PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
A filosofia da linguagem em Plato
Andr Antnio Ribeiro
Orientador: Prof. Dr. Jayme Paviani
Porto Alegre, janeiro de 2006
Resumo Na filosofia da Plato, as Idias so postuladas para serem
a referncia extralingstica
objetiva que garantiria a significabilidade da linguagem. O
problema que, tal como apresentada nos dilogos Repblica e Fdon, a
Teoria das Idias tem graves inconsistncias, sendo a no menos
importante o fato de no explicar como as Idias se relacionam com o
mundo sensvel, o que o mesmo que dizer que elas so incognoscveis.
Plato, atravs de uma crtica sua prpria Teoria das Idias e s
concepes de linguagem defendidas pelos sofistas, reformular, em
aspectos importantes, a sua Teoria. O que queremos enfatizar neste
trabalho que, para essa reformulao, Plato utilizar a linguagem, tal
como a usamos no dia-a-dia, como paradigma para resolver os
problemas da Teoria das Idias, de modo que ela possa, sem aporias,
ajudar no entendimento das diferenas entre linguagem significativa
e no-significativa. Ou seja: tentaremos mostrar que, se a Teoria
das Idias foi postulada para garantir a significao lingstica, a
linguagem, por sua vez, servir como modelo para ajudar a mesma
Teoria a superar seus problemas.
Abstract
In Platos philosophy, the Forms are postulated to be the
objective extra-linguistical reference that assure the linguistic
meaning. But theory of Forms in Republic and Phaedo has many
inconsistencies. Plato, by a self-criticism of your theory of
Forms, made changes in important aspects of his theory. To do this,
he uses ordinary speech, especially ours intuitions about the
relevant differences between meaningful and meaningfulness
language, as paradigm to solution of aporias in theory of Forms. We
want to show that, if the Forms are postulated to assure the
significant speech, language is used by Plato as a model to modify
and avoid contradictions of his earlier theory.
2
Agradecimentos
Ao CAPES, que financiou meus estudos. Ao PPG em Filosofia da
PUCRS, na pessoa de coordenador poca de meu ingresso, Prof. Dr.
Draiton Gonzaga de Souza, pela acolhida. Ao Prof. Dr. Jayme
Paviani, pela orientao nos trs anos iniciais e pelo exemplo vivo de
filosofar. Ao Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ulmann, exemplo de erudio
e bom-humor, que, em meio aos seus vrios afazeres, ainda conseguiu
gentilmente me orientar no ltimo semestre. Ao Prof. Dr. Eduardo
Luft pelo apoio e incentivos constantes. Aos amigos Prof. Srgio
Sardi, Nazareno de Almeida, Sandra Fasolo, Vnia Cossetin, Jason
Lima e Silva e Luciana Rodhen que ajudaram a manter viva a chama da
filosofia quando ela ameaava apagar.
Agradecimento especial: Este trabalho no teria sido possvel sem
a ajuda do Prof. Dr. Marcelo Pimenta Marques da UFMG que,
generosamente, me permitiu pesquisar em seu grande arquivo pessoal
de artigos e livros sobre o Sofista. A ele, meu muitssimo
obrigado!
3
Sumrio
Introduo...........................................................................................................
5
Captulo I
As concepes de linguagem pr-platnicas
1.1 Sofistas e
retrica.......................................................................................
13
1.2
Grgias.......................................................................................................
15
1.3
Protgoras...................................................................................................
22
1.4 O poema de
Parmnides.............................................................................
27
1.5 A teoria referencial da
linguagem..............................................................
33
Captulo II
O Crtilo
Introduo.........................................................................................................
38
2.1 A tese
convencionalista.............................................................................
40
2.2 As
etimologias...........................................................................................
46
2.3 A tese
naturalista.......................................................................................
57
Captulo III
O Parmnides
Introduo........................................................................................................
64
3.1 A Teoria das Idias como resposta ao paradoxo de
Zeno........................ 65
3.2 As aporias da teoria das
Idias..................................................................
68
3.3 Interpretao do significado do exerccio
dialtico................................... 73
3.4 As 8 hipteses sobre o
Uno.......................................................................
76
3.5 Concluses particulares de cada
Hiptese................................................. 89
4
3.6 Concluso geral da segunda parte do
Parmnides..................................... 91
Captulo IV
O Sofista
Introduo.........................................................................................................
93
4.1 As definies de
sofista..............................................................................
97
4.2 O mtodo de refutao (elenchus)
socrtico............................................ 101
4.3 O sofista como produtor de imagens
faladas............................................ 104
4.4 Anlise do No-Ser
..................................................................................
106
4.5 Problema da
falsidade...............................................................................
107
4.6 As doutrinas do
Ser..................................................................................
109
4.7 Como pode algo ter vrios nomes: sumploke
eidolon.......................... 113
4.8 Os gneros mais importantes
...............................................................
116
4.9 O No-Ser como
Outro.............................................................................
119
4.10 A comunho das Idias e o
discurso.......................................................
120
Consideraes finais
O Timeu e a linguagem como analogia
Introduo............................................................................................................
125
A analogia como princpio estrutural do
mundo................................................. 126
A linguagem como
analogia................................................................................
129
Referncias
bibliogrficas...................................................................................
137
5
Introduo
Em praticamente todos os seus dilogos, Plato apresenta Scrates
questionando as
pessoas que ele encontrava sobre o significado de certos
conceitos, pedindo-lhes que digam,
definam, expliquem o que a justia, a virtude, o conhecimento, a
beleza, etc.
No dilogo Fdon (74a), Plato pergunta qual o significado da
palavra igual.
Aparentemente, a forma mais bvia de se responder a essa pergunta
indicar exemplos de
coisas que so iguais, mostrando, por exemplo, dois pedaos de pau
de mesmo comprimento.
Mas Plato afirma que o problema com essa estratgia que um pedao
de pau pode ser igual
a outro pedao e, ao mesmo tempo, ser maior ou menor em relao a
um terceiro. Nesse caso,
o mesmo basto pode ser corretamente chamado de igual e no-igual,
pois ele exemplifica
estes dois conceitos opostos simultaneamente. Com esta afirmao,
Plato no quer
simplesmente nos lembrar de que as pessoas podem se enganar ou
discordar entre si quanto as
suas percepes de dois bastes iguais. A sua tese que podemos
dizer corretamente que o
mesmo pedao de pau igual e desigual, grande e pequeno, etc.
Consideraes anlogas
podem ser feitas em relao a objetos que exemplificam conceitos
como grande,
6
pequeno, leve, pesado, etc. (Repblica 479b). Se algo considerado
belo por ter a cor
dourada, esta mesma cor em outro objeto pode torn-lo feio; logo,
o dourado belo e no
belo (Hpias Maior 290ab; Repblica. 479a).
Ns temos a concepo da igualdade: sabemos usar corretamente essa
palavra,
sabemos o que ela significa. Mas como obtemos esse saber? Nenhum
objeto sensvel
exemplifica corretamente, perfeitamente, a igualdade; logo, a
nossa concepo de igualdade
no pode ter sido derivada da percepo de objetos sensveis. No
existem exemplos perfeitos
e no-ambguos de igualdade no mundo sensvel. Por isso Plato
postula a existncia de
conceitos no-ambguos, que exemplificariam perfeitamente
determinado conceito, sem
exemplificar simultaneamente o seu oposto. Tais conceitos no so
captados pelos sentidos,
mas pela mente sozinha: so as Idias.
As Idias, portanto, so postuladas para serem a referncia
objetiva s quais as
palavras se referem, garantindo assim que sejam
significativas.
Talvez esta caracterstica das Idias fique mais clara se a
compararmos com o seu
equivalente na metafsica contempornea: as proposies. Vamos
procurar entender o que
significa uma proposio atravs de um pequeno exemplo.
Quando entra em cena no segundo ato, Hamlet est lendo um livro
(o que, alis, causa
alarme nos presentes, j preocupados com a sua sanidade mental).
Polnio, tentando ser
simptico, lhe pergunta o que est lendo e recebe, como resposta,
um enigmtico palavras,
palavras, palavras.... De fato, em um certo sentido, tudo o que
lemos so palavras, palavras,
palavras, isto , sinais grficos distribudos em uma folha de
papel, e ler consiste em decifrar
estes sinais de acordo com regras que aprendemos laboriosamente
nos bancos escolares de
nossa infncia. Por outro lado, bvio que ningum l o Hamlet com um
exerccio de
decifrao criptogrfica! Ns no lemos as palavras, palavras,
palavras do texto por elas
mesmas, pois estamos interessados em outras coisas, que esto alm
dos sinais grficos.
7
Estas outras coisas, que esto alm dos sinais que usamos para
express-las, e que
denominamos proposio, no so entidades lingsticas.1 A proposio
que a neve branca
no deve ser confundida com a frase a neve branca. A frase a neve
branca expressa a
proposio que a neve branca. O termo proposio refere-se ao
contedo que expresso
em uma afirmao. Compreender uma frase apreender a proposio que a
frase expressa.
importante enfatizar que uma proposio no um objeto no mundo,
como o exemplo a neve
branca, que usamos, pode dar a entender. Conforme os defensores
da teoria proposicional
da linguagem,2 proposies seriam objetos abstratos que existem
independentemente da
mente: mesmo no caso em que dizemos mesa, esta palavra no se
refere ao objeto concreto
que vemos a nossa frente, mas ao conceito abstrato de mesa.
Supe-se que uma proposio seja a mesma para qualquer indivduo que
a
compreenda. O meu conceito de mesa deve ser idntico ao conceito
de mesa de um ingls,
apesar de expressarmos essa mesma proposio com palavras
diferentes. As frases a neve
branca, para um brasileiro; the snow is white, para um falante
de lngua inglesa; la neige
est blanc, para um francs e der Schnee ist weiss, para um alemo,
so frases que
expressam a proposio a neve branca (existiria uma quantidade
indeterminada de frases
que expressam o mesmo significado).
O paralelo entre as Idias platnicas e o que os metafsicos
contemporneos
denominam proposio to significativo que Kirkham, em seu livro
sobre as teorias
contemporneas da verdade, quando tenta explicar o segundo,
recorre ao primeiro:
Uma proposio uma entidade abstrata. o contedo informacional de
uma
sentena completa no modo declarativo. (...) Leitores que tm
familiaridade com a noo de
forma platnica ou universal podem achar til a seguinte analogia:
uma proposio est para
uma sentena declarativa assim como uma forma platnica est para
um predicado. Falando
1 Para um tratamento completo do conceito de proposio, ver Loux,
1998, cap. IV p. 132-164 e Lycan, 2001, p.80-7 2 Frege (O
pensamento, 1919); Russel, (Problems of philosophy, 1919, cap. IX e
X); Strawson (Individuals, 1959, cap. V e VI); Donagan (Universals
and metaphysical realism, 1963); Armstrong, (Universals, 1989) para
citar os exemplos mais destacados, so defensores desse tipo de
teoria (cf. Lycan,2001, p. 80).
8
mais ou menos metaforicamente, seja l do que for que sejam
feitas as formas platnicas,
do mesmo so feitas as proposies. Proposies no so idnticas a
tipos de sentenas, pois
um tipo de sentena no nada mais do que a coleo dos seus membros,
enquanto uma
proposio ainda existiria mesmo que nunca tivesse sido expressa
em nenhuma ocorrncia de
sentena (2003, p. 89).
Para que sejam capazes de garantir a significao da linguagem, as
Idias so
apresentadas por Plato como tendo caractersticas opostas as
caractersticas dos seres
sensveis: na Repblica, elas so qualificadas como unas, em si,
perfeitas, imateriais, eternas,
imutveis, imveis, invisveis aos sentidos e perceptveis somente
pela inteligncia (525c-
533e). No Fdon as Idias so apresentadas como sendo independentes
dos entes sensveis;
eternas, imutveis, inteligveis e simples (indivisveis) (80e,
92d, 100c).
O problema que, tal como apresentada nestes dilogos, a Teoria
das Idias tem
graves inconsistncias, sendo a no menos importante o fato de no
explicar como as Idias se
relacionam com o mundo sensvel, o que o mesmo que dizer que elas
so incognoscveis.
Ora, se elas so incognoscveis, ela tambm no explica como a
linguagem tem significado. O
dilogo Parmnides, onde essa deficincia constatada, pe Plato
diante do seguinte dilema:
a Teoria das Idias tem inconsistncias internas graves, mas sem
ela no possvel garantir o
significado da linguagem.
A autocrtica que Plato faz a sua prpria teoria mostra que suas
dificuldades vm do
fato de as Idias serem concebidas como unas, e elas so
concebidas como unas por causa da
proibio de Parmnides de se unir Ser e No-Ser, pois, segundo o
pensador de Elia, o No-
Ser no pode ser dito ou pensado. Ora, sofistas e retricos, como
Protgoras e Grgias,
baseavam-se nessa mesma proibio para defender concepes de
linguagem que afirmavam
que tudo o que dizemos verdadeiro, no h falsidade, impossvel
contradizer.
Plato, atravs de uma crtica sua prpria Teoria das Idias e s
concepes de
linguagem defendidas pelos sofistas, reformular, em aspectos
importantes, a sua Teoria. O
9
que queremos enfatizar neste trabalho que, para essa reformulao,
Plato utilizar a
linguagem, tal como a usamos no dia-a-dia, como paradigma para
resolver os problemas da
Teoria das Idias, de modo que ela possa, sem aporias, ajudar no
entendimento das diferenas
entre linguagem significativa e no-significativa. Ou seja:
tentaremos mostrar que, se a Teoria
das Idias foi postulada para garantir a significao lingstica, a
linguagem, por sua vez,
servir como modelo para ajudar a mesma Teoria a superar seus
problemas.
No captulo 1 estudaremos as concepes de linguagem com as quais
Plato se
defrontou em seu tempo. Abordaremos as teses dos retricos
sofistas, representados por
Grgias e Protgoras, e o poema de Parmnides. A partir das
premissas plausveis e da
deduo logicamente impecvel de que o Ser e o No-Ser no , feita
por Parmnides, os
sofistas extraam algumas concluses paradoxais, tais como:
impossvel falar falso;
impossvel contradizer; todas as frases negativas so falsas;
apenas juzos de identidade so
possveis; tudo o que falamos verdadeiro. Tais concluses tornam a
linguagem, em ltima
instncia, impossvel.
No captulo 2, mostraremos como Plato, no dilogo Crtilo,
apresenta e discute, sob
o nome de convencionalismo (a tese segundo a qual o significado
das palavras estabelecido
por conveno ou acordo) e naturalismo (a tese de que existe
naturalmente uma denominao
exata para cada um dos seres), duas teses sobre a linguagem que
so, na verdade, as teses dos
sofistas e a de Parmnides, respectivamente. Plato mostra que,
apesar de a posio
convencionalista ser diametralmente oposta naturalista, ambas
levam, porm, s mesmas
concluses: (1) nenhum nome mal-atribudo: todos os nomes so
verdadeiros; (2)
impossvel falar falso. A concluso do Crtilo ser a de que no por
meio de seus nomes
que devemos procurar conhecer ou estudar as coisas, mas, de
preferncia, por meio delas
prprias. Qual o significado dessa concluso? Como podemos
conhecer algo diretamente,
sem palavras? E, mais importante, o que podemos conhecer sem
palavras?
10
Essas respostas sero encontradas no dilogo Sofista, mas, antes,
abordaremos o
dilogo Parmnides (captulo 3). Plato descobriu, corretamente, que
os problemas da sua
Teoria das Idias e as concluses paradoxais sobre a
impossibilidade da linguagem dos
sofistas e megricos tinham uma origem comum, isto , a negao
parmendea da
possibilidade de se falar com significado sobre o No-Ser. As
aporias da Teoria das Idias so
expostas no Parmnides e, atravs delas, podemos compreender por
que essa Teoria no
explica a linguagem. Assim, o problema do significado da
linguagem e problemas metafsicos
referentes aos conceitos de Ser e No-Ser esto intimamente
relacionados.
O Sofista, como veremos no captulo 4, justamente o dilogo em que
Plato procura
determinar qual o status ontolgico da imagem (edolon). Isto
equivale a, de alguma forma,
supor o No-Ser como Ser. A perplexidade sobre como relacionar
Ser com o No-Ser s se
desfaz quando Plato nota que ns fazemos tais relacionamentos ao
usarmos a linguagem
cotidianamente. Na linguagem atribumos a homem, por exemplo,
diversas caractersticas e
qualidades (cor, forma, tamanho, vcios, virtudes), afirmando
assim, no apenas que o homem
, mas tambm que tais caractersticas so e, alm disso, que a relao
entre tais
caractersticas e o homem tambm . Assim, a linguagem e sua
estrutura sero usadas como
paradigma para o entendimento da correta inter-relao dos
conceitos metafsicos.
Na linguagem algumas combinaes de nomes so permitidas, enquanto
outras no o
so. Mais especificamente, um discurso formado por dois gneros de
sinais: os nomes e os
verbos. Um discurso formado unicamente por nomes ou um discurso
formado unicamente por
verbos seria apenas uma seqncia de palavras, no um discurso.
Apenas uma combinao de
nomes e verbos pode nos dizer que algo , foi, ocorre e, por
isso, apenas uma combinao
desse tipo pode ser considerada um discurso. Analogamente, ao se
combinarem Idias
diferentes existem trs possibilidades: ou elas podem se associar
entre si livremente; ou no
podem se associar de nenhuma maneira, ou algumas delas podem se
associar com algumas,
11
mas com outras no (nem todas as combinaes associativas so
permitidas). Se, por
exemplo, o Movimento pudesse associar-se ao Repouso, o Repouso
seria Movimento e o
Movimento seria (ou estaria em) Repouso; por outro lado, o
Movimento e o Repouso podem
se associar com o Ser, caso contrrio ficariam excludos da
existncia. Resta o terceiro
caso: apenas algumas associaes so permitidas. Esse seria um caso
anlogo ao da
combinao das letras na formao das palavras e das palavras na
formao de frases:
algumas combinaes so vlidas, outras so invlidas.
Assim, graas ao fato de os gneros se prestarem a algumas
associaes e a outras no,
possvel demonstrar tambm que h um Ser do No-Ser, pois o
Movimento, por exemplo,
outro em relao ao Ser e o mesmo em relao a si prprio. H, assim,
dois novos gneros:
o Mesmo e o Outro que participam, ambos do Ser, mas no se
confundem com o Ser.
Plato estabelece uma concepo do No-Ser, no como negao da
existncia, mas
como Outro (hteron) em relao a uma forma determinada. Desse
modo, o No-Ser pode ser
definido como sendo, no a negao do Ser (ausncia de ser), mas
como qualquer coisa que
seja outro (diferente) do Ser: quando falamos no No-Ser isso no
significa (...) qualquer
coisa contrria ao Ser, mas apenas outra coisa qualquer que no o
Ser. (...) No podemos,
pois, admitir que a negao signifique contrariedade, mas apenas
admitiremos nela alguma
coisa de diferente. O no-belo, por exemplo, participa do gnero
outro em relao ao belo:
como gnero outro participa do ser, o no-belo tambm participa do
ser. Dessa maneira, a
forma do No-Ser pode combinar-se com a forma do Ser, pois o
No-Ser o Outro do Ser
(tudo o que no igual ao Ser a casa, o cavalo, o amarelo, etc.) e
no a negao do Ser.
Com isso, garante-se existncia das imagens e de graus
intermedirios entre verdade e
falsidade. A imagem, cpia do original, seria justamente algo
intermedirio entre o Ser e No-
Ser, pois ela (tem existncia prpria), mas, por outro lado, ela
no o original. Assim
tambm possvel falar em discursos falsos, pois esses no so
discursos que falam sobre o
12
No-Ser, isto , no falam nada, mas so discursos que dizem alguma
outra coisa em relao
ao que realmente deveriam falar.
Garantida a existncia das imagens e das cpias, garante-se tambm
a existncia de
um lugar ontolgico para a linguagem. No dilogo Timeu (captulo
5), Plato aplicar esse
resultado do Sofista em um contexto mais amplo. A linguagem
funciona como o intermedirio
ontolgico entre o reino das Idias e o mundo sensvel, sendo uma
imagem do primeiro,
imagem entendida aqui como o termo que serve de medida comum
entre dois extremos e
mantm, assim, corretamente a proporo entre ambos. o papel
analgico da linguagem,
portanto, que tentaremos esclarecer nesse captulo.
13
Captulo I
As concepes de linguagem pr-platnicas
1.1 Sofistas e Retrica
A retrica ou arte de persuadir consistia em tcnicas de discurso
que visavam
demonstrar a plausibilidade de uma tese dada. Nas palavras de
Plato, a retrica de Tsias e
Crax3 consistia na descoberta de que a probabilidade [ei0ko/ta
provvel, plausvel,
aparncia] deve ser tida em maior apreo do que a verdade
[a0lete/wj] (Fedro, 267a). Essa
afirmao torna-se significativa, se levarmos em considerao o fato
de a retrica ter se
originado nos meios jurdicos4. No gnero jurdico, o ru ou o
acusador5 discursam para
defender ou acusar algum diante de juzes e de um jri que deve
escolher entre uma de duas
alternativas mutuamente excludentes: a culpa ou a inocncia. 3
Tsias e Crax so considerados os inventores da retrica. Eles
publicaram um tratado sobre a arte retrica (techn rhetorik), hoje
perdido, e que provavelmente era uma espcie de coletnea de
preceitos prticos exemplificados com casos concretos, na qual
sistematizaram e organizaram o que era at ento uma prtica emprica (
Reboul, 1998, p. 2. Plebe, 1978. p. 1; Barilli, 1985 p. 13). 4
Conforme Aristteles, a arte da retrica se originou na Magna Grcia
(Siclia e Itlia) por volta da primeira metade do sculo V a.C. Em
467 a.C., a tirania de Trasbolo de Siracusa (Siclia) foi derrubada
e a democracia restabelecida. Com isso, seguiram-se numerosos
processos judiciais movidos por cidados que queriam reaver as
terras que lhes haviam sido confiscadas pela tirania. Quando, diz
Aristteles, a tirania foi destruda na Siclia e as questes entre
particulares, aps um longo intervalo, foram novamente submetidas
aos tribunais, pela primeira vez, nesse povo de esprito penetrante
e naturalmente inclinado discusso, viram-se os sicilianos Corax e
Tsias dar um mtodo e regras. Antes ningum seguia uma rota traada,
nem se submetia a uma teoria e, entretanto, a maioria se exprimia
com cuidado e ordem (Ccero, Brutus, 12, 46 citado por Plebe, 1978,
p. 2) 5 Na poca de Crax e Tsias no existiam ainda advogados: os
cidados que recorriam justia valiam-se de pessoas que sabiam
escrever, os loggrafos, que redigiam as queixas que eram ento lidas
diante do tribunal pelo prprio ru ou acusado (Reboul, 1998, p.
2.).
14
Se o jri e os juzes compartilham a mesma opinio sobre a
ocorrncia ou no dos
fatos dos quais o ru acusado, seja porque possvel demonstr-los
de forma indubitvel,
seja porque esses fatos so de conhecimento de todos, ento o ru
ou o acusador praticamente
no tero trabalho a no ser o de dirigir a ateno dos seus ouvintes
para tais fatos. Mas, caso
esse consenso prvio no exista, pois no possvel fornecer uma
demonstrao exata dos
fatos, ou no caso de jurados e juzes terem uma opinio prvia
contrria do ru, ento
nesses casos que a arte retrica tem uma funo a cumprir: a de
apelar para a verossimilhana
ou plausibilidade. Quer dizer: o argumento retrico, com seu
apelo ao eikos, usado quando
no h evidncia disponvel para comprovar se os fatos ocorreram de
determinada forma ou
no (evidncia que seria fornecida, por exemplo, por uma
testemunha) (cf. Woodruff, 1999, p.
269; 298).
Ou seja, h casos em que no possvel saber, mediante uma verificao
independente
do que foi dito pelo orador, se ele est dizendo a verdade ou no,
isto , se os fatos ocorreram
realmente tais como ele os descreve. Nos casos em que no possvel
comprovar se o
contedo do discurso reflete com fidelidade o que ocorreu, os
ouvintes s tm o que
afirmado no discurso do ru ou acusador para julgar a tese
apresentada.
Por exemplo, um acusado de assassinato poderia recorrer ao tipo
de argumento (ou
figura retrica) conhecida como crax: se ele uma pessoa forte,
poderia argumentar que
no cometeu o assassinato por saber que as suspeitas recairiam
imediatamente sobre si; se
uma pessoa fraca, bastaria argumentar que no teria as condies
necessrias para assassinar
algum.6 Ou, em outro exemplo, uma pessoa acusada de roubar um
manto pode argumentar
que, tendo dinheiro e podendo compr-lo, no teria que expor-se ao
risco de ser preso para
obt-lo (cf. Woodruff, 1999, p. 296).
6 Plato (Fedro 273b-c) atribui esse tipo de argumentao a Tsias;
Aristteles (Retrica 1402a) o atribui a Crax.
15
O apelo ao eikos, verossimilhana, , portanto, um apelo s
expectativas razoveis
dos ouvintes. Mas o que seja uma expectativa razovel depende do
contexto no qual os fatos
so apresentados. A alterao do contexto pode alterar
significativamente o que pode ou no
pode ser considerado como razovel. No segundo exemplo citado
acima, a informao de que
o acusado tem (ou no) dinheiro determina a plausibilidade ou a
implausibilidade da acusao
de roubo, se razovel acreditarmos que o acusado realmente
cometeu o roubo ou no. Ora, o
contexto fornecido pelo prprio orador, de modo que a habilidade
em fornecer os contextos
adequados, que tornem o ponto de vista defendido mais plausvel
ou razovel, vem a ser
determinante na vitria de uma argumentao ou da argumentao
contrria (cf. Woodruff,
1999, p. 296-7).
Na argumentao retrica, portanto, o fato, o que realmente
ocorreu, torna-se
irrelevante e, em casos extremos, quando o que ocorreu
justamente o que se quer negar, nem
deve ser citado (casos h em que no devem ser mencionados os
prprios fatos quando tm
contra si as aparncias Fedro 272e), e as questes so julgadas
apenas com base na
capacidade do advogado em persuadir a sua audincia.
E sobre esse poder de persuadir os ouvintes, por meio do lo/goj,
que o mais
destacado representante da retrica de seu tempo, Grgias, vai
refletir.
1.2 Grgias
Grgias veio a Atenas em 427 como embaixador para pedir ajuda na
guerra contra
Siracusa. A eloqncia do seu discurso na Assemblia causou um
enorme impacto nos
atenienses pela novidade de estilo. Esse estilo novo consistia
em uma espcie de prosa
potica (Reboul, 1998, p. 4): Grgias usava na prosa (normalmente
usada como uma mera
transcrio da fala comum) elementos da poesia, tais como o ritmo,
rimas internas (que
16
facilitariam a memorizao do que foi dito), ornamentos, metforas
e antteses (cf. Woodruff,
1999, p. 299).
No haveria, portanto, para Grgias, separao entre prosa (retrica)
e poesia, sendo
ambas consideradas como dois aspectos diversos do lo/goj ou
discurso: a poesia seria um
discurso com metro (lgos chon mtron) enquanto que a prosa seria
um discurso sem
metro (lgos neu mtron). Mas se, na prtica, retrica e poesia so
inseparveis, nem por
isso elas deixam de apresentar duas problemticas distintas para
o pensamento gorgiano: de
um lado, ele nos apresenta a poesia como uma produtora de iluses
ou enganos (apte), de
outro, a retrica como persuaso (peith).
A concepo de poesia de Grgias deriva da concepo pitagrica7 da
palavra como
algo que tem um poder mgico e fascinante de encantar os
ouvintes. Mas enquanto que para
os pitagricos a arte servia para curar as molstias do corpo e da
alma, para Grgias o
encantamento (epod; goetea) potico cria uma espcie de agradvel
doena (nsos
hedea) na alma que melhor do que a normalidade da vida
cotidiana. A poesia nos faz crer
em coisas que no existem; ela , portanto, uma espcie de engano
que afeta ao indivduo.
A retrica, por outro lado, tem uma funo social que visa incitar
os cidados ao
poltica. Ela tambm tem o poder potico de criar iluses, mas seu
objetivo fazer os ouvintes
7 Os pitagricos no se interessaram tanto pela arte da retrica
(entendida como a sistematizao e organizao de um saber emprico) mas
dirigiram suas reflexes sobre o poder do lo/goj em despertar certas
reaes psicolgicas (emocionais) nos ouvintes (Plebe, 1978, p. 4).
Para eles, o lo/goj possui um poder de fascnio, de encantamento, de
atrao, que era comparado ao poder de seduo ou arte de encantamento
da msica, cuja capacidade em anular ou modificar certos estados da
alma eram conhecidos e muito valorizados pelos seus efeitos
mgico-medicinais: os pitagricos praticavam a catarse [kaqa/rsei
purificao] do corpo pela medicina e a da alma pela msica (Kirk e
Raven, 1990, p. 231). Essa aproximao da retrica com a medicina nos
leva a outra concepo importante da retrica pitagrica: a polutropa.
Na concepo grega, o mdico deve aplicar um remdio que no s seja
eficaz contra a doena mas que tambm seja adequado constituio do
doente, constituio essa que varia de paciente para paciente.
Analogamente, para os pitagricos, os discursos no podem ser
proferidos indiscriminadamente, mas o orador deve levar em
considerao que existe apenas um tipo de discurso apropriado para
cada diferente tipo de pessoa. Ou mais exatamente: para cada tipo
de pessoa h um nico tipo de discurso que lhe adequado: a isso os
pitagricos chamavam monotropa. Mas, como no existe apenas um nico
tipo de pessoa, tambm no existe um nico tipo de discurso que se
aplique a todos: h tantos tipos de discursos diferentes quantos
diferentes tipos de pessoas: a polutropa. Assim, h os discursos
paidiko apropriados para os jovens, os gynaikeioi para as mulheres,
os ephebikoi para os jovens, etc (Plebe, 1978, p. 3). Portanto, a
polutropa caracterizada como a faculdade de encontrar o modo de
expresso mais conveniente aos ouvintes do momento atravs da
capacidade de escolher palavras bem ajustadas (lo/goj a9rmodi/ouj)
ao pblico.
17
crerem que as coisas so diferentes do que so, de acordo com as
intenes do orador. Ambos
os conceitos (apte potica e peith retrica) esto claramente
exemplificados na famosa
passagem do seu Elogio de Helena:
O Discurso [lgoj] um senhor soberano que, com um corpo diminuto
e quase imperceptvel, leva a cabo aes divinas. Na verdade, ele
tanto pode deter o medo como
afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixo.
(...) Um temor reverencial, uma
comovida compaixo e uma saudade nostlgica insinuam-se nos que a
ouvem. Por
intermdio das palavras, o esprito deixa-se afetar por um
sentimento especial, relacionado
com sucessos e insucessos de pessoas e acontecimentos que lhe so
alheios. (...) Na
verdade, discursos harmoniosos (...) provocam uma sensao de
bem-estar, dissipando a
tristeza. A fora da palavra mgica, convivendo com a opinio do
esprito, fascina-o e
transforma-o por encantamento. (...) que o discurso persuasivo
da mente, persuade-a,
fora-a tanto a acreditar no que foi dito quanto a consentir no
que feito. (...) Relao
idntica possuem a fora do discurso em ordem disposio do esprito
e a prescrio dos
medicamentos para a sade do corpo. Na verdade, assim como certos
medicamentos
expulsam do corpo certos humores, suprimindo uns a doena e
outros a vida, do mesmo
modo, de entre os discursos, uns h que inquietam, outros que
encantam, outros que
atemorizam, outros que incutem coragem no auditrio, outros ainda
que, mediante uma
funesta persuaso, envenenam e enfeitiam o esprito ( 8-14, p.
44-5).
Assim, compreendemos por que, nas palavras de Barilli, Grgias
define a palavra
como um phrmakon, uma droga e Helena torna-se inocente, pois
caiu sob a influncia do
lgoj a cujo fascnio impossvel resistir (Barilli, 1985, p.
16).
Mas de onde vem esse poder de persuaso do lgoj? Para entender a
teoria de
Grgias sobre a linguagem, temos que voltar um pouco atrs e
explicar a concepo de lgoj
de Herclito.
Para Herclito, h duas fontes para o conhecimento: a percepo
sensvel e o lgoj.
Os conhecimentos adquiridos pela percepo sensvel so duvidosos:
Ms testemunhas para
os homens so os olhos e os ouvidos, se suas almas so brbaras
(frag. 107). O lgoj, por
outro lado, a verdadeira fonte (critrio) de conhecimento. Mas
com lgoj Herclito no
se refere a algum tipo de razo individual de cada pessoa, mas
sim a um lgoj universal, que
18
ele chama de comum e divino. Tudo o que existe dotado de lgoj e
apto ao
pensamento e, quando ns pensamos, literalmente aspiramos esse
lgoj universal atravs
dos rgos dos sentidos. Quando estamos dormindo, nossos rgos dos
sentidos se fecham e
s mantemos um contato mnimo com o lgoj, atravs da respirao. Mas
quando estamos
acordados, ao contrrio, o contato ocorre atravs das aberturas
dos rgos dos sentidos como
por uma janela. Desse modo, tudo fazemos e pensamos graas nossa
participao do
lgoj divino (Sexto Emprico, VII, 126ss).
Mas o que significa lgoj nos fragmentos de Herclito? Kerferd
(2003, p.143-144)
lembra que o termo lgoj tem uma ampla abrangncia de
significados:
No caso da palavra lgoj, h trs reas principais de aplicao ou
uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente.
So elas, em
primeiro lugar, a rea da linguagem e da formulao lingstica,
portanto
fala, discurso, descrio, declarao, afirmao, prova (quando
expressa em
palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a rea do
pensamento e dos
processos mentais, portanto reflexo, raciocnio, justificao,
explicao
etc.; em terceiro lugar, a rea do mundo, aquilo sobre o que
somos capazes
de falar e pensar, portanto princpios estruturais, frmulas, leis
naturais e
assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados
realmente
presentes e exibidos no processo do mundo.
Embora, ao longo da histria da filosofia grega, essas trs reas
sejam paulatinamente
diferenciadas e, em certos contextos determinados, a palavra
lgoj passe a ser usada com um
significado mais especfico, referindo-se a apenas uma dessas
reas, mesmo nesses casos o
seu uso envolve, sempre, em algum grau, uma referncia s duas
outras reas, no sendo
possvel separar os trs significados de maneira absoluta.
O que vlido para autores como Plato e Aristteles, vale ainda
mais para os pr-
socrticos, inclusive Herclito. Portanto, lgoj, em Herclito,
significa tanto o que dito, o
contedo de suas afirmaes, quanto o princpio que estrutura e d
ordem e cognoscibilidade
ao real. O lgoj de Herclito , na feliz expresso de Parain (1942,
p.19), tanto a linguagem
19
do mundo que emana e se comunica a ns materialmente quanto a
linguagem humana. Esta
o resultado do contato da nossa alma com o lgoj divino atravs da
respirao, da mesma
forma que a viso da cor branca seria o resultado do choque de
emanaes dos objetos com os
nossos rgo dos sentidos.
Se a linguagem o produto de uma emanao do lgoj do mundo, as
palavras que
usamos exprimem as coisas mesmas: elas dizem como e o que elas
so. Desse fato vai-se
concluir que as palavras no podem nos comunicar nada que no seja
o que , quer dizer,
quando usamos a linguagem sempre dizemos a verdade (cf. Parain,
1942, p.22).
Podemos concluir, portanto, que Grgias acreditava que o poder
das palavras de afetar
e alterar o sentimento dos ouvintes vinha do fato de a linguagem
ser uma emanao do mundo
e, portanto, express-lo como ele em si? No. Embora Grgias e os
sofistas em geral
retenham algo da concepo pr-socrtica da emanao no caso da
percepo sensvel dos
objetos exteriores8, eles criticavam a aplicao desta concepo
como explicao da formao
do significado das palavras ou da origem da linguagem. Para
eles, longe de expressar
diretamente a essncia das coisas, a linguagem um sistema de
signos arbitrrios e
convencional.
Em seu Tratado do No-Ser ou Da Natureza, Grgias defende as
famosas teses de que
nada h; se algo existisse, seria incompreensvel ao homem; e
mesmo que algo existisse e
fosse compreensvel, no poderia ser comunicado aos outros. Dessas
afirmaes
examinaremos aqui apenas a terceira, pois essa a que interessa
diretamente ao nosso
trabalho.
A argumentao de Grgias, quanto incomunicabilidade do
conhecimento, a 8 No Mnon (76a), Plato atribui a Grgias uma
doutrina da emanao: Mnon: Scrates, o que dizes sobre a cor?
Scrates: Queres ento que te responda segundo Grgias, para melhor
poderes acompanhar? (...) No dizeis vs [Mnon e Grgias], tal como
Empdocles, que certas emanaes se desprendem dos seres? E que
existem poros para onde e atravs dos quais as emanaes so
conduzidas? E que umas emanaes se adaptam a certos poros, enquanto
outras so mais estreitas ou mais largas? (...) Assim sendo, (...) a
colorao uma emanao de coisas proporcional e perceptvel vista. (...)
a partir desta resposta, poders explicar a voz, o odor, e muitas
outras coisas parecidas.
20
seguinte:
(84) No comunicamos o ser mas sim a palavra, que diferente das
coisas
visveis. Tal como o que visvel no se pode tornar audvel e
vice-versa, tambm o
ser, porque subsiste exteriormente, nunca se pode transformar na
nossa palavra. (85)
E, no sendo palavra, no se poder comunicar a outrem. (86) (...)
Na verdade, disse
ele, ainda que a palavra tenha existncia prpria, ela , todavia,
diferente dos demais
objetos com existncia prpria, e os corpos visveis
diferenciam-se
consideravelmente das palavras; na verdade, o objeto visvel
apreendido por um
rgo, enquanto a palavra o por outro. Logo, a palavra no indica a
maioria dos
objeto reais, tal como nenhum deles revela a natureza dos outros
(Sexto Emprico,
Contra os Matemticos VII 84-86. In: Barbosa e Castro, 1993
p.34-6).
As palavras nos so transmitidas pela viso, no caso dos sinais
escritos, pela audio,
no caso da fala, ou so produzidas no momento em que a sensao de
algo ocorre: por
exemplo, na sensao de um sabor, origina-se a palavra de acordo
com essa sensao, ou a
partir da sensao da cor nasce a palavra conforme a essa cor.
Mas Grgias destaca que, em qualquer caso, as palavras no tm
nenhuma
semelhana fsica com o objeto ao qual ela se refere. Mas se
assim, como uma palavra pode
nos fornecer qualquer tipo de informao sobre o objeto ao qual a
aplicamos? Como sabemos
que a palavra cavalo se refere ao objeto cavalo, se ela no tem a
mnima semelhana com
ele? Como uma palavra pode nos revelar, atravs dos sentidos, a
essncia de algo, o ser do
objeto, se essa essncia ou esse ser no so perceptveis por nenhum
dos rgo dos sentidos?
A concluso de Grgias que a palavra, sendo perceptvel, no pode
comunicar o ser, que
imperceptvel, nem informar sobre os objetos perceptveis, pois
ela diferente deles. Da o
seu niilismo quanto incomunicabilidade do conhecimento.
No entanto, Grgias era um orador e fazia discursos a outras
pessoas. Mas, nesse
caso, ser que ele acreditava no estar comunicando nada em seus
discursos (cf. Woodruff,
1999, p.307-8)? Como conciliar a teoria (essencialmente
negativa) da linguagem
desenvolvida no Tratado do No-Ser e a teoria dos poderes
persuasivos do Elogio de Helena
21
e com a prtica retrica de Grgias? Embora Kerferd, Woodruff e
Guthrie acreditem que
Grgias no teria respostas a essas questes e que, portanto, o seu
pensamento seria
inconsistente neste aspecto, acreditamos que ele poderia
responder que justamente porque a
linguagem no comunica o ser como ele em si mesmo que possvel
usar as palavras para
persuadir e alterar as opinies das pessoas no sentido que
quisermos. Mostramos, acima,
que a origem da retrica se deu, nos meios jurdicos, nos casos em
que no havia evidncia
direta disponvel sobre o que ocorreu. Grgias, a nosso ver,
argumenta que, quando usamos a
linguagem, estamos em um caso anlogo ao de um juiz que no tem
acesso, de forma
imediata e indubitvel, aos fatos ocorridos: dependemos sempre da
mediao da linguagem,
mas essa no um meio que transmita as informaes sobre a realidade
de maneira exata.
Portanto, se no temos acesso direto aos fatos ou realidade, s
nos restam as palavras e
estas tm, no entanto, o poder de alterar os sentimentos e as
opinies dos que as ouvem.
Como vimos, para Grgias o poder da retrica vem da fora mgica da
palavra que,
tal como um phrmakon, uma droga, capaz de afetar o esprito e
persuadir a mente, fascin-
la e transformar suas opinies como que por encantamento, a tal
ponto que o retrico pode
fazer os outros crerem em iluses, coisas que no existem, ou
convenc-los de que as coisas
so diferentes do que so de acordo com as convices do orador.9
Isto possvel, pois a
linguagem, na concepo de Grgias, no tem um referente na
realidade exterior que
possamos identificar por sua semelhana com as palavras que
utilizamos para nos referirmos
a ele. Palavras e coisas so diferentes e, portanto, no possvel
estabelecer qualquer ligao
entre eles (ou, pelo menos, no qualquer ligao que no seja
arbitrria).
Grgias acreditava que o poder persuasivo da retrica era to amplo
que sentia-se
seguro para falar perfeitamente sobre qualquer assunto (cf. Mnon
70ab, ver Grgias 447c;) e
convencer, no apenas pessoas comuns, mas inclusive os experts em
sua prpria rea de
9 Ver Teeteto 166d-167d para posio similar de Protgoras.
22
conhecimento: segundo ele, com a retrica pode-se
persuadir pela palavra os juzes no Tribunal, os senadores no
Conselho, o
povo na Assemblia, enfim, os participantes de qualquer espcie de
reunio poltica.
Com esse poder far teus escravos o mdico, o professor de
ginstica, e at o grande
financeiro chegar concluso de que arranjou o dinheiro no para
ele, mas para ti,
que sabes falar e que persuades a multido (Grgias, 452e).
Tambm atribuda a Grgias a afirmao de que possvel defender e, a
seguir,
atacar com sucesso a mesma posio: Grgias fez isso mesmo ao
escrever o elogio e a
condenao de cada assunto proposto, pois ele julgava ser da
competncia especfica do
orador a capacidade de enaltecer uma causa, louvando-a e,
seguidamente, de a destruir,
atribuindo-lhe defeitos (Plato, Fedro 267a).
Porm, como o filsofo que fez da tese que para cada assunto
possvel defender tanto
a sua afirmao quanto a sua negao o centro de sua doutrina foi
Protgoras, passaremos a
examinar as teses deste filsofo.
1.3 Protgoras
A retrica siciliana foi trazida para Atenas por Protgoras, que
morou na Siclia onde
deve ter tido contato com Crax, Tsias e os pitagricos (cf.
Plebe, 1978, p. 9). Protgoras,
assim como os sicilianos, se preocupava com a correo da
linguagem tanto ao nvel do
discurso (procura do lo/goj o0rqo/tatoj, o discurso mais
correto) quanto ao nvel da palavra
(orthopeia: procura das palavras mais convenientes expresso e
oportunidade (cf. Fedro
267e).10
Protgoras teria escrito uma obra intitulada Antilogias, na qual
ensinaria uma tcnica
da contradio (tchne antilogik) que se tornar o fundamento e um
dos gneros mais
10 Protgoras teria dividido o discurso em 4, 6 ou 7 partes e
procurava modelar o tamanho deles, tornando-os longos (prolixos) ou
curtos (concisos) conforme a ocasio, alm de ser o primeiro a
classificar os substantivos em trs gneros (masculino, feminino e
neutro) e a distinguir os tempos verbais (Plebe, 1978, p. 9). Ele
[Protgoras] ficou conhecido na Antigidade como o pensador que
elevou a gramtica categoria de cincia, defendendo-a de quem a
atacava como um conhecimento sem importncia (Gutierrez, p. 28).
23
importantes da retrica sofista. Essa obra, hoje perdida,
mostraria como debater ambos os
lados de uma questo com igual sucesso (cf. Kerferd, 2003, p.
145), e a afirmao que tornou
Protgoras clebre foi a de que para qualquer assunto se poderiam
defender dois discursos
opostos: Diz Protgoras que sobre qualquer tema se podem manter
com igual valor duas
teses contrrias (Sneca, Epistola 88, 43); Em torno de cada
questo existem dois discursos
opostos reciprocamente (Digenes Larcio, IX, 51). Ou seja:
qualquer afirmao de que X
F pode ser contrabalanada pela afirmao oposta: X no F.
Mas com essas afirmaes Protgoras no quer simplesmente chamar a
ateno para o
fato cotidiano de que, para cada argumento, sempre possvel
encontrar um contra-
argumento, mas defender a tese mais forte segundo a qual, para
qualquer assunto, tanto a
argumentao quanto a contra-argumentao so eqipolentes, quer
dizer, so ambas
igualmente vlidas. Isto , para Protgoras, tanto uma tese quanto
a tese que a contradiz so,
ambas, verdadeiras.
Podemos encontrar o fundamento para essa afirmao em outro famoso
dito de
Protgoras: segundo ele, o homem a medida de todas as coisas, das
coisas que so
enquanto so, e das coisas que no so, enquanto no so (Plato,
Teeteto 152a, ver tambm
Crtilo 385e, passagem que ser discutida no captulo 2). Isto
significa que as coisas so para
cada indivduo tais como elas aparecem para ele: se o vento
parece frio para X e quente para
Y, ento o vento frio para X e quente para Y. Protgoras afirma
que as percepes de cada
pessoa so, para essa pessoa, infalveis. Cada percepo individual,
em cada pessoa e em cada
ocasio particular, incorrigvel, isto , no pode ser corrigida
pela comparao com a
percepo de outra pessoa, e nem mesmo com uma comparao com outra
percepo minha
feita poucos instantes atrs. Se algo me parece doce, ento a
minha percepo e a minha
afirmao que isto doce no pode ser refutada por outra pessoa que
perceba a mesma coisa
24
como amarga (Kerferd, 2003, p.151). Toda a percepo verdadeira:
no h percepes
falsas.
H duas maneiras diferentes de fundamentar essa tese de
Protgoras:
1) As qualidades que percebemos so apenas subjetivas e s existem
quando
percebidas por algum. A frieza s existe quando tenho a sensao de
frio. O vento em si no
nem frio nem quente.
No Teeteto (157a-b), Plato atribui a Protgoras a seguinte teoria
sobre como a
percepo sensvel ocorre: todos os objetos que existem esto
continuamente produzindo
emanaes em seu entorno. Algumas dessas emanaes so passivas (tm
apenas o poder
dnamis - de receber a ao), enquanto outras so ativas, elas
causam uma ao. Os objetos
emitem emanaes ativas, ao passo que os rgos dos sentidos so
passivos. A percepo
ocorreria da seguinte forma: nossos olhos, por exemplo, ao
encontrar-se com a emanao
gerada por um objeto, sofre uma alterao, e essa alterao que a
sensao da viso.
Portanto, a percepo resultante da relao mtua do rgo sensvel e do
objeto
percebido; o rgo sensorial se torna sensvel ao ser afetado pela
emanao que o atinge
provinda de um objeto e, simultaneamente, o objeto se torna
perceptvel pela alterao que
causa no rgo sensorial. Plato destaca que, nessa teoria da
percepo, todos os objetos
envolvidos, as coisas percebidas e os rgos dos sentidos devem
estar em um constante estado
de movimento,11 pois apenas neste caso os rgos sensoriais
poderiam ser afetados pelas
emanaes dos objetos e causar a sensao respectiva, e os objetos
poderiam emitir as
emanaes que sero percebidas. Por isso, na interpretao de Plato,
a tese de Protgoras do
homem-medida estaria associada a uma teoria da emanao e doutrina
do fluxo perptuo
de todas as coisas, ambas teses atribudas a Herclito.
11 Movimento significa tanto translao especial quanto alterao,
seja quantitativa, seja qualitativa.
25
2) O vento , ao mesmo tempo, frio e quente. Os opostos coexistem
no mesmo objeto.
Uma pessoa o percebe frio, outra quente (cf. Kerferd 2003, p.
149). Nesse caso, o fundamento
metafsico da tese de Protgoras se encontraria na concepo
ontolgica dos pitagricos,
segundo a qual tudo o que existe formado por uma combinao de
elementos opostos entre
si. Conforme Aristteles,
os pitagricos estabeleceram a existncia de dez princpios que
dispem em duas colunas de termos opostos limite e ilimitado; impar
e par; unidade e
pluralidade; direito e esquerdo; macho e fmea; repouso e
movimento; reto e curvo;
luz e escurido; bom e mau; quadrado e oblongo (...) Diz Alcmeon
que a maioria
das coisas humanas andam aos pares, sem se referir, no entanto,
a oposies definidas,
mas a quaisquer oposies que o acaso nos possa deparar, como
preto e branco, doce e
amargo, bom e mau, grande e pequeno (Metafsica A 5, 985 b).
uma combinao de opostos que explica a diferena de constituio que
existe entre
as pessoas e, conseqentemente, o fato de algumas sentirem certas
sensaes, como a de frio,
e outras sentirem a sensao oposta, de calor. Se, em cada coisa,
h algo de frio e quente, belo
e feio, e assim por diante, sendo que apenas a proporo maior ou
menor presente, seja no
objeto, seja em quem o percebe, o que determina se ele ser
percebido como belo ou feio, e
como nunca ocorre uma ausncia completa do termo oposto, ento
possvel explicar por que
duas pessoas tm sensaes diferentes em relao a um mesmo
objeto.
Mas, em ambas as interpretaes, chega-se ao mesmo resultado: a
realidade
composta por elementos opostos, porque ou se considera que esses
elementos fazem parte da
sua prpria constituio ontolgica, ou porque a percebemos assim,
pois esses elementos so
concebidos como estando em fluxo constante.
Como as afirmaes de uma pessoa se baseiam nas suas sensaes,
essas afirmaes
tambm so consideradas verdadeiras e, no caso em que uma pessoa
afirma que o vento frio,
enquanto que outra afirma que ele quente, ambas as afirmaes so
consideradas
verdadeiras para Protgoras.
No dilogo Teeteto, Protgoras assim resume a sua posio:
26
Insisto em que a Verdade tal como a escrevi, a saber: cada um de
ns a medida do que e do que no , e que um dado indivduo difere de
outro ao infinito, precisamente
nisso de serem e aparecerem de certa forma as coisas para
determinada pessoa, e de forma
diferente para outra. (...) Para o doente, o alimento e parece
amargoso, enquanto para o
indivduo so parece ser e precisamente o contrrio disso. No
devemos (...) sustentar que
o doente ignorante por pensar dessa maneira ou que sbio o
indivduo com sade por
ser de opinio contrria. (...) O que afirmo que, se um indivduo
de m constituio de
alma tem opinies de acordo com essa disposio, com a mudana
apropriada passar a ter
opinies diferentes, opinies essas que os inexperientes denominam
verdadeiras. (...) O
mdico consegue essa modificao por meio de drogas, o sofista com
discursos. (...)
justamente como procedem os oradores sbios e prudentes, fazendo
parecer justas s
cidades as coisas boas em substituio s ms. De fato, tudo o que
parece belo e justo para
cada cidade, continua sendo para ela isso mesmo enquanto assim
pensar; porm o sbio
[nesse caso, o sofista] faz ser e parecer benfico o que at ento
lhes era pernicioso
(Teeteto 166d-167d) .
Portanto, tanto Protgoras quanto Grgias parecem fundamentar as
suas teorias sobre
o poder da palavra em uma tese baseada em algum tipo de doutrina
da emanao, cujo
representante mais destacado Herclito. Porm, interessante notar
que ambos chegam s
mesmas concluses, baseados no mesmo tipo de teoria, mas por
caminhos diferentes. Grgias
conclui que, mesmo sendo o lgoj uma emanao da realidade, ele
diferente do (isto , no
tem semelhana fsica com o) objeto a que se refere e, por isso, a
linguagem no pode ser
usada para falar das coisas como elas so. Mas, justamente por
esse fato, as palavras podem
ser usadas como meio para alterar as opinies das pessoas: no
possvel comparar o que
dito com os fatos objetivos aos quais as palavras se refeririam,
mas apenas us-las para afetar
as emoes dos ouvintes. Protgoras, como mostra a citao do Teeteto
acima, tambm
defende o poder da retrica em convencer as pessoas sobre
qualquer assunto e alterar as
opinies delas apenas usando o discurso. Isso porque as nossas
opinies so baseadas em
nossas percepes que, por sua vez, so os efeitos resultantes das
emanaes dos objetos
sobre nossos rgos sensoriais; e, seja porque esses objetos tm
propriedades opostas, seja
porque os percebemos assim, j que eles esto em constante
alterao, o fato que a qualquer
27
opinio possvel contrapor uma opinio oposta e todas as opinies so
verdadeiras, no
existem opinies falsas. Portanto, se algum acredita na tese A,
possvel alterar a sua
opinio e fazer essa pessoa passar a acreditar em no-A.
Outros filsofos do movimento sofista tambm defendiam a tese de
que no existem
opinies falsas, mas partiam da tese de um filsofo que geralmente
considerado como
pertencente ao extremo oposto do espectro filosfico, e pelo qual
Plato nutre o maior
respeito: Parmnides. Vejamos as teses desse filsofo e como os
sofistas as usavam.
1.4 O poema de Parmnides
Em seu poema Parmnides afirma s existirem dois caminhos possveis
(ou
concebveis) de investigao. O primeiro, que o filsofo afirma ser
a via da verdade, consiste
em afirmar que , e no possvel que no seja (
fr. 2, 3); o segundo caminho afirma que no , e necessrio que no
seja (
fr. 2, 5). Esses dois caminhos so os nicos
possveis mas tambm so mutuamente excludentes: logo, preciso
escolher um dos dois.
Parmnides diz que o segundo caminho deve ser evitado, pois uma
via
imperscrutvel (fr. 2, 6) ou totalmente impensvel.12 A
justificativa para a excluso
desse caminho que no se pode conhecer nem expressar em palavra
aquilo que no (fr. 2,
7-8). Essa idia reafirmada no fragmento 8, onde Parmnides afirma
que o No-Ser no
dizvel nem pensvel, visto que no (v. 7-8 ) e impensvel e
inexprimvel (v. 16).
Excluda a via do No-Ser, resta-nos um nico caminho: o do Ser. O
fragmento 6
afirma que necessrio dizer e pensar que s o ser , e no fragmento
8, 34 dito que o
mesmo pensar e ser. Ou seja, s o que pode ser pensado, s h
pensamento, se houver
algo para ser o contedo desse pensamento, e algo s pode ser
contedo para o pensamento,
12 Traduo de Kirk e Raven (1990), p. 275.
28
se cumprir um requisito mnimo: existir. A via do Ser
simplesmente a via oposta via do
No-Ser; como essa ltima foi excluda por causa da sua
incognoscibilidade, a via do Ser
assumida como a nica hiptese vivel, por ser a via que restou. A
afirmao de que o
pensamento sempre pensamento sobre o Ser no recebe nenhuma
justificativa no poema.
A via do Ser s se justifica pela excluso da possibilidade de o
No-Ser ser objeto do discurso
ou do pensamento.
Segundo Owen, Parmnides, como Descartes, quer encontrar uma
certeza que no
possa ser negada sem que se caia em contradio ou sem cuja
admisso seria impossvel
pensar, falar, conhecer, etc. Que e impossvel que no seja seria
tal verdade tautolgica.
Alm dessas duas possibilidades, Parmnides ainda menciona uma 3:
ela consistiria
em misturar ou combinar Ser e No-Ser ou dizer que ambos so
idnticos:
Em seguida, afasta-te / da outra via: nela que erram os mortais
/
desprovidos de saber e com dupla cabea; / Com efeito, em seu
corao, a
hesitao pilota / um esprito oscilante; eles se deixam levar /
surdos, cegos e
tolos, turba inepta, para quem / ser e No-Ser so considerados
ora o mesmo / e
ora o no-mesmo (fr. 6, v.8-9).
Se no possvel falar ou pensar o No-Ser, pelo mesmo motivo no
possvel
combinar Ser e No-Ser, e essa possibilidade tambm
descartada.
Mas se as afirmaes de Parmnides so claras e simples, o seu
significado tem sido
motivo de acalorado debate desde os tempos antigos.
Contemporaneamente, a tentativa de
entender o poema de Parmnides tem se concentrado no estudo do
significado do verbo ser.
Isso porque o verbo ser tem, pelos menos, quatro usos13:
1. Uso predicativo: A B. Neste uso acrescenta algo (uma
propriedade, uma
qualidade, um atributo, etc.) a um sujeito: a frase Scrates sbio
significa Scrates tem a
propriedade de ser sbio.
13 Cf. Jos Trindade Santos (2004, p. 39). Tambm Barnes (1992, p.
195-6); Marques (1990, p. 58); Denyer (1991, p. 47).
29
2. Uso existencial: A existe, afirma a existncia de algo. Esta
afirmao pode ser
explcita, como em Deus existe, ou implcita: Scrates sbio
significa o mesmo que
existe algum (Scrates) que sbio (Tugendhat, 1997, p. 144)
3. Uso identitativo: A B, ou seja, afirma que A idntico, igual a
B, ou que A e B
so, na verdade, uma mesma entidade. Note-se que a forma
gramatical desse caso idntica
ao caso do uso predicativo.
4. Uso veritativo: A verdade, verdadeiro, o caso que A.
Em termos sintticos, o verbo ser pode apresentar-se sozinho em
uma frase (o
chamado uso absoluto), e, nesse caso, ele tem uma funo
existencial, ou apresentar-se na
funo de cpula (o uso predicativo). Como, no poema de Parmnides,
o verbo ser aparece
sozinho, em uso absoluto, a interpretao mais corrente do poema
de Parmnides a
existencial (Denyer, 1991, p. 21; Guthrie, 1988, II, p. 58 ;
Barnes, 1992, p. 196).
Kirk & Raven (1990, p. 276), porm, chamam a ateno para o
fato de que
Parmnides teria confundido os sentidos existencial e predicativo
de esti. Segundo eles,
Parmnides est a atacar aqueles que acreditam, como sempre
tinham
acreditado todos, que possvel fazer uma assero negativa com
significado. Mas, se
lhe permitido atac-los, devido apenas sua prpria confuso entre
uma assero
negativa e um juzo existencial negativo.
Charles Kahn, em um estudo clssico, defende que o uso mais
fundamental de ser,
em grego, o uso veritativo, do qual os usos existencial e
predicativo seriam derivados (cf.
Kahn, 1997, p. 202). Usa-se ser. no apenas para falar algo, mas
tambm para afirm-lo,
isto , para dizer que a situao predicada o caso, realmente
assim, verdade.
A distino semntica entre o predicativo e o de existncia no
corresponde exatamente distino sinttica entre as construes
predicativa e
absoluta de einai. O valor mais fundamental de einai usado
sozinho (sem predicado),
no existe, mas o caso, verdade que (Kahn, 1997, p. 48).
Portanto, o uso veritativo do verbo ser, em grego, significa que
(a) alguma coisa
existe; (b) algo predicado disso e (c) que (a) e (b) so, ambos,
verdadeiros: Scrates
30
sbio pode ser lido como existe algum, Scrates, que tem a
propriedade de ser sbio e
o caso que Scrates sbio (Kahn, 1997, p. 202).
G. Vlastos observa que, em grego, ser (n), realidade (ousa),
real (ntos) so
termos derivados da mesma raiz etimolgica: est. Tanto no ingls
quanto no portugus, os
conceito de ser e de realidade so palavras de razes etimolgicas
diferentes, enquanto
que, no grego, real e realidade so simplesmente as formas
adjetivas e nominais de ser e
(cf. Vlastos 1981, p. 59). No havendo uma distino clara entre
ser e real, certas
expresses so naturalmente ambguas e de difcil traduo para as
lnguas nas quais, como
o caso do portugus, esses mesmos conceitos so expressos por dois
termos distintos, no
havendo uma nica palavra ou expresso que abranja a ambos. Por
exemplo, a expresso
lgein t nta, pode ser traduzida tanto por relatar os fatos
quanto por dizer a verdade
(Kahn 1997, p. 12).14
Essas observaes nos permitem compreender por que, na lngua
grega, a expresso
dizer o que funciona como uma expresso idiomtica usada para
expressar a convico de
que o relato feito diz realmente as coisas tais como so ou os
fatos tais como ocorreram, ou
seja; dizer que no (apenas) dizer que algo existe, que h algo,
mas significa falar a
verdade, dizer que algo o caso, relatar o que assim de
fato.15
Tanto assim que, em Plato e Aristteles essa expresso
explicitamente
apresentada como uma definio de verdade (aetheia), e a expresso
contrria (dizer o que
no ) como definio de falsidade.
Plato: Quem diz o que diz a verdade (Eutidemo 382e); A proposio
que se
refere s coisas como elas so verdadeira, vindo a ser falsa,
quando indica o que elas no
so (Crtilo 285b); Sofista 263b
14 Outros autores que tambm defendem a tese que impossvel
separar os diversos usos de esti so Mourelatos e Furth. 15 Ver
tambm a etimologia de aletheia (relatar os fatos tais como so) em
Mourelatos, 1970, pp.64-7 e Combrie, 1988, II, p. 58-9.
31
Aristteles: Dizer que o que no ou que o que no , falso; dizer,
ao contrrio,
que o que ou que o que no no , verdadeiro (Metafsica IV, 7,
1011b 26).
Conseqentemente, a expresso dizer o que no no significa,
simplesmente, dizer
que algo no existe, mas tambm a expresso corrente para dizer
algo sem sentido,
pronunciar o que no corresponde realidade (Guthrie 1988, II,
p.20).
Jos Trindade Santos resume a discusso sobre o verbo ser, no
poema de
Parmnides, lembrando que, diferentemente do que ocorre nas
lnguas atuais, inclusive no
portugus, o verbo grego condensa os quatro sentidos em uma nica
palavra, sem que se
possa separ-los claramente:
Parmnides usa , ser e o ser (to einai, t n) com todos esses
sentidos, (...), expressando a unidade lgica, epistemolgica e
ontolgica de
uma entidade englobante a que chama Ser. Nela se acha expressa
uma nica
realidade/verdade, correspondente ao nico pensamento possvel
sobre a nica
coisa pensvel e dizvel: o ser (Santos, 2004, p. 39).
Essa fuso dos quatro sentidos e, especialmente, a
impossibilidade de se separar o
uso existencial dos outros trs, originou os absurdos mais
espetaculares (Santos, 2004, p.
40): as confuses e falcias que os sofistas exploraram, como as
afirmaes de que
impossvel dizer algo falso, pois o erro no existe e, por isso,
impossvel contradizer
algum, vieram a ser as principais doutrinas do movimento
sofista.
1) O problema da falsidade.
Como vimos, por definio, falar algo falso dizer, sobre algo, o
que no . Mas,
usando o argumento de Parmnides sobre a impossibilidade de se
falar ou pensar o que no ,
os sofistas concluam que falar algo falso seria impossvel j que
dizer o que no equivale a
falar sobre o No-Ser; o No-Ser nada, e falar sobre nada seria
nada dizer, ficar em silncio.
Por outro lado, em todo ato de fala dizemos algo, algo que ;
logo, nunca dizemos o
que no , nunca falamos falso, sempre dizemos a verdade. Toda e
qualquer proposio
verdadeira. Quem fala, dizem os sofistas, diz a verdade ou no
diz nada.
32
2) No possvel contradizer.
Antstenes afirmava que uma correta definio de um termo deveria
ser capaz de
expressar o que uma coisa : um lgos aquilo que manifesta o que
uma coisa era ou e,
portanto, conclui-se que cada coisa s tem um lgos (Digenes
Larcio, 1988, IV, 6.3).
Para haver contradio, necessrio que duas pessoas digam coisas
diferentes sobre um
mesmo objeto. Mas como, segundo Antstenes, cada objeto tem um
nico lgos, h duas
possibilidades:
a) Estas pessoas no estaro falando sobre o mesmo objeto, mas
sobre objetos
diferentes, um para cada lgos, e nesse caso no h contradio.
b) Uma delas est aplicando um lgos ao que no , por exemplo,
dizendo que
Scrates esta em p, quando Scrates est sentado. Ao falar de
Scrates em p, ela est se
referindo a um objeto diferente do da pessoa que fala sobre
Scrates sentado, mas tambm
est falando sobre algo que no , pois Scrates em p no existe. Mas
Parmnides mostrou
ser impossvel falar sobre o que no e, portanto, impossvel falar
falsamente, como vimos
acima (Aristteles, Metafsica, 1024b32-34).
A concluso que nunca h contradio pois, ou uma das pessoas fala
sobre o que no
, mas isso impossvel, ou elas dizem coisas diferentes, e, nesse
caso, falam sobre objetos
diferentes.
3) A impossibilidade da predicao.
A esses raciocnios os megricos acrescentavam a observao de que
uma simples
afirmao como Scrates filsofo seria impossvel, pois Scrates
diferente de
filsofo, e, nesse caso, estaramos identificando duas coisas
diferentes, Scrates e
filsofo, o que seria uma contradio. Os megricos afirmavam que
apenas juzos de
identidade (Scrates Scrates, homem homem, bom bom, etc.), so
permitidos.
33
Em resumo, Plato defronta-se com duas concepes de linguagem
diametralmente
opostas:
- a palavra parmendea: impotente, limitada a afirmar o Ser,
incapaz de predicar ou
explicar a contradio e a falsidade. No h diferena entre discurso
e Ser; a palavra, ao
nomear algo, j est dizendo a coisa mesma: palavra e realidade so
uma coisa s;
- sofistas e retricos: onipotente, capaz de falar sobre tudo e
persuadir a todos, sem
diferenciar entre verdade e falsidade; sem nenhuma conexo com o
Ser. O interessante que
sofistas e megricos chegaram a essa concepo justamente a partir
da verdade tautolgica
que o Ser e o No-Ser no e da deduo logicamente impecvel feita
por Parmnides que
no possvel falar ou pensar o No-Ser. Desta tese, sofistas e
megricos concluam que:
- impossvel falar falso.
- impossvel contradizer.
- Todas as frases negativas so falsas
- Apenas juzos de identidade so possveis (impossibilidade da
predicao).
- Tudo o que falamos verdadeiro
1.5 A teoria referencial da linguagem (TRL)
A nosso ver, o que torna mais compreensvel as afirmaes do poema
de Parmnides,
bem como os paradoxos que os sofistas derivaram dele (e que um
ponto pouco destacado na
multido de comentrios e interpretaes sobre esse assunto), o fato
de que a proibio de se
falar sobre o No-Ser ganha sentido dentro do marco de uma teoria
referencial da significao
lingstica (TRL).
34
Na TRL a resposta pergunta sobre qual o significado de
determinada palavra,
expresso ou sentena, que esse significado a coisa ou objeto ao
qual a palavra se refere.
Toda e qualquer palavra ou expresso significativa por se referir
a algo.
Uma palavra tem significado porque o nome de alguma coisa: a
palavra lpis, por
exemplo, significa ( um sinal que est no lugar e aponta para,
indica) o objeto lpis na minha
frente. Como diz Alston (1972, p.28-9), tentador supor que essa
explicao funciona para
todas as expresses com significado da linguagem, no apenas para
os nomes. A TRL se
baseia no paradigma da nomeao: damos nomes s coisas e usamos
esses mesmos nomes
para nos referirmos s coisas, da mesma maneira que damos nome a
uma criana recm-
nascida. O nome dado identifica a criana e a diferencia das
outras, e pode ser usado para nos
referirmos a ela, mesmo quando no est presente.
Na TRL, o significado de uma palavra, portanto, dado pelo objeto
ao qual ela se
refere. As palavras so como que etiquetas associadas, por
conveno, aos objetos; so signos
que denotam, nomeiam, designam, representam, referem objetos no
mundo.
Apreendemos o significado das palavras por osteno: se algum quer
saber o que
significa a palavra "lpis", basta lhe mostrar o objeto
correspondente e uma frase complexa
como "o gato sentado no mato" tem significado porque cada um de
seus elementos aponta
para seus respectivos objetos ou estados de coisas no mundo. O
significado de uma frase
complexa seria, portanto, dado pela soma dos significados de
seus elementos (cf. Lycan,
2001, p. 4-5).
A TRL tem uma plausibilidade intuitiva muito forte, j que ela se
refere a um dos usos
mais bsicos e mais importantes da linguagem, o de falar sobre as
coisas do mundo externo: a
linguagem fala de alguma coisa, e a nossa compreenso e
habilidade lingstica dada pela
nossa capacidade de relacionar as palavras que usamos com os
objetos apropriados no mundo.
35
Apesar de sua simplicidade e de seu apelo a algumas intuies
bsicas sobre a
linguagem, a TRL apresenta alguns graves problemas. Aqui
queremos destacar trs aspectos,
implicados pela TRL, que so cruciais para a nossa discusso.
(1) S sabemos o significado de uma palavra, se soubermos a que
objeto essa palavra
se refere ou indica. Quando queremos explicar o significado de
uma palavra, temos que
identificar a coisa ou objeto ao qual a palavra se refere ou se
relaciona (cf. Alston, 1972, p.
42). Usar corretamente uma palavra us-la para se referir ao
objeto que ela significa, e no a
nenhum outro. A TRL, portanto, implica uma teoria da verdade
como correspondncia.
(2) Um palavra ou expresso se refere a algo que diferente dela
prpria (cf. Alston,
1972, p. 29). A TRL implica uma separao entre mundo e linguagem,
pois nela as palavras
fazem as vezes dos objetos que nomeiam, mas elas no tm nenhuma
semelhana, seja fsica,
seja de outro tipo, com os objetos a que se referem.
(3) S podemos entender o significado de uma expresso, se houver
(existir) algo a
que ela se refere.
Mas aqui surge o grande problema com a TRL: se o significado de
uma palavra dado
pelo objeto a que ela se refere, o que ocorre nos casos em que
uma palavra no tem um
referente no mundo ou nos casos em que uma expresso nega a
existncia de algo?
O nome, para ser um nome, precisa ser o nome de alguma coisa.
A
coisa que nomeada considerada o significado do nome em questo.
Da se
segue que um nome que no um nome de alguma coisa no um nome
no
sentido real do termo, e no tem, necessariamente, nenhum sentido
(Kerferd,
2003: p.123-4).
Juzos existenciais negativos e afirmaes sobre entidades que no
existem so um
problema em toda a histria da filosofia, e mesmo autores
contemporneos como Frege,
Wittgenstein, Quine e, especialmente, Russell, debateram-se com
ele.
Russell, em seu famoso artigo Sobre a denotao (1905), mostrou
que a TRL falha
mesmo nos casos mais simples de predicao. O principal problema
ocorre quando tratamos
36
de palavras ou expresses que se referem a objetos que no existem
como, por exemplo, "o
atual rei da Frana" ou Pgaso. Qual o significado dessas
sentenas? Conforme a TRL, deve
ser o objeto que a expresso designa. Mas sabemos que esses
objetos no existem, pois a
Frana, atualmente, no tem rei, e cavalos com asas no existem. No
entanto, apesar de os
objetos designados no existirem concretamente, as expresses tm
significado, no sentido de
que podemos entender o que elas querem dizer e us-las sem
problema. Como pode uma
sentena como o atual rei da Frana sbio ser significante mesmo
quando no h nada que
corresponda descrio que ela contm? (Strawson, 1989, p. 152).
Esse problema fica mais explcito quando consideramos sentenas
que negam a
existncia dos objetos aos que elas pretensamente se referem,
como a frase "Pgaso no
existe". Segundo a TRL, essa frase s ter significado se Pgaso
existir. No entanto, a prpria
frase nega essa possibilidade ao afirmar que Pgaso no existe! Um
defensor da TRL deve
concluir que essas palavras e expresses no tm significado, so
meros sons (rudos) sem
sentido.
Mas esse no o caso, pois a frase Pgaso no existe tem
significado: sabemos, por
exemplo, que ela verdadeira. Pela TRL, se uma frase tem
significado, ento o objeto ao qual
ela se refere deve existir. Mas, nesse caso, chega-se a duas
concluses absurdas: 1) como todo
objeto de uma frase significativa deve existir, o atual rei da
Frana e Pgaso devem existir
realmente, apenas pelo fato de termos pronunciado uma sentena
com significado. Mas se o
atual rei da Frana e Pgaso existem ento 2) ambas as frases so
falsas.
Ou seja: sabemos que a frase Pgaso no existe (1) verdadeira e
(2) sobre
Pgaso. Mas, se aceitamos a TRL, ento (1) e (2) no podem ser
sustentados
simultaneamente, pois, se ela verdadeira, ento Pgaso no existe,
mas, nesse caso a frase
no tem referente e, portanto, no teria significado; por outro
lado, se a frase sobre Pgaso,
37
ento ele deve existir de alguma maneira (o que levanta o
problema do modo dessa existncia)
e a frase falsa (cf. Hottois, 2004, p. 186).
Assim, esperamos ter mostrado que os paradoxos dos sofistas em
relao a linguagem
surgiram, no apenas por causa da confuso entre os usos
existencial, predicativo e
identitativo do verbo ser, em grego, mas tambm porque os
filsofos estudados acima
tinham, tcita ou explicitamente, uma concepo de linguagem
segundo a qual o significado
de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, isto , o
significado de um termo
determinado pelo objeto exterior que o termo nomeia. Essa
concepo impede que se fale de
forma significativa sobre o No-Ser e considera sem sentido
qualquer afirmao em que se
negue algo. Dizer algo falso entendido como dizer algo sem
significado.
Veremos que, em sua concepo de linguagem, Plato tentar manter um
equilbrio
entre duas teses opostas a fim de resolver os paradoxos de
ambas: a tese segundo a qual
palavra e ser esto conectadas de tal modo que dizer algo dizer o
ser, e a tese de que palavra
e ser no tem nenhuma ligao, pois aquelas so apenas signos
arbitrrio que usamos para
rotular as coisas. A soluo de Plato consiste em tentar separar o
ser e linguagem sem, no
entanto, faz-los perder contato.
No dilogo Crtilo Plato analisa e critica, como esperamos mostrar
a seguir, sob a
rubrica de convencionalismo e naturalismo, as posies de
Protgoras e de Grgias-Herclito,
respectivamente.
38
Captulo II
O Crtilo
Fowler, na introduo da sua traduo do Crtilo, afirma que no se
pode dizer que o
Crtilo seja de grande importncia no desenvolvimento do sistema
platnico, pois trata de um
assunto especializado [a origem das palavras] um tanto parte da
teoria geral da filosofia
(apud Kerferd, 2003, p.130).
Outros autores tambm defendem que o Crtilo ocupa uma posio
secundria no
corpus da obra platnica, pois acreditam que Plato no se
interessa pelos problemas da
linguagem a no ser como pretexto para mostrar que ela no teria
nenhuma importncia para
uma teoria gnosiolgica e ontolgica tal como buscada por Plato
(Mridier, 1950, p. 30-33).
A prpria concluso do Crtilo de que no possvel conhecer as coisas
pelas palavras, mas
apenas pelas coisas mesmas, apenas reforaria a opinio corrente
de que, para Plato, a
linguagem ficaria reduzia a um mero instrumento para a expresso
dos pensamentos, no
sendo constitutiva da experincia humana do real (Oliveira, 1996,
p.22), como a
consideram os filsofos contemporneos da tradio hermenutica e
fenomenolgica, nem se
encontrariam nela as condies de possibilidade do conhecimento,
como para a tradio
analtica.
39
Ns, no entanto, como explicamos na Introduo, defendemos que a
Teoria das Idias
de Plato surgiu justamente como tentativa de resolver os
problemas lingsticos: a
impossibilidade de dar significado aos nomes de objetos
sensveis, se esses esto em
constante alterao. Nesse sentido, o Crtilo importante, pois nele
encontramos uma anlise
minuciosa de teorias da linguagem que so, na realidade, anlogas
s defendidas por
Protgoras e Grgias: o convencionalismo e o naturalismo. Para o
convencionalismo, a
relao entre as palavras e o que elas nomeiam (o objeto) um caso
de conveno: se algum
atribui um nome a alguma coisa, esse considerado o seu nome
correto: as palavras so como
que etiquetas verbais que aplicamos aos objetos. O
convencionalismo, com sua indiferena
ontologia, anlogo posio de Protgoras, que estudamos no captulo
anterior,e se baseia
em na teoria do fluxo de todas as coisas de Herclito, como
veremos. J para o naturalismo,
ao contrrio, as palavras exprimem a essncia dos objetos que
nomeiam, ou seja: ao usarmos
as palavras para nos referirmos a algo, j estamos dizendo a
prpria coisa. Como veremos, o
naturalismo se baseia na doutrina da emanao de Herclito e
Grgias.
Duas observaes importantes so necessrias, antes de comearmos a
estudar o
Crtilo:
O Crtilo trata da correo dos nomes (nmatoV rjthta), tema sobre o
qual
vrios sofistas, como Prdico, Hpias e Protgoras, escreveram
tratados (ver Kerferd, 2003, p.
119), sendo, portanto, um tema de grande interesse na poca.
importante destacar que
correo dos nomes, como ficar claro ao longo do texto, significa
perguntar pelo
significado dos nomes, isto , o Crtilo trata da questo da
referncia (cf. Spellmann, 1993,
197). Ele no procura responder questes sobre a origem da
linguagem nem sobre o
significado de sentenas.
Geralmente nos referimos a nome como nome prprio, o nome de
alguma pessoa.
Mas em grego o termo noma abrange, alm dos nomes prprios, tambm
nomes comuns
40
(substantivos), verbos e adjetivos, ou seja: qualquer coisa que
seja uma palavra (Barney,
1997, p. 143 n. 1; Luce 1969, p. 222-3; Fine, 1977, p. 290-301;
Robinson, 1955, p. 221).
Embora, na discusso contempornea sobre filosofia da linguagem,
alguns autores
defendam a tese de que os nomes prprios no tm significado
(Russell, Alston), para os
gregos, os nomes, e especialmente os nomes prprios, tm um
contedo descritivo, como
veremos mais adiante na anlise da seo das etimologias (cf. Fine,
1997, p. 289-90). O ato de
nomear ser o paradigma usado para explicar como as palavras
recebem significado e os
nomes prprios sero tratados como descries resumidas. Por
exemplo, Hermgenes no
apenas um conjunto de letras (ou sons) que Scrates usa para
designar esse indivduo,
personagem do dilogo, mas ele o interpreta como significando
descendente do deus
Hermes. Como Hermes o deus da riqueza e da habilidade em falar,
essas duas
caractersticas so atribudas tambm ao seu portador, o personagem
do dilogo.
Portanto, o Crtilo uma investigao sobre a referncia, limitada ao
escopo da
nomeao.
2.1 A tese convencionalista
A tese convencionalista defendida por Hermgenes a posio segundo
a qual a
correo dos nomes (o)rqo/thj o)no/matoj), isto , a relao entre as
palavras e o objeto que
elas nomeiam, estabelecida por uma conveno ou acordo (sunqh/kh
kai o(mologia,
384d1). Nenhum nome dado por natureza (fu/sei) a qualquer coisa,
mas pela lei e pelo
costume (no/m% kai eqei) dos que se habituaram (e)qisa/ntwn) a
cham-la (kalou/ntwn) desta
maneira (384d6-8).
Hermgenes atribui a origem do significado das palavras ao hbito:
algum,
provavelmente no passado remoto, nomeou um objeto com
determinada palavra. Essa prtica
41
foi, a seguir, imitada por outras pessoas e, com o passar do
tempo, tornou-se um hbito, vindo
a fixar-se, por fim, em costume ou lei. Portanto, a concluso que
usamos a linguagem que
usamos por mero seguimento da conveno e do costume social. Os
nomes e as palavras
adquirem seus significados, atravs de um acordo social (tcito),
o qual o produto
unicamente do hbito, por parte dos usurios de linguagem, de se
referir a determinadas
coisas com as mesmas palavras de forma constante.
Segundo Rachel Barney (1997, p.147-150), uma leitura cuidadosa
do texto de 385d
nos permite observar que, na exposio da sua tese, Hermgenes
diferencia dois tipos de ao,
uma das quais precede a outra. Primeiramente, h o ato de impor
um nome a determinado
objeto e, aps, segue-se a prtica de chamar o objeto por esse
nome.16
Barney lembra que o verbo que Hermgenes usa para designar a
imposio dos
nomes, tithnai, tambm o verbo normalmente usado com referncia ao
ato de assinalar,
conceder, dar a uma criana um nome escolha (LSJ), isto , ao ato
de batizar. No batismo,
os pais atribuem aos filhos um nome de sua escolha e,
primeiramente, parentes e conhecidos
e, depois, o resto da sociedade, aceitam esse nome e o usam. No
Crtilo, at 397d, os
exemplos de palavras estudadas so nomes prprios, nomes de
deuses, heris ou pessoas, e o
primeiro critrio de atribuio de nomes examinado o de nomear de
acordo com a filiao.
Mas, mesmo quando Scrates inclui em sua pesquisa outras classes
de palavras, a nomeao
sempre vista sob o paradigma do batismo, pois ela considerada um
produto, seja da
imposio originria dos nomes pelos deuses, seja do trabalho do
nomotta, seja do trabalho
dos antigos. O convencionalismo defendido por Hermgenes,
portanto, seria uma
generalizao da concepo de batismo (aplicvel aos nomes prprios)
para todas as outras
espcies de palavras.
Dessa forma, podemos distinguir dois aspectos no
convencionalismo de Hermgenes:
16 Ackrill refere-se a esses dois momentos como a introduo de
uma palavra na linguagem e o uso desta palavra, respectivamente
(1997, p. 36).
42
1) Convencionalismo no uso dos nomes: usamos certas palavras e
certos nomes,
seguindo uma prtica coletiva de designar certos objetos com tais
nomes. O hbito originrio
de uma ou de algumas pessoas de nomearem determinado objeto com
determinada palavra
seguido por outras pessoas e, com passar do tempo, fixa-se em um
hbito constante. Os
nomes e as palavras adquirem significado atravs do acordo
social; esse acordo, por sua vez,
nada mais do que um hbito coletivo de usar determinadas palavras
para se referir sempre a
determinadas coisas.
2) O segundo aspecto do convencionalismo de Hermgenes o
convencionalismo na
atribuio dos nomes: a prtica coletiva de usar determinados nomes
teria sua origem no ato
de um indivduo que, em algum momento, atribuiu tal nome a tal
coisa. Essa imposio de um
nome considerada como o ato individual ou privado (cf. 435a) de
algum que atribui um
nome a um objeto. Esse ato individual, por um lado, inicia a
conveno coletiva segundo a
qual tal nome o nome de tal objeto e, por outro, estabelece uma
norma que justifica o seu
uso subseqente. Ou seja: um nome usado corretamente apenas se
for usado de acordo com
o que foi estipulado pela imposio inicial.
Dessa forma, fica claro que a tese principal do convencionalismo
de Hermgenes
que, se no uso das palavras h regras que so definidas pela
conveno (social), no ato inicial,
originrio, de nomear um objeto, no h regras a serem seguidas. No
existe nada que
vincule de forma necessria e no-ambgua um nome a determinado
objeto e apenas a ele (ou
vice-versa). Toda denominao arbitrria, no segue nenhuma regra ou
critrio, a no ser o
capricho de quem d um nome a alguma coisa. Assim, para
Hermgenes, a palavra como
uma espcie de rtulo ou etiqueta (verbal ou escrita) que
simplesmente aplicamos a
determinado objeto, sendo que qualquer outro rtulo seria
igualmente adequado para se
indicar determinada coisa.
43
Para Hermgenes, poderamos at mesmo substituir, a qualquer
momento, os nomes
dos objetos por outros nomes: poderamos, por exemplo, dar o nome
de cavalo ao que
atualmente chamamos homem, e, caso sempre utilizarmos a palavra
cavalo para nos
referirmos a homem, esse passar a ser o seu nome (385a7).
Portanto, para Hermgenes,
mero acidente que as palavras possuam o significado que tm no
momento.
Podemos ento desdobrar a tese convencionalista de Hermgenes da
seguinte forma:
1) Os nomes so usados por conveno, pela lei, pelo hbito ou pelo
costume.
2) Qualquer pessoa, a qualquer momento, pode dar o nome que
quiser a qualquer
objeto.
3) Podemos trocar os nomes j existentes dos objetos, a qualquer
momento.
4) Uma pessoa pode mudar o nome de uma coisa, e todas as outras
pessoas podem
continuar usando o nome antigo (e vice-versa).
5) Um mesmo objeto pode ter vrios (potencialmente infinitos)
nomes: uma pessoa
pode dar um nome a uma coisa, uma segunda pessoa pode dar outro
nome essa mesma
coisa, uma terceira pessoa pode dar um terceiro nome a mesma
coisa, e assim ad infinitum.
6) O nome dado a um objeto o seu nome correto. O nome (qualquer
que seja) pelo
qual chamamos uma coisa o seu nome correto. Seja qual for o nome
que se d a uma coisa,
esse o seu nome correto (384d3) .
7) Logo, no h nomes mal-aplicados: todo nome verdadeiro.
8) Conseqentemente, toda nomeao verdadeira.
A crtica de Plato ao convencionalismo de Hermgenes ser dirigida,
no tanto ao
que o convencionalismo afirma, mas principalmente ao que ele
implica. Como veremos
adiante, Plato, ao criticar o naturalismo de Crtilo, admitir que
a linguagem tem uma parte
de conveno. O que ele rejeitar uma das conseqncias do
convenci