhe
nem a capital do sculo XIX, Paris, excessivamente familiar, nem a
capital do sculo XX, Nova York, ainda esquiva, mas uma cidade que,
at certo ponto, ele desprezava por julg-la um arremedo provinciano
de metrpole cosmopolita, Buenos Aires, mas que, mesmo assim, devia
lhe parecer manejvel ou, ao menos, tradutvel. Sua tcnica
estereoscpica para captar esse novo cenrio euro-atlntico admite, de
fato, vrias leituras. Rosalind Krauss detectou nela a origem do
inconsciente tico contemporneo. T.J. Demos, o primeiro ensaio de
nomadismo multicultural. Michel Gurin, uma encenao performtica de
anartismo3. Eu, particularmente, creio ver nessa cubificao tica
urbana a postulao da mquina contra a estrutura, idia que, embora
esboada em Bergson, tornar-se- decisiva, mais adiante, no
pensamento ps-fundacional. Duchamp no intervm na cena urbana
modernizada nem para o registro (memria), nem para a formalizao
(representao) da experincia. Essa a opo dos artistas
territorializados4, ou dos filsofos memoriosos (No esqueamos que
foi nesse mesmo cenrio latino-americano que Ortega y Gasset
desenvolveu sua preveno s massas, em El tema de nuestro tiempo).
Duchamp, pelo contrrio, persegue o esquecimento e, para tanto,
precisa abolir a dimenso sagrada e regrada do espao urbano para nos
propor, entretanto, uma primeira verso ps-literria da cidade
ocidental, em particular, uma iconologia (ou, talvez, at mesmo uma
icnologia) do intervalo euro-americano. A estereoscopia nos
desvenda, na cidade, Babel, e nela, a ps-histria.
3 KRAUSS, Rosalind - El inconsciente ptico. Trad. J. Miguel
Esteban Cloquell. Madrid, Tecnos, 1997;
DEMOS, T.J. - The Exiles of Marcel Duchamp. Cambridge, MIT
Press, 2007; GURIN, Michel Marcel Duchamp. Portrait de lanartiste.
Nmes, Lucie, 2007. 4 Tomemos, a ttulo ilustrativo, a Paulicia
Desvairada (1922) de Mrio de Andrade. Em O domador,
por exemplo, sob o arlequinal do cu ouro-rosa-verde... da
cidade, o poeta louva a sistmica verticalidade da arquitetura
funcionalista e condena a neo-colonial (as sujidades implexas do
urbanismo de manuelino), apostando sempre no arlequinal dizer, i.e.
na estrutura, que purifica os dilvios de penetras, ou seja, a
histria, que se manifesta, ambivalentemente, atravs dos contatos
corporais (bateladas de hngaros, blgaros, russos se despejam na
cidade), como constata, resignado, em Improviso do mal da Amrica,
1928. Poderamos incluir tambm o argentino Arturo Cancela, com Una
semana de holgorio, de Tres relatos portos (1922), que ficcionaliza
a greve anarquista que apanha Duchamp em Buenos Aires, ou at mesmo
Borges, mas no s o poeta saudosista de Fervor de Buenos
Aires (1923) ou Cuaderno San Martn (1929), tambm o ensaista que,
contrariamente a Mrio de
Andrade, julgava, em Inquisiciones (1925), que a cidade no era
iada e ascendente ou que, em La presencia de Buenos Aires en la
poesia (1926), evoca a cidade como uma travessia plutnica por sua
capilaridade subterrnea, o que, paradoxalmente, lhe confere
velocidade e eficincia cada vez mais
desmaterializadas.
-
3
Duchamp escolhe um limite, a orla do rio-mar, e torna-o um
limiar. No se posiciona, como os antecessores, na gua, olhando para
a cidade. Duchamp no Danvin nem Dulin. No mesmo Paul No, nem Pio
Collivadino, nem Aquiles Badi. Nem Lazzari, Daneri ou Pacenza5.
Duchamp posiciona-se pois no cais e nele contempla o rio-mar. o
infinito. E a capta uma cena de origem, virando as costas,
precisamente, para o nascimento da Ninfa (uma alegoria do
nascimento de Vnus, e da prpria Renascena como pureza, idia
materializada na escultura de Lola Mora, recm instalada naquele
passeio). Analisando a iconologia do intervalo desta figura, Aby
Warburg j mostrara, alis, em 1893, que, maneira estranhamente
inquietante de Gradiva, os atributos de uma imagem podem definir
sua substncia mas da substncia no se derivam nunca atributos
permanentes, de modo que Vnus pode muito bem ser,
fantasmagoricamente, algo at grotesco, prximo, por ex., das
marionetes de Kleist6. Nesse sentido, diramos que a imagem
convencional da Ninfa a origem. Mas a estereoscopia, entretanto, um
salto origem. No a fonte das coisas, nem uma imagem original da
Histria, mas aquilo que nasce, como efeito de montagem temporal, da
prpria passagem do velho ao novo. Ao cubificar a cidade
modernizada, Duchamp situa-se, com efeito, na vertigem do devir
como turbilho temporal, devorando consigo o prprio tempo, e
posicionando-se num entre-lugar que j no nem o da restaurao da
gnese, nem o do acabamento conceitual, de modo que suas pirmides de
tempo7 no esto nem c nem l da demarcao entre o fixo e o fludo,
entre a terra e a gua. A estereoscopia est construda com e no
tempo. Como escano desse tempo, ela j no coincide com o factual (a
cidade emprica onde Marcel foge da guerra, do tempo, a Buenos Aires
de 1918) mas superpe-se quilo que nos remete sua pr-histria (o
contato com a alteridade radical) e sua ps-histria (a abjeo e a
exceo)8. Essa cidade comeou, de fato,
5 DANVIN, Victor-Marie Flix (1802-1842) - Buenos Aires Ro de la
Plata, circa 1890, gravura em
cobre sobre papel (Museu Histrico Nacional de Buenos Aires);
DULIN, J. D. (1839-1919) - Buenos Ayres. La Boca del Riachuelo
cerca de Barracas, circa 1860 (ibidem); NO, Paul Buenos Aires,
1899, leo (coleo Museu Histrico de Buenos Aires Cornelio de
Saavedra); COLLIVADINO, Pio (1869-
1945) -Paseo Coln, 1925, leo (Museo de Bellas Artes de La Boca
Benito Quinquela Martn); BADI, Aquiles (1894-1976) Buenos Aires
1936, leo (coleo Francisco Traba); LAZZARI, Alfredo (1871-1949) -
Calle Paseo Coln, 1899, leo (coleo famlia Lazzari); DANERI, Eugenio
(1881-1970) - Calle de La Boca, 1936, leo (coleo particular);
PACENZA, Onofrio (1904-1971) - Paisaje de La Boca 1946, leo, (coleo
Ministerio de Economia, Buenos Aires). Tomo como referncia o
excelente catlogo de Laura Malosetti Costa, Pampa, ciudad y
suburbio, Buenos Aires, Fundacin OSDE, 2007. 6 Cf. WARBURG, Aby -
La Naissance de Vnus et le Printemps de Sandro Botticelli. Paris,
ditions
Allia, 2007. 7 A expresso provm do soneto 123 de Shakespeare:
No, Time, thou shalt not boast that I do change:/
Thy pyramids built up with newer might / To me are nothing
novel, nothing strange;/ They are but
dressings of a former sight./ Our dates are brief, and therefore
we admire / What thou dost foist upon us
that is old;/ And rather make them born to our desire / Than
think that we before have heard them told./
Thy registers and thee I both defy,/ Not wondering at the
present nor the past, / For thy records and what
we see doth lie,/ Made more or less by thy continual haste./
This I do vow and this shall ever be;/ I will be
true despite thy scythe and thee. 8 Remo Bodei, que analisou
essas ambivalncias temporais, argumenta que memria sobrevivncia,
na
medida em que l'illusione di un ricordo successivo alla
percezione nasce perch la maggior parte di quel che percepiamo e
viviamo nel presente sembra perdersi e, come in un gran naufragio,
pare che restino
solo i relitti dei ricordi che si sono salvati. In realt, anche
per Bergson (come per Freud e per i fsiologi
della loro poca) niente si perde, ma non tutto emerge alla
superficie della memoria, perch essa ha il
compito di selezionare e di far venire alla coscienza solo quel
che serve per l'azione e per il futuro. Cf. BODEI, Remo Piramidi di
tempo. Storie e teoria del dj vu. Bologna, il Mulino, 2006, p.
65.
-
4
com um repasto totmico dos soldados espanhis por parte dos
ndios, tal como narrado por Juan Jos Saer (1937-2005) em O enteado.
Mas outros soldados, os que em 1918 tanto temor causavam em Marcel,
ao v-los trajados maneira alem, fazendo-o sentir cercado, estavam,
simultneamente, matando anarquistas e, em um tempo posterior,
desmaterializariam at mesmo a morte, causando desaparecidos), de
modo que, diramos, a estereoscopia, como tableau urbano situado
para alm da pintura, cinde tambm o prprio tempo em dois. Benjamin,
alis, deixa isso claro, no s em Origem do drama barroco alemo como
tambm no Livro das passagens, j que, enquanto postulao de uma
origem, as pirmides de tempo, tanto contemplam a ascenso quanto a
decadncia das construes histricas, e funcionam como um dispositivo
que permite a passagem temporal, fazendo surgir, a partir de um
interior vazio e disponvel, a srie infinita das formas, que nada
mais so do que meras metamorfoses do mesmo, lampejos intermitentes,
como os das bias no rio, de duas imagens que, nem descartadas, nem
mesmo assimiladas integralmente, conservam-se numa existncia imvel,
porm, carregada de tenso. Elas desfazem qualquer pretenso de saber
da tecnocincia, porque claro que todo devir torna-se simplesmente
ilusrio, face dura permanncia dos objetos, que no so seno uma still
life, ou mesmo uma after-life, ou seja, a natureza morta da Coisa,
aquilo que permite, enfim, a Duchamp postular uma beleza de
indiferena como alternativa para os impasses da reproduo seriada. A
imagem celebratria da Ninfa, sentada beira da concha, suplementada,
assim, pelas estereoscopias, assinaturas urbanas que mostram que a
cidade no nem uma essncia nem uma substncia, mas um simples vestgio
que, ao interromper o continuum natureza-cultura, mina o prprio
processo de identificao com o ideal, atendendo premissa de que s
existe o tempo (e o texto, e a imagem) a partir da interrupo do
tempo (bem como do texto e da imagem). Sua linha de fuga necessria
poderia ser ilustrada com os trabalhos de Jorge Macchi. No apenas
com Buenos Aires Tour9, experincia compartilhada com a poeta Maria
Negroni10, mas tambm com Horizonte (1995; tcnica mista, coleo
particular). Mas deixemos, por um momento, os ensaios anartistas de
Marcel Duchamp, de to forte atrao em Walter Benjamin, em
particular, por sua idia de uma obra-porttil11, e detenhamo-nos em
um texto no menos interessante para o pensador alemo. Refiro-me a
Paris, mito moderno de Roger Caillois. Nesse ensaio premonitrio,
Caillois admite a existncia de uma robusta tradio mimtica da
metrpole, operando sobre a imaginao, a ponto de confiscar-lhe a
aferio precisa. Este fenmeno, contemporneo da grande indstria e da
formao do proletariado urbano, est principalmente ligado, para
comear pelo mais
9 MACCHI, Jorge, RUDNITSKY, Edgardo e NEGRONI, Maria Buenos
Aires Tour. Madri, Turner,
2004. 10
NEGRONI, Maria Buenos Aires Tour. Mxico, Aldus, 2006. 11
Em meados de 1937, Duchamp e Benjamin encontram-se num caf de
Saint-Germain. Em manuscrito
indito Benjamin menciona:Saw Duchamp this morning, same Caf on
Blvd. St. Germain... Showed me his painting: Nu descendant un
escalier in a reduced format, colored by hand en pochoir.
breath-takingly
beautiful. maybe mention Cf. Walter Benjamin Archive, Institut
fr Sozialforschung, Goethe Universitt, Frankfurt. Apud BONK, Ecke
Delay included in Joseph Cornell / Marcel Duchamp .In Resonance.
The Menil Collection Houston / Philadelphia Museum of Art, Cantz,
1999, p.102. Uma das
mais diretas consequncias dessa des-obra como obra-em-valise
VILA MATAS, Enrique - Histria
Abreviada da Literatura Porttil (1985). Trad. Jos A. Palma
Caetano. Lisboa, Assrio & Alvim, 1997.
Sentido Porttil a adaptao desse texto, com encenao de Carla
Bolito (Centro Cultural de Belm,
2009).
-
5
aparente, transformao do romance de aventuras em romance
policial12, idia que, mais tarde, alimentar uma polmica entre
Caillois e Borges, porque o escritor argentino no via, no policial,
qualquer resduo pico. Caillois, entretanto, atribua a esse carter
pico da vida urbana, de consequncias ainda imprevisveis, o
protagonismo de Baudelaire, no sculo XIX francs, tese encampada por
Benjamin, embora seja bom lembrar que, para Caillois, essa pica era
ainda inespecfica. Com efeito, a vida moderna, para Baudelaire, no
tem forma pr-concebida. por isso que julga suas Flores do mal
autnticos romances e chega mesmo a cham-las um livro de arte pura,
ainda que saiba, mesmo assim, que qualquer uma dessas definies no s
falha quanto falsa. Em oposio cidade mtica, verdadeiro cadinho de
paixes que sagra, embora tambm dilacere, o herosmo urbano da
modernidade movido pela vontade de poder e, mesmo nas sombras,
manipula os recursos de uma maquinao to complexa quanto grandiosa,
prova de sua inteligncia luciferina, pontificial e guerreira. a
melancolia das cidades, dentre elas Lisboa, tal como aparece nas
imagens da revista surrealista Variets, em dezembro de 1929. Mas
Caillois soube perceber que essa atitude anti-mtica, em particular
com relao a Paris, acabaria por configurar uma posio mtica, de que
alis do prova livros como os de Ramalho Ortigo ou Nestor Victor, o
que, embora implique uma projeo da imaginao na vida social,
estimula, paradoxalmente, uma literatura de evaso que ainda
permaneceria, por muito tempo, slidamente literria, uma vez que ela
alimenta os mais ideais e os mais inofensivos prazeres de
substituio, ao operar, por tabela, um recuo da imaginao na ordem
prtica da vida. Em suma, o mito de Paris enuncia inquietantes e
ambivalentes poderes da literatura, graas aos quais a arte, ou
melhor ainda, a imaginao renunciaria, da em diante, a seu mundo
autnomo, para retornar quilo que Baudelaire chamava de traduo
lendria (o grifo do prprio Baudelaire, mas no menos de Caillois) da
vida exterior, mas que no custaria, absolutamente, aproximar do
conceito benjaminiano de tradutibilidade, construdo junto ao de
legibilidade da cidade moderna, reconhecvel atravs da fotografia ou
das tcnicas de signatura (impresses digitais, documentos, etc).
Pouco depois de escrever esse ensaio sobre Paris como mito moderno,
Caillois comea, em funo da guerra, um exlio de seis longos anos na
Amrica Latina. Reside em Buenos Aires, conhece e frequenta So
Paulo, visita e at analisa o Rio de Janeiro. Nesta ltima cidade
publica, antes mesmo do que em Paris, seu Vocabulrio esttico,
suplemento de um livro posterior, Babel (1948). E na capital do
Brasil onde Caillois testa sua teoria das loterias culturais, a
organizao para-estatal, to ou mais eficiente do que o prprio
Estado, aquilo que, recentemente, Norbert Martin chamou de a
regra-mundo, a narco-cidade (a anarco-cidade). E , ainda, Crnicas
de Babel o ttulo dado pelo escritor a seus esparsos
latino-americanos, nunca republicados em vida, crnicas at certo
ponto informes, como os tableaux de Baudelaire. No exagero, porm,
se afirmo que devemos ver, em Babel, como pequeno tratado de
teologia-poltica, no s a prefigurao do contemporneo, mas tambm a
possibilidade de pensar a cidade, a partir da margem, isto , da
Amrica Latina, mas tambm da imagem, ou seja, do contato com os
corpos, como um trnsito ininterrupto, uma peculiar passagem, da
natureza cultura, sem dvida, porm, igualmente, de uma a outra
cultura, como tradutibilidade incessante, traando um percurso, sem
origem nem orientao final, um
12
CAILLOIS. Roger O mito e o homem. Trad. Jos Calisto dos Santos.
Lisboa, Edies 70, p.115.
-
6
eterno comeo que se apresenta, ao mesmo tempo, como
decididamente ps-fundacional, revelia dos mapas ao uso13. Com
efeito, ao redigir Babel, Caillois torna-se consciente, como antes
dele, Duchamp, com seus dispositivos ticos an-artsticos, que, em
uma cultura ps-sacra, como a contempornea, o lugar residual da
mimese est ocupado pela literatura, e que, portanto, o desafio no a
reproduo mas a repetio, um gesto que evoca o da marionete dad. No
entanto, compreende tambm que essa literatura, pautada pela mimese,
est irreversivelmente morta, da que o estudo de uma esttica
generalizada, ou at mesmo gerativa, o mimetismo, possa ser a forma
arcaica e proto-histrica de resgatar a potncia da imaginao,
deslocando o conflito primordial de uma sociedade que declina e, em
vo, se debate, agnicamente, em busca de sua prpria identidade. No h
identidade porque simplesmente no h memria do mesmo. Ou antes, a
memria vertigem, bipolaridade perptua. A singularidade contempornea
consiste, portanto, na disseminao annima, ou inclusive anmala, de
uma competncia performtica que nos permite analisar ou desdobrar a
esttica nas representaes suscitadas pela prpria morfologia da
sociedade, em incessante metamorfose14, e observar, ademais, que o
mito moderno da cidade s se tornou possvel quando o conjunto da
sociedade ocidental comeou a ler, quer dizer, quando todos os seus
membros submeteram-se, voluntariamente, a leis estatais de ensino
pblico obrigatrio15. William Kentridge, em Strade della citt (ed
altri arazzi), exibida em Npoles (Museu di Capodimonte, nov.
2009-fev.2010) projeta, sobre antigos mapas de cidades europias, a
sombra de figuras literrias mticas, como Dom Quixote, que remedam
sombras em preto, la Soulages. A cidade moderna pura legibilidade
mas a experincia ps-literria de Babel solicita, entretanto, uma
outra disposio e assim cabe aventar que a imagem aberta s advm, de
fato, com a queda efetiva do Nome-do-Pai. Voltaremos a essa idia
mais adiante. De Paris, mito moderno, cidade latino-americana, como
texto ps-literrio, h uma imaginao, portanto, que se nos impe,
precisamente, com o fim da guerra material clssica, e que
consistiu, como sabemos, em desvincular, socialmente, o equitativo
do igualitrio, para assim poder afirmar a livre e ilimitada
superioridade da iniciativa individual, hipottico instrumento de
progresso social, que se oporia, desse modo, obsoleta concepo de
propriedade coletiva dos meios de produo ou, at mesmo, do simples
Estado benfeitor. Depois da guerra fria, porm, capitalismo e
democracia surgiriam, de fato, reciprocamente vinculados, ora como
capital-parlamentarismo, ora como Estado espetacular integrado,
na
13
Cf. DIEGO, Estrella de Contra el mapa. Disturbios en la
geografia cultural de Occidente. Madrid, Siruela, 2008. 14
Cf. OLALQUIAGA, Celeste Megalopolis. Contemporary Cultural
Sensibilities. Minneapolis, University of Minesotta Press, 1992.
15
impossvel separar as anlises de Caillois do contexto
latino-americano em que se produzem. Sua
anlise de Hitler como dolo, O poder carismtico, apia-se na
emergncia de movimentos de multides, no sujeitos rbita do
popular-estatal. Fascinava-lhe, dizia, a fuso de santa, meretriz
e
soberana que via em Eva Pern, o que levava concluso de que o
poder carismtico trabalha com a
faculdade mimtica (sonambulismo, hipnose, vertigem, xtase),
movimentos que se tornariam cada vez
mais indissociveis nas sociedades ocidentais. Cf. CAILLOIS,
Roger Instintos y sociedad. Trad. Carmelo Martnez Pealver, Julin
Calvo e C.A. Jordana. Barcelona, Seix Barral, 1969. Para uma
sequncia dessas idias, BAUDRILLARD, Jean - L'change symbolique
et la mort. Gallimard. Paris,
1976; LACLAU, Ernesto On Populist Reason. London, Verso, 2005;
MARCHART, Oliver In the Name of the People: Populist Reason and the
Subject of the Political in diacritics .Vol. 35, n 3, Fall 2005, p.
3-19.
-
7
busca herica do risco, atravs de no menos equvocas regras, que
preservariam a concorrncia, quando ameaada pelos controles
estatais, mas manteriam o controle de mercado, quando o consumo
fosse desestabilizado pela concorrncia, regras essas cuja
ambigidade essencial se estenderia mtua mistura de regulao e
desregulamento e at mesmo ao abandono de muitos atores sociais, uma
vez que excluir, pura e simplesmente, o conjunto dos cidados
desestabiliza o jogo democrtico mas, inclu-los a todos igualmente,
torna-o decididamente invivel16. Essa acelerada e vertiginosa fuso
de lugares e de espaos sociais, que em sua verso mais amena
conhecemos como ps-modernidade e que hoje, de forma talvez mais
ntida e perversa, poderamos chamar de desinsero, traou, alis, uma
nova cartografia histrica que, da liberao da metafsica entre
passado e presente, prometida pelo modernismo, rapidamente passou
metafsica da liberao, que se tornou, aos poucos, fuso, ambivalente
quando no paradoxal, de represso e desinibio, como lembrana do
presente, nas ps-utopias contemporneas17.
16
Analisando o caso das cidades brasileiras, Raquel Rolnik observa
que, mesmo sin figurar en los mapas de catastros de prefecturas y
concesionarias de servicios pblicos, sin existir en los archivos de
los
registros de la propiedad, os precrios asaentamentos urbanos que
surgem, no Brasil, como decorrncia dessa situao, mantienen una
relacin ambigua con las ciudades en las que se localizan. Como
modelo dominante de la territorializacin de los pobres en las
ciudades brasileas, su consolidacin es progresiva,
pero siempre incompleta y dependiente de la accin discrecional
de los poderes pblicos. As, nunca se
sabe a ciencia cierta si forman o no parte de la ciudad: en
algunos casos, con el transcurso de dcadas, la
ocupacin se acaba consolidando; en otros, se emprenden batallas
judiciales y administrativas para
desmantelar los asentamientos, dispersar a sus ocupantes y
recuperar suelo para el mercado. Al delimitar
las fronteras que separan los asentamientos regulares/formales
de los irregulares/informales, el modelo de
exclusin territorial que distingue la ciudad brasilea es mucho
ms que la mera expresin de las
desigualdades sociales y de renta, en la medida en que funciona,
para el circuito financiero, como una
especie de engranaje de la mquina de generar valor, inflando el
capital en ella invertido. Dicha mquina,
al producir ciudades, provoca desigualdades en la medida en que
una ciudad dividida entre el sector rico,
legal y con infraestructuras, y el sector pobre, ilegal y
precario, concentra la riqueza y bloquea el acceso a
las oportunidades econmicas y culturales que el ambiente urbano
ofrece. El acceso a los territorios que
concentran las mejores condiciones urbansticas es exclusivo para
quien previamente ya forma parte de
l Cf. ROLNIK, Raquel - Confinamiento o conflagracin: metrpolis
brasileas al lmite. SMITH, Neil et alii - Despus del
neoliberalismo: ciudades y caos sistmico. Trad. Mariano Antoln y
Juan de
Sola. Barcelona, Museu dArt Contemporani de Barcelona / Servei
de Publicacions de la Universitat Autnoma de Barcelona, 2008, p.46.
E essa situao responde pelo fato de que las grandes reas de
produccin fordista fueron sustituyndose por una economa de flujos,
desterritorializndose y dejando
por el camino grandes reas urbanizadas vacas, a menudo tambin
contaminadas. El territorio popular se
densifica sobre una base urbanstica frgil y tosca, fruto de
intervenciones fragmentadas, desconectadas y
discontinuas, definidas y ejecutadas en la temporalidade de la
poltica. El espacio metropolitano de la era industrial tambin se
transforma, expandindose sobre la zona rural, redefiniendo las
fornteras
urbanas y diseminando enclaves como condominios, hipermercados y
centros comerciales. La antigua
dualidad centro-periferia se disuelve para dejar paso a otra
nueva: lugares seguros versus lugares
violentos. La conquista de asentamientos precarios por el
comercio de drogas a pequea escala impuso
una nueva sociabilidad en estos territorios, una sociabilidad
violenta, que paralelamente, fue
implementada en los aparatos de seguridad monopolizados por el
Estado. Aunque solo estuviera presente
en algunos de los asentamientos precarios del pas, la
territorializacin de las favelas por parte del trfico
de drogas contribuy, en el imaginario urbanstico colectivo, a la
identificacin de todas las favelas y
periferias precarias del Brasil como lugares violentos. (ibidem,
p.51-52). 17
Diego Tatin l a loteria de Babilnia e a prpria construo da torre
(a poltica) como um
intransfervel instante de deciso entre as paronomsicas conjetura
/ conjura, isto , entre apatia e
rebelio.TATIN, Diego La conjura de los justos. Borges y la
ciudad de los hombres. Pref. S. Mattoni. Buenos Aires, Las
Cuarenta, 2009. bom no esquecer que a conjurao o tema
(nietzscheano) que
-
8
A ttulo ilustrativo, relembremos que o poetamenos Augusto de
Campos props, em cidade/city/cit (1963-1965), uma posio biformativa
para a cidade, que tanto ordem, estado, espao, quanto abstrao
genrica ou tradutibilidade, enquanto sufixo, cidade. Porm, alguns
anos antes, em 1957, outro concretista, Dcio Pignatari,
provavelmente inspirado em Nombre dambre de Michel Leiris (1939),
elaborara um poema visual, hombre hambre hembra, onde a hesitao
valeriana entre som e sentido, estranhada pelos significantes em
espanhol, contaminava-se, ainda que ingnuamente, pelo discurso do
nuevo hombre guevarista, tornando-se cubagrama. Haroldo de Campos
forneceria ainda mais uma alternativa em Servido de passagem
(1961), a da poesia em tempo de fome, em que s resta ao poeta a
funo dictica de disseminar as marcas das coisas,
nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome
para, mais tarde, em 1983, a convite de Roberto Schwarz,
teorizar, exemplarmente, esse deslocamento esttico18. Uma ilustrao
potica desse percurso encontra-se, com efeito, em Parania (1963),
de Roberto Piva19. Mas quem, delirantemente, reverte no s o mundo
imaginrio da urbs, mas at mesmo a sua verso de autonomia extrema, a
dos fantsticos mundos possveis de Tln, o escritor argentino Osvaldo
Lamborghini (1940-1985), quem, ao potencializar a fico, inverte a
genealogia bblica (Gn. 1:27) e lana ao Estado a pergunta
ps-fundacional dirigida a Deus,era hombre o mujer?, para encontrar,
como nica resposta, em seu romance pstumo Tadeys, a alternativa
maqunica, no-estrutural, do estado de exceo contemporneo nem homem,
nem fmea, mas fome: es hambre para todos. Ora, nesse sentido,
diramos que a cidade esvaziada, Babel, o neutro mas, ao mesmo
tempo, bom frisar que no h Babel sem mimetismo, porque a autntica
imaginao puramente
rene Bataille, Leiris e Caillois em torno do Colgio de
Sociologia, como destruio e conservao
simultneas da autonomia e da histria, em chave no-comunitria,
sacer. A esse respeito, ver, entre
outros, ALEMAN, Jorge et al. Los otros entre nosotros. Alteridad
e inmigracin. Madrid, Crculo de Bellas Artes, 2009. 18
Despoetizar a poesia, quelas alturas do triunfalismo
neoparnasiano da Gerao de 45, era reduzi-la ao seu mnimo mltiplo
comum: resposta sincrnica da srie literria srie pictrica
(Malevitch, Mondrian) e musical (Webern). Da economia restrita da
poesia pura viu-se, a seguir, num determinado lance da prtica
potica da poesia concreta, que se podia passar economia
generalizada da poesia para. Como experincia dialtica de extremos.
(Entre a poesia a plenos pulmes de Maiakovski, que engendra o
agit-prop de massas, construtivista, e a poesia como cenografia
espiritual exata de Mallarm, teatro hermtico de cmera, cruel antes
de Artaud, nas fronteiras do silncio, no ser bizarria surpreender o
faiscar limtrofe de certas afinidades eletivas; leia-se Blanchot em
Le Livre Venir e Walter Benjamin sobre o Coup de Ds em
Einbahnstrasse). LIXO/LUXO de Augusto um exemplo frisante dessa
dialtica de extremidades, que encena na arte mnima de seu
procedimento menos (...) o jogo de suas tenses e mediaes, como uma
tatuagem intersemitica. O oxmoro paronomstico lixo/luxo se redobra
visualmente numa tipografia desejadamente Kitsch, enquanto as
pginas desdobrveis vo
compondo e decompondo, numa escanso pardica, a luxria do LUXO de
encontro lixvia do LIXO. CAMPOS, Haroldo de - "Arte pobre, Tempo de
pobreza, Poesia menos". In: Os Pobres na Literatura
Brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1983, p.188. 19
PIVA, Roberto Parania. Fotografias de Wesley Duke Lee. So Paulo,
Instituto Moreira Salles, 2009. Sobre a esttica urbana do grupo
Rex, comandado por Duke Lee, ver LOPES, Fernanda A experincia Rex.
So Paulo, Alameda, 2009.
-
9
negativa e deconstructiva, como alis Benjamin j apontara em um
manuscrito indito de 1920. Com efeito, a partir de 1933, poca de
Experincia e pobreza, Doutrina da semelhana e Sobre a faculdade
mimtica, trs outros sintomticos e instigantes ensaios de Benjamin,
Caillois tambm comea a pensar no mimetismo como uma potncia
passiva: quando corrige o ensaio de Dal sobre o mtodo
paranico-crtico20, desenvolvido em conjunto com Lacan, para sua
publicao na revista Minotaure, na qual, pouco tempo depois, o
prprio Caillois editaria seu estudo sobre um tema dumeziliano, a
manta religiosa21, onde se prope um imaginrio espontneo,
relativamente separado da semitica institucionalizada e mais
atento, porm, fantasiosa sintaxe de suas combinaes, uma forma de
criticar o primado moralizante da alegoria22. Num clima cultural
influenciado por Metrpolis, o filme de Fritz Lang, Walter Benjamin
tambm apontara, na resenha de Cathrine-Paris da Princesa Bibesco,
em 1928, que essa capitulao do desejo configura uma apoteose de
remota extrao barroca23. Na mesma linha de anlise, Caillois
afirmaria que o mimetismo biolgico, entendido como fenmeno de
capitulao e abandono do indivduo perante o meio que o circunda, um
passo para alm do funcionalismo. Benjamin ainda faria suas essas
observaes de Caillois no Livro das Passagens, no sentido de que o
automatismo da manta, mesmo acfala, consegue realizar todas as
funes vitais, e correlaciona-se at, em funo de sua significao
funesta, com certos automatismos mticos (o de Pandora, o do vodu
haitiano), que, ao associarem o mecnico e o satnico, constatam a
relao pulstil entre o amor e a morte, algo que, muito mais adiante,
Lacan chamaria de Real24. Em meados de 1937, poca do encontro de
Duchamp e Benjamin na zona25, no limiar [Schwelle] entre prprios e
estranhos, num caf de Saint-Germain, Caillois publica uma
sintomtica resenha do mtodo anartstico do primeiro deles, exaltando
um para alm da obra, a des-obra ou des-oeuvrement, ou seja, a
inoperncia do sistema convencional. Caillois sublinha a a
bipolaridade e ope o modelo benjaminiano do sonhador alegrico, ao
modelo dos anartistas e crticos acfalos, que se identificariam com
o investigador rido e sinttico de
20
Cf SAN MARTIN, Francisco Javier - Dal-Duchamp: una fraternidad
oculta. Madrid, Alianza, 2004 e
PARCERISAS, Pilar Duchamp en Espaa. Madrid, Siruela, 2009.
21
Cf. LASERRA, Annamaria Materia e immaginario. Il nesso analogico
nellopera di Roger Caillois. Roma, Bulzoni, 1990, p.31-42; IDEM
Bataille e Caillois: osmosi e dissenso in RISSET, Jacqueline (ed.)
Georges Bataille: il Politico e il Sacro. Napoli, Liguori, 1987, p.
120-136. 22
Em um manuscrito contemporneo do ensaio sobre a obra de arte,
mais especficamente, numa carta
parisiense sobre pintura e fotografia, redigida no fim de 1936,
Benjamin associa dois artistas, Bosco e
Dali, por sua tendncia ao ptrido e corrupo, o que lhes faria
perceber novas verdades que no so
verdades exclusivas da pintura. Cf. CAILLOIS, Roger. Bosch et
Dal. Determinations inconscientes en peinture in Images du
Labyrinthe, ed. S. Massonet, Paris, Gallimard, 2008, p. 30-2. Dessa
independncia da sintaxe (e at mesmo do semitico) com relao ao
semntico deriva a esttica generalizada ou
fantasmtica de Caillois. Ver, desse autor, Esthtique gneralise.
Paris, Gallimard, 1962; Au couer du
fantastique. Paris, Gallimard, 1965; Images, imagesParis, Corti,
1966; Lcriture des pierres. Paris, Skira 1970; La Dyssimtrie.
Paris, Gallimard, 1973; Cohrences aventureuses. Paris, Gallimard,
1976. 23
Cf. BENJAMIN, Walter Paris as Goddess in Selected Writings. Ed.
M.W.Jennings H. Eiland & G. Smith. Camridge, Harvard University
Press, 1999, Vol 2, 1927-1934, p.141-3. 24
Cf. IDEM Paris, capitale du XIX sicle. Le livre des Passages.
Trad. Jean Lacoste. 2 ed. Paris, Cerf, 1993, p.707. 25
KOHAN, Martin Zona urbana. Ensayo de lectura sobre Walter
Benjamin. Buenos Aires, Norma, 2004.
-
10
cartas roubadas26, destacando, por exemplo, na experincia de
Duchamp, a total eliminao desse aspecto psicolgico do jogo,
implicado na natureza agonstica da partida e inscrito, como dado
conjectural, no prprio movimento das peas, para sublinhar,
entretanto, que o alvo era determinar um ponto de desconstruo, uma
dobradia ps-fundacional que, ao mesmo tempo e em todas as
circunstncias, satisfizesse vrias exigncias discordantes, no
interior de um mesmo sistema de relaes. Nessa vertigem do jogo,
onde se superpem a circularidade do dom de Marcel Mauss, a idia do
grand jeu de Ren Daumal, a singularidade absoluta da patafsica, as
regras do jogo de Leiris e at mesmo o jogo sublime de Guy Debord,
aquilo que, justamente, na in-operncia, chama a ateno de Caillois a
sintaxe das combinaes, o que j no remete a um indivduo especfico,
mas aponta sempre ao singular de uma conjuno discordante27. Esse
ponto singular-plural, como o chamaria Jean-Luc Nancy, o da
desindentificao, como suspenso das oposies binrias, e conecta-se
com a busca, em Duchamp, de um para alm da pintura e um para alm do
gnero, o que nos conduz, por sua vez, rearticulao anagramtica da
linguagem. A esse saber, denominado cincia diagonal28,
26
CAILLOIS, Roger - Les checs artistiques et lopposition et les
cases conjugues in Nouvelle Revue Franaise, set 1937, p.511-4 e,
nessa linha, o prefcio a POTOCKI, Jan Manuscrit trouv Saragosse.
Pref. R. Caillois. Paris, Gallimard, 1958. 27
Cf. CAILLOIS, Roger Cases dun chiquier. Paris Gallimard, 1970. O
conceito de singular no-especfico, de sorte que, enquanto a
linhagem deleuziana opta pela singularidade, a vertente
foucaultiana
tende ao especfico, muito embora o ltimo Foucault seja
consciente do poder oikonmico de um discurso
omnis et singulatim. Cf. ATTRIDGE, Derek The Singularity of
Literature. London, Routledge, 2004. 28
Em 1924, Viking Eggeling filma Sinfonia diagonal, que Deleuze
considera um exemplo da poderosa
vida orgnica, maneira da esttica in-existente de Kandinsky (o
conceito de seu sobrinho, Kojve, e
no deve espantar sua proximidade com a noo lacaniana de Real), a
contaminar a figura e assim
fornecer subsdios para uma montagem intersticial, tpica de
Resnais ou Godard. Pouco depois, em 1929,
dois cineastas hngaros, Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny,
filmariam, nessa mesma linha in-
existente, So Paulo, Sinfonia de uma Metrpole, em sintonia,
talvez, com a experincia de Walter
Ruttmann, em Berlim: sinfonia de uma cidade (1927). A esse
respeito, Lvi-Strauss assinala que ce nest donc pas de faon
mtaphorique quon a le droit de comparer comme on la si souvent fait
une ville une symphonie ou un peme; ce sont des objets de mme
nature. Plus prcieuse peut-tre encore,
la ville se situe au conluent de la nature et de lartifice.
Congrgation danimaux qui enferment leur histoire biologique dans
ses limites et qui la modlent en mme temps de toutes leurs
intentions dtres pensants, par sa gense et par sa forme la ville
relve simultanment de la procration biologique, de
lvolution organique et de la cration esthtique. Elle est la fois
objet de nature et sujet de culture; individu et groupe; vcue et
rve: la chose humaine par excellence. LEVI-STRAUSS, Claude Tristes
tropiques. Paris, Plon, 1955, p.138. sintomtico, portanto, que
Lustig e Kemeny, os diretores de So
Paulo, Sinfonia de uma Metrpole, centrem sua ateno no regime
disciplinar da Casa de Deteno
paulista, apagando os limites entre o fora (a metrpole) e o
dentro (a cela). Abordam o avesso da So
Paulo modernista que, no obstante, Blaise Cendrars soube captar
(da deriva, com efeito, seu Elogio da
vida perigosa de 1938, que no podemos cindir de certas idias de
Bataille ou Genet) porque nesse local
se entrevistou com Febrnio Indio do Brasil, um sujeito que hoje,
anacrnicamente, chamaramos de
pedfilo serial-killer, mas que, naquela poca, foi preso no
manicmio judicirio, um jardim zoolgico
deserto, segundo Cendrars, vendo ento destruda sua obra Revelaes
do Prncipe de Fogo (um poema
milenarista maneira dos que Macaba, a imigrante nordestina,
protagonista de A hora da estrela, ouviria
pelas praas de So Paulo, meio sculo depois). So essas
concomitncias que nos permitiriam falar de
um saber sagital (Foucault), aquilo que define a fico em
contraponto com a fbula, ou diagonal (como
preferem Caillois ou Arendt). No confundir com o conceito
arlequinal, de Mrio de Andrade, porque
nele o losango, de remota extrao futurista, aponta sempre, como
vimos, fuso homognea.
-
11
Caillois dedica um livro, Medusa & Cia29, de cujo proveito
os Seminrios de Lacan daro farto testemunho, na discusso acerca do
anamorfismo da imagem, idia que ainda opera, atualmente, mesmo que
sem reivindicao formal, na semelhana por anacronismo de
Didi-Huberman30. Com efeito, Caillois aproxima duas figuras
suplementares, o jogador de xadrez e o detetive, porque compreende
que assim se consolida a identidade entre o jogo e a modernidade,
como fuso ambivalente entre o jogo e o poder. No seu texto sobre
Mendeleiev, por exemplo, prope a tabela de elementos como um
tabuleiro real ou virtual, maneira dos tabuleiros-cidades de Vieira
da Silva, o que confirma, na diferena, a ntima unidade do universo,
a ordo rerum analisada por Mauss, a signatura rerum proposta por
Agamben. No , em suma, na densidade literria da capital do sculo
XIX Paris, o mito moderno seno na experincia esttica ps-literria, a
de Babel31, que se encontra, portanto, o n entre a proto-cena e a
histria, segundo admite o prprio Caillois no prefcio de 1978 a
Babel. Nos estudos pioneiros sobre mimetismo, o autor buscava a
relao entre a histria e a Ur-histria, ao passo que, em Babel,
passou a se sentir atrado e, ao mesmo tempo, alarmado por uma
trilogia funesta, o orgulho, a confuso e a conseqente runa da
literatura que advm com a ps-histria, o que levou-o a investigar as
leis de economia geral do mundo32. Em outras palavras, a equao
literria modernista lamentava que o epos moderno ou at mesmo
nacional casse no esquecimento. A leitura ps-literria celebrava, no
entanto, que assim fosse. A primeira alternativa queria realizar a
literatura sem suprimir a instituio, ao passo que a segunda buscava
suprimir a literatura sem chegar a institucionaliz-la. Ora, essa
desconstruo da metafsica a que Caillois chama de Babel parte de trs
noes bsicas, sua idia de nao como uma guerra de discursos, a
definio de sujeito como acefalidade pulsional e a lgica da repetio
como simulacro vertiginoso, idias que se desdobraro em vrias outras
vertentes, que no desdenham o emblema nem a cifra ludica barrocas,
presentes no programa situacionista33, bem como nas fices de Lezama
Lima ou
29
Cf. CAILLOIS, Roger - Medusa y Ca: pintura, camuflaje, disfraz y
fascinacin en la naturaleza y el
hombre. Trad. Manuel F. Delgado. Barcelona, Seix Barral, 1962.
30
Encore faut-il reconnatre lessentielle vitalit des survivances
et de la mmoire en gnral lorsquelle trouve les formes justes de sa
transmission. Alors se dgagerait, dans cette combinaison gomtrique
du
retrait et du non-repli, ce que Arendt nomme superbement une
force diagonale, qui diffre des deux
illimites quant leur origine, lune venant dum pass infini et
lautre dum futur infini; mais, bien quelles naient pas de
commencement connu, elles ont un point daboutissement, celui o
elles se heurtent les forces antagonistes, mais elle serait infinie
en ce qui concerne sa fin tant le rsultat de laction concerte de
deux forces dont lorigine est linfini. Cette force diagonale, dont
lorigine est connue, dont la direction est dtermine par le pass et
le futur, mais dont la fin dernire se trouve linfini, est la
mtaphore parfaite pour lactivit de la pense. DIDI-HUBERMAN, Georges
Survivance des Lucioles. Paris, Minuit, 2009, p.132. Para
Didi-Huberman a questo da origem no
seno a emergncia, em sua diferena, dos sujeitos representados,
na imagem, e o modo de sua exposio,
o que desloca o foco do problema da representao em direo
repetio, no coincidncia de si para
consigo. Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges - Peuples exposs, peuples
figurants in De(s)gnerations, n 9, Paris, set 2009, p. 7-17. 31
CAILLOIS, Roger Babel. Prced de Vocabulaire esthtique. Paris,
Gallimard, 1978, p.103-373; IDEM Chroniques de Babel. Paris, Denel
/ Gonthier, 1981. 32
IDEM Babel , op. cit., p.14-5. 33
La distinction centrale quil faut dpasser, cest celle que lon
tablit entre le jeu et la vie courante, le jeu tant tenu pour une
exception isole et provisoire. Il ralise, crit Johan Huizinga, dans
limperfection du monde et la confusion de la vie, une perfection
temporaire et limite. La vie courante, conditionne jusquici par le
problme des subsistances, peut tre domine rationnellement cette
-
12
Sarduy, em Cuba, ou as de Manuel Puig e Copi, na Argentina (ou,
melhor dizendo, no exlio dela). Josefina Ludmer definiu, alis,
algumas caractersticas dessa cidade bablica, qual ela prefere
chamar de ilha urbana.
La ciudad del presente como la sociedad y a la vez como una
teora de la divisin global. Y no slo la ciudad imaginaria de
Angosta (do romance de Abad Faciolince) con sus sektores. La
Habana, Mxico, Bogot, Medelln, Caracas, Santiago, Lima, San Pablo,
Buenos Aires las ciudades latinoamerianas de la literatura son
territorios de extraeza, miedo y vrtigo con cartografas y trayectos
que marcan zonas y lmites, entre fragmentos y ruinas. El nombre de
la ciudad puede llegar a vaciarse (como pueden vaciarse la narracin
o los sujetos de las ficciones) y desaparecer, y entonces el
trayecto, el cruce de las fronteras, y el vrtigo, son los de
cualquier ciudad o los de una ciudad. 34
possibilit est au coeur de tous les conflits de notre temps el
le jeu, rompant radicalement avec un temps et un espace ludiques
borns, doit envahir la vie entire. La perfection ne saurait tre sa
fin au moins dans
la mesure o cette perfection signifie une construction statique
oppose la vie. Mais on peut se proposer
de pousser sa perfection la belle confusion de la vie. Le
baroque, quEugnio dOrs qualifiait, pour le limiter dfinitivement,
de vacance de lhistoire, le baroque et lau-del organis du baroque
tiendront une grande place dans le rgne prochain des loisirs.
DEBORD, Guy Contribution a une definition situationniste du jeu in
Internationale Situationniste, n 1, jun. 1958, p.10. E ainda:
INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Seccin inglesa La revolucin del arte
moderno y el moderno arte de la revolucin. Logroo, Pepitas de
calabaza, 2007. 34
LUDMER, Josefina Territorios del presente. En la isla urbana in
Pensamiento de los confines, Buenos Aires, Fondo de Cultura
Econmica, n 15, dez. 2004, p.104. O corpus ficcional de
bablicas
ilhas urbanas montado por Ludmer inclui ABAD FACIOLINCE, Hctor
Angosta. Buenos Aires, Seix Barral, 2004 [2003 Colombia]; AIRA,
Csar La villa. Buenos Aires, Emec, 2001 [Argentina]; BELLATIN,
Mario Saln de belleza. Lima, Jaime Campodnico Editor, 1994
[Per-Mxico]; IDEM Perros hroes. Tratado sobre el futuro de Amrica
Latina visto a travs de un hombre inmvil y sus
treinta Pastor Belga Malinois. Buenos Aires, Interzona, 2003;
CABALLERO, Atilio La ltima playa. La Habana, Ediciones Unin, 1999
[Cuba]; CASTELLANOS MOYA, Horacio El asco. Thomas Bernhard en San
Salvador. San Salvador, Editorial Arco Iris, 1997 [El Salvador];
CUCURTO,
Washington [Santiago Vega] Cosa de negros. Buenos Aires,
Interzona, 2003 [Argentina]; FRANCO, Jorge Paraso Travel. Bogot,
Planeta Colombiana, 2001 [Colombia]; GUTIRREZ, Pedro Juan El rey de
La Habana. Barcelona, Anagrama, 1999 [Cuba]; LISCANO, Carlos El
camino de Ithaca. Montevideo, Cal y Canto, 1997 [Uruguay]; MALCA,
Oscar Al final de la calle. 4. ed. Lima, Libros de Desvo, 2000
[Per]; MELLA, Daniel Derretimiento. Montevideo, Trilce, 1998
[Uruguay]; PONTE, Antonio Jos Contrabando de sombras. Barcelona,
Mondadori, 2002 [Cuba]; TRAS, Fernanda La azotea. Montevideo,
Trilce, 2001 [Uruguay] e VALLEJO, Fernando La Virgen de los
Sicarios. Bogot, Alfaguara, 1994 [Colombia]. Poderamos acrescentar
dois outros romances disponveis em portugus,
CHEJFEC, Srgio Lugar sinistro. Trad. Marcelo Barbo. So Paulo,
Amauta, 2009 [Boca de lobo, Argentina, 2000] e KOHAN, Martin
Cincias Morais. Trad. E. Brando. So Paulo, Companhia das letras,
2008 [Argentina, 2006]. Ou a polmica experincia narrativa de Bruno
Morales, pseudnimo de
Sergio Di Nucci, em Bolivia construcciones [Buenos Aires,
Sudamericana, 2007], enxertando um objet
trouv, 50 pginas de Nada, de Carmen Laforet, romance premiado
com o Nadal, em 1944, por narrar a
migrao urbana na Barcelona franquista. E provavelmente
Montserrat de Daniel Link [Buenos Aires,
Mansalva, 2006] ou Ocio, de Fabin Casas [Buenos Aires, Santiago
Arcos, 2006], situado na miudeza
cotidiana de Boedo, o bairro da literatura proletria nos anos
20. Sem esquecer, no Brasil, dos Romances
e contos reunidos de Joo Gilberto Noll [So Paulo, Companhia das
Letras, 1997], da srie Inferno
provisrio de Luiz Ruffato, em cinco volumes [Mamma, son tanto
felice, O mundo inimigo, Vista parcial
da noite e O livro das impossibilidades] ou O Sol se Pe em So
Paulo, de Bernardo Carvalho [So
Paulo, Companhia das letras, 2007].
-
13
O artista aceflico dessa cidade esvaziada, dessa ilha urbana,
dessa Babel, algum voltado para si mesmo, como para a sua prpria
fantasmagorizao, na medida em que espera o absolutamente outro, o
heterolgico de si, operando em seu redor a convergncia de duas
idias antagnicas: procura, de um lado, a normativa de Lvi-Strauss
sobre o fato social total de Mauss (vivenci-lo como nativo em vez
de analis-lo como etngrafo), mas busca, ao mesmo tempo, seu
complemento antagnico, a revoluo psicolgica apregoada por Caillois,
ao fingir-se estrangeiro sociedade em que vive35. Essa vertigem
intelectual, que prepara o espectro de Derrida, a estratgia de uma
hantologia desconstrutiva36, no hesita, entretanto, em reconhecer,
na nova situao, a auto-imunidade da prpria democracia, uma vez que,
em Babel, a vida est suspensa ao poder soberano do sagrado e por
isso mesmo que a prpria cidade oscila, numa paronomsia j apontada
por Roland Barthes, entre o centre-ville e o centre-vide37.
35
CAILLOIS, Roger - Prefcio a MONTESQUIEU - Oeuvres Compltes.
Paris, Gallimard, 1949, p.xiii. 36
Cf.HEIMONET, Jean-Michel Politiques de lcriture, Bataille /
Derrida. Le sens du sacr dans la pense franaise du surralisme nos
jours. Paris, Jean-Michel Place, 1989. 37
Toutes ses villes [as do Ocidente] sont concentriques; mais
aussi, conformment au mouvement mme de la mtaphysique occidentale,
pour laquelle tout centre est le lieu de la vrit, le centre de nos
villes est
toujours plein: lieu marqu, cest en lui que se rassemblent et se
condensent les valeurs de la civilisation: la spiritualit (avec les
glises), le pouvoir (avec les bureaux), largent (avec les banques),
la marchandise (avec les grands magasins), la parole (avec les
agoras: cafs et promenades): aller dans le centre, cest rencontrer
la vrit sociale, cest participer la plnitude superbe de la ralit.
La ville dont je parle (Tokyo) prsente ce paradoxe prcieux: elle
possde bien un centre, mais ce centre est vide. Toute la ville
tourne autour dun lieu la fois interdit et indiffrent, demeure
masque sous la verdure, dfendue par des fosss deau, habite par un
empereur quon ne voit jamais, cest--dire, la lettre, par on ne sait
qui. Jounellement, de leur conduite preste, nergique, expditive
comme la ligne dun tir, les taxis vitent ce cercle, dont la crte
basse, forme visible de linvisibilit, cache le rien sacr. Lune des
deux villes les plus puissantes de la modernit est donc construite
autour dun anneau opaque de murailles, deaux, de toits et darbres,
dont le centre lui-mme nest plus quune ide vapore, subsistant l non
pour irradier quelque pouvoir, mais pour donner tout le mouvement
urbain lappui de son vide central, obligeant la circulation un
perptuel dvoiement. De cette manire, nous dit-on, limaginaire se
dploie circulairement, par dtours et retours le long dun sujet
vide. Cf. BARTHES, Roland Lempire des signes. Paris, Flammarion,
1984, p.44-46. Reaparece, sob outra perspectiva, a tenso entre um
Ocidente
ladrilhador e um Oriente semeador, disseminador, aventada por
Srgio Buarque de Holanda, em Razes
do Brasil, contemporneamente s pesquisas de Duchamp e
Benjamin.