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H I L D A H I L S T OBRA POÉTICA REUNIDA (1950 - 1996) Organização: Edson Costa Duarte
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Poesia Completa Hilda Hilst

Jul 04, 2015

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Rebeca Matta
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Page 1: Poesia Completa Hilda Hilst

H I L D A H I L S T

OBRA POÉTICA REUNIDA (1950 - 1996)

Organização: Edson Costa Duarte

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Hilda Hilst

OBRA POÉTICA REUNIDA (1950-1996)

Casa do Sol

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Obra poética reunida Hilda Hilst

A ilustração da capa......

FICHA CATALORÁFICA ELABORADA PORXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

Índices para catálogo sistemático:1. Escritor Brasileiro - Obra Reunida B869.0002. Ficção Brasileira B869.00

Copyright 1998 Hilda Hilst

Hilst, Hilda

H00x Poesia reunida / Hilda Hilst -- CIDADE, ESTADO: Editora da Universidade XXXXX, 1998.

1. Hilst, Hilda, 1930 - /// - Literatura Brasileira séc. XX2. Ficção Brasileira. I. Universidade XXXXXXXXXXXXX II. Título.

00.XXX - B869.000 B 869.00

ISBN 00-000-000-0 (Editora XXXXXXXXXX)

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Editora XXXXXXXXEndereço XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX Tel: (000) 0000000000 / Fax (000) 00000000

1998

Sumário

Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995).............................5Do desejo (1992).....................................................................14

Do desejo (1992)...........................................................15Da noite (1992).............................................................20Amavisse (1989)...........................................................24

Via Espessa........................................................35Via Vazia...........................................................42

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Alcoólicas (1989).........................................................46Sobre a Tua Grande Face (1986)..................................51

Poemas malditos gozosos e devotos (1984)............................Cantares da perda e predileção (1983)...................................74Da morte. Odes mínimas (1979).................................................- Tempo Morte..........................................................................- À Tua Frente. Em vaidade...........................................................Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)..............................- Dez chamamentos ao amigo.......................................................- O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade..........- Moderato cantabile.......................................................................- Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana

para Dionísio.........................................................................- Prelúdios-Intensos para os desmemoriados do amor............- Árias pequenas. Para bandolim.................................................- Ária única, turbulenta................................................................- Poemas aos Homens do nosso tempo......................................Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria

de Araújo (1967)...............................................................- Corpo de Terra..........................................................................- Corpo de luz..............................................................................Exercícios para uma idéia (1967)................................................Trajetória poética do ser (1963-1966).........................................- Passeio......................................................................................- Memória...................................................................................- Odes maiores ao pai.................................................................- Iniciação do poeta.....................................................................Sete cantos do poeta para o anjo (1962).....................................Ode fragmentária (1961).............................................................- Bucólicas.................................................................................

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- Testamento lírico.........................................................................- Heróicas.........................................................................................Trovas de muito amor para um amado senhor (1960)..........Roteiro do Silêncio (1959)...........................................................- Cinco elegias..................................................................................- Sonetos que não são....................................................................- Do amor contente e muito descontente..................................Balada do festival (1955).............................................................Balada de Alzira (1951)................................................................Presságio (1950)............................................................................

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CANTARES DO SEM-NOME E DE PARTIDAS

(1995)

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A André Pinottie à memória deMirella Pinotti

Ó tirânico Amor, ó caso vário Que obrigas um querer que sempre seja De si contínuo e áspero adversário...

Luiz Vaz de Camões

Cubram-lhe o rosto, meus olhos ofuscam-se; ela morreu jovem.

John Webster

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I

Que este amor não me cegue nem me siga.E de mim mesma nunca se aperceba.Que me exclua do estar sendo perseguidaE do tormentoDe só por ele me saber estar sendo.Que o olhar não se perca nas tulipasPois formas tão perfeitas de belezaVêm do fulgor das trevas.E o meu Senhor habita o rutilante escuroDe um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontenteE farta de fadigas. E de fragilidades tantasEu me faça pequena. E diminuta e tenraComo só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

II

E só me veja

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No não merecimento das conquistas.De pé. Nas plataformas, nas escadasOu através de umas janelas baças:Uma mulher no trem: perfil desabitado de carícias.E só me veja no não merecimento e interdita:Papéis, valises, tomos, sobretudos

Eu-alguém travestida de luto. (E um olhar de púrpura e desgosto, vendo através de mimnavios e dorsos).

Dorsos de luz de águas mais profundas. Peixes.Mas sobre mim, intensas, ilhargas juvenisMachucadas de gozo.

E que jamais perceba o rocio da chama:Este molhado fulgor sobre o meu rosto.

III

Isso de mim que anseia desepedida(Para perpetuar o que está sendo)Não tem nome de amor. Nem é celesteOu terreno. Isso de mim é marulhoso E tenro. Dançarino também. Isso de mimÉ novo: Como quem come o que nada contém.A impossível oquidão de um ovo.Como se um tigre

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Reversivo,Veemente de seu avessoCantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.Como pode ser isto? Ser tenro, marulhosoDançarino e novo, ter nome de ninguémE preferir ausência e desconfortoPara guardar no eterno o coração do outro.

IV

E por que, também não doloso e penitente?Dolo pode ser punhal. E astúcia, logro.E isso sem nome, o despedir-se sempreTem muito de sedução, armadilhas, minúciasIsso sem nome fere e faz feridas.Penitente e algoz:Como se só na morte abraçasses a vida.

É pomposo e pungente. Com ares de santidadeOdores de cortesã, pode ser carmelitaOu Catarina, ser menina ou malsã.

Penitente e dolosoPode ser o sumo de um instante.Pode ser tu-outro pretendido, teu adeus, tua sorte.Fêmea-rapaz, ISSO sem nome pode ser um todoQue só se ajusta ao Nunca. Ao Nunca Mais.

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V

O Nunca Mais não é verdade.Há ilusões e assomos, há repentesDe perpetuar a Duração.O Nunca Mais é só meia-verdade:Como se visses a ave entre a folhagemE ao mesmo tampo não(E antevissesContentamento e morte na paisagem).

O Nunca Mais é de planícies e fendas.É de abismos e arroios.É de perpetuidade no que pensas efêmeroE breve e pequeninoNo que sentes eterno.

Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.

VI

Tem nome veemente. O Nunca Mais tem fome.De formosura, desgosto, riE chora. Um tigre passeia o Nunca MaisSobre as paredes do gozo. Um tigre te persegue.E perseguido és novo, devastado e outro.

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Pensas comicidade no que é breve: paixão?Há de se diluir. Molhaduras, lençóisE de fartar-se,O nojo. Mas não. Atado à tua própria envolturaManchado de quimeras, passeias teu costado.

O Nunca Mais é a fera.

VII

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitosPorque me fiz tanto de ressentimentosQue o melhor é partir. E te mandar escritos.Rios de rumor no peito: que te viram subirA colina de alfafas, sem éguas e sem cabrasMas com a mulher, aquela,Que sempre diante dela me soube tão pequena.Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.Perdi-me tanto em tiQue quando estou contigo não sou vistaE quando estás comigo vêem aquela.

VIII

Aquela que não te pertence por mais queira(Porque ser pertencenteÉ entregar a alma a uma Cara, a de áspide

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Escura e clara, negra e transparente), Ai!Saber-se pertencente é ter mais nada.É ter tudo também. É como ter o rio, aquele que deságuaNas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.Aquela que não te pertence não tem corpo.Porque corpo é um conceito suposto de matériaE finito. E aquela é luz. E etérea.

Pertencente é não ter rosto. É ser amanteDe um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”Que bem me sabe inteira pertencida.

IX

Ilharga, osso, algumas vezes é tudo o que se tem.Pensas de carne a ilha, e majestoso o osso.E pensas maravilha quando pensas ancaQuando pensas virilha pensas gozo.Mas tudo mais falece quando pensas tardançaE te despedes.E quando pensas breveTeu balbucio trêmulo, teu texto-desenganoQue te espia, e espia o pouco tempo te rondando a ilha.E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomasLuta, ascese, e as mós do tempo vão triturandoTua esmaltada garganta... Mas assim mesmo

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Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas...Canta o começo e o fim. Como se fosse verdadeA esperança.

X

Como se fosse verdade encantações, poemasComo se Aquele ouvisse arrebatadoTeus cantares de louca, as cantigas da pena.Como se a cada noite de ti se despedissesCom colibris na boca.E candeias e frutos, como se fosses amanteE estivesses de luto, e Ele, o PaiTe fizesse porisso adormecer...(Como se se apiedasse porque humanaÉs apenas poeira,E Ele o grande Tecelão da tua morte: a teia).

Como se fosse vão te amar e por isso perfeito.Amar o perecível, o nada, o pó, é sempre despedir-se.E não é Ele, o Fazedor, o Artífice, o CegoO Seguidor disso sem nome? ISSO...

O amor e sua fome.

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Do Desejo (1992)

À memória deApolonio de Almeida Prado Hilstmeu pai

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Do Desejo

Quem és? Perguntei ao desejo.Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

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I

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.Antes, o cotidiano era um pensar alturasBuscando Aquele Outro decantadoSurdo à minha humana ladradura.Visgo e suor, pois nunca se faziam.Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivoTomas-me o corpo. E que descanso me dásDepois das lidas. Sonhei penhascosQuando havia o jardim aqui ao lado.Pensei subidas onde não havia rastros.Extasiada, fodo contigoAo invés de ganir diante do Nada.

II

Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.Que desenhos e rictus na tua caraComo os frisos veementes dos tapetes antigos.Que sombrio te tornas se repitoO sinuoso caminho que persigo: um desejoSem dono, um adorar-te vívido mas livre.E que escura me faço se abocanhas de mimPalavras e resíduos. Me vêm fomesAgonias de grandes espessuras, embaçadas luasFacas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.Cordura. Crueldade.

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III

Colada à tua boca a minha desordem.O meu vasto querer.O incompossível se fazendo ordem.Colada à tua boca, mas descomedidaÁrduaConstrutor de ilusões examino-te sôfregaComo se fosses morrer colado à minha boca.Como se fosse nascerE tu fosses o dia magnânimoEu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

IV

Se eu disser que vi um pássaroSobre o teu sexo, deverias crer?E se não for verdade, em nada mudará o Universo.Se eu disser que o desejo é EternidadePorque o instante arde interminávelDeverias crer? E se não for verdadeTantos o disseram que talvez possa ser.No desejo nos vêm sofomanias, adornosImpudência, pejo. E agora digo que há um pássaroVoando sobre o Tejo. Por que não possoPontilhar de inocência e poesia

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Ossos, sangue, carne, o agoraE tudo isso em nós que se fará disforme?

V

Existe a noite, e existe o breu.Noite é o velado coração de DeusEsse que por pudor não mais procuro.Breu é quando tu te afastas ou dizesQue viajas, e um sol de geloPetrifica-me a cara e desobriga-meDe fidelidade e de conjura. O desejoEsse da carne, a mim não me faz medo.Assim como me veio, também não me avassala.Sabes por quê? Lutei com Aquele.E dele também não fui lacaia.

VI

Aquele Outro não via minha muita amplidão.Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.E agora vã, te pareço soberba, magníficaE fodes como quem morre a última conquistaE ardes como desejei arder de santidade.(E há luz na tua carne e tu palpitas.)

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ah, porque me vejo vasta e inflexívelDesejando um desejo vizinhanteDe uma Fome irada e obsessiva?

VII

Lembra-te que há um querer dolorosoE de fastio a que chamam de amor.E outro de tulipas e de espelhosLicencioso, indigno, a que chamam desejo.Há o caminhar um descaminho, um arrastar-seEm direção aos ventos, aos açoitesE um único extraordinário turbilhão.Porque me queres sempre nos espelhosNaquele descaminhar, no pó dos impossíveisSe só me quero viva nas tuas veias?

VIII

Se te ausentas há paredes em mim.Friez de ruas durasE um desvanecimento trêmulo de avencas.Então me amas? te pões a perguntar.E eu repito que há paredes, friezHá ,olimentos, e nem por isso há chama.DESEJO é um Todo lustroso de caríciasUma boca sem forma, em Caracol de Fogo.DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue

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E outra com a ferocidade de Um só Amante.DESEJO é Outro. Voragem que me habita.

IX

E por que haverias de querer minha almaNa tua cama?Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperasObscenas, porque era assim que gostávamos.Mas não menti gozo prazer lascíviaNem omiti que a alma está além, buscandoAquele Outro. E te repito: por que haveriasDe querer minha alma na tua cama?Jubila-te da memória de coitos e acertos.Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

X

Pulsas como se fossem de carne as borboletas.E o que vem a ser isso? perguntas.Digo que assim há de começar o meu poema.Então te queixas que nunca estou contigoQue de improviso lanço versos ao arOu falo de pinheiros escoceses, aquelesQue apetecia a Talleyrand cuidar.Ou ainda quando grito ou desfaleçoAdvinhas sorrisos, códigos, conluiosDizes que os devo ter nos meus avessos.

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Pois pode ser.Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.

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DA NOITE

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I

Vi as éguas da noite galopando entre as vinhasE buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.Algumas tinham manchas azuladasE o dorso reluzia igual à noiteE as manhãs morriamDebaixo de suas patas encarnadas.

Vi-as sorvendo as uvas que pendiamE os beiços eram negros e orvalhados.Uníssonas, resfolegavam.

Vi as éguas da noite entre os escombrosDa paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.Laços de pedra e palha entre as alfombrasE vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.

Vi-as tumultuadas. Intensas.E numa delas, insone, me vi.

II

Que canto há de cantar o que perdura?A sombra, o sonho, o labirinto, o caosA vertigem de ser, a asa, o grito.Que mitos, meu amor, entre os lençóis:O que tu pensas gozo é tão finitoE o que pensas amor é muito mais.

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Como cobrir-te de pássaros e plumasE ao mesmo tempo te dizer adeusPorque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?O toque sem tocar, o olhar sem verA alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.Como te amar, sem nunca merecer?

III

Vem dos vales a voz. Do poço.Dos penhascos. Vem funda e friaAmolecida e terna, anêmonas que vi:Corfu. No mar Egeu. Em Creta.Vem revestida às vezes de asperezaVem com brilhos de dor e madrepérolaMas ressoa cruel e abjetaSe me proponho ouvir. Vem do Nada.Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada.Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.E sibilante e lisaSe faz paixão, serpente, e nos habita.

IV

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Dirás que sonho o dementado sonho de um poetaSe digo que me vi em outras vidasEntre claustros, pássaros, de marfim uns barcos?Dirás que sonho uma rainha persaSe digo que me vi dolente e inauditaEntre amoras negras, nêsperas, sempre-vivas?Mas não. Alguém gritava: acorda, acorda Vida.E se te digo que estavas a meu ladoE eloqüente e amante e de palavras ávidoDirás que menti? Mas não. Alguém gritava:Palavras... apenas sons e areia. Acorda.Acorda Vida.

V

Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.Também eu em ti, feroz, encantoadaAtravessei as cercaduras rarasE me fiz máscara, mulher e conjetura.Águas que não bebi. Crespusculares. Cavas.Códigos que decifrei e onde me vi mil vezesInconexa, parca. Ah, toma-me de novoAntíquissima, nova. Como se fosses o tigreA beber daquelas águas.

VI

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O que é a carne? O que é esse IssoQue recobre o ossoEste novelo liso e convulsoEsta desordem de prazer e atritoEste caos de dor dobre o pastoso.A carne. Não sei este Isso.

O que é o osso? Este viço luzenteDesejoso de envoltório e terra.Luzidio rosto.Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.

VII

Dunas e cabras. E minha alma voltadaPara o fosco profundo da Tua Cara.Passeio meu caminho de pedra, leite e pêlo.Sou isto: um alguém-nada que te busca.Um casco. Um cheiro. Esvazia-me de perguntas.De roteiro. Que eu apenas suba.

VIII

Costuro o infinito sobre o peito.E no entanto sou água fugidia e amarga.e sou crível e antiga como aquilo que vês:

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Pedras, frontões no Todo inamovível.Terrena, me adivinho montanha algumas vezes.Recente, inumana, inexprimívelCosturo o infinito sobre o peitoComo aqueles que amam.

IX

Penso linhos e ungüentosPara o coração machucado de Tempo.Penso bilhas e pátiosPela comoção de contemplá-los.(E de te ver aliÀ luz da geometria de teus atos)Penso-tePensando-me em agonia. E não estou.Estou apenas densaRecolhendo aroma, passoO refulgente de ti que me restou.

X

Que te demores, que me persigasComo alguns perseguem as tulipasPara prover o esquecimento de si.Que te demoresCobrindo-me de sumos e de tintasNa minha noite de fomes.

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Reflete-me. Sou teu destino e poente.Dorme.

AMAVISSE

À memória de Ernest Becker

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À memória de Vladimir Jankelevitch

...ter um dia amado (amavisse)

Vladimir Jankelevitch

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Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charcoÀ espera da Tua Fome, permita-me a perguntaSenhor dos porcos e de homens:Ouviste acaso, ou te foi familiarUm verbo que nos baixios daqui muito se ouveO verbo amar?

Porque na cegueira, no charcoNa trama dos vocábulosNa decantada lâmina enterradaNa minha axila de pêlos e de carneNa esteira de palha que me envolve a alma

Do verbo apenas entrevi o contorno breve:É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso.Sangra, estilhaça, devora, e por issoDe entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.

É verbo?Ou sobrenome de um deus prenhe de humor?

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Na péripla aventura da conquista?

I

Carrega-me contigo, Pássaro-PoesiaQuando cruzares o Amanhã, a luz, o impossívelPorque de barro e palha tem sido esta viagemQue faço a sós comigo. Isenta de traçadoOu de complicada geografia, sem nenhuma bagagemHei de levar apenas a vertigem e a fé:Para teu corpo de luz, dois fardos breves.Deixarei palavras e cantigas. E movediçasEmbaçadas vias de Ilusão.Não cantei cotidianos. Só cantei a tiPássaro-PoesiaE a paisagem-limite: o fosso, o extremoA convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.No Amanhã.

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II

Como se perdesse, assim te quero.Como se não te visse (favas douradasSob um amarelo) assim te apreendo bruscoInamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se fosse tudo o mais me permitisses,A mim me fotografo nuns portões de ferroOcres, altos, e eu mesma diluída e mínimaNo dissoluto de toda desespedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estaçõesOu contornando um círculo de águasRemovente ave, assim te somo a mim:De redes e de anseios inundada.

III

De uma fome de afagos, tigres baçosVêm se juntar a mim na noite oca.E eu mesma estilhaçada, prenhe de solidõesTento voltar à luz que me foi dadaE sobreponho as mãos nas veludosas patas.

De uma fome de sonhosTento voltar àquelas geografias

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De um Fazedor de versos e sua estada.Memorizo este ser que me sou

E sobre os fulcros dentes, aliÉ que passeio e deslizo a minha fome.

Então se aquietam de pura madrugadaMeus tigres de ferrugem. As garras recolhidasComo se mesmo amorte os excluísse.

IV

Se chegarem as gentes, diga que vivo o meu avesso.Que há um vivaz escarlateSobre o peito de antes palidez, e linhos faiscantesSobre as magras ancas, e inquietantes cardumesSobre os pés. Que a boca não se vê, nem se ouve a palavra

Mas há fonemas sílabas sufixos diagramasContornando o meu quarto de fundo sem começo.Que a mulher parecia adequada numa noite de antesE amanheceu como se vivesse sob as águas. Crispada.Flutissonante.

Diga-lhes principalmenteQue há um oco fulgente num todo escancarado.E um negrume de traço nas paredes de calOnde a mulher-avesso se meteu.Que ela não está neste domingo à tarde, apropiada.

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E que tomou algáliaE gritou às galinhas que falou com Deus.

V

As maçãs ao relento. Duas. E o viscosoDo Tempo sobre a boca e a hora. As maçãsDeixa-as para quem devora esta agonia crua:Meu instante de penumbra salivosa.

As maçãs comi-as como quem namora. TocandoLongamente a pele nua. Depois mordi a carneDe maçãs e sonhos: sua alvura porosa.

E deitei-me como quem sabe o Tempo e o vermelho:Brevidade de um passo no passeio.

VI

Que as barcaças do Tempo me devolvamA primitiva urna de palavras.Que me devolvam a ti e o teu rostoComo desde sempre o conheci: pungenteMas cintilando de vida, renovadoComo se o sol e o rosto caminhassemPorque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço

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De me sentir tão vasta e pertencidaComo se as águas e madeiras de todas as barcaçasSe fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.

VII

Aquele fino traço de colinaQuero trancar na cancelaDa alma. Alimento e medidaPara as muitas vidas do depois.

Curva de um devaneio inantigidoUm todo estendido adolescenteAquele fino traço da colinaHá de viver na paisagem da mente

Como a distância habita em certos pássarosComo o poeta habita nas ardências.

VIII

Guardo-vos manhãs de terracota e azulQuando o meu peito tingido de vermelho

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Vivia a dissolvência da paixão.O capim calcinado das queimadasTinha o cheiro da vida, e os atalhosEstreitos tinham tudo a ver com o desmedidoE as águas do universo se faziam parcasPara afogar meu verso. Guardo-vos, iluminadasRecedentes manhãs tão irreais no hojeComo fazer nascer girassóis no topázioE dos rubis, romãs.

IX

Amor chagado, de púrpura, de desejoPontilhado. Volto à seiva de cordasDa guitarra, e recheio de sons o teu jazigo.Volto empoeirada de vestígios, arvoredo de ouroDo que fomos, gotas de sal na planície do olvidoPara recender a tua fome.Amor de sombras de ocasos e de ovelhas.Volto como quem soma a vida inteiraA todos os outonos. Volto novíssima, incoerenteCógnitaComo quem vê e escuta o cerne da sementeE da altura de dentro já lhe sabe o nome.

E reverdeçoNo rosa de umas tangerinasE nos azuis de todos os começos.

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X

Há um incêndio de angústia e de sonsSobre os instentos. E no corpo da tardeSe fez uma ferida. A mulher emergiuDescompassada no de dentro da outra:Uma mulher de mim nos incêndios do Nada.Tinha o dorso de uns rios: quebradiçoE terroso. O peito carregado de ametistas.Uma mulher me viu no roxo das ciladas:Esculpindo de novo teu rosto no vazio.

XI

Os ponteiros de anil no esguio das águas.Tua sombra azulada repensando os riosE agudíssimas horas atravessando o leitoDas barcaças.Tem sido noite extrema. Finos fiosSulcando de sangue as esperanças.

Os ponteiros de anil. Nossas duas vidasDevastadas, num lago de janeiros.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XII

Se tivesse madeira e ilusõesFaria um barco e pensaria o arco-íris.Se te pensasse, amigo, a Terra todaSeria de saliva e de chegança.Te moldaria numa carne de antesSem nome ou Paraíso.

Se me pensasses, Vida, que matériaQue cores para minha possível sobrevida?

XIII

Extrema, toco-te o rosto. De ti me vemÀ ponta dos meus dedos o ouro da volúpiaE o encantado glabro das avencas. De ti me vemA noite tingida de matizes, flutuanteDe mitos e de águas. Inaudita.Extrema, toco-te a boca como quem precisaSustentar o fogo para a própria vida.E úmido de cio, de inocência,É à saudade de mim que me condenas.

Extrema, inomeada, toco-me a mim.Antes, tão memória. E tão jovem agora.

XIV

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Obra poética reunida Hilda Hilst

um fado para guitarra

Outeiros, átrios, pombas e vindimas.Em algum tempoVivi a eternidade dessas rimas.Pastora, entre os animais é que cresci. E lhes pensavaO pêlo e a formosura. Senhora, tive a casaDaqueles da minha raça. Agrandados vestíbulosE aves e pomares, e por fidelidade pereci.De humildes aldeias e de casas grnadesTranslitei entre as vidas. Depois ameiExtremante e soturna. A quem me amava matei.Porisso nesta vida temo o amor e facas.Porisso nesta vida

Canto canções assim tão compassivasNa língua esquecida.

XV

Paliçadas e juncosE agudos gritos de um pássaro nos alagadiços.Tem sido este o tempo de prenúncios.

Tecida de carmim no traçado das horasA vida se refaz:Um risco de sorriso nos olhos luminososUm ter visto

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O traçado do extenso no inatingível Paraíso.

e de novo, no instantePaliçadas e juncos.E agudos gritos de um pássaro nos alagadiços.

XVI

Devo viver entre os homensSe sou mais pêlo, mais dorMenos garra e menos carne humana?e não tendo armaduraE tendo quase muito de cordeiroE quase nada de mão que empunha a facaDevo continuar a caminhada?

Devo continuar a te dizer palavrasSe a poesia apodreceEntre as ruínas da Casa que é a tua alma?Ai, Luz que permanece no meu corpo e cara:Como foi que desaprendi de ser humana?

XVII

As barcas afundadas. CintilantesSob o rio. E é assim o poema. CintilanteE obscura barca ardendo sob as águas.Palavras eu as fiz nascer

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Dentro da tua garganta.Úmidas algumas, de transparente raiz:Um molhado de línguas e de dentes.Outras de geometria. Finas, angulosasComo são as tuasQuando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.Mas poderão arder luas de eternidade.E doutas, de ironia as tuasSó através da minha vida vão viver.

XVIII

Será que apreendo a mortePerdendo-me a cada diaNo patamar sem fim do sentimento?Ou quem sabe apreendo a vidaEscurecendo anárquica na tardeOu se pudesseTomar para o meu peito a vastidãoO caminho dos ventosO descomedimento da cntiga.

Será que apreendo a sorteEntrelaçando a cinza do morrerAo sêmen da tua vida?

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XIX

Empoçada de instantes, cresce a noiteDescosendo as falas. Um poema entre-murosQuer nascer, de carne jubilosaE longo corpo escuro. Pergunro-meSe a perfeição não seria o não dizerE deixar aquietadas as palavrasNos noturnos desvãos. Um poema pulsante

Ainda que imperfeito quer nascer.

Estando sobre a mesa o grande corpoEnvolto na sua bruma. Expiro amor e arSobre as suas ventas. Nasce intensaE luzente a minha criaNo azulecer da tinta e à luz do dia.

XX

De grossos muros, de folhas machucadasÉ que caminham as gentes pelas ruas.De dolorido sumo e de duras frentesÉ que são feitas as caras. Ai, Tempo

Entardecido de sons que não compreendoOlhares que se fazem bofetadas, passosCavados, fundos, vindos de um alto poçoDe um sinistro Nada. E bocas tortuosas

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Sem palavras.

E o que há de ser da minha boca de inventosNeste entandercer. E o do ouro que saiDa garganta dos loucos, o que há de ser?

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VIA ESPESSA

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I

De cigarras e pedras, querem nascer palavras.Mas o poeta moraA sós num corredor de luas, uma casa de águas.De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.Mas o poeta habitaO campo de estalagens de loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome.

II

Se te pertenço, separo-me de mim.Perco meu passo nos caminhos de terraE de Dionísio sigo a carne, a ebriedade.Se te pertenço perco a luz e o nomeE a nitidez do olhar de todos os começos:O que me parecia um desenho no eternoSe te pertenço é um acorde ilusório no silêncio.

E por isso, por perder o mundoSeparo-me de mim. Pelo Absurdo.

III

Olhando o meu passeio

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Há um louco sobre o muroBalançando os pés.Mostra-me o peito estufado de pêlosE tem entre entre as coxas um lixo de papéis:- Procura Deus, senhora? Procura Deus?

E simétrico de zelos, balouçanteDobra-te num salto desnuda o traseiro.

IV

O louco estendeu-se sobre a ponteE atravessou o instante.Estendi-me ao lado da loucuraPorque quis ouvir o vermelho do bronze

E passar a língua sobre a tintura espessaDe um açoite.

Um louco permitiu que eu juntasse a sua luzÀ minha dura noite.

V

O louco (a minha sombra) escancarou a boca:_ O que restou de nós decifrado nos sonhos Os arrozais, teu nome, tardes, juncos Tuas ruas que no meu caminho percorri Ai, sim, me lembro de um sentir de adornos

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Mas há uma luz sem nome que me queima E das coisas criadas me esqueci.

VI

O louco saltimbancoAtravessa a estrada de terraDa minha rua, e grita à minha porta:- Ó senhora Samsara, ó senhora -Pergunto-lhe por que me faz a mim tão perseguidaSe essa de nome esdrúxulo aqui não mora.

- Pois aquilo que caminha em círculos É Samsara, senhora -E recheado de risos, murmura uns indizíveisColado ao meu ouvido.

VII

Devo voltar à luz que me pensouDe poeira e começos?Devo voltar ao barro e às mãos de vidroQue fragilizadas me pensaram?Devo pensar o louco (a minha sombra)À luz das emboscadas?Ai girassóis sobre a mesa de águas.

- Estetizante - disse-me o louco Grudado à minha poética omoplata.

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- Os girassóis? Ah, Samsara, teu esquecido sol. Uma mesa de águas? Que volúpia, que máscara E que ambíguo deleite Para a voracidade de tua alma.

VIII

Eram águas castanhas as que eu via.Caras de palha e cprda nas barcaças brancas.Velas de linhos novos, luzidiosMas resíduos. Sobras.

Colou-se minha sombra às minhas costas:- Que bagagem, senhora. O Nada navegando à tua porta.

IX

O louco se fechou ao risoSe torceu convulso de fingida agoniaE como se lançasse flores à cova de um mortoAtirou-me os guizos.Por quê? perguntei adusta e ressentida.

- Ó senhora, porque mora na morte Aquele que procura Deus na austeridade.X

- É o olho copioso de Deus. É o olho cego

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De quem quer ver. Vês? De tão aberto Queimado de amarelo -Assim me disse o louco (esguio e loiro)Olhando o girassol que nasceu no meu teto.

XI

De canoas verdes de amargas oliveirasDe rios pastosos de cascalho e poeiraDe tudo isso meu cantochão e ervas negras.Grita-me o louco:- De amoras. De tintas rubras do instante É que se tinge a vida. De embriaguez, Samsara.

E atravessou no riso a tarde fulva.

XII

Temendo desde agosto o fogo e o ventoCaminho junto às cercas, cuidadosaNa tarde de queimadas, tarde cega.Há um velho mourão enegrecido de queimadas antigas.E ali reencontro o louco:- Temendo os teus limites, Samsara esvaecida? Por que não deixas o fogo onividente Lamber o corpo e a escrita? E por que não arder Casando o Onisciente à tua vida?

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XIII

- Querer voar, Samsara? Queres trocar o moroso das pernas Pela magia das penas. e planar coruscante Acima da demência? Porque te vejo às tardes desejosa De ser uma das aves retardatárias do pomar. Aquela ali talvez, rumo ao poente.

Pois pode ser, lhe disse. Santos e lobosDevem ter tido o meu mesmo pensar. Olhos no céuOrando, uivando aos corvos.

Então aproximou-se rente ao meu pescoço:- Esquece texto e sabença: as cadeias do gozo. E labaredas do intenso te farão o vôo.

XIV

Telhas, calhasCordas de luz que se fizeram palavraAlguém sonha a carne da minha alma.

Ecos, poçoO esquecimento perseguindo um corpoAqui me tens entre a vigília e o encanto

Cativa da loucuraPerseguindo o louco.

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XV

Eram azuis as paredes do prostíbuloEla estendeu-se nua entre os arcos da salaE matou-se devassada de ternura.“Que azul insuportável”, antes gritou.“Como se adulta um berço me habitasse”

Foi esta a canção de Natal cantada pelo loucoQuando me deu a Hilde: a porca que levava sobre o dorso.

XVI

- Não percebes, Samsara, que Aquele que se esconde E que tu sonhas homem, quer ouvir teu grito? Que há uma luz que nasce da blasfêmia E amortece na pena? Que é o cinza a cor do teu queixume E o grito tem a cor do sangue Daquele que se esconde?

Vive o carmim, Samsara. A ferida.E terás um vestígio do Homem na tua estrada.

XVII

Minha sombra à minha frente desdobrada

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Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via.Prateado de guizosO louco sussurava um refrão erudito:- Ipseidade, Samsara. Ipseidade, senhora. -

E enfeixando energia, cintilandoFez de nós dois um único indivíduo.

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VIA VAZIA

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I

Eu sou Medo. Estertor.Tu, meu Deus, uma cavalo de ferroColado à futilidade das alturas.

II

Movo-me no charco. Entre o junco e o lagarto.E Tu, como Petrarca, deves cantar tua Laura:

“Le Stelle, il cielo, caldi sospiri”E nem há lua esta noite. Nascidas deste cantoDas palavras, só há borbulhas n’água.

III

Rato d’água, círculo no remoinho da busca.Que sou teu filho, Pai, me dizem. Farejo.Com a focinhez que me foi dadaencontro alguns dejetos. Depois, estendidoNa pedra (que dizem ser teu peito) , busco um sinal.E de novo farejo. Há quanto tempo. Há quanto tempo.

IV

À carnem aos pêlos, à garganta, à língua

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A tudo isso te assemelhas?Mas e o depois da morte, Pai?As centelhas que nascem da carne sob a terraO estar ali cintilando de treva.À treva te assemelhas?

V

Dá-me a via do excesso. O estupor.Amputado de gestos, dá-me a eloqüência do NadaOs ossos cintilandoNa orvalhada friez do teu deserto.

VI

Que vertigem, Pai.Pueril e devassoNo furor da tua vísceraTrituras a cada diaMeu exíguo espaço.

VII

Tu sabes que serram cavalos vivosPara que fiquem macias

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Obra poética reunida Hilda Hilst

As sacolas dos ricos?Tu gozas ou defecasDiante do ato sem nomeO rubro dessa orgia?

VIII

Descansa.O Homem já se fezO escuro cego raivoso animalQue pretendias.

IX

Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes.Antiqüíssima ave, marionete de penasAs asas que pensou lhe foram arrancadas.Lavado de luzes, um deus me movimenta.Indiferente. Bufo.

X

PEDRA D’ÁGUA, ABISMO, PEDRA-FERROComo te chamas? Para que eu possa ao menosSoletrar teu nome, grudada à tua fundura.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XI

Nos pauis, no pau-de-lacre,Aquele de nervuras e de folhas brilhantes, transitas.No pau-de-virar-tripa, só neste último, PaiEu sei que te demoras, meditando minha víscera.

XII

Águas de grande sombra, água de espinhos:O Tempo não roerá o verso da minha boca.Águas manchadas de um torpor de vinhos:Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuoO TEMPO NÃO VIVERÁ SE TOCAR A MINHA BOCA.

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ALCOÓLICAS (1989)

a

Goffredo da Silva Telles JúniorIgnacio da Silva TellesJosé Aristodemo Pinotti

pelas águas intensas da amizade

Drink we till we prove more, not lesse, then men,And turn not beasts, but Angels.

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... and forget to dy.

Richard Crashaw (poet e saint)

Ia Jamil Snege

É crua a vida. Alça de tripa e metal.Nela despenco: pedra mórula ferida.É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.Como-a no livro da línguaTinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-meNo estreito-poucoDo meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vidaTua unha púmblea, me casaco rossoE perambulamos de coturno pela ruaRubras, góticas, altas de corpo e copos.A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrimaOlho d’água, bebida. A vida é liquída.

II

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Também são cruas e duras as palavras e as carasAntes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, VidaDiante do coruscante ouro da bebida. Aos poucosVão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantesSobre os insultos do passado e do agora. Aos poucosSomos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadasDe um amora, um que entrevi no teu hálito, amigoQuando me permitiste o paraíso. O sinistro das horasVai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morteÉ um rei que nos visita e nos cobre de mirra.Sussuras: ah, a vida é liquída.

III

Alturas, tiras, subo-as, recorto-asE pairamos as duas, eu e a VidaNo carmim da borrasca. EmbriagadasMergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.Que estiola galhofa. Que desempenadosSerafins. Nós duas nos vaporesLobotômicas líricas, e a gaicagemSe transforma em galarim, e é translúcidaA lama e é extremoso o Nada.Descasco o dementado cotidianoE seu rito pastoso de parábolas.Pacientes, canonisas, muito bem-educadasAguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ah, o todo se dignifica quando a vida é liquída.

IV

E bebendo, Vida, recusamos o sólidoO nodoso, a friez-armadilhaDe algum rosto sóbrio, certa vozQue se amplia, certo olhar que condenaO nosso olhar gasoso: então, bebendo?E respondemos lassas lérias letíciasO lusco das lagartixas, o lustrinoDas quilhas, barcas, gaivotas, drenosE afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-meNa noite navegada, e rio, rio, e remendoMeu casaco rosso tecido de acuçena.Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

V

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deitoRomã baba alcaçuz, teu trançado rosadoSalpicado de negro, de doçuras e iras.Te amo, Líquida, descendo escorridaPela víscera, e assim esquecendo

FomesPaís

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O riso soltoA dentadura etéreaBola

Miséria.Bebendo, Vida, invento casa, comidaE um Mais que se agiganta, um MaisConquistando um fulcro potente na gargantaUm látego, uma chama, um canto. Ama-me.Embriagada. Intedita. Ama-me. Sou menosQuando não sou líquida.

VI

Vem, senhora, estou só, me diz a Vida.Enquanto te demoras nos textos eloqüentesAqueles onde meditas a carne, essa coisaQue geme sofre e morre, ficam vazios os coposFica em repouso a bebida, e tu sabes que ela é mais vivaEnquanto escorre. Se te demoras, começas a pensarEm tudo que se evola, e cantarás: como é tristeO poente. E a casa como é antiga. Já vêsQue te fazes banal na rima e na medida.

Corre. O casaco e o coturno estão em seus lugares.Carminadas e altas, vamos rever as ruasE como dizia o Rosa: os olhos nas nonadas.Como tu dizes sempre: os olhos no absurdo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vem. Liquidifica o mundo.

VII

Mandíbulas. Espáduas. Frente e avesso.A Vida ressoa o coturno na calçada.Estou mais do que viva: embriagada.Bêbados e loucos é que repensam a carne o corpoVastidão e cinzas. Conceitos e palavras.Como convém a bêbados grito o inarticuladoA garganta candente, devassada.Alguns se ofendem. As caras são paredes. Deitam-me.A noite é um infinito que se afasta. Funil. Galáxia.Líquida e bemaventurada, sobrevôo. Eu, e o casaco rossoQue nào tenho, mas que a cada noite recrioSobre a espádua.

VIII

O casaco rosso me espia. A lãDesfazida por maus tratosÉ gasta e rugosa nas axilas.A frente revela nódoas vivasIrregulares, distintasPorque quando arranco os coturnosNa alvorada, ou quando os coloco rápidaAo crespúsculo, caio sempre de bruços.A Vida é que me põe em pé. E a sede.E a saliva. A língua procura aquele gosto

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Aquele seco dourado, e acaricia os lábiosBabando impudente no casaco.

É bom e manso o meu casaco rosso.Às vezes grita: ah, se te lembrasses de mimQuando prolixa. Lava-me, hilda.

IX

Se um dia te afastares de mim, Vida - o que não creioPorque algumas intensidades têm a parecença da bebida -Bebe por mim paixão e turbulência, caminhaOnde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-teCom aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio.Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso : compreenderáO porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta.Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:Estilhaça a tua própria medida.

SOBRE A TUA GRANDE FACE (1986)

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À memória de Ernest Becker

A Ricardo Guilherme Dicke,por identificação no exercícioda procura

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Honra-me com teus nadas.Traduz me passo De maneira que eu nunca me perceba.Confude estas linhas que te escrevoComo se um brejeiro escoliastaResolvesseBrincar a morte de seu próprio texto.Dá-me pobreza e fealdade e medo.E desterro de todas as respostasQue dariam luz A meu eterno entendimento cego.Dá-me tristes joelhos.Para que eu possa fincá-los num mínimo de terraE ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.Tu sabes que amo os animaisPor isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem NomeNão desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.Talvez assim te encantes de tão farta nudez.Talvez assim me ames: desnudo até o ossoIgual a um morto.

O que me vem, devo dizer-te DESEJADO,Sem recuo, pejo ou timidezes. Porque é mais certo mostrarInsolência no verso, do que mentir decerto. Então direiO que se coleia a mim, na intimidade, e atravessa os vaus

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Da fantasia. Deito-me pensada de bromélias vivasE me recrio corpórea e incandescente.Tu sabes como nasceu a idéia das pontiagudas catedrais?De um louco incendiando um pinheiro de espinhos.Arquiteta de mim, me construo à imagem das tuas CasasE te adentras em carne e moradia. Queixumosa vou indoE queixoso te mostras, depois de te fartaresDo meu jogo de engodos. E a cada noite voltasNuma simulaçào de dor. Paraíso do gozo.

De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a Ilusão.A mesma ilusão

Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.De te pensar me deito nas aguadasE acredito luzir e estar atadaAo fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.De te sonhar, Sem Nome, tenho nadaMas acredito em mim o ouro e o mundo.De te amar, possuída de ossos e de abismosAcredito ter carne e vadiarAo redor dos teus cimos. De nunca te tocarTocando os outrosAcredito ter mãos, acredito ter bocaQuando só tenho patas e focinho.Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.Quando sou nada: égua fantasmagóricaSorvendo a lua n’água.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vem apenas de mim, ó Cara EscuraEste desejo de te tocar o espírito

Ou és tu, precisante de mim e de minha carneQue incendeias o espaço e vens muleiroMontado em ouro e sabre, clavina, cinturõesRebenque cariciosoSobre a minha anca viva?Ou há de ser a fome dos teus brilhosQue torna vadeante o meu espíritoE me faz esquecer que sou apenas vícioescureza de terra, latejante.

Vem de mim, Cara Escura, a ramagem de púrpuraCom a qual me disfarço. As facasQue a cada dia preparo, no seduzirTua fina simetria. E vem de ti, Obscuro,Toda cintilância que jamais me busca.

Quisera dar nomes, muitos, a isso de mimChagoso, trsite, informe. Uns resíduos da tardeAlgumas aves, e asas buscando tua cara de fuligem.De áspide.Quisera dar o nome de Roxura, porque a ânsiaTem parecimento com esse desmesurado de mim

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que te procura. Mas também não é issoEste meu neblinar contínuo que te busca.Ando em grandes vaguezas, açoitando os aresRelinchando sombras, carreando o nada.Os que me vêem me gritam: como tem passadoA aldeã de sua alteza? E há chacotas e risos.Mas vem vindo de ti um entremuro de sons e de ciciosUm labiar de sabores, um sem nome de passosComo se águas pequenas desaguassemNum pomar de abios. Como se eu mesmaFlutuasse, cativa, ofélica, sobre a tua Grande Face.

Hoje te canto e depois no pó que hei de serTe cantarei de novo. E tantas vidas tereiQuantas me darás para o meu outra vez amanhecerTentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivoPorque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugemTeu pasto que é o meu verso orvalhado de tintasE de um verde negro teu casco e os areaisOnde me pisas fundo. Hoje te cantoE depois emudeço se te alcanço. E juntosVamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.De escarlate.

Desejei te mostrar minha forma humanaAfastada de todo da velhice. Por isso

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Obra poética reunida Hilda Hilst

É que te chamo a ti desde criançaE adolescente e mulher, também contigoEm chamamento convivi. E tive corpo e cara preciososE brisas crespas numa voz tão raraQue se tivesses vindo àquele tempoMe verias a mim num corrido de horasUm demoroso estar de muitos noivos.E de todos, Soturno, nenhum foi tão coalescente

Tão colado à minha carne, como tu foste, ausente.Dirás demasiado. Mas fosca e acanhada, hoje,Peço-te com o luzir dos ossosCom a fragilidade de uma espuma n’águaQue me visites antes do adeus da minha palavra.

Lavores, cordas e batalhasO que me vem da alma. LavorPorque trabalho sobre o teu rostoDe palha: construo o impossívelMeu senhor. Cordas, porque te amarroCom as turquesas informes do desejo.E um sem fim de batalhasPorque prender a ti num coraçõa de fêmeaÉ querer lavores: o quebradiço constantePorque tento com a palhaA finura perfeita de um semblante.E o que deve fazerQuem não se lembra mais do mais perfeito

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E de si mesma só tem o humano gesto?

De montanhas e barcas nada sei.Mas sei a trajetória de uma alturaE certa fundura de águasE há de me levar a ti uma das duas.De ares e asas não percebo nada.Mas atravesso abismos e um vazio de avessosPara tocar a luz do teu começo.Das pedras só conheço as ágatas.Ams arranco do xisto as esmeraldasSe me disseres que é o verde a dádivaQue responde as perguntas da Ilusão.E posso me ferir no gelo das espadasSe me quiseres banhada de vermelho.

Em minhas muitas vidas hei de te perseguir.Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nomeAinda que por fadiga ou plenitude, destruas o poetaDestruindo o Homem.

Escaldante, Obscuro. Escaldante teu soproSobre o fosco fechado da garganta.Palavras que pensei acantonadasRessurgem diante do toque novo:Carrascais. Gárgulas. Emergindo do luto

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vem vindo um lago de surpreendimentoRecriando musgo. Voltam as seduções.Volta a minha própria cara seduzidaPelo teu duplo rosto: metade raízesOquidões e poço, metade o que nào sei:Eternidade. E volta o fervente langorOs sais, o mal que tem sido esta lutaNa tua arena crispada de punhais.

E destes versos, e da minha própria exuberânciaE excesso, há de ficar em ti o mais sombroso.Dirás: que instante de dor e intelectoQuando sonhei os poetas na Terra. Carne e poeiraO perecível, exsudando centelha.

Casa do Sol, 1985/1986

Poemas Malditos Gozosos e Devotos

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Obra poética reunida Hilda Hilst

(1994)

À memória de

Ernest Becker

Otto Rank

Simone Weil

Pensar deus é apenas uma certa maneira de pensar o mundo.

Simone Weil

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Obra poética reunida Hilda Hilst

I

Pés buriladosLuz alabastroMandou seu filhoSer trespassado

Nós pés de carneNas mãos de carneNo peito vivo. De carne.

Pés buriladosFino formãoDedo alongado agarrando homensGaláxias. Corpo de homem?Não sei. Cuidado.

Vive do gritoDe seus animais feridosVive do sangue de poetas, de crianças

E do martírio de homensMulheres santas.

Temo que se apercebaDe umas misérias de mim.Ou de veladas grandezas

Soberbas

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Obra poética reunida Hilda Hilst

De alguns neurônios que tenhoTão ricos, tão carmesinsTem esfaimada fomeDo teu todo que lateja.

Se tenho a pedir, não peço.Contente, eu mais lhe agradeçoQuanto maior a distância.E só porisso uma dança, vezenquandoSe faz nos meus ossos velhos.

Cantando e dançando, digo:Meu Deus, por tamanho esquecimentoDesta que sou, fiapo, da terra um ciscoBeijo-te pés e artelhos.

Pés buriladosLuz-alabastroMandou seu filho Ser trespassado

Nos pés de carneNas mãos de carneNo peito vivo. De carne.

Cuidado.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

II

Rasteja e espreitaLevita e deleitaÉ negro. Com luz de ouro.

É branco e escuro.Tem muito de foiceE furo.

Se tu és vidroÉ punho. Estilhaça.É murro.

Se tu és águaÉ tocha. É máquinaPoderosa se tu és rocha.

Um olfato que aspiraTeu rastro. Um construtorDe finitutes gastas.

É Deus.Um sedutor nato.

III

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Caio sobre teu colo.Me retalhas.Quem sou?Tralhas, do teu divino humor.

Corronhadas exatasDe tuas mãos sagradas.Me queres esbatida, gasta

E antegozas o gostoDe um trêmulo Nada.

Me devorasCom teus dentes ocos.A ti me incorporoA contra-gosto.

Sou agora fúriaE descontrole.Agito-me desordenadoNos teus moles.

Sou façanhaEscuro pulsanteFera doente.

À tua semelhança:Homem.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

IV

Doem-te as veias?Pulsaram porque fizesteDo barro dos homens.E agora dói-te a Razão?Se me visses fazerPanelas, cuias

E depois de prontasMe vissesAquecê-las a um pontoA um grande fogoAté fazê-las desaparecer

Dirias que sou dementeLouca?Assim fizeste aos homens.

Me deste vida e morte.Não te dói o peito?Eu preferiaA grande noite negraA esta luz irracional da Vida.

V

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Para um Deus, que singular prazer.Ser o dono de ossos, ser o dono de carnesSer o enhor de um breve Nada: o homem:Equação sinistraTentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? sim.Mas apenas enquanto dormes.Enquanto dormes, eu tento meu destino.Do teu sonoDepende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.Dorme. Para que o poema aconteça.

VI

Se mil anos vivesseMil anos te tomaria.Tu.e tua cara fria.

Teu recesso.Teu encostar-seÀs duras paredesDe tua sede.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Teu vício de palavras.Teu silêncio de facas.As nuas moldurasDe tua alma.

Teu magro corpoDe pensadas asas.Meu verso cobrindoInocências passadas.Tuas.

Imagina-te a mimA teu lado inocenteA mim, e a essa misturaDe piedosa, erudita, vadiaE tão indiferente.

Tu sabes.Poeta buscando alturaNas tuas coxas frias.

Se eu vivesse mil anosSuportariaTeu a ti procurar-se.Te tomaria, Meu Deus,Tuas luzes. Teu contraste.

VII

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Obra poética reunida Hilda Hilst

É rígido e mataCom seu corpo-estaca.Ama mas crucifica.

O texto é sangueE hidromel.É sedoso e tem garraE lambe teu esforço

Mastiga teu gozoSe tens sede, é fel.

Tem tríplices caninos.Te trespassa o rostoE chora meninoEnquanto agonizas.

É pai filho e passarinho.

Ama. Pode ser finoComo um inglês.É genuíno. Piedoso.

Quase sempre assassino.É Deus.

VIII

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Obra poética reunida Hilda Hilst

é neste mundo que te quero sentir.É o único que sei. O que me resta.Dizer que vou te conhecer a fundoSem as bêncãos da crne, no depois,Me parece a mim magra promessa.Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos.Mas tu sabes da delícia da carneDos encaixes que inventaste. De toques.Do formoso das hastes. Da corolas.Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejoNão te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste textoComo os enlevosDe uma mulher que só sabe o homem.

IX

Poderia ao menos tocarAs ataduras da tua boca?Panos de linho luminescentescom que magoasOs que te pedem palavras?

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Poderia atravésSentir teus dentes?Tocar-lhes o marfimE o liso da saliva

O molhado que mata e ressuscita?

Me permitirias te sentir a línguaEssa peça que alisa nossas nucasE fere rubraNossas delicadas espessuras?

Poderia, ao menos tocarUma fibra desses linhosCom repetidos cuidadosAbrirApenas um espaço, um grão de milhoPara te aspirar?

Poderia, meu deus, me aproximar?Tu, na montanha.Eu no meu sonho de estarNo resíduo dos teus sonhos.

X

Atada a múltiplas cordas

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vou caminhando tuas costas.Palmas feridas, vou contornandoPontas de gelo, luzes de espinhoE degredo, tuas omoplatas.

Busco tua boca de veiosAdentro-me nas emboscadasVazia te busco os meios.Te fechas, teia de sombrasMeu Deus, te guardas.

A quem te procura, calas.A mim que pergunto, escondesTua casa e tuas estradas.Depois trituras. Corpo de amantesE amadas.

E buscasA quem nunca te procura.

XI

Sobem-me as águas. Sobem-te as fúrias.Fartas me sobem dor e palavras.De vidro, nozes, de vinhas, me sobem doresTão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Na terra que preparei, nem nas calçadasDa casa? Me vês e me pensas caça?Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas! Que sangramento de passos!Que cegueira pretendendoSeguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.Antes que eu morra de águas., aguada do que inventei.

XII

Estou sozinha se penso que tu existes.Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.E igualmente sozinha se tu não existes.De que me adiantamPoemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existeOu se existe, então se escondeEm sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidênciasDa matemática pura? É preciso conhecerCom precisão para amar? Não te conheço.

Só sei que desmereço se não sangro.Só sei que fico afastadaDe uns fios de conhecimento, se não tento.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Estou sozinha, meu Deus, se te penso.

XIII

Vou pelos atalhos te sentindo à frente.Volto porque penso que voltaste.Alguns me dissem que passasteRente a alguém que gritava:

Tateia-me, Senhor,Estás tão pertoE só percebo ocosMoitas estufadas de serpentes.Alguém me diz que esse alguémQue gritava, a mim se parecia.Mas era mais menina, percebes?De certo modo mais velha

Como alguém voltando de guerrilhasMulher das matas, filha das Idéias.

Não eras tu, vadia. Porque o SenhorLhe disse: Poeira: estou dentro de ti.Sou tudo isso, oco moitaE a serpente de versos da tua boca.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XIV

Se te ganhasse, meu Deus, minh’alma se esvaziaria?Se a mim me aconteceu com os homens, por que não comDeus?De início as lavas do desejo, e rouxinóis no peito.E aos poucos lassidão, um desgosto de beijos, um esfriar-se

Um pedir que se fosse, fartada de carícias.Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minh’almaSe ficasses? que luz seria em mim mais luminosa?Que negrume mais negro?

Não haveria mais nem sedução, nem ânsias.E partirias. Eu vazia de ti porque tão cheia.Tu, em abastanças do sentir humano, de novo dormirias.

XV

Desenho um touro de seda.Olhos de um ocre espelhadoO pêlo negro, faustososeduzo meu Deus montadoSobre este touro.

Desenhas Deus? Desenho o NadaSobre este grande costado.

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Um rio de cobre deságuaSobre essas patas.Uma mulher tem nas mãosUma bacia de águas

Buscando matar a sedeDaquele divino Nada.

O touro e a mulher sou eu.Tu és, meu deus,A Vida não desenhadaDa minha sede de céus.

XVI

Se já soubesse quem souTe saberia. Como não seiPlanto couves e cravosE espero ver uma caraEm tudo que semeei.

Pois não dizem que te mostrasPor vias tortas, nos mínimos?Te mostrarás na minha hortaTalvez mudando o destinoDessa de mim que só vive

Tentando semeadura

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Dessa de mim que envelheceBuscando sua própria caraE muito através, a tuaQue a mim me apeteceriaVer frente a frente.

Há luas luzindo o verdeE luas luzindo os cravos.Couves de tal estaturaE carmesins dilatados

Que os que passam perguntam:São os canteiros de Deus?Digo que sim por vaidadeSabendo dos infinitosDe uma infinita procuraDe tu e eu.

XVII

Penso que tu mesmo crescesQuando te penso. E digo sem cerimôniasQue vives porque te penso.Se acaso não te pensasseQue fogo se avivaria não havendo lenha?E se não houvesse bocaPorque o trigo crescreria?

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Penso que o coraçãoTem alimento na Idéia.teu alimento é uma servaQue bem te serve à mão cheia.Se tu dormes ela escreveAcordes que te nomeiam.Abre teus olhos, meu Deus,Come de mim tua fome.

Abre tua boca. E grita este nome meu.

XVIII

Se some, tem cuidado.Se não some é fardo.Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesadoSe sumir de tua alma.

É de uma Idéia de Deus que te falo.Pesa mais se ausentePesa menos se te toma

Ainda que descontenteTe vejas pensando sempreNum alguém que está aí dentroDe quem não conheces rosto

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Nem gosto nem pensamento.

Cuida que tal IdéiaTe tome. Melhor um cheiro de dentroQue não conheces, um fartar-seDe um nada conhecimento

Do que um vazio de lutoUmas cascas sem os frutosPele sem corpo, ou ossosSem matéria que os sustente.

Toma contentoSe te sabes pesadoDessa idéia de Nada.É um pensar para sempre.

E não sentes verdadeQue a vida vale um extensoAltura e profundidadeSe vives do pensamento?

XIX

Teus passos somemOnde começam as armadilhas.Curvo-me sobre a treva que me espia.

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Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finasFeitas a fogo e espinho.teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX

Move-te. Desperta.Há homens à tua procura.Há uma mulher, que sou eu.A Terra mora na Via-LácteaEu moro à beira de estradasNão sou pequena nem alta

Sou muito pálidaPorque muito caminheiNas escurezas, no vícioDe perseguir uns falaresteus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Teu atar-se comigoTem muito de quebra e dessemelhança.Muitos de nós agonizam.A Terra toda. Há de ser quase Brinquedo adivinharesOnde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.Eu tenho nome: Poeira.

Move-te se te queres vivo.

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,Quando eu não mais estiver na TerraOnde agora canto amor e heresia.Outros hão de ferir e amarTeu coração e corpo. Tuas bifrontesValias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.Meu pares e outros homensTe farão viver destas duas voragens:Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fuiSerei, e sou agora. Pelo esquecimentoQue virá de ti e dos amigos.Pelas palavras que te deram vida

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E hoje me dão morte. Punhal, cegueira,

Sorri, meu Deus, por mim. De cedriDe mil abelhas tu és. Cavalo d’águaRoandando o ego. Sorri. Te amei sonâmbulaEscrúxula, mas te amei inteira.

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Cantares de perda e predileção

(1983)

à memória de Ernest Becker

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I

Vida da minha alma:Recaminhei casas e paisagensBuscando-me a mim, minha tua cara.Recaminhei os escombros da tardeFolhas enegrecidas, gomos, cascasPapéis de terra e tinta sob as árvoresNichos onde nos confessamos, praças

Revi os cães. Não os mesmos. OutrosDe igual destino, loucos, tristes,Nós dois, meu ódio-amor, atravessandoCinzas e paredões, o percurso da vida.

Busquei a luz e o amor. Humana, atentaComo quem busca a boca nos confins da sede.Recaminhei as nossas construções, tijolosPás, a areia dos dias

E tudo que encontrei te digo agora:Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.O arquiteto dessas armadilhas.

II

Que dor desses calendáriosSumidiços, fatos, datasO tempo envolto em visgo

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Minha cara buscandoTeu rosto reversivo.

Que dor no branco e negroDesses negativosLisura congelada do papelFatos roídosE teus dedos buscandoA carnação da vida.

Que dor de abraçosQue dor de transparênciaE gestos nulosDerretidos retratosFotos fitas

Que rolo sinistrosoNas gavetas.

Que gosto esse do TempoDe estancar o jorro de umas vidas.

III

Se a tua vida se estenderMais do que a minhaLembra-te, meu ódio-amor,Das cores que vivíamosQuando o tempo do amor nos envolvia.

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Do ouro. Do vermelho das carícias.Das tintas de um ciúme antigoDerramado Sobre o meu corpo suspeito de conquistas.Do castanho de luz do teu olharSobre o dorso das aves. Daquelas árvores:Estrias de um verde-cinza que tocávamos.

E folhas da cor das tempestadescontornando o espaçoDe dor e afastamento.

Tempo turquesa e prataMeu ódio-amor, senhor da minha vida.Lembra-te de nós. Em azul. Na luz da caridade.

IV

LobosLerdos leopardosCadelas

Ternuras velhas

Nós, lado a ladoNum sumidouro de linhas

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E ponteiros de pedra.

EnrodilhadosEscurosFamintos de nossas sombrasNas aldeias antigas.

LoboLeopardo-cadela

Ternuras velhas

Tu e eu desenhadosTreliças e telasNas tintas das conquista.

V

Me viasPartida ao meioA cara das emboscadas

Dizias

Esssa era a cara do meu desejo.

E possuíasO inteiriço, o NarcisoTu mesmo e tua fantasia.

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Um fronteiriço de linhasQue se pensavem contíguas.

Me vias dura, vestidaDe lãs e de campainhas.Sobre o teu vale eu passavaEm chagas, sem parceria.

Passava, sim.Mas nua, queimadaDo amor que tu me tiravas.

VI

Eu não te vejoQuando teu ódio aflora.Como poderiaVer teu ódio e a ti

IludidaPor uma só labareda da memória?

Cegos, não somos dois.Apenas pretendemos.Devorados e vastosTemos um nome: EFÊMERO.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

VII

E se leopardos e tigresConvivessem

E se no mundo houvesseLonjura de cordasPara amarrar torres vastas(as incansáveis crias do desejo)

E se águas não fossem molhadasE o que fosse montanhaAo invés de alturaSe fizesse rasa

Se o fogo não tragasseSua própria espessuraE a lucidez perfeitaNão fosse embriaguez

Do teu excessoE da minha loucuraUm caminho adequadoEm direção a Deus.

VIII

Me vinha:Que se tecesse

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Hastes de compaixãoCorolas de caridade

Sopro e saudade tecidosNa rede do coração

Eu nunca mais sentiriaTeu nome de hostilidade.

Me vinha:Se desfizesseO que já trançado tinha

Meu nome é que ficariaAmor na tua eternidade.

Então teciSóis e vinhas:Ouro-escarlate-paixão

E consumida de linhasEnovelada de ardênciaTe aguardo às portas da minha cidade.

IX

E atravessamos portas trancadas.Esteiras pedras cestosEspreitam

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Nossas passadas.E amamos como quem sonhaCancelas de sal e palhaPrendendo o sono.

Assim te amo. Sabendo.Degelo prendendo as águas.

X

E a língua lambeA cria que se feriuDe puro arrojoE altaneria.De gozo, sabor e nojoDesta conquista de mim.De tua companhia.

Cadentes teu passo e o meuTemos a marcha de dois caminhosDe pêlo e breu.Lentos, tenazesEm nós demora-seO amor e a cólera.

A crueldade.Que é o som de Deus.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XI

Faremos deste modoPara que as mãos não cometamOs atos derradeiros:

Envolveremos as facas e os espelhosNas lãs dobradas, grossas.E de alongadas nódoas, o ressentimento.

Pintadas as caras num nariz de gessoRecobriremos corpo, carneNa tentativa cálida, multiformeNa rubra pastosidade

De um toque sem sofrimento.

E afinalCara a cara (espelho e faca)De nossas duplas fomesNão diremos.

XII

Um cemitério de pombasSob as águasE águas-vivas na cinza

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ósseas e lassas sobrasSa minha e da tua vida.

Um pedaço de muroNa enxurradaPrumos soterrados, nasciturosNo céu

Indecifráveis sobrasDa minha e da tua vida.

Um círculo sangrentoUma lua ferida de umas garrasAssim de nós dois o escuro centro.

E no abismo de nósHavia sol e mel.

XIII

E batalhamos.Dois tigresColados de um só deleiteEstilhaçando suas armadurasAmor e fúriaCarícia, garra

Tua luz

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E a centelha raraDe um corpo e duas batalhas.

XIV

Como se desenhadosTuE o de dentro da casa.EntroComo se entrasseNo papel adentro

E sem ser vistaRasgoAlguns véus e fibras

Sem ser amadaPertenço.

Que sobrevivaO fino traço de tua presença.Aroma. Altura.E lacerada eu mesma

Que jamais se percebaUmas gotas de sangue na gravura.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XV

Para poder morrerGuardo insultos e agulhasEntre as sedas do luto.

Para poder morrerDesarmo as armadilhasMe estendo entre as paredesDerruídas.

Para poder morrerVisto as cambraiasE apascento os olhosPara novas vidas.

Para poder morrer apetecidaMe cubro de promessasDa memória.

Porque assim é precisoPara que tu vivas.

XVI

Só o mel escorresseDa boca do tigreTransmutando listras

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Obra poética reunida Hilda Hilst

TalhoNum largar de meiguice

O incisor em nósAs sinistras punturas

Os alanhados, meu ódio-amor,Um clarão de caríciasEntre as partituras.

Se o rugidor em nósSe somasse à névoaÀ calmaria da velhice

Nos outeiros do espaçoO rugido da vida.Um barco. Eo número par.

XVII

Os juncos afogadosUm cão feridoAs altas paliçadasDevo achar a palavraCompanheira do grito.

Um risco n’àguaUm pássaro aturdidoEntre o capim e a estrada

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Um grande girassolExplodindo entre as rodas

Imagens de mimNa caminhada.

XVIII

Para tua fome

Eu teria colocado meu coraçãoEntre os ciprestes e o cedro

E tu o encontrariasNa tua ronda de luta e incoesão:A ronda que persegues.

Para a tua sedeAs nascentes da infância:Um molhado de fadas e sorvetes.

E abriria em mim mesmaUma nova ferida

Para tua vida.

XIX

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Corpo de carneSobre um corpo de água.Sonha-me a mimContigo debruçadaSobre este corpo de rio.Guarda-meSolidão e nome

E vive o percursoDo que correJamais chegando ao fim.

Guarda esta tardeE repõe sobre as águasTeus navios. Pensa-meImensa, iluminadaGrande corpo de águaGrande rioEsquecido de chagas e afogados.

Pensa-me rio.Lavado e aquecido da tua carne.

XX

SoberboLibertas sobre o meu peitoTeu cavalo cego.

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E pontas e patasTentam enlaçadasFurtar-se às águasDo sentimento.

Suja de espadasGolpeada em negro

Sou tua cara e medo

Teu cavaleiroTeu corpoTua cruzada.

XXI

De ossosDe altos pomosDe ódio e ouro

Doloso

Teu rostoSobre a minha cara Crepuscular.

GozosoSobre o meu corpo

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Criando magia e ponta

Para morrerE fazer matar.

XXII

Toma para teu gozoEste rio de saudade.Nenhum recobrirá teu corpoCom tamanha levezaE com tal gosto

Ainda que sejam muitosOs largos rios da Terra.

Toma para teu gozoMinha dor e insanidadeDe nunca voltar a verMeu próprio rosto.E aguarda uma tarde sem tempoQuando serei apenas retalhada

Um espelho molado de umas águas.

XXIII

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Eu amo Aquele que caminhaAntes do meu passo.É Deus e resiste.

Eu amo a minha moradaA Terra triste.É sofrida e finitaE sobrevive.

Eu amo o Homem-luzQue há em mim.É poeira e paixãoE acredita.

Amo-te, meu ódio-amorAnimal-Vida.És caça e perseguidorE recriaste a PoesiaNa minha Casa.

XXIV

Cavalos negrosEntre lençóis e abetosE machetadas as cartas

Repulsa e gosmaEntre as palavras.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E listrasDesejoPás

E leopardos de geloEntre a mó e o pelo.

E ainda assimAltura, forquilha, tranco

Teu ódio-amorProcura minha pegada.

XXV

Insensatez e sombra.Foi o que se apossou de mimQuando sonâmbula

Amoldei meus pés ao teu caminho.Um distorcido de luzes e de líriosLagunas ruivas, vozesVindas de um não sei onde, vivas

Me fizeram supor que o teu caminhoEra a luz do meu passo, merecidaPorque de luta e a sósToda minha vida.

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E agora sei que as palmas do martírioé que brilhavam

E ruivosEram os lagos de nudez e sangueE viva era minha própria vozMaldizendo meu nome.

XXVI

De sacrifícioDe conhecimentoDa carne machucada

Os joelhos dobradosFrente ao CristoMeu canto compassadoDe mulher-trovador.

Ai. DescuidadoQue palavras altasQue montanha de mágoasQue águasDe um venenoso lagoTu derramasteNos meus ferimentos.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que simetria, justezaPara ferir-me a mimComo se a cruz quisesseDe mim ser a moradia.

E eu cantoPorque é esse o destinoDa minha garganta.E canto

Porque criança aprendiNas feiras: ave e mulherCantam melhor na cegueira.

XXVII

Amor agoraMeu inimigo.Barco do olvidoEntre o teu ódioE o meu navegarFico comigo.

Sopro, cadênciaMeu hausto e marNavego a rochaSomo o castigoDesliso, meu ódio-amigo,

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Graça e alívioDe te alcançar.

XXVIII

Ronda tua crueldade.Esconde, avança

Até que descubrasFissura rigorosaNa tua garraAjustado tensorPara tua lança.

Ronda meu abandonoPersegueTrança meu desamparoSono e tua iniqüidade.Ritualiza a matançaDe quem só te deu vida.

A me deixa viverNessa que morre.

XXIX

Faz de mim tua presa:Raiz para o teu ódio

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Amor para o meu navegarE abrandado cessaDe lançar tua redeTua armadila.

Faz de mim tua sombraE injúria, sangraEssa que te descansaNa tua soberba escalada ao meio-dia.GolpeiaPara amansar tua fina presa.

Faz de mim tua bocaE cobre de salivaTua cria de carne e solidão.E abrandado cessaTeu exercício de virtude e treva.

XXX

O Tempo e sua fome.Volúpia e EsquecimentoSobre os arcos da vida.Rigor sobre o nosso momento.

O Tempo e sua mandíbula.Musgo e furorSobre os nossos altares.Um dia, geometrias de luz.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Mais dia nada somos.

Tempo e humildade.Nossos nomes. Carne.Devora-me, meu ódio-amor,Sob o clarão cruel das despedidas.

XXXI

BarcasCarregando a vidaDescendo as águas.Passam pesadasDistantes do poeta e de sua caminhada.

BarcasInundadas de afagoNas águas da meiguice.O fulgor dos cascosIlumina o dorso dos afogados:Eu soterradaEm aguaduras escuras da velhice.

Barca é o teu nome.E passas.Candente, claraNavegas tua última viagemSobre o meu corpo molhado de palavras.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XXXII

Um coro de despedidas.A apenas duas as vozes.Um discursivo de murosE algoz-olhares

Fundas aguadasSubindo à tonaDas desmedidas.

E açoiteSobre as lembranças.e musgo, víscerasCobrindo o vínculo

Rútilo brilho das alianças.

E facas tão alongadasTrilhas, estradasFrias escarpasAINDA para a tua volta.

XXXIII

Se te pronuncioRetomo um ParaísoOnde a luz se faz dor

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E gelo a claridade.Se te pronuncioÉ esplendor a trevaE as sombras ao redorSão turquesas e sóisDepois de um mar de pedras.VigioEsta sonoridade dos avessos.Que se desfaça o fascínio do poemaque eu seja EsqueciementoE emudeça.

XXXIV

As águas, meu ódio-amor.Uma boca de seixosUm oco de palavrasUm sumidouro de fomesE de asasTeu ódio-escamaSobre o meu desejo.

As águas, meu ódio-amor.Mulheres afogadasEu-muitasDe litígio, escurezaE a sedução de me pensaresPresaMe sabendo invasão.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E ungüento sobre a tua mágoa.Flores, graçasPara que os nossos corposSe lavem dessas águas

Caridosos com a carne e as ilusões.

XXXV

Desgarrada de tiSou a sombra da Amada.Das madeiras da casaFarei barcas côncavas

E tingirei de negriOs lençóis de fogoOnde nos deitávamos

VelasBandeira para minhas barcas.

E de dureza e arrojoHei de chegar a um portoDe pedras frias.

Memória e fidelidadeMeu corpo-barcaEsmago contra as escarpas.

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De luto e choros um diaVerei tua boca beijando as águasTeu corpo-barca. Minha trilha.

XXXVI

Pedras dentro das barcasFavos trincadosEmbaçando as águas

Ai que cuidadosQue fulgor de dentesPara criar um espaçoDe ausências no meu presente.

E envoltório de malhasE escuros rosáriosFeitos de sal e aço

Ai que cuidadosPara prender quem viveDessas cadeias

E morreSó de pensar em não tê-las.

XXXVII

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Quem é que ousa cantar, senhor,Um ódio dito formoso?

Que raro fosso há de serO escuro melodioso

Esse tão meu, de sementesDe verdes dentro de um poço?

Que largueza incongruenteNos versos, sem parecer

Que quem trovaSe fez demente.

Que altas novasEste cantar de mulher:

Um ódio de esclarecerDesejo que não se mostra.

Um ódio-fêmea, senhor,É bem o fosso onde cresce a rosa:A rara. De ódio formoso.

XXXVIII

Toma-me ao menos

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Na tua vigília. Nos entressonhos.Que eu faça parteDas dores empoçadasDe um estendido de outono

Do estar ali e largar-seDa tua vida.

Toma-mePorque me agradaMeu ser cativo do teu sono.CorporificaBoca e malícia.Tatos.Mas importa maisO que a ausência trazE a boca não explica.

Toma-me anônimaSe quiseres. Eu outraOu fictícia. Até rapaz.É sempre a mim que tomas.Tanto faz.

XXXIX

Escreveste meu nome

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Sobre a água?A fogo, na almaDesenhei o teu

Grafismo iluminadoImantado e novo

Teu nome e o meu.

Novo Porque no nunca se viuNome tão pertencido.Antigo porque há milêniosSe entrelaçaram justosNo infinito.

E raroPorque tingido de um mosaico vivoDe danação e amor.

Teu nome.Irmão do meu.

XL

De rispidez e altivo

Passeias teu passo predadorSobre o meu peito

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E sobre o meu deserto.Minha alma a teu redorNa muralha dos séculos.

De amplitude e fervorA casa e sua candeiaTe aguardam.Famintas dessa caçaE desse caçador.

Se há volúpia no malTrago as mãos cheias.Um sol que se dissolveE me incendeia.E é sempre o mesmo fogoA lenha, o mesmo mal.

XLI

OuviaQue não podia te odiarE nem te temerPorque eras eu.E como seriaOdiar a mim mesma

E a mim mesma temer

Se eu caminhava, vivia

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Colada a quem souE ao mesmo tempo serDessa de mim, inimiga?

Que não podia te amarTão mais do que pretendia.Pois como seria ser

Pessoa além do que me cabia?

Que pretensões de um sentirTão excedente, tão novoSão questões para o divino

E ao mesmo tempo um estorvoPra quam nasceu pequenino.Tu e eu. Humanos. Limite mínimo.

XLII

Atados os ramosOs fios de linhoAs fitasTeci para nósA coroa da vida.Depois fiz a canção:Gracejos, lascíviaE levezaForam primos irmãos

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E noivos da conquista.E de granito e solMe parecia o tempoDessas vidas.

Milênios no depoisMe soube iluminuraEntre os dedos dos mortos.Poeira e entendimentoSob a luz dos ossos.

XLIII

Ai que distânciaMeu ódio-amorQue doresQue cintilânciasDe pena.Tão ao meu ladoTe pensoNo entantoTão afastado

Como se a água ficasseA um dedo da minha bocaE todo o deserto à voltaMe segurasse.

Tão triste e tão à vontade

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Neste meu sol de martírios

Como se o corpo soubesseDesses caminhos da sedePorque nasceu conhecendoDa paixão seu descaminho.

E brilhos no teu sadismoE perdição na minha cara.Que coloridos espinhosTerás

Para a tua dura saudade.Que tempestade de sedeNos areais da procuraQuando saíres à caçaDe quem te amou. De mim.

À caça do NUNCA MAIS.

XLIV

Lembra-te que morreremosMeu ódio-amor.De carne e de misériaEsta casa breve de matériaCorpo-campo de luta e suor.

Lembra-te do anônimo da Terra

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Que meditando a sós com seus botõesGravou no relógio das quimeras:“É mais tarde do que supões”.

PorissoMata-me apenas em sonhos.Podes dormir em fúria pela eternidadeMas acordado, ama. Porque a meu ladoTudo se faz tarde: amor, gozo, ventura.

XLV

Que no poema ao menosViscosidade e luzDe nós dois, criaturas,Recriem seu momento.

Que da desordemDe dois encntamentosDo visgo, do vidroDe palavras duras

CoabitemO tosco e o transparente.

E desconforto e gostoDisciplina e paixãoDiscursivo e ciência

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Construam pelo menos no poemaA vizinhança dessas aparências.

XLVI

Talvez eu sejaO sonho de mim mesma.Criatura-ninguémEspelhismo de outraTão em sigilo e extremaTão sem medidaDensa e clandestina

Que a bem da vidaA carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmoTua soberba e afronta.E o retrato De muitas inalcansáveisCoisas mortas.

Talvez não seja.E ínfima, tangenteAspire indeifinidaUm infinito de sonhosE de vidas.

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XLII

Dorme o tormentoO Eterno dorme suspensoSobre as idéias e inventos

Só eu não durmoPra te pensar.

Dormem perjurosE vanidade e urnasDormem os medosE califados e ventresDormem ardentesOS loucos, pátios adentro

Só eu não durmoPra te pensar.

Dormem ativasAS dobradiçasDe mil bordéis e conventos

E pêndulos dormindo ao tempo

Só eu não durmoPra te pensar.

A gora escuraDo jugo dos sentimentos

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Irreversiva, suicidaTateio aquele rochedoDo ódio de desamar.

XLVIII

Teu livre-arbítrio, meu ódio-amor?O distendido flanco do tigreSobre teu peito vivo.

Esculpida alvorada.Tua pretensa caçaNa cara de granito.Não é a mim que perseguesNem és tu aquele que persigo.Os amantes se entregamÀquele corpo cruel mas perseguido

Armadura de garra e de delíciasCorpo listrado de mel.

Meu livre-arbítrio, meu ódio-amor?Júbilo imerecido:O distendido flanco do tigreSobre meu peito vivo.

XLIX

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Se me viessem à bocaAs palavras foscasPara te abrandar.Se levez e soproHabitassem a casaDo meu corpoNão seria eu aquela do teu gostoE amarias líriosAo invés de ostras.Se comedimentoMornidão, prudênciaMe dourassem a carneE o coraçãoTu me dirias roucoQue a bem do DesejoDesfez-se o ParaísoE inventou-se a Paixão.

Bem porisso preservaQuem te sabe inteiro.E cala teu instanteDe um ciúme que repeteQue devo ser repousoE contenção.

L

Um percurso de noites e vazantesDunas escuras e casas vazias

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De mim mesma fui cruz e viajante.As costas do meu Deus era o que eu via.E ainda assim tão curvas

Arco que à minha frente se moviaTambém como quem busca.Um percurso a sós, meu ódio-amor,E um poderoso à frente viajante.Gritei nomes e sons, reinventeiE às vezes via o ombro flamejante

Mover-se

Mas nunca como aquele que pretendeSalvar alguém sem luz atrás de si.

E pranteei meu nome e minha vida.Ma laboriosaHei de plantar redondas redivivasPara prender meu Deus à tua volta.

LI

Cálida alquimia:Ouro e compaixãoSofrida penaAquecendo a mão fria.Toma-me cara e mãosE a morosa tenta

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Revestir de venturaPalavra e teia.Ilumina o roteiro do poetaReabrindo as ramas da ilusão.Que a caridadeTe faça mais sábiaDiante da fêmea frágil.Que a mentira apascenteO fogo da verdade.

E entre as escarpasAs minhas, do coraçãoEsperança e vivezNovamente se façamSobre a minha cara e mãos.

LII

Eu era parte da noite e caminhavaAdulta e austeraSem luz e aventurança.Tu eras praia e diaUm fogo brancoO rosto da montanha sobre a terra.

E juntamos a trevaAo mar do meio-dia.Cristas aguadas, pontasTrilhas fosforescentes

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Na vastidão das sombras

Mas um instante apenas.

Porisso é que caminho como antesAdulta e austera.Acrescida de véus me mostro aos viajantes:Vês a mulher, aquela?Dizem que a cara é de caliça e pedra.Que a luz das ilusões passou por ela.

LIII

CadenciadasVão morrendo as palavrasNa minha boca.Um sudário de asasHá de ser agasalhoE pátria para o corpo.Anônimo, caladoO poeta contemplaEspelho e mágoa

Fragmentos de um veioBerçário de palavras.

Umas lendas volteiamO poeta vazio de seus meios:Escombros, escadas

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Amou de amor escuroA fugiu de si mesmoDe sua própria cilada.

O poeta. Mudo.Aceitável agora para o mundoNo seu sudário de asas.

LIV

Na moldura, no esquadroInalteráveisPassado e sentimento.

Dos dois contemploRigor e fixidez.Passado e sentimentoMe contemplam

Arduidade nas carasRigor no teorema.

Tento apagarAtos, postura. Revivem.Irremovíveis, vítreos

Incorporam-se para sempreÀ eternidade do meu espírito.

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LV

Um tempo-luzSobre o tempo do adeusPorque ainda é vivazO sentimento.Porque ainda me vejoComo se tocasseUns mosaicos azuis

Lisura de surpresaNa caligem de quadrosE de quartos

No areal das mesas.

Ronda pela casa a maciezSe me repenso mansaE com cuidado.E ao meu redorUm gosto peroladoDegusta o próprio fioDe cordame e pobreza.

Rondas a casa.

Ah, foi apenas teu passo

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A pretendida luz deste poema.

LVI

Areia, vou sorvendoA água do teu rio.E sendo rioTu podes me tomarMinúscula, extensaAmpulheta guardadaEsteira, desafio.

Areia, encharcadaRecebo tuas palavras d’águaSumidouro, aguaçaEm água-mel te prendo.Areia, vou te tomando vastaOu milimétrica, lenta

Um rio de areia e caçaLuminescente, tua,Uma presa de água.

LVII

Há este céu duroEmpedrado de ventos.Eternidade és tu, meu ódio-amor

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Senhor do meu sentimento.

Há este Nunca-MaisAncorado no Tempo.E uma só tarde num aroma de ruasDe mogorim, de aves.

E há refrões e ágatasNas praçasDaquele paraíso de ilusões.E barcas, pedras roladas

Extensos esgarçadosEternidade de nós, meu ódio-amorNo SEMPRE-NUNCA MAIS.

LVIII

O bisturi e o verso.Dois instrumentosEntre as minhas mãos.Um deles rasga o TempoO outro eternizaAquele tempo-ouro sem medida.

Rompems-e sílabas e fonemas.Estanco meus projetos.E o que se vêÉ um só comum-complexo

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Coração aberto.

E nunca maisNa dimensão da TerraHei de rever as moradas, os tetosOs paraísos soberbos da paixão.

LIX

Sonha-me, meu ódio-amor,Através do teu sonho, volto à vida.Passeia minha sombra e ilusõesPelos mesmos caminhos, os antigos,E sonha-me como se tomassesNo fulgor da carneTua primeira amante proibida.

Sonha-me um novo-sempreUm rostoIsento de crueldades e partidas.Sonha-me tua.Criança e esquecida da experiência humanaHei de voltar à vida.

LX

Teu rosto se faz tardeSob a minha mão.

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E envelheço ternaDividida e austeraUm mergulho de luzMetade treva.

Pincéis de fino pêloDesenhando emoções.Teu rosto se faz noiteNiquelado traçoAnil e ouro baçoSob a minha mão.

E jardins de geloE muralhas-espelhoE papéis guardadosCastos de desejo.

Teu rosto.Uma tintura de fogoNa planície dos dedos.

LXI

Um verso únicoOco de fundosExtenso, vermelho-vivoNo túnel dos meus ouvidos:Sempre comigo Sempre comigo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Um verso escuroDe folhas-pontasDe nichosDe negras grutasA língua excede seu exercício:Sempre comigo Sempre comigo.

Um verso-vícioConstância e nojoVindo de uns lagosDe malefício.

Amor partidoTorresPoço-edifícioUm verso único num golpe nítido:Sempre comigo Sempre comigo.

LXII

Garças e fardosO vôo e o pesadoNo meu coração.

E lebres álbidasE cães.Correirice e caçaNo meu coração.

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Torres, escadas e águasNem barcos, nem cordasNo meu coração.

E lutos e garrasTua caraNo meu coração.

LXIII

Tens a medida do imenso?Contas o infinito?E quantas gotas de sanguePretendesDesta amorosa feridaDe tão dilatada fome.

Tens a medida do sonho?Tens o número do Tempo?Como hei de saber do extensoDe um ódio-amor que percorreFuriosoPassadas dentro do vento?

Sabes ainda meu nome?Fome. De mim na tua vida.

LXIV

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Obra poética reunida Hilda Hilst

De sol e luaDe fogo e ventreTe enlaço.Ainda que a bocaA tua(Sem se moverNão dizendo)

Me diga palavras cruas:Máscara friaLua-serpenteViva inimiga.

De sol e luaMe faço.Sabendo que a almaA tua(Sem se mostrar,Escondendo)

Me sabe irmã de tua eternidade.

LXV

Meu ódio-amor:Tudo se esvai.A hora se faz imóvelEscorrida

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Sobre o corpo da vida.Vou-mePedra lisa e marFixa-informeTento te segurarTu que és minha vida.MorreO mesmismo de mimSe não me colo a ti.Vagueio.Alguém me vêE aponta:Dentro da flor abertaUma abelha morta.

LXVI

Nuns atalhos da tardeVivendo imensidãoMinha alma disse a mimRica de sombras:Não pertencida.Exilada dos sóisDas outras vidas.

LXVII

Vida da minha alma:

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Um dia nossas sombrasSerão lagos, águasBeirando antiquíssimos telhados.De argila e luzFosforescentes, magos,Um tempo no depoisSeremos um só corpo adolescente.Eu estarei em tiTransfixiada. Em mimTeu corpo. Duas almasNômades, perenesTexturadas de mútua sedução.

LXVIII

Te penso.E já não és o pensado.És tu e mais alguémNo informe, nos guardadosAlguémE tu mesmo sem nome, imaginado.

Te pensoComo quem quer pintar o pensamentoColorir os muros do passadoDe umas ramas finas, mergulhadasNum luxo de tinturas.Te penso novo e vasto.E velhoIgual à fome que tenho das funduras.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

LXIX

Resolvi me seguirSeguindo-te.A dois passos de mimMe vi:Molhada cara, matando-se.

Cravado de flechas clarasRamo de luzes, de punhaladasTe vi. Sangrando de morte rara:A minha. Morrendo em ti.

LXX

Poeira, cinzasAinda assimAmorosa de tiHei de seu eu inteira.

Vazio o espaçoQue me contornavaHei de Estar ali.Como se um rio corresseSeu corpo de corredorE só tu o visses.Corpo de rio? Sou esse.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Fiandeira de versosTe legarei um tecidoDe poemas, um rútilo amareloTe aquecendo.

Amorosa de tiVIDA é o meu nome. E poeta.Sem morte no sobrenome.

Casa do Sol12/12/1981 a 5/11/1982

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Da Morte. Odes Mínimas

(1979)

À memória de Ernest Becker

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Obra poética reunida Hilda Hilst 155

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Obra poética reunida Hilda Hilst

I

Te batizar de novo.Te nomear num trançado de teiasE ao invés de MorteTe chamar Insana

FulvaFeixe de flautasCalhaCandeia

Palma, por que não?Te recriar nuns arcoírisDa alma, nuns possíveisConstruir teu nomeE cantar teus nomes perecíveis

PalhaCorçaNulaPraia

Por que não?

II

Demora-te sobre a minha hora.Antes de me tomar, demora.Que tu me percorras cuidadosa, etéreaQue eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheresNa sua dura hora.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que me tomes sem penaMas voluptuosa, eternaComo as fêmeas da Terra.

E a ti, te conhecendoQue eu me faça carneE posseComo fazem os homens.III

Pertencente te carrego:Dorso mutante, morte.Há milênios te seiE nunca te conheço.Nós, consortes do tempoAmada morteBeijo-te o flancoOs dentesCaminho candente a tua sorteA minha. Te cavalgo. Tento.

IV

Vinda do fundo, luzindoOu atadura, escondendo,Vindo escuraOu pegajosa lambendoVinda do alto

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ou das ferradurasMemoriosa se dizendoCalada ou novaVinda da coitadezOu régia numas escadasSubindo

Amada TorpeEsquiva

Benvinda.

V

Túrgida-mínimaComo virás, morte minha?

Intrincada. Nos nós.Num passadiço de linhas.Como virás?

Nos caracóis, na sementeEm sépia, em rosa mordenteComo te emoldurar?

AfiladaFerindo como as estacasOu dulcíssima lambendo

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Como me tomarás?

VI

Ferrugem esboçada

Perfil sem dracma

Crista pontudaNo timbre liso

Um oco insuspeitadoNa planície

Um cisco, um nadaÀ tona das águas

Brevíssima contraçãoTe reconheço, amada.

VII

Perderás de mimTodas as horas

Porque só me tomarásA uma determinada hora.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E talvez venhasNum instante de vazioE insipidez.Imagina-te o que perderásEu que vivi no vermelhoPorque poeta, e caminheiA chama dos caminhos

Atravessei o solToquei o muro de dentroDos amigos

A boca nos sentimentos

E fui tomada, feridaDe malassombros, de gozo

Morte, imagina-te.

VIII

Lenho, olaria, constróisTua casa no meu quintal.E desde sempre te espio

Linhos e cal tua caraLenta tua casa

Nova crescendo agora

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Nos meus cinqüenta.E madeirames e telhasE escadas, tuas rijezas

Tuas costas altas

Vezenquando te volteiasPara que eu não me esqueça

Do instante cego

Quando me pedirás companhia.Eu não me esqueço.Te espio de hora em hora

Casa e começo, tua cara,A qualquer tempo te reconheço.

IX

Os cascos enfeixadosPara que eu não ouçaTeu duro trote.É assim, cavalinha,Que me virás buscar?Ou porque te penseiSevera e silenciosaVirás criançaNum estilhaço de louças?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

AmantePorque te deprezei?Ou com ares de reiPorque te fiz rainha?

X

De sandálias de palhaPães pretos e esteira

Um dia, para recebê-la.

De sutis seduçõesA palavra de ouro, de cereja

Me calo para recebê-la.

Depois me deitoEntre cordas e estanhosE sonho pátios, guetos

Ínfimos sapatosSobre as ilusões.

E então te abraço.Ombro, cancelaMe fecho para recebê-la.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XI

Levarás contigoMeus olhos tão velhosAh, deixa-os comigoDe que te servirão?

Levarás contigoMinha boca e ouvidos?Ah, deixa-os comigoDegustei, ouviTudo o que conhecesCoisas tão antigas.

Levarás contigoMeu exato nariz?Ah, deixa-o comigoAspirou, torceu-seInsignificante, mas meu.

E minha voz e cantiga?Meu verso, meu domDe poesia, sortilégio, vida?

Ah, leva-os contigo.Por mim.

XII

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Por que não me esquecesVelhíssima-Pequenina?Nas escadas, nas quinasTrancada nos lacresNo ocre das urnasPor que não me esquecesMenina-Morte?

Sempre à minha procura.Tua rede de avencasTeu crivo, coáguloTuas tranças negras

Por que não viajasNo líquido cobreDa tua espessura?

E por que soberbaSe te procuroTe fechas?

XIII

Funda, no mais profundo do osso.Fina, na tua medulaNo teu centro-ovo. Rasa, poça d’águaTina. Longa, pela de cobra, casca.Clara numas verticais, num vazado solDa tua pupila. Paciente, colada às pontes

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Onde devo passar atada aos pertences da vida.Em tudo és e estás.

XIV

Porque é feita de perguntaDe poeira

Articulada, coesaPersigo tua cara e carneImatéria.Porque é disjuntaRompidaGeometral se faz duplaPersigo tua cara e carneResoluta.

Porque finge que franqueiaVestíbulo, espaço e casaSe sobrepondo de cascasGaiolas, grades

Máscara triplaPersigo tua cara e carne.

Comigo serrote e faca.

XV

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Cavalo, búfalo, cavalinhaTe amo, amiga, morte minha,Te amo, amiga, morte minha,Se te aproximas, saltoComo quem quer e não querVer a colina, o prado, o outeiroDo outro lado, como quem querE não ousaTocar teu pêlo, o ouro

O coruscante vermelho do teu couroComo quem não quer.XVI

Como se tu coubessesNa cristaNo topoNo anverso do osso

Tento prender teu corpoTua montanha, teu reverso.

Como se a boca buscasseSeus avessosAssim te buscoTorsão de todas as funduras.Persecutória te sigoAmarras, músculo.E sempre te assemelhasA tudo que desliza, tempo,

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Correnteza.

Na minha boca. Nos ocos.No chanfrado nariz.Rio abaixo deslizas, limoToco, em direção a mim.

XVII

Rasteja, voa, passeiaCom toda lentezaSobre a minha Idéia.

Em espiralOblonga, retilíniaTe recrio terraSobre a minha Idéia.

(Caracol de sumos, Andorinha Crina)

Vagueia sobre a minha IdéiaE não sei se flue

Poreja

Única, primeiraNum mosaico de teias.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Se infinita sobre a minha IdéiaSe assemelha à Vida.

XVIII

Se eu soubesseTeu nome verdadeiro

Te tomaria

Úmida, tênueE então descansarias.

Se sussurraresTeu nome secretoNos meus caminhosEntre a vida e o sono

Te prometo, morte,A vida de um poeta. A minha:Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares,Amantíssima, brandaComo fui tocada pelos homens

Ao invés de MorteTe chamo Poesia

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Fogo, fonte, Palavra vivaSorte.

XIX

Te viAtravessando as muradasMontada no teu cavaloAcróbata de guarda-sóis.(Eu era noite e não via)Te vi levíssimaDescendo numas aguadasLenta descendo como os anzóis.(Eu era peixe e sabia)Te vi serpente de somE te tomei. Patas, farpasJato de sol, açoiteBorbulho nas águas frias.Tu eras morte.

XX

Teu nome é Nada.Um sonhar o UniversoNo pensamento do homem:Diante do eterno, nada.

Morte, teu nome.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Um quase chegar perto.Um pouco mais (me dizem)E terias o Todo no teu gesto.Um pouco mais, tu O terias visto.

Teu nome é Nada.Haste, pata. Sem ponta, sem ronda.Um pensar duas palavras diante da Graça:Terias tido.XXI

Por que vens ao meiodiaDe cornadura, galopando conchasDe cornetim à frente da minha casaCota-capim, corta-águas?Descansa. Faz entrepausa.Colhe matiz, faz nuança.Porque até no que não vejoTe vejo. Corpo de ar e marfimBoca, palato

Sempre colada, sempre colada.

XXII

Não me procures aliOnde os vivos visitamOs chamados mortos.Procura-me

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Dentro das grandes águasNas praçasNum fogo coraçãoEntre cavalos, cães,Nos arrozais, no arroioOu junto aos pássarosOu espelhadaNum outro alguém,Subindo um duro caminho

Pedra, semente, salPassos da vida. Procura-me ali.Viva.

XXIII

Porque conheço dos humanosCara, Crueza,Te batizo VenturaRosto de ninguémMorte-VenturaQuando é que vem?

Porque viver na TerraÉ sangrar sem conhecerTe batizo Prisma, PúrpuraRosto de ninguémUnguentoDunaQuando é que vem?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Porque o corpoÉ tão mais vivo quando mortoTe batizo RisoRosto de ninguémSonidoAlturaQuando é que vem?

XXIV

Na melodia te penso.Íntima te pretendo.Incendiada de mimContigo morrendoTe sei lustro marfim e sopro.E te aspiro, te cubro de sussurrosMe colo extensa sobre tua cabeçaMorte, te tomo.

E num segundoOuvindo novamente os sons da vidaNomes, latidos, passosMorte, te esqueço.E intensa me retomo sob o sol.

XXV

Onde nasceste, morte?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que cores, ocaso e monte?E os pulsos que te arrancaramDo mais escuro. De carne?Te alimentavas

De anêmonas negras? Havia águas?Vagidos, choros,Empelicada como nasce a vida?Se querias, tocavas?E sendo criançaNão tocavas em tudoE o instante se faziaInsipidez e nada?

E velhíssima agoraConhecendo todos os tatosAgonia, terror e pasmo

Saciada

Por que não partes?

XXVI

Durante o dia constróiSeu muro de girassóis.(Sei que pretende disfarce E fantasia).Durante a noite,Fria de águas

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Molhada de rosas negrasMe espia.Que queres, morte,Vestida de flor e fonte?

- Olhar a vida.XXVII

Me cobrirão de estopaJunco, palha,Farão de minhas cançõesUm oco, anônima mortalhaE eu continuarei buscando

O frêmito da palavra.E continuareiAinda que os teus passosDe cobaltoEstrôncioPatas hirtasDevam me preceder.

Em alguma parteMonte, serrado, vastidãoE Nada.Eu estarei aliCom a minha canção de sal.

XXVIII

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Ah, negra cavalinhaFlanco de acáciasDobra-te para a montariaPorque me sei pesadaDe perguntas, negras favasEntupindo-me a bocaE no bojo um todo aversoUns adversos de nojo:Que rumos? Que calmarias?Me levas pra qual desgosto?Há luz? Há um deus que me espia?Vou vê-lo agora montada almaSobre as tuas patas? Tem rosto?

Dobra-te mansaPorque me sei pesada. De vida.De fundura de poço. E porqueUm poeta não sabe montar a morteAinda que seja a minha:Flanco de acácias.Negra cavalinha.

XXIX

Te sei. Em vidaProvei teu gosto.Perdas, partidasMemória, pó.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Com a boca viva proveiTeu gosto, teu sumo grosso.Em vida, morte, te sei.

XXX

Juntas. Tu e eu.Duas adagasCortando o mesmo céu.Dois cascosSofrendo as águas.

E as mesmas perguntas.

Juntas. Duas navesNúmerosDois rumosÀ procura de um deus.

E as mesmas perguntasNo sempre pasmoso instante.

Ah, duas gargantasDois gritosO mesmo urroDe vida, morte.

Dois cortes.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Duas façanhas.E uma só pessoa.

XXXI

Nos veremos de frente:As gargantas vítreas

Plexo e ventreDe todos os lados:Dorso de nós duasFlanco e braços.

As grandes palavrasTrancadas e vivasNo meu peito baço.

XXXII

Porque me fiz poeta?Porque tu, morte, minha irmã,No instante, no centroDe tudo o que vejo.

No mais que perfeitoNo veio, no gozoColada entre eu e o outro.No fosso

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Obra poética reunida Hilda Hilst

No nó de um íntimo laçoNo haustoNo fogo, na minha hora fria.

Me fiz poetaPorque à minha voltaNa humana idéia de um deus que não conheçoA ti, morte, minha irmã,Te vejo.

XXXIII

Esboçava-se.Escorria líquido.Era vidro.Amava torpe.Mesquinho te amava.Era um vivo.

Luzente ofuscavaDe vermes e asasVivo, silente,Alquimia de fogo:De pedra fria A gozo.

Dirias morto?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XXXIV

Tão escuramente caminhaÀ beira-lágrimaDentro do meu ser

Que já não seiDe onde me veio ou vinhaVontade minha de te conhecer.

Hoje tão escuramentePasseias, tardas, te arrastasNum vasto alheamentoDentro do meu ser

Que já não seiSe te pensar foi gestoPara inda mais ferirMinha própria mágoa.

Por que, pergunto, estando vivaDevo eu morrer?Por que, se és morte,Deves me perseguir?

Aquieta-te, afunda-teMorre, pequenina,EscuramenteDentro do meu sofrer.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XXXV

Ah, se eu soubesse de nuvensComo te sei no hoje, morte minha,Diria que me perseguemPara escurecerEssas caras de neve.Diria que se detêmSobre a minha casaPara ensombrar a alma. A minha.E espalhadasDiria que se avizinhaO cerco. A paliçada.Que estou muda no alémN sofrido perfil.Nítida sozinha.Se eu soubesse de nuvensComo te sei

Não diria o que disseNem faria o poema. Olhava apenas.XXXVI

Um peixe lilás e malvaNum claro cuboDe sons e água.

Assim te mostrarás.

Um perfil curvo.

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Soma de asas.Um quasi escuroSobre as vidraças.

E fios e linhasTrançando máscarasPara a minha cara:Rubro mandalaPara um perfil.

Então ajustoPara o mergulhoCores e máscara.Sou eu. Um peixe rubro

E um outro lilás e malva.

XXXVII

Não compreendo. ApenasTentoSomar meu corpoA teu corpo negroMinhas águasA teu remoE cascos, os meus,E luzes de um diaE ânus, regaçoSomar

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A teu matiz cobreadoTua garra fria.

Não compreendo. ApenasTento(Suor, subida, cascalhoSeca???)Somar teu corpoA meu pensamento.

XXXVIII

No coração, no olhar

Quando te tocaremPela primeira vezAqueles que se amam

Eu estarei.

Nas grandes luas.Nas tardes.Nas pequeninas cançõesNos livros

Eu e minha viva morteEstaremos aliPela primeira vez.

Dirão:

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Um poeta e sua morteEstão vivos e unidosNo mundo dos homens.

Nas madrugadasPela primeira vez

Em amorTocada.XXXIX

Uns barcos bordadosNo último vestidoPara que venham comigoAs confissões, o risoQuietude e paixãoDe meus amigos.

Porque guardei palavrasNuma grande arcaE as levarei comigo

Peço uns barcos bordadosNo último vestidoE vagasFinas, desenhadasManso friso

Como as crianças desenhamEm azul as águas.

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Uns barcosPara a minha volta à Terra:Este duro exercícioPara o meu espírito.

XL

Lego-te os dentes.Em ouro, esmalte e marfim.

Entre sarrafos e palhaO baço dos meus ossos.

Procura na tua balançaMinha couraça. Meu bandolim.Escrita e torso.Pesa-me a mim. Minha fundurasE o gume do meu desgosto.

Procura, na minha hora,Entre farrapos e palha

O que restou de mimÀ tua procura.

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TEMPO-MORTE

I

CorroendoAs grandes escadasDa minha alma.Água. Como te chamas?

Tempo.

Vívida antesRevestida de lacaMinha alma toscaSe desfazendo.Como te chamas?

Tempo.

Águas corroendoCaras, coraçãoTodas as cordas do sentimentoComo te chamas?

Tempo.

IrreconhecívelMe procuro lentaNos teus escuros.Como te chamas, breu?

Tempo.

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II

PassaráTem passadoPassa com a sua fina faca.

Tem nome de ninguém.Não faz ruído. Não fala.Mas passa com a sua fina faca.Fecha feridas. É ungüento.Mas pode abrir a tua mágoa

Com a sua fina faca.

Estanca ventura e vozSilêncio e desventura.ImóvilGarroteAlgoz

No corpo da tua água passaráTem passadoPassa com a sua fina faca.

III

Calomoso, longal e rêsTu não o sentes

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Nem vês.

Atravessa lerdoO adro do teu desgosto.

Na jubilância escorregaMas depois passaFurioso. Passou. Assovio? Seta?

Teus dentes. Teu sapato novo.O branco da tua casa.Tua voz adolescente.Ele carrega memória e concretude.

Vasto atravessa.

IV

Desde que nasci, comigo:Tempo-Morte.Procurar-teÉ estar montado sobre um leopardoE tentar caçá-lo.

Minha tua garra.Teu matiz de dentro.Tua lanhada.Nossa companhia.

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Passo de luz e negro.Dentes. Arcada.

Dois nítidosÀ caça de um Nada.

V

Fatia, tonsura, pinçaNunca te sei inteiroTempo-Morte.Jamais teu todo, teu pêloA intrincada cabeça do teu nojo.Sempre a rasura no texto seco

Ou gorda eloqüênciaSobre a tua figura.

Opaca detenho-meNo vazio do cesto.Tateio debruçadaFiapos de palha, sobrasCoagulada retornoAos arrozais da página.

Ponta dos dedos, pulsãoAté quando teu capuzDiante de um cego?

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À TUA FRENTE. EM VAIDADE.

I

E se eu ficasse eterna?DemonstrávelAxioma de pedra.

II

Se me alongasseComo as palmeiras

E em leque te fechasse?

III

E crivada de hera?Mas só pensadaEm matemática pura.

IV

E lívida Em organdiEntre os escombros?

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Indefinível como criatura.

Eternamente viva.

V

E te abrindo ao meioComo as carrancasNa proa das barcas?

Pesada como a antaTe espremendo.Guano sobre a tua cara.

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JÚBILO MEMÓRIA NOVICIADO DA PAIXÃO

(1974)

A M.N.porque ele existe.

Deliberei amar. Corto em pedaçoso músculo sangrento, alheio e tristea quem por isso culpo. Irmão, um diaaprenderemos a entender a entrada.

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E nunca mais seremos diferentes.

Renata Pallottini

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DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO

Love, love, my season.

Sylvia Plath

I

Se te pareço noturna e imperfeitaOlha-me de novo.Porque esta noiteOlhei-me a mim, como se tu me olhasses.E era como se a águaDesejasse

Escapar de sua casa que é o rioE deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempoEntendo que sou terra. Há tanto tempoEsperoQue o teu corpo de água mais fraternoSe estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.E mais atento.

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II

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.E eu te direi que o nosso tempo é agora.Esplêndida altivez, vasta venturaPorque é mais vasto o sonho que elabora

Há tanto tempo sua própria tessitura.Ama-me. Embora eu te pareçaDemasiado intensa. E de aspereza.E transitória se tu me repensas.

III

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dadoFaria do meu rosto de parábolaRede de mel, ofício de magia

E naquela encantada livrariaOnde os raros amigos me sorriamOnde a meus olhos eras torre e trigo

Meu todo corajoso de PoesiaTe tomava. Aventurança, amigo,Tão extremada e larga

E amavio contente o amor teria sido.

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IV

Minha medida? Amor.E tua boca na minhaImerecida.

Minha vergonha? O versoArdente. E o meu rostoReverso de quem sonha.

Meu chamamento? SagitárioAo meu ladoEnlaçado ao Touro.

Minha riqueza? ProcuraObstinada, tua presença Em tudo: julho, agostoZodíaco antevisto, página

Ilustrada de revistaEditoria; de jornalTeia cindida.

Em cada canto da CasaEvidência veementeDo teu rosto.

V

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Nós dois passamos. E os amigosE toda minha seiva, meu suplícioDe jamais te ver, teu desamor tambémHá de passar. Sou apenas poeta

E tu, lúcido, fazedor da palavra,Inconsentido, nítido

Nós dois passamos porque assim é sempre.E singular e raro este tempo inventivoCircundando a palavra. Trevo escuro

Desmemoriado, coincidido e ardenteNo meu tempo de vida tão maduro.

VI

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.O ouro em mim, a palavraIrisada na minha bocaA urgência de me dizer em amorTatuada de memória e confidência.Setembro em enorme silêncioDistancia meu rosto. Te pergunto:De Julho em mim ainda te lembras?Disseram-me os amigos que SaturnoSe refaz este ano. E é tigreE é verdugo. E que os amantes

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Pensativos, glaciaisFicarão surdos ao canto comovido.E em sendo assim, amor,De que me adianta a mim, te dizer mais?

VII

Sorrio quando pensoEm que lugar da salaGuardarás o meu verso.DistanciadoDos teus livros políticos?Na primeira gavetaMais próxima à janela?Tu sorris quando lêsOu te cansas de verTamanha perdiçãoAmorável centelhaNo meu rosto maduro?E te pareço belaOu apenas te pareçoMais poeta talvezE menos séria?O que pensa o homemDo poeta? Que não há verdadeNA minha embriaguezE que me preferesAmiga mais pacífica

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E menos aventura?

Que é de todo impossívelGuardar na tua salaVestígio passionalDa minha linguagem?Eu te pareço louca?Eu te pareço pura?Eu te pareço moça?

Ou é mesmo verdadeQue nunca me soubeste?

VIII

De luas, desatino e aguaceiroTodas as noites que não foram tuas.Amigos e meninos de ternura

Intocado meu rosto-pensamentoIntocado meu corpo e tão mais tristeSempre à procura do teu corpo exato.

Livra-me de ti. Que eu reconstruaMeus pequenos amores. A ciênciaDe me dixar amarSem amargura. E que me dêem

Enorme incoerência

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De desamar, amando. E te lembrando

- Fazedor de desgosto -Que eu te esqueça.

IX

Esse poeta em mim sempre morrendoSe tenta repetir salmodiado:Como te conhecer, arquiteto do tempoComo saber de mim, sem te saber?Algidez do teu gesto, minha cegueiraE o casto incendiado momentoSe ao teu lado me vejo. As tardesFiandeiras, as tardes que eu amava,Matéria de solidão, íntimas, clarasSofrem a sonolência de umas águasComo se um barco recusasse sempreA liquidez. Minhas tardes dilatadas

Sobreexistindo apenasPorque à noite retomo minha verdade:teu contorno, teu rosto álgido sim

E porisso, quem sabe, tão amado.

X

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Não é apenas um vago, modulado sentimentoO que me faz cantar enormementeA memória de nós. É mais. É como um soproDe fogo, é fraterno e leal, é ardorosoÉ como se a despedida se fizesse o gozoDe saberQue há no teu todo e no meu, um espaçoOloroso, onde não vive o adeus.

Não é apenas vaidade de quererQue aos cinqüentaTua alma e teu corpo se enterneçamDa graça, da justeza do poema. É mais.E porisso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença.

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O POETA INVENTA VIAGEM, RETORNO E MORRE DE SAUDADE

I

Se for possível, manda-me dizer:- É lua cheia. A casa está vazia -Manda-me dizer, e o paraísoHá de ficar mais perto, e mais recenteMe há de parecer teu rosto incerto.Manda-me buscar se tens o diaTão longo como a noite. Se é verdadeQue sem mim só vês monotonia.E se te lembras do brilho das marésDe alguns peixes rosadosNumas águasE dos meus pés molhados, manda-me dizer:- É lua nova -E revestida de luz te volto a ver.

II

Meu medo, meu temor, é se disseres:Teu verso é raro, mas inoportuno.Como se um punhado de cerejasA ti te fosse dadoLogo depois de haveres engolidoUm punhado maior de framboesas.

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E dirias que sim, que tu me lembras.Mas que a lembrança das coisas, das amigasÉ cotidiana em ti. Que não te enganas,Que o amor do poeta é coisa vã.

Continuarias: há o trabalho, a casaE fidalguiasQue serão para sempre preservadas.Se és poeta, entendes. Casa é ilha.E o teu amor é sempre travessia.Meu medo, meu terror, será maiorSe eu a mim mesma me disser:Preparo-me em silêncio. Em desamor.E hoje mesmo começo a envelhecer.

III

Se uma ave rubra e suspensa, ficaráNa nitidez do meu verso? Há de ficar.Também eu

Intensa e febril sobre o teu plexo.

Se cantarão Catulo, e depois deleMeu canto vigoroso de mulher?Hão de cantar.Mais do que pensas o meu verso puro.

Entrelaçados o meu nome e o teu

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Depois da morte? A desventura.E as ambigüidades.

Distraído de mim, em desapego,Eternamente cego? Claro que simAmado, eterno, corajoso amigo.

IV

Tenho pedido a Deus, e à lua, ontemHoje, a cada noite, PERPETUIDADEDesde o instante em que me soube tua.E que o luar e o divino perdoassemO meu rosto anterior, rosto-meninoTravestido de aroma, despudor contenteDe sua brevidade em tudo, nos afetosNo fingido amorPorque fui tudo isso, bruxa, duendeDesengano e desgosto quase sempre.Mais nada pedi a Deus. Mas pedi maisÀ lua: que tu sofresses tanto quanto eu.

V

Ah, se eu soubesse quem sou.Se outro fosse o meu rosto.Se minha vida-magiaFosse a vida que seria

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Vida melhor noutro rosto.

Ah, como eu queria cantarDe novo, como se nunca tivesseDe parar. Como se o soproSó soubesse de si mesmoAtravés da tua boca

Como se a vida só entendesseO viverMorando no teu corpo, e a morteSó em mim se fizesse morrer.

VI

Como quem semeia, rigoroso, os cardosSobre a areia, sem ver a mulher à beira-marTu, meu amigo, tensa os olhos fixosDe límpida vigília, e nem me vês passar.E ficarás assim, para sempreComo se as águas estanques de uma tarde

Jamais sonhassem a ventura do mar.E ficarás assim, para sempreComo se o oceano se obrigasseA contornar apenas uma certa ilhaE eu

Faminta me desobrigasse

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Da minha própria água primitiva.

Como quem semeia, rigoroso, os cardosSobre a areia, hei de ficar exata e coerenteConstruindo o meu verso, até que a morteMe descubra um dia, provavelmente

Como quem passeia.

VII

Essa lua enlutada, esse desassossegoA convulsão de dentro, ilhargaDentro da solidão, corpo moreendoTudo isso te devo. E eram tão vastasAs coisas planejadas, navios,Muralhas de marfim, palavras largasConsentimento sempre. E seria dezembro.Um cavalo de jade sob as águasDupla transparência, fio suspensoTodas essas coisas na ponta dos teus dedosE tudo se desfez no pórtico do tempoEm lívido silêncio. Umas manhãs de vidroVento, a alma esvaziada, um sol que não vejo

Também isso te devo.

VIII

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ai, que distancimento, que montanha, que águaEstes rios fundos, o meu sumo escorrendo,Esta chaga, ai, senhor, que já não vejoO tempo, ando ensombradaQuase dormida e insone pela casaE ao mesmo tempo raposa perseguida:Se ontem ousava correr, hoje não ousaAntes de alegraDo ouvido que escuta os cavalos correndoA música dos instrumentos, dos cães o latidoE se deixa matar. Ai de mim, me conhecendoPenitente sem ser preciso, com esse viço do amornão me sabendo nunca perseguidaMas sendo caça, indo à frenteE perseguindo o caçador.

IX

Debruça-te sobre a tua casa e a tua mulherE pergunta no mais fundo de ti, no teu abismo,Se é maior teu espaço de amor, ou maioresQue o céu esses rigores, a ti te proibindoTua amiga incorporada ao teu próprio destino.Do máximo e do mínimo e a meu favor(Não me louvando a mim o raciocínio)Ressurgiria um conceito didático, exemplar:De que não cabe medida se se trataDessa coisa incontida que é o amor.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

O coração amante se dilata. O preconceito?Um punhado de sal num mar de águas.

X

Túlio: aceita a graça que te concedeA padroeira, a mãe do meu Senhor,De me tomar a alma e o corpo, e atrairPara o teu próprio gozo, essa que andaA te louvar, essa primeiraA te cantar no verso, tua amiga, eu mesma,Incendiada, coroada de espinhos, e apesarSempre vivaSe se trata de ti, do teu fervor. Aceita-me.Que o tempo, peregrino se faz sempreMas nunca a contento perdurável,E se demoras muito, uns imensos destinosDistanciam de ti esse todo amoldávelQue se faz em mim. E milênios hão de passarE serás velho e triste. Aceita-me. Acredita:

De mais nada serás merecedorSe te recusas à graça da minha Virgem.

XI

Túlio, melhor é te ensinar a conhecerEssa coisa do amor, poque entendi

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Que amor não se fez no teu peito imaturo.

Se tens cinqüenta anos, eu quarenta e três,Em mim há muitas dores, tantasQuanto te espantas do meu brm-querer. Túlio.Quando se ama, rubor e lividez, banalidadeA chama, se alternam, como em certas tardesTu vês a chuva, o chão de terra lavado,E num segundo nem há sombra de águasE vês o sol oblíquo, enviesado, uma luzQuase ferida, para os teus olhos recentesDe umas águas. E há sentires plangentes,Agonias, um não dizer inflamado, uma febreMarejada de poesia.

E tudo o que eu te digo, tecido de palavras,Porque te amo tanto, Túlio, disse nada.

XII

Túlio viaja. A sós. E o tempo passa.Túlio nos ares, asa, amplidão,E o poeta morrendo, a sós, na casa,O coracão nos ares

Ai, coração, lamenta e apagaTeu existir de sangueEssa desordenada convulsãoPorque Túlio viaja e não te sabe.

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Sabe apenas de si, e das notíciasSupremas da política, dos homensFica atento à eloqüênciaE de ti, coração (antes que a pedraSe julgue irmã da tua matériaOuve, contido): De ti, Túlio não sabe.

Porisso volta à terra, esquece os ares.

XIII

Não é isso, Túlio. Afastada de mimA intenção de te causar tormento.É o Tempo, amigo. A se me faço amplaO inimigo atroz não me acompanhaPorque Túlio se faz, a cada dia, exíguo.

Deleitosa, caminho até a montanhaE tu te fechas, tíbio, pesadas anteportasEmergem do passeio a que me obrigo.Não é tormento, Túlio. Smepre te enganas.É essa fome de ti, esse amor infinitoPalavra que se faz lava na garganta.

XIV

Uma viagem sem fim, Túlio, eu te proponhoUm percorrer o mundo, vagaroso, uns caminhares

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Largos, entre a montanha e o vale, e acertosEntre nós dois, nós viajores, nós repensandoOs rios,E um campo de papoulas nos tomando, um frêmitoLuminoso,Agudos, inquietantes no entender dos outros,Lúdicos como convém a cálidos amantes.

Viagem de madrugadas milenares, Sirius intensa,Tudo ao redor papoulas e cerejas, como convémA mim, louca de lucidez, e como a ti, Túlio,Comigo, te convém.

XV

Amada vida: a dádiva de ser, de TúlioA única paisagem, inumerável, única a seus olhos,É o que pede o poeta à amada vida. Que importaA Túlio o contemplar os frutos, romãs, ou mesmoRosas, se por amor a ele me transmuto, e possoA um tempo só, ser flor e fruto, e além do maisPoeta, prodigiosa?Que importa a Túlio o mergulhar nas águasSe por amor a ele, maré alta e praiaA cada dia me faço, dadivosa? Que importa ao amadoO delisar das oras, o passo nos caminhos,O olhar diante do Tempo, umas duras planícies,E bulbos e romãs e rosas fenecendoSe por amor a ele, me faço amor e morte?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XVI

Túlio, não me pertenço mais.Nem as palavras agora me pertencem.Antes, são tuas, a alma e a palavraE dura dentro de ti vou me fazendoMedo e muralha,E se quiseres posso ser conventoA calar o meu verso, alimentar meu tempoDe corredores vazios e rosários.Túlio, só de te ouvir o nome, desfaleço.E a alma que sabia a entendimento,De si mesma não sabe, nem do gozoDe te amar, que conhecia.E se a ti, Túlio, te pertenço, ai, nunca maisDo amor vou conhecer minha alegria.Hei de fazer-me triste à imagem tua:Hei de ser pedra e areia, soberba e solidãoMontanha crua.

XVII

Morte, minha irmã:Que se faça mais tarde a tua visita.Agora nunca. Porque o amor de TúlioO vermelho da vida, pela primeira vezSe anuncia fecundo. Diante da luz do sol

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O meu rosto noturno de poeta te suplicaQue te demores muito contempalndo o mundoQue te detenhas ali, antre a roseiraE o juncoOu talvez, para o teu conforto, assim, te estendasÀ sombra das paineiras, sonolenta.Morte, contempla. Poupa, quem por amor,Em tantos versos, também se fez rainha.Esquece o poeta. Porque o amor de TúlioO vermelho da vida, pela primeira vezSecreto, se avizinha.

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MODERATO CANTABILE

I

A idéia, Túlio, foi se fazendoEm mim. Era alta a lua, e abertaA porta escura da minha casa vazia.Te pensei. E na minha alma fez-seUm gosto licoroso, mordedura

Mas doce do que a própria venturaDe existirE te pensando foi subindo a luaE vivendo meu instante fui te vendoDa minha vida cada vez mais perto.

A idéia, Túlio, redonda esboçadaEm azul, em ocre e sépiaEra a tua vida em mim, circunvolvida.

II

E circulando lenta, a idéia, Túlio,Foi se fazendo matéria no meu sangue.A obsessão do tempo, o sedimentoPalpável, teu rosto sobre a idéia

Foi nascendo

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E te sonhei na imensidão da noiteComo os irmãos no sonho se imaginam:Jungidos, permanentes, necessáriosE amantes, se assim se faz preciso.

Tocar em ti. Recriar castidadeNão me sabendo casta, ser voragemSer tua, e conhecendoSer extensão do mar na tua viagem.

III

Ser nova e derradeira, recompondoMadrugada e manhã no teu instante,Ser tão extremada, Túlio, tão primeira

Mais te valendo percorrer meu corpoDo que a matriz da terra. Tu me dirias:Louca, pastora do meu tempo, te demorasteEterna.

A idéia, Túlio, vai se fazendo rubraÀ medida que vou te refazendo.

IV

E quanto mais te penso, de si mesma

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Se encanta a minha idéia. VertiginosaE tensa como a flecha, contente de ser viva

Te procura

Sagitário-algoz, homem-amor, teu nomeQue é preciso esconder do meu poema.Te chamarás, quem sabe, Rufus, AntonioSe outros olhos se abrirem sobre o verso.A justiça dos homens, essa trama imprecisaMe puniria a mim, me chamaria ilícitaSe o verso se mostrasse com teu nome.

A idéia, Túlio, essa ilha escondidaÉ límpida, encatada, se faz prataVive através de ti. Porisso brilha.

V

E se parece a Mei, pequena estrelaViva na constelação de Sagitário.Vive dentro de ti, dupla grandezaO existir de agora, o céu em mim

No meu viver de sempre, solitário.

E de viver a idéia, de mim mesmaDo rosto, dos cabelos, do meu corpoDos amigos também, ando esquecida.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Rodeiam-me sem rosto, me perguntam:E a idéia? E se vão apreensivosPois dupla vida é o que vive o poeta:Entendimento e amor, duplo perigo.

A idéia, Túlio,(resguarda-te do susto, não te aflijas)É na verdade tudo o que me resta.

VI

Soergo meu passado e meu futuroE digo à boca do Tempo que os devore.E degustando o êxito do AgoraA cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio, faz-se um Tempo

Imperecível, justoIgual à hora primeira, nova, hora-meninaQuando se morde o fruto. Faz-se o Presente.Translúcida me vejo na tua vidaSem olhar para trás nem para frente:Indescritível, recortada, fixa.

ODE DESCONTÍNUA E REMOTAPARA FLAUTA E OBOÉ.DE ARIANA PARA DIONÍSIO.

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I

É bom que seja assim, Dionisio, que não venhas.Voz e vento apenasDas coisas do lá fora

E sozinha suporQue se estivesses dentro

Essa voz importante e esse ventoDas ramagens de fora

Eu jamais ouviria. AtentoMeu ouvido escutariaO sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.Porque é melhor sonhar tua rudezaE sorver reconquista a cada noitePensando: amanhã sim, virá.E o tempo de amanhã será riqueza:A cada noite, eu Ariana, preparandoAroma e corpo. E o verso a cada noiteSe fazendo de tua sábia ausência.

II

Porque tu sabes que é de poesiaMinha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que a teu lado te amando,Antes de ser mulher sou inteira poeta.E que o teu corpo existe porque o meuSempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e suplicanteQuando amanhece e me dizes adeus.

III

A minha Casa é gurdiã do meu corpoE protetora de todas minhas ardências.E transmuta em palavraPaixão e veemência

E minha boca se faz fonte de prataAinda que eu grite à Casa que só existoPara sorver a água da tua boca.

A minha Casa, Dionísio, te lamentaE manda que eu te pergunte assim de frente:À uma mulher que canta ensolaradaE que é sonora, múltipla, argonauta

Por que recusas amor e permanência?

IV

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Porque te amoDeverias ao menos te deterUm instante

Como as pessoas fazemQuando vêem a petúniaOu a chuva de granizo.

Porque te amoDeveria a teus olhos parecerUma outra Ariana

Não essa que te louva

A cada versoMas outra

Reverso de sua própria placidezEscudo e crueldade a cada gesto.

Porque te amo, Dionísio,é que me faço assim tão simultânea

Madura, adolescente

E porisso talvezTe aborreças de mim.

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V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio,Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importaSer nada à tua volta, sombra, coisa esgarçadaNo entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvidoE o que tu dizes enm pode ser cantadoPorque é palavra de luta e despudor.E no meu verso se faria injúria

E no meu quarto se faz verbo de amor.

VI

Três luas, Dionísio, não te vejo.Três luas percorro a Casa, a minha,E entre o pátio e a figueiraConverso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrelaEssa que é inteira prata, dez mil sóisSirius pressaga

Que Ariana pode estar sozinhaSem Dionísio, sem riqueza ou famaPorque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás.

VII

É lícito me dizeres, que Manan, tua mulherVirá à minha Casa, para aprender comigoMinha extensa e difícil dialética lírica?Canção e liberdade não se aprende

Mas posso, encantada, se quiseres

Deitar-me com o amigo que escolheresE ensinar à mulher e a ti, Dionísio,

A eloqüência da boca nos prazeresE plantar no teu peito, prodigiosaUm ciúme venenoso e derradeiro.

VIII

Se Clódia desprezou CatuloE teve Rufus, Quintius, GeliusInacius e Ravidus

Tu podes muito bem, Dionísio,Ter mais cinco mulheres

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E desprezar ArianaQue é centelha e âncora

E refrescar tuas noitesCom teus amores breves.Ariana e Catulo, luxuriantes

Pretendem eternidade, e a coisa breveA alma dos poetas não inflama.Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta

Que seja sempre terra o que é celesteE que terrestre não seja o que é só terra.

IX

“Conta-se que havia na China uma mulher belíssima que enlouquecia de amor todos os homens. Mas certa vez caiu nas profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofridoIrmanada com esse corpoE seu aquático jazigo

Pensando

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Que se a mim não deramEsplêndida belezaDeram-me a gargantaEsplandecida: a palavra de ouroA canção imantadaO sumarento gozo de cantarIluminada, ungida.

E te assustas do meu canto.Tendo-me a mimPreexistida e exata

Apenas tu, Dionísio, é que recusasAriana suspensa nas tuas águas.

X

Se todas as tuas noites fossem minhasEu te daria, Dionísio, a cada diaUma pequena caixa de palavrasCoisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderiasCompor incendiado a tua cançãoE fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meusEu te daria, Dionísio, a cada noiteO meu tempo lunar, transfigurado e rubro

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E agudo se faria o gozo teu.

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PRELÚDIOS-INTENSOSPARA OS DESMEMORIADOSDO AMOR.

I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha bocaAustera. Toma-me AGORA, ANTESAntes que a carnadura se desfaça em sangue, antesDa morte, amor, da minha morte, toma-meCrava a tua mão, respira meu sopro, degluteEm cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fomeDo de dentro. Corpo se conhecendo, lento,Um sol de diamante alimentando o ventre,O leite da tua carne, a minhaFugidia.E sobre nós este tempo futuro urdindoUrdindo a grande teia. Sobre nós a vidaA vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,Antes do muro, antes da terra, devoDevo gritar a minha palavra, uma encantadaIlharga

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Na cálida textura de um rochedo. Devo gritarDigo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendoImensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.O fundo sortilégio da omoplata.Matéria-menina a tua fronte e euMadurez, ausência nos teus clarosGuardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhasEm lúcida altivez, eu já sou o passado.Esta fronte que é minha, prodigiosaDe núpcias e caminhoÉ tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivoE vou morrendo. Entre terra e águaMeu existir anfíbio. PasseiaSobre mim, amor, e colhe o que me resta:Noturno girassol. Rama secreta.

III

Contente. Contente do instanteDa ressurreição, das insônias heróicas

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Contente da assombrada cançãoQue no meu peito agora se entrelaça.Sabes? O fogo iluminou a casa.E sobre a claridade do capimUm expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. DesdeSempre estiveste. Nas arcadas do TempoNas ermas biografias, neste adro solarNo meu mudo momento

Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

IV

Que boca há de roer o tempo? Que rostoHá de chegar depois do meu? Quantas vezesO tule do meu sopro há de pousarSobre a brancura fremente do teu dorso?

Atravessaremos juntos as grandes espiraisA artéria estendida do silêncio, o vãoO patamar do tempo?

Quantas vezezs dirás: vida, vésper, magna-marinha

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E quantas vezes direi: és meu. E as distendidasTardes, as largas luas, as madrugadas agônicasSem poder tocar-te. Quantas vezes, amor

Uma nova vertente há de nascer em tiE quantas vezesem mim há de morrer.

V

Aos amantes é lícito a voz desvanecida.Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido:Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora,Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vêsQue sobre o muro dos mortos a garganta do mundoRonda escurecida?

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e ventoNum vórtice de sombra. Podes cantar de amorQuando tudo anoitece? Antes lamentaEssa teia de seda que a garganta tece.

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícitoVertigens e pedidos. E é tão grande a minha fomeTão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecidoQue o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo.

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ÁRIAS PEQUENAS.PARA BANDOLIM.

I

Os dentes ao solA memória engulindoO resplendor angélicoDe um lívido jacinto.

Os dentes ao solE o escuro momentoDo girassol no muroEnlouquecendo.

Os dentes ao solDentro de mimA sombra dos teus dedosTua brusca despedida.

Do tempoAs enormes mandíbulasRoendo nossas vidas.

II

Meu corpo no marE o peixe movendo

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A barbatana tensaNo ar.

Meu corpo de terraMergulha no gozo

E te pensa

Em líquida quimera.O corpo do peixeOlho abismadoHiatoGuelra sem grito

Morrendo.

III

Tuas poucas palavrasMeus atentos ouvidosUm sopro adversoEncrespando as águas.

Apenas escutavaO que tu não dizias.Inteira ensimesmadaA tarde se fechava

Minha boca se abria

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E não dizia nada.Se eu pudesse diria:

Que a vida se me apagaPorque o ouvido não ouveO que lhe caberia.Se dissesses - Amada -(Te parece difícil?)

Só isso bastaria.

IV

Se é morte este amorPorque se faz sozinhoEste meu canto?Antes diria sorte

Poder cantar morrendoA minha morte.

Se te vou esperarComo é certo que ao fruto Antecede a árvore?Certo como a terra

Antecede a árvoreE à árvore antecedeA semente na terra

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Me hás de vir buscar.

V

Aprendo encantamento.

E a sósNo bandolim do tempoVou sorvendo a hora

Hora de amor, amigo,Quando o teu rostoÀ minha frenteE a gosto

Se fizer consentido.Aprendo a tua demoraComo a noite pacienteConhece a madrugada

E obscura elaboraA salamandra rara:O dia. Tua figura.

Aprendo encantamentoE desfio encantada

O bandolim do tempo.

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VI

Entendimento fatalDemasia do gostoDevo morrer agora

Se não me tomas.

Coração-corpoTão dilatadoPulsando espesso

Se não me tomasVai-se o compassoDo meu bater.

Mínimo espaçoE o meu imensoDescompassadoCoração-corpoSe não me tomasAntes me façoDe crueldade:Ao invés de versosTe mando cardos

Ao invés de vidaTe mando o gosto

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Do meu morrer.

VII

Esquivança, amigo,É o que se faz em ti.Frígido, esquivoDa benquerença de mim

Quanto mais persigoMais te vejoDe mim o fugitivoCórrego correndoE eu desesperançaMe fazendo antiga.

Crescem verdoresÀ minha volta.Ramas votivasSe interdizendo:Cubra-se a mortaPorque o amanteSe faz esquivo.Feche-se a portaPorque é de pedra

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Impermissivo

Esse que eraO cantar da morta.

VII

E taciturno

Pelo começoComeçariasA minha estóriaQue desde o inícioJá se sabiaTer todo o vícioDe malfadadaVersos dementesVolúpia larga:

- Era tão loucaQue lá da aldeiaOnde viviaMandava cartasDe fogo e areiaEsbraseadasE as outras ásperasNem as abriaSó de tocá-las... -

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(Túlio coitadoJá se queimava)

- Mulher-poetaE incendiadaQue outra morteLhe caberia? -

- Túlio, tens culpa?- Culpo-me nada.

IX

Incontável, mudaEssa plenitude.Incontável, mudoMeu instante de morte.Ando morrendo.E sem poder, traduzo:

é punhal cintilanteEsta minha morte.Como se fosse dorSem se fazer ferida,Como se o gritoSe fizesse mudo.(Sem ser agudoUm silvo penetrasseNo teu profundo ouvido)

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Como se eu lamentasseSem lamentoSem urro.Corpo de fogo morrendoSem a luz do ouro.Isento. Puro.

Vivo do seu próprio momento.

X

As laranjas têm alma?Tu me perguntas calmoA testa no fruto.Examinas. DesenrolasA casca, o amareloEscorre palpitanteO sumo sobre a mesa.Proeza da tua fome.

Tu ainda me amas?Eu te pergunto lívidaNa manhã de tintasAmarelo e ocrePulsando no meu sangue.E te levantas, me olhasE te fazes cansadoDe perguntas antigas.

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XI

Antes que o mundo acabe, Túlio,Deita-te e provaEsse milagre do gostoQue se fez na minha bocaEnquanto o mundo grita Belicoso. E ao meu ladoTe fazes árabe, me faço israelitaE nos cobrimos de beijosE de flores

Antes que o mundo se acabeAntes que acabe em nósNosso desejo.

XII

Dentro do círculoFaço-me extensa.Procuro o centroMe distendendo.Túlio não sabeQue o amor se moveNo seu de dentroE me procura

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Movente, móvilNo lá de fora.

Túlio em mimTem se movidoTão desatentoComo se a nuvemJá se movendoBuscasse o ventoComo se a chuvaToda molhadaBuscasse a água.XIII

Túlio: há palavras escuras,Guardadas, duros ramosDentro das arcas. RoxuraPor exemplo. É ânsia.Convém lembrá-lasPorque me faço mordenteNesta minha armadura,Soberbosa, cansadaDo teu silêncioA do laivoso das gentes.Há palavras escuras.Hederoso, por exemplo.É abundante de heras.Habena, que é chicote.E há uma palavra raraEm milenar repouso

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Obra poética reunida Hilda Hilst

No teu peito duro.Convém lembrá-la, Túlio.Do amor é que te falo.

Acorda tua palavra.Usa o chicoteAntes que eu me faça escura.

XIV

Lilazes, Túlio, celebramosO estarmos vivos, milagreQue os demais assistemDistraídos, e nós amantesNos sabemos perplexosFloridos e vorazesDiante deste banquete.Vívidos, Túlio, celebremos.Ao rei dos reis, o poeta pedePaixão-Eternidade, VirtudeDa Razão, ainda que aos vossos olhosTais nobrezas a princípio pareçamCoisa inconciliável

Mas o difícil em nósSe faz lhaneza, porque o poetaPede à divindade. Ouro mais raroÉ ouro permissível, se no abismo

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Em que vive, coexisteO envoltório do amor. Em nósComvivem, Túlio, os dúplicesDifíceis. Abracemo-nos. Celebra.Enquanto estamos vivos.

XV

Embriaguez da vontade, Túlio,Sangue buscando a veiaÉ o que me faz perpétua.Estrela sobre a testaE de poesia plenaVou te buscando imensa.

Embriaguez da vontade, Túlio,E os oponentes:Tua pouca ciência, desafetoExata em mim, minha maturidade.

E haverá louvor e recompensaPara o amor incansável do poeta.Dentro da sua soberbaBrioso de eternidade

Túlio, de pedra.

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XVI

NegraComo a terra profundaQue retém a seiva.

RubraExplodindo em sangueTua palavra omissaNo meu peito amante.

Túlio, lâmina aguçadaRetalhando a luzDa minha palavra.

TurvoTeu amor austeroRecobrindo tudo.

TúlioCastigando eternoA perdição e a carne

Do poeta.

XVII

O poeta se fezÁgua de fonte

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InfânciaCircunsoanteMadeira leveLímpida caravela

E Túlio não quis.O poeta se fezAromaVoz inflamanteVestidoMetalescenteInsânia

E Túlio não quis.

O poeta se cobreDe visgo, de vergonhaEnterra seu bandolimArtimanha do sonho

Tem o corpo de lutoE o rosto de giz

Porque Túlio não ama.

XVIII

Se eu te pedisse, Túlio,O ato irreparável de me amar

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Te pediria muito?

Se o corpo pede à almaQue respirem juntosTu dirias, dúbio,Que se trata de um pedido singular?

Se o que eu te digoOuves pelo ouvidoTu culpariasTeu inteiro sentidoAuricular?

Retoma, Túlio,O que pertence à vida:Meu sangue, minha poesia

E o ato irreparável de me amar.XIX

Pela primeira vezMe vejo moça, Túlio.Pela última vez

Emana do meu rostoUm brilho de venturaSuspeitoso:Véu redivivoCintilância de noiva

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E a um tempo sóTambém leve mortalhaRecobrindo o morto.

Pela última vezTe peçoQue tu escolhas

O que devo colocarDiante do rosto:Essa teia de fogoAtrevimentoO ouro de te amar

Ou o tecido outro:Recusa e contençãoDe Túlio

Esse linho trevosoEssa mortalha lunarSobre o meu rosto.

Porque me fizCruz e feridaViva enormementeTe suplico:

Que me permitas, Túlio,A mim, ser moça,Arder e colocar

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Pela última vez

Minha teia de fogoSobre o rosto.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

ÁRIA ÚNICA, TURBULENTA

Tépido, Túlio, o reinoNão é feito para os mornos.Esse reino de amor onde és o reiPor compulsão e ímpeto do poeta,É feito de loucura, de atraçãoE não compreende tepidez, mornuraE vícios da aparência, palha, Túlio,Tem sido o teu reinado, inconsistência.Ou te transformas, rei de fogo e justo,E a quem merece, dás amor e alento

Ou se refaz em ira a minha luxúriaMe desfaço de ti, muito a contento.

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POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO

Ihomenagem a Alexander Solzhenitsyn

Senhoras e senhores, olhai-nos.Repensemos a tarefa de pensar o mundo.E quando a noite vemVem a contrafacção dos nossos rostosRosto perigoso, rosto-pensamentoSobre os vossos atos.

A muitos os poetas lembrariamQue o homem não é para ser engulidoPor vossas gargantas mentirosas.E sempre um ou dois dos vossos engulidosDeixarão suas heranças, suas memórias

A IDÉIA, meus senhores

E essa é mais brilhosaDo que o brilho fugaz de vossas botas.

Cantando amor, os poetas na noiteRepensam a tarefa de pensar o mundo.E podeis crer que há muito mais vigorNo lirismo aparenteNo amante Fazedor da palavra

Do que na mão que esmaga.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

A IDÉIA é ambiciosa e santa.E o amor dos poetas pelos homensé mais vastoDo que a voracidade que nos move.E mais forte há de serQuanto mais parco

Aos vossos olhos possa parecer.II

Amada vida, minha morte demora.Dizer que coisa ao homem,Propor que viagem? Reis, ministrosE todos vós, políticos,Que palavraAlém de ouro e trevaFica em vossos ouvidos?Além de vossa RAPACIDADEO que sabeisDa alma dos homens?Ouro, conquista, lucro, logroE os nossos olhosE o sangue das gentesE a vida dos homens

Entre os vossos dentes.

III

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homenagem à Natalia Gorbanievskaya

Sobre o vosso jazigo- Homem político -Nem compaixão, nem flores.Apenas o escuro gritoDos homens.

Sobre os vossos filhos- Homem político -A desventura do vosso nome.

E enquanto estiverdesÀ frente da PátriaSobre nós, a mordaça.E sobre as vossas vidas- Homem político -Inexoravelmente, nossa morte.

IV

A Frederico Garcia Lorca

Companheiro, morto dessassombrado, rosácea ensolaradaQuem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão euPontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que bebi na tua boca a fúria de umas águasEu, que mastiguei tuas conquistas e que depois choreiPorque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memóriaE cantar de repente: “os arados van e vên

dende a Santiago a Belén”.Os cardos, companheiro, a aspereza, o lutoA tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebramSe tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?

“El passado se pone su coraza de hierro y tapa sus oídos con algodón del viento. Nunca podrá arrancársele un secreto.”

E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhosAzuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuadosDe infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.Companheiro. Que dor de te saber tão morto.

V

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homenagem a Alexei Sakarov

de cima do palanquede cima da alta poltrona estofadade cima da rampaolhar de cima

LÍDERES, o povoNão é paisagemNem mansa geografiaPara a voragemDo vosso olho.POVO. POLVO.UM DIA.

O povo não é o rioDe mínimas águasSempre iguais.Mais fundo, mais alémE por onde navegaisUma nova cançãoDe um novo mundo.

E sem sorrirVos digo:O povo não éEsse pretenso ovoQue fingis alisar,Essa superfícieQue jamais castiga

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vossos dedos furtivos.POVO. POLVO.LÚCIDA VIGÍLIA.UM DIA.

VI

Tudo vive em mim. Tudo se entranhaNa minha tumultuada vida. E porissoNão te enganas, homem, meu irmão,Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passamNas manhãs, carregados de medo, de pobreza,O olhar aguado, todos eles em mim,Porque o poeta é irmão do escondido das gentesDescobre além da aparência, é antes de tudoLIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta falaFala do seu quarto, não fala do palanque,

Não está no comício, não deseja riquezaNão barganha, sabe que o ouro é sangueTem os olhos no espírito do homemNo possível infinito. Sabe de cada umA própria fome. E porque é assim, eu te peço:Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poetaO homem está vivo.

VII

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homenagem a Pavel Kohout

Que te devolvam a almaHomem do nosso tempo.Pede isso a DeusOu às coisas que acreditasÀ terra, às águas, à noiteDesmedida,Uiva se quiseres,Ao teu próprio ventreSe é ele quem comandaA tua vida, não importa,Pede à mulherÀquela que foi noivaÀ que se fez amiga,Abre a tua boca, ululaPede à chuvaRugeComo se tivesses no peitoUma enorme feridaEscancara a tua bocaRegouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.

VIII

Lobos? São muitos.Mas tu podes aindaA palavra na língua

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.Mas podes acordá-loSortilégio de vidaNa palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.Mas se farão milharesSe à lucidez dos poucosTe juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.E tu mesmo, raro.Se nas coisas que digoAcreditares.

IX

homenagem a Piotr Yakir

Ao teu encontro, Homem do meu tempo,E à espera de que tu prevaleçasÀ rosácea de fogo, ao ódio, às guerras.Te cantarei infinitamenteÀ espera de que um dia te conheçasE convides o poeta e a todos essesAmantes da palavra, e os outros,Alquimistas, a se sentarem contigo

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Obra poética reunida Hilda Hilst

À tua mesa. As coisas serão simplesE redondas, justas. Te cantareiMinha própria rudezaE o difícil de antes,Aparências, o amorDilacerado dos homensMeu próprio amor que é o teuO mistério dos rios, da terraDa semente. Te cantarei AqueleQue me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na TerraSe ainda encontrasse em ti, o que te deu.

X

Amada vida:Que essa garra de ferroImensaQue apunhala a palavraSe afasteDa boca dos poetas.PÁSSARO-PALAVRALIVREVOLÚPIA DE SER ASANA MINHA BOCA.

Que essa garra de ferroImensa

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que me dilacera

DesapareçaDo ensolarado roteiroDo poeta.PÁSSARO-PALAVRALIVREVOLÚPIA DE SER ASANA MINHA BOCA.

Que essa garra de ferroCalcinada

Se desfaçaDiante da luzIntensa da palavra.

PALAVRA-LIVREVolúpia de ser pássaro

Amada vertigionsa.

Asa.

XI

Se o teu, o meu, nosso do tigreSe fizesse livre, como seria?

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Se convivesses unânimeComo as estrias do dorsoDesse tigreConvivem com seu todo

Te farias mais garra?Ou mais crueza? Ou nasceriaEm ti uma outra criaturaLímpida, solar, ígnea?

Tentarias a sorte de saltarEm direção à Vega, Canópus?Te chamarias tigre ou Homem?

Homem: reverso da compulsóriaFome do tigre.Homem: alado e ocre

Pássaro da morte.

XII

Vou indo, caudalosaRecortando de mimInúmeras palavras.Vou indo, recortandoAlguns textos antigosOnde a faca finíssima

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SublinhavaAs legendas políticasE um punhal incisivoApunhalavaUm corpo amolecidoO olho aberto, uma botaPontiagudaentrando no teu peito.Os meus olhos te olhavamComo de certo o CristoTe olhou, piedadeCompaixão infinitaAh, meu amigoQue límpida paixãoQue divina vontadeFervor feito de lavaFogo sobre a tua fronteTanto amorE não te deram nada.Deram-te simFerocidade, gritoE sobre o corpoChagasE mãos enormes, garrasTe levando o rostoE inúmeras palavrasTão inúteis na noite.Diziam que adolescênciaMoldou a tua idéiaQue eras como um menino

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Obra poética reunida Hilda Hilst

De encantada imprudênciaLoucura caminharesNa trilha da florestaSem luminosa armadura.Mas eu, poeta, vou indoCaudalosaRecortando as palavrasTão inúteisE os meus olhos de trevaVão te olhandoE te guardo no peitoIntenso, abertoColado a mimHomem-AmorInteiro permanênciaNo todo despedaçadoDo poeta.

XIII

Ávidos de ter, homens e mulheresCaminham pelas ruas. As amigas sonâmbulasInvadidas de um novo a mais quererSe debruçam banais, sobre as vitrines curvas.Uma pergunta bruscaEnquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:E a entranha?De ti mesma, de um poder que te foi dadoAlguma coisa mais clara se fez? Ou porque tudo se perdeu

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Obra poética reunida Hilda Hilst

É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,Tua aventura de ser, tão esquecida?Por que não tentas esse poço de dentroO incomensurável, um passeio veemente pela vida?

Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantadaDe ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada.

XIVNão há bombas limpas.

Mário Faustino

Bombas limpas, disseram? E tu sorrisE eu também. E já vemos mortosUm verniz sobre o corpo, limpos, estáticos,Mais mortos do que limpos, exatoNosso corpo de vidro, rígidoÀ mercê dos teus atos, homem político.Bombas limpas sobre a carne antiga.Vitral esplendente e agudo sobre a tarde.E nós na tarde repensamos mudosA limpeza fatal sobre nossas cabeçasE tua sábia eloqüência, homens-hiena

Dirigentes do mundo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XV

Leopardos e abstrações rondam a Casa.E as mão, o ato puro pretendendo. AindaQue eu soubesse o que tudo vem a ser,A idéia, a garra, de mim mesma não seiA fonte que gerou tais coisas nesta tarde.Leopardos e abstrações. Que vem a ser?Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,Soberba e desafio se fazendo rondaPlúmbeo Qadós diante da luz de Deus?Se as tardes se fizessem meninicePara que eu descansasse. Se as mãosFossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.E morrendo, descobria a mim mesmaMe fazendo leopardo e abstraçãoNa ociosa crueza desta tarde.

XVI

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.Dirás que sangue é o não teres teu ouroE o poeta te diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escutaO teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Enquanto faço o verso, tu que não me lêsSorris, se do meu verso ardente alguém te fala.O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.Irmão do meu momento: quando eu morrerUma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:MORRE O AMOR DE UM POETA.E isso é tanto, que o teu ouro não compra,E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

XVII

Tudo demora. E tudo é véspera e nostalgiaDesse Agora, quando tu pensas que tudo se demora.E porisso, noviça, aos poucos conhecendoRepouso e brevidade desta vida, do meu ficar a sósPretendo apenas, fruir apesares e partidas

E júbilo também

Porque o instante consente essas duplas medidas.Noviça da minha hora. Os rios correndo, o charcoSoterrando minúcias, quem sabe a minha memóriaConivências, o ouro do meu canto, irmãosDionísio e Túlio. Os rios correndo. E todos os poemas,Fascinação de amantes e de amigos, os caminhos de voltaPretendendo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

PEQUENOS FUNERAIS CANTANTESAO POETA CARLOS MARIA ARAÚJO

(1967)

Death be not proud, though some have called theeMighty and dreadfull, for, thou art noe soe,for those, whom thou think’st thou dost overthrow,Die not, poore death, nor yet canst thou kill me.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

John Donne

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Obra poética reunida Hilda Hilst

CORPO DE TERRA

I

Chaga de sol, rosácea ardenteAqueles linhos de sangue, o peitoMais profundo, aberto, extenso,Toda a delicadez do poetaFluiExangueNum círculo de dor. Assim te lembro.

II

Dorme o pastor. E sobre ele a pedra.E dentro dele, no coração, no ventreA primeira libélula. DormeRecente de raízes, o poeta.

III

No seu corpo de terra, dorme o inocente.Cantou a solidão, a salamandra“E um cavalo e um cavaleiro de barroCarmezim”. E teve amor ao medo e à centelhaQue o fez cantar assim.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

IV

Dorme o profeta. E se não escuta o ventoOuve na minha boca o seu “Ofício de treva”.Em aflição, em amor eu te celebroE na tua mão flechada está o meu grito:O que esperaste da minha boca aberta.

V

Dorme o cantor: “No dia de vossa iraLembrai-vos, Senhor, do sal e do carvãoNas minas”. E alguém há de calar os algozesDo tempo, e há de nascer a flor sobre o teu sonoE pelo teu lamento.

VI

Dorme o amigo no seu corpo de terra.E dentro dele a crisálida amanhece:Ouro primeiro, larva, depois asaHás de romper a pedra, pastor e companheiro.

VII

Pastor, as violetas estão sobre os pilares.

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É tempo do poeta abrir seu cantoTempo de iniciação, tempo de esferaE de uma linha-mundo curvo-reta:Trajetória de amor e de amplidão.

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CORPO DE LUZ

I

Caminhas em direção ao Sul. O que te moveÉ alfa, Adonai, Claríssima Morada.Teu peito é transparência em plenitude aladaE não te vejo na distância e no tempo.Sei que a memória é límpida cancelaE que viaja a sós, eterna.

E sendo assim, a ti te reconheço.

II

Tu não estás comigo. Nem na tua noiteDe antes, de granito. Nem a tua vozÉ voz entre muralhas. Estás além agora:Arco do infinito.

III

Teu sono não é o sono vulgar.Estendes a vigíliaE apreedes através da opacidade.Também assimRepousa o mar.

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IV

Fechou-se para o efêmero das coisasO incomensurável da retina.Assim pousas na Verdade:Fronte de opalina.

V

Poeta, os homens manipulam a matéria.Artífices do grande sonho dão-se as mãose é o meu canto o fruto dessa espera.Canto como quem risca a pedra. Te celebroNa mais alta metamorfose da minha época.

Não cantarei em vão.

VI

Há um espaço finito onde o meu canto paira.E no multidimensional, na estruturaOnde a realidade se refaz, tu te demoras.Pastor, o que parecia tangível se evapora.E sobre nós, a grande noiteNum etéreo nada, jaz.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

VII

Sabias de outro tempo? O universoAgora se parece a um grande pensamento.Tu cantaste o espanto, asa de silêncio.Eu canto o espíritoQue penetrou no reino da matéria:Asa de espanto do conhecimento.

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EXERCÍCIOS PARA UMA IDÉIA

(1967)

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Exercício no 1

Se permitiresTraço nesta lousaO que em mim se fazE não repousa:Uma Idéia de Deus.

Clara como CoisaSe sobrepondoA tudo que não ouso.

Clara como CoisaSob um feixe de luzNum lúcido anteparo.

Se permitires ousoComparar o que pensoO Ouro e AroNa superfície claraDe um solário.

E te parece poucoTanta exatidãoEm quem não ousa?

Uma idéia de DeusNo meu peito se fazE não repousa.

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E o mais fundo de mimMe diza apenas: Canta,Porque à tua voltaÉ noite. O Ser descansa.Ousa.

Exercício no 2

Épura, que translúcidaSe projeta.

Épura, feixe solar,E de cristal. E ereta.

Épura, réstia de luzSobre a mão destra.

Épura, que a um só tempoSe renova. E sem limiteOu aresta

Toma corpo no TodoE recomeça.

Exercício no 3

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Dentro do prismaA base, o vérticeDe suas trêsPirâmides contínuas.

Dentro do prismaA IdéiaQue perdura e iluminaO que já era em mimDe natureza pura.

Dentro do prismaO universoSobre si mesmo fechadoMas aberto e alado.

Dentro de mimDe natureza ígnea:Uma Idéia do Amado.

Exercício no 4

De espaço - tempoDe corpo e campoTeu fundamento.

E teu nome é matéria.Única. De estrutura

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Infinitamente múltipla.

E se teu vértice pousaTe fazes igualmenteEm Delta. E repousas.

Em tiComeçaria a minha Idéia.

Exercício no 5

E se a mão se fizerDe ouro e aço,Desenharei o círculo.E dentro dele

O equitátero.

E se a mão puder,Hei de pensar o TodoSem o traço.

E se o olharA um tempo se fizerSol e compassoMedita:

Retículo de prataEsfera e asa

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TrípliceUna E infinita.

Exercício no 6

E de todos os rumosPensei(Como quem vê a prumo)Um só núcleo pulsandoClaro-Escuro.

Se quiseresChamaremos de DeltaO feixe que se esconde,E Eta o júbilo de serÁrea de luz e cone.E se o núcleo é um só,É lícito entenderesO que Delta resguardaDo teu olhar alerta.

E poderás dizerQue um e outroSão infinitos-extensosDe um só Ser.

Exercício no 7

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Vereis em cada círculoTrês dimensões de um todoAparentemente bipartido.

Alfa se refaz. É expansãoE é cíclico. ômega se contraiEm nova direção. Em essênciaAlimenta-seDaquela que é princípio.

Mas sempre é o mesmo SerNum movimento líquidoDe inspiração-expiração.

Sem finitude ou arbítrio.

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TRAJETÓRIA POÉTICA DO SER (I????)

(1963 - 1966)

À memória de Nikos Kazantzakis que me fortaleceu em amor

Em ti, terra, descansei a boca, a mesma que aosoutros deu de si o sopro da palavra e seu poder de

amar e destruir.

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PASSEIO

1

Não haverá um equívoco em tudo isso?O que será em verdade transparênciaSe a matéria que vê, é opacidade?Nesta manhã sou e não sou minha paisagemTerra e claridade se confundemE o que me vêNão sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidasNão quis meu canto em leveza e brandoMas para o vosso ouvido o verso brevePersistirá cantando.Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredesOnde descansareis vosso caminho?Terra, tua leveza em minha mão.Um aroma te suspende e vens a mimNumas manhãs à procura de águas.E ainda revestida de vaidades, te sei.Eu mesma, sendo argila escolhidaRevesti de sombra a minha verdade.

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Lenta será minha voz e sua longa canção.Lentamente se adensam essas águasPorque um todo de terra em mim se alarga.

E de constância e singeleza tanta,Meus mortos hoje sobre um chão de linhosPor algum tempo guardarão meu ritmoNos ouvidos da terra. De granito.Pude aclarar a sombras nos oiteirosE aquecer num sopro o vento da tarde.Mas não vereis ainda meus prodígiosPorque haverá lideiras neste outonoE vossos olhos estarão por láDesocupados do sono, extremadosPara uma só visão num só caminho.

3

Quisera descansar as mãosComo se houvesse outro destino em mim.E castigar as falas, alimáriasVindas de um outro mundo que não sei.Fazê-las repetir suas longas áriasAté que a morte silencie as mandíbulasClaras.

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Caminho. E a verdadeÉ que vejo alguns portaisE entre as grades uns pássaros a leste.Não sabem de seus passos os meus pésNem de mim mesma sei

Mas tantas timidizes se esvaíramE este meu corpo agora não as tem.

E atravessando os mármores e os murosComo se fossem mais muros de vento,Passeio nos jazigosE um cordeiro de pedra eu apascento.

5

Também nos claros, na manhã mais plena,A retina ferida nesse vôo que passa além do verde,É sempre a morte o sopro de um poema.Entre uma pausa e outra ela ressurgeIlharga de sol. Ah, diante do efêmeroHei de cantar mais alto, sem o freioDe uns cantares longínquos, assustados.

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As aves eram brancas e corriam na brancura das lajes.As aves eram tantas e sabiam do seu corpo de ave.

Esguias e vorazes consumiamOs corpos que eram aves menos ágeis.E as garras assombradas dividiamAs espessuras ínfimas da carne.

Na plumagem umas gotas de sangueDos corpos devorados se entrevia.Mas da vida e do sangue não sabiamAs aves que eram tantas sobre as lajes.

O ritual sincopado das gargantasTinha o ruído oco de umas águasDeitadas bem de leve em algum cântaro.Todo o espaço se enchia desse cantoE atraía umas aves, outras tantas.

A face do meu Deus iluminou-se.E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.É uno em seus opostos, água e fogoTêm a mesma matéria noutro rosto.Alegrou-Se meu Deus.Dessa morte que é vida, Se contenta.

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O Deus de que vos falo

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Não é um Deus de afagos.É mudo. Está só. E sabeDa grandeza do homem(Da vileza também)E no tempo contemplaO ser que assim se fez.

É difícil ser DeusAs coisas O comovem.Mas não da comoçãoQue vos é familiar:Essa que vos inunda os olhosQuando o canto da infânciaSe refaz.

A comoção divinaNão tem nome.O nascimento, a morteO martírio do heróiVossas crianças clarasSob a laje,Vossas mãesNo vazio das horas.

E podereis amá-loSe eu vos disser serenaSem cuidados,Que a comoção divinaContemplando se faz?

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8

Vereis um outro tempo estranho ao vosso.Tempo presente mas sempre um tempo só,Onipresente.A dimensão das ilhas eu não sei.Será como pensardes ou como éVossa própria e secreta dimensão.Às vezes pareciam infinitasDe larguras extremas e tão longasQue o olhar desistia do horizonteE sondava: ervas, águaMinúcias onde o tato se alegravaInsetos, transparências delicadasTentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.Parávamos. E sabeisQue o que contenta mais o peito inquietoÉ olhar ao redor como quem vêE silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, simEram muitos em mim.O perigo maior de conviver era o perigo de todos.Nosso Deus era um Todo inalterável, mudoE mesmo assim mantido. Nosso prantoContinuadamente sem ouvidoPorque não é missão de divindade

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Testemunharo pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicadoDe umas tardes, a pureza das avesOs peixes de vernizNa abertura mais funda de umas águas.

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Em silêncio plantávamos nas ilhasSe a noite era de lua prolongada.Plantava-se na terra mais sagradaJunto às colinasPorque era ali que os mortos repousavam.Ah, desamor, nosso tempo perdidoNossa morte.

Não levávamos rosas como vósNem falávamos como falaisImprudentes, o passo descuidadoE muita vez contenteDe caminhar tão vivo na manhãSobre o chão dos ausentes.

O corpo se fechavaÀ entreda dos portais.

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A mão direita resguadava o plexoE só para plantarSe abria em novo gesto.

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Com esse caminhar que em sonho se percebeOu como um corpo pesado sob as águasMovimento pausado, movimento leveAve maior em vôo compassado

Os cavalos da ilha se moviamNos grandes areias ensolarados.

O que era corpo em mim, só descansava.O que eraVencia aquele espaço que nos separava.

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Cavalo, halo de memória, guardo-te no peitoSobre este grande artériaFonte de vida e alento que sustentaAmor de madurez e adolescência.

Cantando-te sou teu corpo e tu nudez.E ombro a ombro seguimos a alamedaCasco de dor num caminho de sol

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E laberada, indivicível águaObrigando-me a ver o que tu vês.

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Brando, o tempo escorria nos vitrais.Brando meu passo, nos azulejos clarosDo terraço. O pássaro.

Ah, tempo de fúria sem tempo para contemplar!Tantas vezes na tarde caminhei nos terraçosNos pátiosE havia sempre uma limpeza rara nas muradas, na terra.

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As faces encostadas nos vitraisE através, as figuras e o jardim.E era tanta a vontade de ver maisQue uma névoa descia sobre mimE o que eu queria ver, via jamais.O cheiro quase rubro dos jasminsRedobrava meu pranto de seus aisNessa tarde de luz nos seus confins.

Voltou-se o amigo e olhou minha tristeza.Eu só te vejo ali. Antes não visse.Imaginaste a tarde. Ela não existe. ???? DEIXAR EM

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Obra poética reunida Hilda Hilst

NEGRITO???

Mas seu rosto era pleno de belezaE por isso deixei que me mentisseAntes que só por mim ficasse triste.

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E através dos vitrais as faces durasContemplavam a tarde no jardim.O movimento leve das figurasCaía sobre a tarde e sobre mim.

E no passeio as leves criaturasAspiravam o cheiro do jasmim.Vistas de longe pareciam purasNa claridade de uma tarde assim.

Mas o amigo voltou-se e viu meu pranto.“É sempre a mesma noite na tua face.Enquanto choras há lá fora um canto

Que de chorares tanto não o sabes.Bem sei que a noite é imóvel na tua faceE não te peço alegria. Mas tu ardes”.

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De delicadezas me construo. Trabalho umas rendasUma casa de seda para uns olhos duros.Pudesse livrar-me da maior espiralQue me circunda e onde sem querer me reconstruo!Livrar-me de todo olhar que aundo espreita, sofreO grande desconforto de ver além dos outros.Tenho tido esse olhar. E uma treva de dorPerpetuamente.Do êxodo dos pássaros, do mais triste dos cães,De uns rios pequenos morrendo sobre um leito exausto.Livrar-me de mim mesma. E que para mim construamAquelas delicadezas, umas rendas, uma casa de sedaPara meus olhos duros.16

E a que se fez criança, tece a rosa.E criança também, uma mulherContida de silêncio e de memória,Espera o plenilúnio e elaboraUma saga de sol.

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Se possível se fizer o merecê-lasPeço-te dálias, senhor, altas e austerasComo convém a mim vivendo o estupor.Dirás que me concedes a cássia ferrugíneaAraucária excelsa, mais sombra e mais alturaComo convém a mim, vivendo nas planuras,

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Mas peço-te dálias. De frêmito contínuoCalcinadas de vento, como convém a mimAturdida de amor e pensamento.Verás. É dádiva melhor. E se possívelUma de rubro cerne. De parca simetria.Vendo-a, verei a mim mesma cada dia.

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A descansada precisão da folha.O que o olhar advinhaSob a sua mínima extensão.E a gravidade da florIrrompendo de suas claras paredes.Em tudo o estigma de amor de uma só mão.Em mim, de um lado, uma garra de fogoGigantesca, pronta para ferirE de um gesto agudo incendiar-vos,E do outro lado a minha outra mãoAmena. Larga.19

Um claro-escuro de sol nos meus cantaresPorque tem sido assim a alma do homem.Enfeitamos as coisas aparentesDando ternura e nome. Em afliçãoDeitamos a sementeE ficamos à espera de um verão.

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Em fogo se refaz o amor de sempre.

A palavra não basta para o canto.Nem é o canto de amor essa constanteAragem de umas praias que escolheis.Nas ilhas um mormaço, conjeturas,Vizinhança de chuva, mortos, vivosRememorando a tarde em viuvez.

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De um exílio passado entre a montanha e a ilhaVendo o não ser da rocha e a extensão da praia.De um esperar contínuo de navios e quilhasRevendo a morte e o nascimento de umas vagas.De assim tocar as coisas, minuciosa e lentaE nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.De saber o cavalo na montanha. E reclusaTraduzir a dimensão aérea do seu flanco.De amar como quem morre o que se fez poeta E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.E de ter visto um dia uma criança velhaCantando uma canção, desesperando,É que não sei de mim. Corpo de terra.

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Naquela casa azul e avarandada

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As mulheres fiavam como irmãs.Se eram de um mesmo pai as madrugadas,A que foi mãe, amou. Memórias vãs.

De todas em amor o pai cuidavaRepartindo suas terras e sua lãs.E a que pariu em dor, a mais amadaVigia sob a terra as tecelãs.

Se ao longo do meu rio, nos arrozais,Avistardes a casa e as mulheres(Dedos de azul em luz sobre o tear)

Que o passo seja breve. E muito maisÉ dizer-vos que tecem malmequeresE em vão se aquecem sob o vosso olhar.

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Se a chuva continua, se nos aresApodrece a romã e o mamoeiroDeita-te leve sobre os teus linharesE na mulher semeia o teu herdeiro.Há de voltar o sol nos teus pomaresE assim terás a um tempo o sol e o filho.Deita-te. Nosso tempo de amar tem seus findaresE os frutos antecedem teu idílio.

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MEMÓRIA

Quando a memória transformada em avePousar sobre o meu peito a sua leveza.

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E o tempo tomou forma. Assim me soubeEnvolta em grande mar até a cintura.E nada a não ser água e seu rumorAos ouvidos chegava. E soube aindaQue um só gesto e sopro acrescentavaEssa vastíssima matéria. E atentaEm consideração a mim, cobri-me de recuos.Eu, que de docilidades me fizera.

Antes avara desse tempo que resta.Se em muitos me perdi, uma que souÉ argamassa e pedra. Guardo-te a ti.Em consideração a mim. Redescoberta.

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Há certos rios que é preciso rever.Por isso volto, Ricardo, àquelas margensOnde na sombra um verde descansavaE um canteiro de limo sob os nossos pés

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Adiante desaguava. Volto, seguindo a viagemDe mim mesma e aos poucos convergindoOculta, vária,Até fechar um círculo e entenderEssa asa de fogo sobre as coisas.Talvez neste canto eu te direiDas estreitas passagens, do lodoConvulsivo dos ancoradouros, dos funeraisQue vi, para chegar à luz da primeira paisagem.Meus olhos deram volta à ilha.Sigo pelos caminhos, transfiguro-me

Sei que um igual destino eu já cumpriE ao mesmo tempo em tudo me descubroCasta e incorpórea. Sou tantas,Tantos vivem em mim e pródiga descerro-mePródiga me faça larva e asa.

3

Olhai o que mais vos convém.Em tudo, o todo que sois feitoSe mantém. Pórticos, escadasAve sob um teto de chumbo,O que estiver à tona, o mais fundo,Ventre, ombro.

O caminho de dentroé um grande espaço-tempo.

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Olhai seu primeiro degrau, extensoTerraço de mar e ainda terra.Aqui, vosso corpo de amor se configura.

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Mensageiro das ilhas,Teu pés de pássaro, a mim é que procuram se caminhas.teu manto é largo e tranqüilo. De asa teu sapato breve.A mão direita é aberta sobre o peito leve e o teu passoÀquele grande e pausado passo de ave que se parece.Ah, que dor de ter assim um todo na memória!Que dor na fluidez do tempo e a mesma hora se fazendo sempre.

5

Áspero é o teu dia. E o meu também.Inauguro ares e ilhasPara que o teu corpo se conheçaSobre mim, mas é ásperaMinha boca móvel de poesia,Áspera minha noitePorque nem sei se o canto há de chegarNo escuro labirinto em que te fazes,

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Nessa rede de aço que te envolve,Nesse fechar-se enorme onde te moves.

Trabalho tua terra cada diaE não me vês. O teu passo de ferroEsmaga o que na noite foi minha vida.E recomeço. E recomeço.

6

Despe-te das palavras e te aquece.Toma nas mãos esses odres de terraE como quem passeia, leva-os ao mar.Se tudo te foi dado em abundânciaO sal e a água de uma maré cheiaEu te darei também a temperança.

Deita-te depois e vibra tua gargantaComo se fosse o início de um cantar.Não cantes todavia.Aqui, zona de tato e calor, margem do serLarga periferia, olha teu corpo de carneTua medida de amor, o que amaste em verdade.O que foi síncope.Todavia não cantes na perplexidade.

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Vê, Ricardo, se falo tanto do ser feito de terraÉ porque o resto é paisagem.Olhei minha própria carne certa noite. E essa dorSecular que a recobria. Tu passeavas teus olhosRevivescendo a ilha, e meus braços castigadosDo gesto de alcançar, buscavam esse tempo de colher.Mas eu não fui pastora. Há na terra que sou largas artériasMas um vento de assomos, um deslumbramento me tomavaE o gesto de plantar cristalizava-se no meu mais puro olhar.

Olhava: A figueira, a pedra umidecida da cisternaO sol sobre o rosto das mulheres, um rosto semelhanteÀquele barro esquecido de rios. E ubíqua, viajava

Não que ali não deixasse afetos, pássaros da tardeCães (viajores de um dia) e presenças quando a noiteDe augúrios começava. Uma parte de mim, essa de carneE ausência, talvez não emigrasse. Os ritos, os de sempre.Mas o olhar não era o mesmo: Pousava sobre as coisasMas as coisas que via não estava.

Fui vista caminhando nos pastos. Nas vides. Muitos disseramQue o meu corpo estendeu-se sobre a terra e de tal formaFicamos confundidas, que as aves descansaram de seu vôoNa minha fronte de pedra. Adormeci nas paragens de salCantei minha canção no pátio dos mosteiros, atravessei as pontesLavei-me nas águas de infinitas nascentes. Mas a boca,A minha boca fechou-se procurando uma única fonte.

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Ser terra E cantar livrementeO que é finitudeE o que perdura.

Unir numa só fonteO que soube ser valeSendo altura.

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Lâ Catulo para mim pausadamente.Ressuscitei memórias na manhã dos ventosE abrasei-me de um sol sem arvoredos.Vi mulheres e aves e a mim mesma reviAve-mulher, passeio adolescenteDe umas manhãs iguais e mais amigas.

À tarde viajei nas artérias do tempoE para não arder pensei palavras novasE repeti meu verso mais ameno.Foi tão longo o meu dia. Tão escuraA visão de mim mesma. Lê. Sereno.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Sendo tu amor, irmão, comigo te pareces.Em ti me dessendento e contigo me aplaco.Esta larga vertente se parece à águaDo teu amor em mim, onde um dia feneçoPorque também fenece a flor apaziguadaEssa que não nasceu para ter alimentoAntes para morrer do amor desmemoriada.E se tudo me dás, num sopro eu anoiteço.Eu sempre serei terra. E tomando a sementeTomo para mim uma tarefa inteira:A de guardar um tempo, o todo que recebeE livrá-lo depois de um jogo permanente.Outros te guardarão. Não eu que só pretendoLibertar na alegria o coração e a mente.

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(Andante tranquilo)

Ainda é cedo, Ricardo, para o tempo que dizesDa velhice. Nào que sejas menino. Não o és.Mas na noite flutuas pela casa dissipado em meiguiceQue a mulher vê no homem o menino que é.Sei do teu riso extremo insinuandoA ferocidade da tua meninice. E pensas porque te amoQue esqueci a arena ensolarada de outros diasO rio coalhado de anzóis, a matança das avesNo sol do meio-dia.

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Vê, Ricardo, se me foi dado cantar tua brandura,É porque aquele que tu foste um dia, sendo ferozAmou. Talvez por isso é que eu te amo agora.

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(Poco più animato)

Que te alegres de mim, Ricardo. Que a clareza do versoNão te saiba à fatuidade e tola singeleza. Posso, para te celebrar,Ser tecelã de um dia. E se o verso nasceu enquanto a mão teciaÉ porque a cadência do tear trouxe de volta ao peitoMeu mundo amável de reminiscência.

Tive uma rua clara e a vontade gentil de descobrir o mar.E se o ombro apenas começava um movimento rítmico de asaEu era navegante e navegava. Que te alegres de mim.Entardeci possuída de infância.

13

Estava entre as torres e o homem. Eu e ele.E no instante, partiu-se o rio escuro da memóriaE um ruído de claras persianasInvadiu-nos o peito e os ouvidos.Eram ares perdidos retornando. Grandes pássaros,Asas e rumo de obelisco. E de prumo era o vôo.Grande vôo, cobrindo-nos o peito e os ouvidos.

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Veio um silêncio feito de altas ramasE as mãos se abriam sem estupor antigo.

Era além do pudor o peito em chama.

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ODES MAIORES AO PAI

À memória deApolonio de Almeida Prado Hilst, meu pai.

Meus amigosSérgio MillietPaulo Sérgio Milliet

(Largo Pesante)

I

Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separadosGuardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram.Será lícito guardarmo-nos assim?Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperarUns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre,Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gestoTe empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste

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Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda na mãosA pequena rais, a fibra delicada que a si se construía em solidão?Pai, assim somos tocados sempre.Este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestesUm suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medoÉ que floresce.

Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechadosUns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: Este é um tempo de treva.

II

Ah, essas dores! E o voltar contínuo ao silêncio das tardes!Junto ao muro dos mortos o passeio se fazia longo. Estacávamos.A tarde empobrecida de luz. O tempo galopava.Vês? Tenho a alma pesada. Uma avidez no olharAntes ingênua, agora se fez grave. Há naquele campo a imutável paisagem:As papoulas abertas, as ruas estreitas e uma grande e única alameda.E datas, retratos. E súbito o ocre da terra sob os passos.A mulher caminhava. Comprimia no peito a sua flor e de humildadeEra o olhar à procura do nome. Se tu visses depois que luminosa altivesSe insinuava, quando voltava leve, sem o peso das dádivas.E muitas passaram vagarosas. Umas lunares, com seus rostos aduncos.Outras com a centelha escondida dos sacrários.

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III

Não é teu este canto porque as palavras se abriram sobre a mesa.Se chegavas era sem silâncio e tocavas as coisasCom a leveza dos meninos arrumando os altares. Uma rosa tardiaMesmo assim desmanchava-se e tua presença na noite eu procurava.Ninguém jamais nos via quando nos falávamos. As perguntas de sempre,Os castiçais, o adro vazio da capela em frente.(E as persianas fechadas,Para que o sal de fora nào pousasseNas baixelas incríveis da memória). Aquele mar repetindo seu cantoE as vozes partindo teus cristais! Como te abrigavas do ruído das estradasE os teus livros abertos como se desfizeram naqueles areias!Nem sei de onde me vêm estes musgos, açoites, esta fonte que é novaEm minha boca, nem sei dizer da morte o que te ouvi dizer nos ecos de umas noites.

Enquanto te celebro, as janelas do ocaso trazem risos.E um hóspede atravessou incógnito teu jardim, afundou-se na névoaCansou-se do teu hálito nas arestas, nas muradas, nos cálices, em mim.

És presente como um vento que corre entre portas abertas.

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IV

Na tua ausência, na casa o perfume das igrejas. O odorDa castidade antiga dos incensos, reacendeu a alegria da infânciaE aspirei contigo o perfume menos casto das cerejas. Na casa,Um ruído de contas de rosário, mas eu só, meu pai, te vigiava.Os ventos te seguiram. E próxima do teu passo, au mesma era o silêncioA pedra. Impossível de abraço.Uma torre contigo caminhava. Nos muros, nas escadas, refizeram ardisFibras tarnçadas, e aqueles pareciam mais largos, aquelas mais altas.No teu andar, um quase nada definido. Tinhas o caminhar dos animais,Espaçado e perdido. Respirei teu mundo movediço: Pai, não viste o sal da terraCorroendo os pilares, as cruzes, a capela? E os sonho sobre a tua fonteÉ mesmo crisálida pronta para ter asas?

Abriram-se os portões mas a casa era nova. A que foi nossaTuas filhas te disseram que na noite, um homem e sua torre,Com paciências guardadas, pouco a pouco a demoliram.

V

Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.Vi pela primeira a inútil simetria dos tapetes e o azul diluídoAzul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido

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Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raroComo um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos!Que amor se fez em mim, multiforme e calado!Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!

Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiroCalcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-teDe soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua ressonância.Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesaE expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.VI

Há tanto a te dizer agora! Meus olhos se gastaramProcurando a palavra nas figuras, nos textos, nas estórias.Era preciso viajar e levantada em renúncias redescobrir a morteAlém de seu sudário e suas tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.Há talvez a memória de tatos, um sentir rarefeito, um ouvido inexatoDeitado em solidão sobre o teu peito. E adeuses ingênuos, calados de vitóriaE aquele de fereza, de acerto, dissolvido em orgulho, ressuscitadoVagamente em canto. A na manhà, o meu sonho passara e a minha vozNão se erguera em poesia.

Será preciso esquecer o contorno de umas formas que vi: naves,

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portaisE o grande crisântemo sobre a feixa restrita do canteiro.

Através do gradil, no terraço do tempo de percebo.E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.

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INICIAÇÃO DO POETA

A carnagem de sal em nossos pés.

Carlos Maria de Araújo 1

O ouro do mais fundo está em ti. Em mim, as coisas breves tomam corpoE uma saga de bronze no meu ombroA cada dia se transforma em chaga.Um sol que se contrai sobre o meu rosto.Aves de que nào sei a sombra, vi-asNa manhã quando o amor era chamaMas num sopro perdi-asE é grande agonia o que era gozo.Guia-me em complacência. Que o instantenão se afaste de mim, antes padeçaDesse meu existir e eu não me perca.

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Claro objeto onde a rainha e o reiPerduram indefinidamente num só cetro.Vendo-o, como se fizésseis parteDo seu único centro, vos vereis.

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Nele a terra se mantém como foi feita:Tenebrosa e tenra. Nele está o homem.E se o olhardes bem, vosso cavaloDe cálida matéria. E no mais ínfimoDo que vos rodeia, o que vos digo vereis.Canto. E o meu canto se ouviráOnde o silêncio pesa, porque de amor se fezEm amor conduzE se nem sempre o que vos digo vos alegraNão é só pena e angústia do poetaAntes do ser, em mim, em vós,Eternidade de dor e dessassombro.

3

Toma-me, terra generosa. Tu que foste centelhaE agora és terra, abre o teu peito e abrasa o meuAntes de ti desfeito, ah, infinita de dor e de poderAceita-me. Unge-me pés e mãos. Unge-me o ventreQue só tem sido noite e saciedade sempreE o plexo ferido e a cintura de fogo sobre a menteE o dorso e a laringe.Unge-me porque em mim um outro se prepara.E o mínimo de dádiva e a entrega antecipada que me fiz,Ao outro se fará tão necessária cinzaPara a justeza e o porte da raiz. Unge-me a boca, a línguaPara dizer a palavra esquecida e atingir o ser.E faze dos meus olhos a medida para olhar atravésE nunca perecer.

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4

Terra, de ti é que vêm essas portas de mim. E sendo de solA planície de pedra, de sol o vestíbulo da casa, de solO dorso que também foi meu, impaciente das aves, fecho-mePorque em tudo te vejo como se fosses de água, e derramassesTeu corpo escurecido, na paisagem. Quis para teu cantoA mais viva palavra: um só templo:Nítido sobre a colina, limpo na luminosidade da hora.

Meu rosto será aquele de todos os teus mortos. E no entantoTe amei como se eu mesma fosse unicamente terra, mãe, filhaIrmã na memória, multíparas e claras, nascidas de uma só matrizSofridas de uma só matéria.

5

Resíduo da retina, corpo crepuscularCone do passado e de recusaRosa-retina persistindo reclusaVejo-te agora, espaço, esplanadaVendo-te como quem vem de foraMas livre de sua múltipla aparência.

Vede minha voz: a cada dia se faz clara.Pastor e gurdiãoPasce e resguarda a minha fala

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E o que é palavra rompeA lúcida matéria onde se esconde.

6

Sem heroísmo nem queixa, ofereço-vosMinha mão aberta. Agora vos pertence.Queimada de uma luz tão vivaComo se ardesse viva sob o sol. Olhai se possívelA mão que se queimou de coisas limpas.E se souberdes o que em vós é justiçaPodereis refazê-la como à vossa mão. E depois igualadaAproveitá-la. A cada hora, a cada horaE para o vosso pão.

7

De luto esta manhã e as outrasAs mais claras que hão de vir, aquelasOnde vereis o vosso cão deitado e aquecidoDe terra. De luto esta manhãPo vós, por vossos filhos e não pelo meu cantoNem por mim, que apesar de vós ainda certo.Terra, deito miha boca sobre ti.Não tenho mais irmãos.A fúria do meu tempo separou-nosE há entre nós uma extensão de pedra.Orfeu apodrece

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Luminoso se asas e de vermesE ainda assim meus ouvidos recebemA limpidez de um som, meus ouvidos,Bigorna distendida e humana sob o sol.

Recordo a ingênua alegria de falar-vos.E se falei submissa e se cantei a tardeE o deixar-se ficar de alguns velhos cavalos,Foi para trazer de volta aos vossos olhosA castidade do olhar que a infância vos trazia.

Mas só tem sido meu, esse olho do dia.

8

Me afundarei nesse teu vão de terraE a brasa da tua línguaHá de marcar em fogo o mais vivo da pedra.Uma palavra nova há de nascer, mas claraPalavra aérea, em ti se elaborando asa.Em tudo nesta morte és inocenteMas minha boca feriu-se de uns cantaresE agora silenciosa, goiva de si mesmaNão sabe mais dizer sem se ferir e breveHá de fechar-sePorque tem sido em tudo amenidadeE não é este o tempo de florir. SabiasQue um pouco da tua terra endurecidaDeitou-se sobre mim? E respirei minha morte

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E acendi memórias em ti reconfluídaE convidei meus hóspedes antigosAqueles mais longínquos, rigidez e calSobre um corpo de pranto agora ungido.

9

E sempre será preciso o pão desta agonia:De um lado, o passeio de uns dias ao redor do lagoO verde convalescente, tateando o mosaicoDas paredes, dócil como se falasses a ti mesmoDepois do grande exílio de uns afetos extremos.

E a ponte. E em cada lado, um rosto.O primeiro voltado para o mais fundo do ser,Gasto como se o tempo ao redor existisse palpável.Alimento.E o outro, exposto como um troncoNuma extensão de sal e de cimento,Abre a sua boca para todos os ventos.

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Como se comprimisses a mãoSobre os teus olhosE visses tua carnaduraSimplesmente igual a uma grande massa escura,Como quem vê de dentro

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A princípio não vendoE aos poucos distinguindoO sangue, o filamento, o sal da sua própria estrutura

Assim posso me ver agora.

Parte de mim Estilhaça uma asa num círculo de ferro.Parte de mim é um arcabouço raro.E o que vem de ti (uma parte de mim)São aqueles meninosE as aves com seus corpos finosSobre um lado de ledas asperezas.

Sou descanso e rudeza.11

Se viverdes em mim, vereis até onde me estendo.Pássaro que estende em arco seu claro movimentoUm dia há de pousar e estender-se em raiz. AresDe um tempo colaram-se nas asas e um só tempoPretendo. Abriu-se minha mão. E toda terraDe sua pequena superfície não se colou ao vento.

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Grande papoula iluminando de amarelo e ouroEsta morte de mim. Meu canto está partido.Minha morte não é a mesma que recobriu de pedra

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Vosso ouvido, mas é como se fora, porque é morteCantar assim e nunca ser ouvido. Grande papoulaIluminando de amarelo e ouro, porque é vidaQuerer cantar, sabendo que a cançãoSó tornará mais fundo vosso sono antiquíssimo.Dormi, pois. Descem do rio que vejo umas hastesDe trio. Um menino passeia o seu cavalo e olha o rioE ri dentro do capinzal: Trigo perdido em direção ao mar!Ah, boca de uma fome antiga rindo um riso de sangue.Se pudésseis abri-la para cantar meu canto!

13

Asa de ferro, esmaga esta última fonteDe pequenas águas, agora que a memóriaNa morte fez-se leve. Aqui não há mais boca.E o que era corpo tem seu vôo circularSobre todas as coisas. Há lugares iguaisÀqueles que cantei, girassóis com suas hastesDe terra, mas tudo como se fosse vistoVendo a um tempo só, a paisagem e o vidro.Os cavalos escuros correm numa extensãoDe claridade. E não há sede de águasNem a vontade dolorida da palavra.Estou no centro escuro de todas as coisasMas a visão é largaComo um grito que se abrisse e abrangesse o mar.

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SETE CANTOS DO POETA PARA O ANJO

(1962)

Nunca fui senão uma coisa híbridaMetade céu, metade terraCom a luz de Mira-Celi dentro das duas órbitas.

Jorge de Lima

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Canto Primeiro

Se algum irmão de sangue (de poesia)Mago de duplas cores no meumantoTesteminhou seu anjo em muitos cantosEu, de alma tão sofrida de inocênciasO meu não cantaria?

E antes deste amorQue passeio entre sombras!Tantas luas ausentesE veladas fontes.Que asperezas de tato descobrinas coisas de contexto delicado.Andei

Em direção oposta aos grandes ventos.Nos pássaros mais altos, meu olharDe novo incandescia. Ah, fui sempreA das visões tardias!Desde sempre caminho entre dois mundos

Mas a tua face é aquela onde me viaOnde me sei agora desdobrada.

Canto Segundo

Se te anuncio lágrimas e haveresÉ para te encantares do meu canto.

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Um tempo me guardeiTempo de dor aqueleOnde o amor foi mar de muitas águas.

Se te anuncio aindaÉ porque sempre em pedra fui talhada.Em sal me consumi. E perecívelTem sido a minha forma:Estes dedos lunares, estas mãosE tudo o que não foi tocado em ti.

Me queres em renúncia, em humildadeOu íntegra e sozinha nestes cantos?Tive ressurreição e anteparosE alegrias inteiras.E muitas madrugadas

A sós me confesseiÀquela irmã soturna e mais amada.

Vi quase tudo. E quase tudo andei.

Canto Terceiro

E largamente amei as criaturas.Os ouvidos se abriam. Ramas frágeisMeus ouvidos, aceitando ternuras.

Uns regressos de vida me contavam:

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Pactos, adolescências, heroísmos.(Tessitura franzinaSe estendendo sobre a pele mais fina)

Acaso não fui cúmplice dos meus?Desses vindos da noite e turbadosCom seus próprios destinos?

Que terrível engano antes de tiE vigílias inúteis e pobrezasE punições maiores, teis cilíciosNa carne! Tramas, tramas.

Que era feito de ti? Em mim, não eras.

Canto Quarto

E por que me escolheste?Em direções menores me plasmei.Entre uma pausa e outra fui cantandoUmas reminiscências, uns afetosE carragava atônita meu gestoPorque dizia coisas que nem sei.

Ouvi continuamente muitas vozes.Umas de fogo e água, tão intensasOutras crepusculares

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E entendiaQue era preciso falar de uma ciênciaUma estranha alquimia:

O homem é só. Mas constelar na essência.Seu sangue em ouro se transmuta.Na pedra ressuscita.No mercúrio se eleva.E sua verdade é póstuma e secreta.

Ah, vaidade e penumbra no meu canto!Meu dizer é de bronzeE essa teia de prataA mim mesma me espanta.

Canto Quinto

Eu nem soube falar do amor nos homens.(Amor feito de júbilo aparente)Nem soube replantar no que era terraUma mesma semente.Tive no peito o mantra mais secretoE não pude vibrá-lo, alento, liraCorda divina no seu veio certo.Elaborei em vão todos meu sonhos.E súbito me tomas e me ordenasA solidão mais funda:

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Estes cantos agora, alguns poemasUm amor tão perfeito e indizívelPorque não é tumulto nem tormento.(E se o homem na carne foi punidoO verbo diz melhor do sofrimento).

Que nome te darei se em mim te fazes?Se o teu batismo é o meu e eu só te soubeQuando soube de mim?

Canto Sexto

A noite em verso torpe me atingia.As coisas insofridasSofridas se faziamSe eu repousasse a mão sobre suas vidas.

Umas tardes meus olhos repensaramUma alvura de águas pretendida.Tão leve caminhei sobre essas águasQue a memória foi quase imerecida.Onde estavas emtão? Nem me sonhavas.

Deitei-me sobre um tempo que viriaE um ciclo de visões me revelavaQue no ódio dos deuses fui lembrada

Em alto vôo de ave, a esquecida.

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E porque paz e vôo me faltavamEu desejei perder-me mais e tantoQuanto fossem as perdas destinadasÀqueles incapazes de algum pranto.

Perenidade e vida: Onde estavas?Canto Sétimo

Te ocultaste. Eu morria.Tinha na fronte a chaga

E o dorso calcinado, em agonia.

Na treva de mim mesma deliravaE as pálpebras em brasaNão sabiam da tua claridade

Porque minha alma toda se perdiaE uma vida terrena começavaSeu círculo de cinzaSua casa.

Anjo, asaMão poderosa sobre a minha mãoQue o verso nunca mais transfigurava.Prisma solarizadoTranscendência primeiraDulcíssima presença:

Alta noite

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O que foi treva em mim

Em ti resplandescia.?????? com ou sem s

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ODE FRAGMENTÁRIA (1961)

De amor o meu poema e suasdensidades mais terrenas.

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BUCÓLICAS

1

Entre cavalos e verdes pensei meu canto.Entre paredes, murais, lamentos, ais(um cenário acanhado para o cantoSe o que dele se espera é até demais)Pretendi cantar mais alto que entre os verdesE encantar o meu sentir cansadoNaquele melhor sentir de quando era menina.Vontade de voltar às minhas fontes primeiras.De colocar meu mitos outra vezNos lugares antigos e sorrirComo a ti te sorri, minha mãe, a vez primeira.Vontade de esquecer o que aprendi:Os castelos lendários são paisagensOnde os homens se aquecem. Sós. Sumários.Porque da condição do homem é o despojar-se.

2

Era um vale.De um ladoSeu verde, suas brancuras.Do outroSeus espaços de corTrigais e polpas

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Azuladas de solEnsombradas de azul.

Era um vale.Deveria ter pastoresE água.E à tarde umas cançõesAlguns louvores.

3

O cavalo no vale.E mais alémO meu olhar mais verde do que o valeE claro de esperançaE querer bem.O vento no capim.O vermelho cansado deste outono.Os reseirais em mim.E tudo me pareceTão tranqüilo e leve.

E com muito cuidadoComo quem tem na mão a flor e o quadro

Espero que a paisagem desta tardeAdormeçaO cavalo no valeO vento no capimOs roseirais em mim.

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4

AmáveisMas indomáveisO poeta e seu cavalo.Um arcabouça pensadoPara limitar-se ao pousoE do vôo, alimentar-se.Sente os espaços mas sabeAté onde irá seu passo.Sente a beleza do saltoMas conhece sua lhaneza:A própria, inerte belezaDe saber-se aprisionadoE contentar-se de sonhosMaravilhar-se de achados.O poeta - e seu vocábulo.O cavalo - e seu pedaço de terraMais nas alturas,De brisa, de solidão e hortaliça.Entrelaçadas aspiramRespiram juntos.

E vistos em direçãoÀs cordilheiras do espantoQuase sempre se confundem.Sonhando reter no flancoExaltação e delírio,

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Nas noites de grande lua(Entre ciprestes e lírios)O cavalo me acompanhaÀs profundezas guardadasOnde flutuam palavras.E lá mergulho e anoiteço.E encontro coisas do medoMandalas de cor, rosáceasE malmaqueres antigosSobre algum livro encantadoDe pergaminho, de prataE de pensamentos idos.

5

Clarividente que souNem é preciso um poenteRico de prismas e cores.Nem cordeiros azuladosNem inéditod langoresNem begônias no meu prado.

Canto o que vejo mas antesCanto o que a alma deseja.

6

Noviça.

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Aprendiz dos meus verdes e amada.Monja pretendida, ensimesmada,Amorosa e passiva mas fatalPorque sem vigilância e arremedoHá de falar-vos coisas de outro vel.Não lhe peçam palavras escolhidasNem surpreendentes mitos, outros sóis.(Há sempre uma medusa em algum lagoNem sempre nossos verdes, girassóis).

Tribulações e medo padeceu.(Morrer ali! Que dádiva seria!)Noviça fez-se monja.E assim como surgiuNo meu vale encantado se perdeu.

Queria uma cruzUm escudoUm cilício.(Perdoar vossos ódiosNossos vícios).

Nem lícito seria que vivesseQuem assim pedia.

7

Eu caminhava alegre entre os pastoresE tatuada de infância repetia

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Que é melhor em verdade ter amoresE rima transitória para o verso.Para acantar mais alto é até precisoDesdobrar-se em afetos e amarSeja o que for, luares e desertosE cantigas de roda e ditirambos.Entre o amarelo e o rosa, a lua novaNa vida também nova, ressurgia.

8

A noite não consente a veleidadeDe retomar na memória e no tempoO tempo em que eu senhora de vaidades,Dissipava no verso o meu lamento.Tempo não é, senhora, de inocências.Nem de ternuras vãs, nem de cantigas.Antes de desamor, de impermanência.

Tempo não é, senhora de alvoradas.Nem de coisas afins, toques, clarins.Antes, da baioneta nas muradas.

Tempo não é, senhora, de pastores.Nem de roseiras, madrigais, violas.Nem é tempo, vos digo, de ter pássarosAzuis em vossas douradas gaiolas.

(Não houvesse paredes, língua e som,

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Apartando de nós, coisas antigas.A palavra na boca, o falar neste tomDá-me tanta saudade da cantiga:PerseguesTe persigoVais e vensA nas idas e voltas te bendigo)

9

Ainda em desamor, tempo de amor será.Seu tempo e contratempo.Nascendo espesso como um arvoredoE como tudo que nasce, morrendoÀ medida que o tempo nos desgasta.Amor, o que renasce.

Amor, o que renasce.Voltando sempre. Docilmente sábioPorque na suavidade nos convenceA perdoar e esperar. Em vida. In pace.

Sutil e fraticida. Sem estimaPelo que ama. Tristemente irmãoAntes de começar sua jornadaAntes de repetir sua canção.

Amor, o desejado.Filho varão à espera de um condado.

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O pássaro desenhaNo seu vôo estrangeiro(Porque nada sabemosDe pássaros e vôos E do impulso alheio)Um círculo de luz.E retoma depoisNum azul claridadeSeus píncaros azuis.

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TESTAMENTO LÍRICO

Glaubt nicht, Schicksal sei mehr alsdas Dichte der KindheitNão acrediteis que o destino seja mais do quea história da infância e do que dela contém.

R. M. Rilke

Se quiserem saber se pedi muitoOu se nada pedi, nesta minha vida,Saiba, senhor, que sempre me perdiNa criança que fui, tão confundida.À noite ouvia vozes e regressos.A noite me falava sempre sempreDo possível de fábulas. De fadas.O mundo na varanda. Céu aberto.Castanheiras douradas. Meu espantoDiante das muitas falas, das risadas.Eu era uma criança delirante.Nem soube defender-me das palavras.Nem soube dizer das alfições, da mágoaDe não saber dizer coisas amantes.O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendoSer outra, comedida. Ah, se soubésseis!Ter escolhido um mundo, este em que vivo,

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Ter rituais e gestos e lembranças.Viver secretamente. Em sigiloPermanecer aquela, esquiva e dócil.Querer deixar um testamento líricoE escutar (apesar) entre as paredesUm ruído inquietante de sorrisosUma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.E ainda que minha voz não seja ouvidaUm dentre vós, resguardará (por certo)A criança que foi. Tão confundida.

HERÓICAS

1

Se há muito o que inventar por estes ladosO que sei com certeza são meus fadosExigindo verdades e punindoOs líricos enganos da beleza.

À procura da rosa tenho andadoCausando às criaturas estranheza.(Se me encontraresTerei um jeito de florE um não sei quê de brisaNos meus ares.Hei de buscar a rosa

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- A dos altares -E sinto graça nos pésLeveza nos andares)

Não temesAs deidades atentas da memóriaOs gnomos secretos, a loucuraA morte?

2

Morremos sempre.O que nos mataSão as coisas nascendo:Hastes e raízes inventadasE sem querer e por tudoSe estendendo,Rondando a minhaSubindo vossa escada.Presenças penetrando

Na sacada.Invasões urdindoTramas lentas.Insetos invisíveisNas muradas.Eis o meu quarto agora:Cinza e lava.Eis-me nos quatro cantos

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(Morte inglória)Morrendo pelos olhos da memória.Aproximam-se.E libertos da presença da carneSe entreolham.

O teu nascer constanteTraz castigo.Os teus ressuscitaresSerão prantos.

3

Distorço-me na massaDe uma argila sem corMil vezes me refaçoE me recrio em dor.

E pouso lentamenteSob a testa friaOs girassóis na mente.

Antes as órbitas vazias!Será eterno o júbilo de terEspátulas e numeNas mãos e no ser?

Bastasse o confessar-me e assim punir-meDe toda intemperança dos humanos.

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Bastasse o que não sou e o refluir-meLongínqua na maré desordenada.

4

Sendo quem sou, em nada me pareço.Desloco-me no mundo, ando a passosE tenho gestos e olhos convenientes.Sendo quem souNão seria melhor ser diferenteE ter olhos a mais, visíveis, úmidosSer um pouco de anjo e de duende?Cansam-me estas coisas que vos digo.As paisagens em ti se multiplicamE o sonho nasce e tece ardis tamanhos.Cansam-me as esperanças renovadasE o verso no peito repetido.Cansa-me ser assim quem sou agora:Planície, morte, treva, transparência.Cansa-me o amor porque é centelhaE exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o versos ainda? Assim seja.Mas viverás tua vida nesses breus.

5

Um todo me angustia.

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Se era de amor a ilhaE o mar à minha volta,Não será menos certoQue a sextilha de agoraDas formas que penseiÉ a mais remota.Temos jeitos de ser.(Às vezes obscurosComo convém ao ser)Se em nada me detenhoÁgua de muitos riosPassando por canaisDe grande amor e mágoa,Em tudo me detenhoE sei que sou raiz.E se às vezes abrigo

Num caminhar reateiroAs solidões alheias,Às vezes verticalEncontro aquele mundoQue é também o da terraFeérico e abismal.

Tão grande ambivalênciaConcedida aos homensTerá sido dos deusesComplacência?

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6

Se faloÉ por aqueles mortosQue dia a diaEm mim se ressuscitam.De medos e reguardosÉ a alma que nos guiaA carne aflita.E de espantoÉ o que tecemos:Teias de espantoAo redor da casaOnde vivemos.Trituramos cada dia(Agonizantes amenos)Constelações e poesiaE um certo jeito de amarQue a nós, de vôosE vertigens, não convém.E quem sabe o que convémA seres tão exauridos.ConcedemosAlento, nudez, lirismoE contudo o que mais somosSão estes sonhosAdentros indevassáveisBosques lilazesCaminhos levando ao marAves

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Aves.

7

Ramas nas margens do rio que me pretendo.E entre rio e regato, prodigiosa e leveLevo no meu leito mais auroras.Contente de mim mesma me inauguro sonora.

Se é preciso parar, colher raízesRememorar as sagas e ao lembrá-lasImaginar um gesto, vado e vaga,É preciso também um riso abertoE claro e cristalino.E retomando o caminho da rosaDe órbita iluminada mas fremosaMe vejo em penitência, brasa e espinho.

Ah, deidades,O vosso riso inflamaAinda maisO passo de quem ama.De coração ardenteEis-nos aqui.Não haverá magiaNem vertendeNem secreto conluioNem labareda claraOstentando uma rosa

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Que não a preclara,Que cegue o entendimentoE que vacile o andar.Somos a um mesmo tempoRio e mar.Na laringe e no peitoRenasce cada diaUm estigma de luzUm signo perfeitoE nada nos escurece a mente ou nos seduz.

Vós, humanos,De gesto tantas vezes suplicante.De coração ardente, dizeis?A nós parece exangueEsse pulsar contínuoE tarefa insensataPorque nós, divinos,Temos no peito a forçaO altarA lançaE um todo movediço nos contém.E se o arder renovaA sarça da esperança,Um secreto poder consome a própria chama.Vós, humanos,De invólucro oscilante

E impermanenteMortais e fustigados

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Pretendeis o mais alto?Amargos destinos.Buscar a rosaCabe a nós, divinos.Em nós a claridadeEm nós tamanho amorE sol e santidade...

E suas gargantas de açoInundaram de lavaAquilo que era espaço.

8

Era ali? Era adiante aquele muroDe claro verde musgo? Era distante?

Os mortos ressurgiram e cantaram:Se a perfeição é a morteTalvez por isso imortaisHá muito que existimos.Mas se algum dentre vósÉ sopro divino, encantai-nos:Árvore, pedra, ar se vos apraz.Vida perpétua mas paciente e quieta.

Se o que vos guia é a fala de um poetaHá muitos entre nós. E procuraramO todo uniforme: Hálito, sudário

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E o mais além do homem.Iguais a vós, a nós nos encontraram.Eram velozes e límpidos. AsasNos pés humanos e por isso frágeis.

E apesar da eloqüência que os mantinhaQuando a noite chegava se crispavamComo a mulher fecunda que é sozinhaE sabe do seu tempo incerto e pouco.

Como os humanos temem suas trevas!Como temeis em vós a criatura!E mal sabeis que é sempre na clausuraQue a vida se aproxima e recomeça.Humildade e abandono. E que a palavraSe tentar existir, seja singela.E se for sábia, estranha à vossa lavraOrai àqueles que a fizeram bela.

9

Ai de nós, peregrinos,Antes do amanhecerSonhando eternidades!Não é nosso o destinoDe amar e perecer.Antes vertiginososTateamos na sombraA lage dos abismos.

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E uma vez laceradosQueremos a montanha.Seu arco-íris. Seu lago.

Amor e amenidadeÉ reservado aos filhos,Aos amantes. A nósQue verdes e que pradosE que planície extensaNos tranqüiliza o olhar?

Se fôssemos aquelesFeitos de areia, tantos,Onde a água resvalaE volta e serpenteiaMas deixa um só vestígioDe umidade ou de pranto.

Ai de nós, mutilantes,De afetos imprecisos,De repente tomadosÀ lua das vazantes

Num relance possessosPossuídosInflamando o sentirRecomeçando aquele, o mesmo canto.

Estuários freqüentesDesviam nossas velas.

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E de que lado, ondeUma visão mais belaSe o único prazeré ter o mar, o ventoE naufrágios alémE descobertasE permanências veladasMuito ausência.Em que montaha azul a nossa meta?

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Se havia em nossa voz uma cadência,Crescia em nosso peito uma branduraTão poderosa e viva e assim tào puraComo se fosse a vida, a nossa vida,Um caminhar tranqüilo de inocência.Um pouco do divino está em nós.Descobri-lo foi antes debruçar-seDescer pausada sem tocar rochedos,Água de um mar imenso mas guardado

Sob um caudal de lírios e de medos.Era do alto a força que nos vinha.E à memória do tempo incorporou-seOutra memória lúcida e candente.Éramos nós ainda sibilantesSoprando a cinza secular da mente?Dou testemunho apenas da certeza

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De uma visão suprema, luz e prataDe dimensão tão vasta e tão serenaQue o poeta apesar de ter vividoSeus cânticos de amorE de saber-se até predestinadoPorque sentiu temores, alegrias,Guardou-se amante, iluminou-se crenteCobriu-se de ternuras e de lendasNão conheceu prazer ilimitadoQue suportasse o humano e suas penas.11

Rosa consumadaTrajetória perfeitaExatidão mais alta!

Pesa sobre nósO limite da carne

O pensamento Discursivo e lento.Em nósCorpóreos e pequenosA fúria da vontadeE mil abstraçõesNo amor e na verdade.

Nem sabemos porque Construímos e amamos.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Mutáveis, imperfeitosO mundo nos oprime

E nos comprime o peito.

Dúplices desatentosLançamos nossos barcosNo caminho dos ventos.

E nas coisas efêmerasNos detemos.

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TROVAS DE MUITO AMOR PARA UM AMADO SENHOR

(1960)

Canção, não digas mais; e se teus versos À pena vem pequenos,

Não queiram de ti mais, que dirás menos.

Luiz de Camões

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I

NaveAveMoinhoE tudo mais sereiPara que seja leveMeu passoEm vosso caminho.

II

Amo e conheço.Eis porque sou amanteE vos mereço.

De entendimentoVivo e padeço.

Vossas carênciasSei-as de cor.

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E o desvarioNa vossa ausência

Sei-o melhor.

Tendes comigoTais dependênciasMas eu convoscoTantas ardências

Que só me restaO amar antigo:Não sei dizer-vos

Amor, amigoMas é nos versosQue mais vos sinto.E na linguagemDesta canção

Sei que não minto.

III

Dizem-me:Por vos quererPeerco-me a mimE logoVos perderei.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Dizem-me coisasTão váriasQue desconheçoE tão raras

Que mais pareçoDe um mundoLonge de vósE de tudo.

Dizeres De toda genteA mim bem poucoMe importa.

Hei de querer-vosTão claraCom tais enlevos

Que se um diaVos lembrardesDe mim

Há de ser nos trevos.É tanta sorteSenhorEncontrardesA um só tempo

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Obra poética reunida Hilda Hilst

MulherVate Trovador.

IV

Convém amarO amor a rosaE a mim que souMoça e formosaAos vossos olhosE poderosaPorque vos amoMais do que a mim.

Convém amarAinda que sejaPor um momento:Brisa leve aPrincípio e seu

Breve momentoTambém é jeitoDe ser, do tempo.

Porque ai senhorA vida é pouca:Um bater de asaUm só caminho

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Da minha à vossaCasa...

E depois, nada.

VNão sou casado, senhora,Que ainda que dei a mãoNão casei o coração.

Bernardim Ribeiro

Serei menos euDizer-vos, senhor meu,Que às vezes agonizoEm vos vendo passarAltaneiro e preciso?

Ai, não seria.

E na mesma calçadaPor onde andais, senhor,Anda vossa senhora.E sua cintura aladaDá-me tanto pesarE me faz sofrer tanto

Que não vale o chorarE só por isso eu canto.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Seria menos euDizer-vos, senhor meu,Por serdes vós casado(E bem por isso mesmo)É que sereis amado?

Ai sim seria.

VI

Deus Nosso Senhor concedaMercês e graças a quem(por ser assim delicada)Pode perder o seu bem.

Cantar meu amor eu canto.E canto com alegria.Mas não é um todo fidalgoE quase uma alegoria

Cantar de vossa senhoraA cintura e a valia?

Mas eu que morro de amoresTenho tantas estranhezas...E se não morro de amoresMorro de delicadezas.

E que Deus Nosso Senhor

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Me guarde na Sua grandeza.

VII

Fineza minha, senhor,É o muito vos repetirUm amor já confessado.(A princípio sem cuidadoPorque não vos conhecendoà força de repetirO que não é acaba sendo.)

Mas hoje vos conhecendoE tendo sido afligidaPor males próprios do amor,Não é fineza tão grandeFazer-vos tal juramento?

Ai é sim meu senhor.

Porque se acaso depoisPassado tanto tormentoEu nunca mais vos lembrasseDo amor o encantamento,Fineza é que não seria.

E é pois o que venho tendo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

VIII

A vossa casa rosadaTem ares de fidalguia.Se passo por ela, sofro,Se não passo, noite e dia...

Penso nela.

Na verdade vos persigo.E na verdade vos tento.Se a casa não é comigoPor que tenho o pensamento

(- Junto dela?)

Lá não vos vejo. PressintoO vosso andar, vossa fala.E sei de vossos afetosE a boca por isso cala.

mas canta. Porque é preciso.

IX

A minha voz é nobreE mansa se vos falo.Se me fazeis sofrerPara não vos magoar

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Obra poética reunida Hilda Hilst

É que me calo.

Nada fere melhor(mais que a voz angustiada)Uma voz de marfim.E se não sei dizerEm não sendo assim,Fere a delicadezaMais que a vós, a mim.

E por isso me calo.

X

Amor tão puroAmor impuroNada pareceSer mais escuroQue o definir-vos:Às vezes graçaTão luminosaÀs vezes pena Tão perigosa...

E às vezes rosaTão matutinaQue a mim não cabe(Eu, peregrina)O descobrir-vos.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

- Ai, quem padeceDe tanto amorE em alta chamaSua vida aquece?

- Ai, quem seria?Sendo por vósSó poderiaSe eu, senhor.

XI

Tenho sofridoPenas menores.MaioresSó as de agora:Amor tão grandeTão exaltadoQue não se morreTambém não sabeViver calado.

Morrer não há de.Calar não pode.Sabe morrerQuem morreSe não vos vê?Sabe calarA que nasceu

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Obra poética reunida Hilda Hilst

SomentePr’a vos cantar?

Tenho sofridoPorque de amorTenho vivido.Amor tão grandeTão exaltadoQue se o perdesseNada seriaMais cobiçado.

XII

Se não vos vejo

Vos sinto por toda parte.Se me falta o que não vejoMe sobra tanto desejoQue este, o dos olhos, não importa.

(Antes importa saberSe o que mais vale é sentirE sentindo não vos ver.)

São coisas do amor, senhor,Desordenadas, antigas.E são coisas que se inventamPr’a se cantar a cantiga.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Não são os olhos que vêemNem o sentido que sente.O amor é que vai alémE em tudo vos faz presente.

XIII

Dizeis que tenho vaidades.e que no vosso entenderMulheres de pouca idadeQue não se queiram perder

É preciso que não tenhamTantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescentoFlores e renda, cetins,Se solto o cabelo ao ventoÉ bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentesE a boca fresca e rosada.E a vaidade só consenteVaidades, se desejada.

E além de vósNão desejo nada.XIV

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Rica de amoresTive perdidaMinha tão pobreTão triste vida.

Rica de amoresMas ai! por dentroTão consumida!Tão tristeTão assustadaQue eu bem sabiaNão ser aquelaA minha vidaPredestinada.Tão triste vida.

Mas ai, tornadaLeveQuietaCantada...

Amores tiveAmor canteiNenhum logreiCantar tão bem.

XV

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Deu-me o amor este dom:O de dizer em poesia.Poeta e amante é o que souE só quem ama é que sabeDizer além da verdadeE dar vida à fantasia.

E não dá vida o amor?E não empresta belezaÀquele que se quer bem?Que não vos cause surpresaO perceber neste amorFidelidade e nobreza.

E se eu soubesse que à morteMeu muito amar conduzia,Maior nobreza de amanteAfirmar-vos inda assimQue ele tal e qual seriaComo tem sido agora:

Amor do começo ao fim.

XVI

Maus olhosSeguem o barcoE o arcoDos horizontes

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E os maresE a flor e a fonteCaminhoE caminha o monte.

Meus olhosSeguem o barcoMar altoNo fundo o peixe.E a vósSenhor excelente:Corda prendida ao feixe.

XVII

Moças donzelasQuerem cantar amorSem mais aquelas.

Canto eu por elas.

Se forem belasFicam melhor à tardeAi, nas janelas.

Fico eu por elas.

E se as cancelasDas casas onde vivem

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Ai, cuidam delas

Saio eu por elas.

E em sendo belasPretendam conseguirGrinalda e perlas

Velo eu por elas.

Mas ai daquelaQue em vós deitar o olhar...Solteira e bela

Ao, pobre dela.(??????? Ai)

XVIII

Que seja nossa um diaA casa que eu, senhor,ImagineiPara viver convoscoEm alegria.

Que tenha uma varandaE uma roseiraE por pertoUma fonte esquecidaNa clareira.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Que à noite se advinheA graça de um ruído.Porquanto o que se vêTolhe a imaginaçãoE perturba o sentido.

Que haja luz nas manhãsE rosas nos ocasos.E alguns versos de amorDe uma mulher tranqüila

E ao vosso lado.

XIX

Se o amor é merecimentoTenho servido a DeusMui a contento.

Se é vosso meu pensamentoEm verdade vos deiConsentimento.

E se mereci tal vidaPlena de amor e serenaFoi muito bem merecida.

E em me sabendo querida

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Dos anjos e do meu Deus,Na morte pressinto a vida.

E o que se diz sofrimento,No meu sentir é agoraContentamento.

E se amor morre com o tempoAmor não é o que sintoNeste momento.

XX

Guardai com humildadeEstas trovas de amor.E se um dia eu morrerAntes de vósComo sói muita (muito ou muita vez ????)Acontecer

Lembrai-vos: o que deiFoi um amor tão puroAtormentado masTão claro e limpoE sentireis, senhor,Tudo o que sinto.

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ROTEIRO DO SILÊNCIO

(1959)

À memória de meus amigos

Otávio Mendes NetoZita Cintra GordinhoJosé Luiz PatiSérgio Galvão Coelho

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Não há silêncio bastantePara o meu silêncio.Nas prisões e nos conventosNas igrejas e na noiteNão há silêncio bastantePara o meu silêncio.

Os amantes no quarto.Os ratos no muro.A meninaNos longos corredores do colégio.Todos os cães perdidosPelos quais tenho sofrido:O meu silêncio é maiorQue toda solidãoE que todo silêncio.

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CINCO ELEGIAS

É TEMPO DE PARAR AS CONFIDÊNCIAS

1

Teus esgares, de repente,Teus gritosQuem os entende?E todos os teus ruídosTeus vários sons e mugidosQuem os entende?

E foi assim que o poetaAssombrado com as ausênciasResolveu:Fazer parte da paisagemE repensar convivências.Em vão tenho procuradoA glória das descobertas.Em vão a língua se moveTrazendo à tona o segredo.Em vão nos locomovemos.Para onde pés e braços?

Distantes os hemisférios

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E as relíquias da memória.Tão distante a minha infânciaPudor, beleza, invençãoE o ouro da minha trançaNão teve sequer canção.Cresci tão inutilmenteQuando devia ficarDebaixo das laranjeirasÀ sombra dos laranjais.Cresci, elegi palavrasQualifiquei os afetos.Vestígios de madrugadaDiante dos olhos abertos.Claridades, esperanças,Em tudo a cor e a vontadeDe ver além da distância.

Depois as visões, as crençasAlgumas falas a sósPremeditadas vivênciasGraves temores na voz.Era ou nãoAbrasada adolescência?

2

O vocábulo se desprendeEm longas espirais de aço.Ajustemos a mordaça

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Porque no tempo presenteAlém da carícia, é a farsaAquela que se insinua.Faço parte da paisagem.E há muito para se verAquém e além da colina.Há pouco para dizer, Quando a alma que é meninaVê de um lado o que imagina,Do outro o que todos vêem:O sol, a verdura finaAlgumas reses paradasNo molhado da campina.Ventura a minha, a de serPoeta e podendo dizerCalar o que mais me afeta.Ventura ter o meu mundo

E resguardá-lo das cinzasDas invasões e dos desgtos.Ah, poderiam ter sidoEncantados e secretos

Aqueles brandos colóquiosQue outrora se pareciamÀs doces falas do afeto.

3

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Obra poética reunida Hilda Hilst

As coisas que nos circundam(Na aparência desiguais)Conservam em suas essênciasAi, aquela mesma e tristeParecença.Difícil é escolherEntre viver e morrer.Difícil é o escutar-seE ao mesmo tempo escutarRigores que vêm da terraLirismos que vêm do mar.Auroras imprevisíveisEntre Platão e Plutão.Entre a verdade e os infernosDez passos de claridadeDez passos de escuridão.Consinto que me surpreendasDizendo palavras densas.O não dizer é o que inflamaE a boca e o movimentoÉ que torna o pensamentoLume CardumeChama.Não tenho tido descansoDo falarar de quem ama.Amor é calar a trama.É inventar. É magia.As palavras engenhosasE os teus dizeres do dia

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Obra poética reunida Hilda Hilst

À noite não tem sentido

Quando arquiteto a elegia.E sendo assim continuoMeu roteiro de silêncioMinha vida de poesia.

4

Não te espantes da vontadeDo poetaEm transmudar-se:Quero e queria ser boiSer florSer paisagem.Sentir a brisa da tardeOlhar os céus, ver as tardes

Meus irmãos, bezerros, hastes,Amar o verde, pascerNascer junto à terra(À noite amar as estrelas)Ter olhos claros, ausentes,Sem o saber ser contenteDe ser boi, ser flor, paisagem.Não te espantes. E reservaTeu sorriso para os homensQue a todo custo hão de serOradores, eruditos,

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Doutos doutoresFronte e cerne endurecido.Quero e queria ser boiAntes de querer ser flor.E na planície, no monteMovendo com igual compassoA carcaça e os leves cascos(Olhando além do horizonte)Um pensamento eu teria:Mais vale a mente vazia.E sendo boi, sou ternura.

Aunque pueda parecerQue del poetaEs locura.

5

É tempo para dizerSe prefiro o teu amorÀqueles, aos doces aresDa minha campina em flor.Tu que projetas e inventasEstruturas ascendentesE sonhas com superfíciesAlém deste continente,Tu que conheces melhorAs coisas do querer bem(Porque até agora te quis

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E antes não quis ninguém)Tu, bem o sei, me pressentes.E mais ainda, me vêsTão perto do querer serDeste amor sempre contente.Ah, descantares, lamentos,As leves coisas do tempoTêm seu tempo e seus altares.É tempo para escolherO anoitecer nas planurasE o contemplar luaceirosE é tempo para calarA estória dos meus roteiros.Paisagem, tu me alimentasDe verde, de sol, de amor.E numa tarde tranqüila,Nos longes, seja onde forLembra-te um pouco de mim:Que eu morra olhando as alturas.E que a chuva no meu rostoFaça crescer tenro cauleDe flor. (Ainda que obscura)

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SONETOS QUE NÃO SÃO

Aflição de ser terraEm meio às águas

Péricles E. da Silva Ramos

1

Aflição de ser eu e não outra.Aflição de não ser, amor, aquelaQue muitas filhas te deu, casou donzelae à noite se prepara e se advinha

Objeto de amor, atenta e bela.Aflição de não ser a grande ilhaQue te retém e não te desespera.(A noite como fera se avizinha).

Aflição de ser água em meio à terraE ter a face conturbada e móvel.E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.Aflição de te amar, se te comove.E sendo água, amor, querer ser terra.

2

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Obra poética reunida Hilda Hilst

É meu este poema ou é de outra?Sou eu esta mulher que anda comigoE renova a minha fala e ao meu ouvidoSe não fala de amor, logo se cala?

Sou eu que a mim mesma me persigoOu é a mulher e a rosa que escondidas(Para que seja eterno e meu castigo)Lançam vozes na noite tão ouvidas?Não sei. De quase tudo não sei nada.O anjo que impulsiona o meu poemaNão sabe da minha vida descuidada.

A mulher não sou eu. E perturbadaA rosa em seu destino, eu a persigoEm direção aos reinos que inventei.

3

Tenho medo de ti e deste amorQue à noite se tranforma em verso e rima.E o medo de te amar, meu triste amor,Afasta o que aos meus olhos aproxima.

Conheço as conveniências da retina.Muita coisa aprendi dos seus afetos:Melhor colher os frutos na vindimaQue buscá-los em vão pelos desertos.

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Melhor a solidão. Melhor aindaEnlouquecendo os meus olhos, o escuro,Que o súbito clarão de aurora vinda

Silenciosa dos vãos de um alto muro.Melhor é não te ver. Antes aindaEsquecer de que existe amor tão puro.

4

Que não se leve a sério este poemaPorque não fala do amor, fala da pena.E nele se percebe o meu cansaçoRestos de um mar antigo e de sargaço.

Difícil dizer amor quando se amaE na memória aprisionar o instante.Difícil tirar os olhos de uma chamaE de repente sabê-los na constante

E mesma e igual procura. E de repenteEsquecidos de tudo que já viramSonharem que são olhos inocentes.

Ah, o mundo que os meus olhos assistiram...Na noite com espanto eles se abriram.Na noite se fecharam, de repente.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

5

A voz diz o verso e a cantigaTem repetido mil vezes que te ama.A voz amante, amor, não tem medidaE lenta é quase sempre leve e branda.

Que não conheça o grito a minha gargantaPorque bem sei quem és e de onde vens.E nem penses que a mim me desencantamAs filhas que eu não tive e que tu tens.

Amo-te a ti e a todos esses bens.Fosse maior o amor tu saberiasQue se te amo a ti, amo tuas filhas.(Se as vejo são meus olhos que te vêem).

Amo-te tanto. Sendo breve a vida,Impossível a volta àquela infância,Que seja a tua ternura desmedidaComo se eu fosse também uma criança.

6

Leva-me a um lugar onde a paisagemSe pareça àquela das visões da mente.Que seja verde o rio, claro o poenteQue seja longa e leve a minha viagem.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Leva-me sem ódio e sem amorDespojada de tudo que não sejaEu mesma. Morna estrutura sem corA minha vida. E sem velada beleza.

Leva-me e deixa-me só. Na singelezaDe apenas existir, sem vida extrema.E que no escuro claustro do poemaEu encontre afinal minha certeza.

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DO AMORCONTENTE E MUITODESCONTENTE

1

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.Tenho me fatigado tanto todos os diasVestindo, despindo e arrastando amorInfância, sóis e sombras.

Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.Dizer que não é mais possível comunicar-me.(Em todos os lugares o mundo se comprime.Não há mais espaço para sorrir ou bocejarDe tédio).As casas estão cheias. As mulheres parindoSem cessar, os homens amando sem amarAh, triste amor desperdiçadoDesesperançado amor, serei eu sóA revelar o escuro da janelas, eu sóAdvinhando a lágrima em pupilas azuisMorrendo a cada instante, me perdendo?Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.Preparo-me e aceito-meCarne e pensamento desfeitos. Intentemos,Meu pai, o poema desigual e torturado.E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

2

A Neli Dutra

Companheiros, é de luaA noite que vem chegando.Para engolir o meu prantoQue eu não saiba de outras vidasNem dos que estão se matando.Já tive tanta desditaQue é preciso ir inventando

Caminhos novos, veleiros(Além do mais navegandoSe conhece o marinheiro).Verdade é o que tume dizes:O amor, poeta,É alegria.Por isso é que estou tramandoViagens, vínculos, dádivasPor isso a noite é de luaE o coração é de brasa.Não quero saber de herdeirosPartilhando o meu encanto.Inúmeras as viuvezesPara uma vida tão poucaE de amor... Ai, tantas vezesMinhas asas, exiladas

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Incendiaram as estrelas.E nos sentires, nos tatosEm todos os meus adeusesO amor se reinventavaA si mesmo, tanto, tanto.(Mas afinal é de prantoO amor que se diz contente?)

Companheiros, é de luaA noite que vem chegando.E uma lua nas alturasTem tal força, tais ardências...Senão vejamos: Eu poetaNesta e noutras existências,Cantando o do amor mais triste(Onde se meteu a lua?)Cantei-me. De amor contente.3

Quero brincar meus amigosDe ver beleza nas coisas.Beleza no desatinoNo teu amor descuidadoBeleza tanta belezaNa pobreza.Quero brincar meus amigos

De ver beleza na moçaQue por amor não se dá.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Nem por nada. E se reservaAo homem que Deus dará.

Quero brincar meus amigosDe ver beleza na morte.Mais que na morte, na vida.Tão doce morrer em vidaTão triste viver em vão.

Vamos brincar meus amigosE de mãos dadas cantarMinha feliz invenção:Beleza tanta belezaEm tudo que se não vêBeleza.

4

É antes de tudo a terraQue me traz o medo.E a crisálida no corpo.E a flor no túmulo.É antes de tudo a terraQuando me vês perdidaE em silêncio.É antes de tudo a terraQue confunde a amarga.5

Tudo é triste. Triste em nós

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Vivos ausentes, a cada dia esperandoO imutável presente. Tudo é triste.Triste como eu, antiga de caríciasDe olhos e lamentos, lenta no andar,Lenta, irmã de algum canto de ave,Do silêncio na nave, irmã.

6

Enterrei à noite minhas estrelasPorque à noite as floresElaboram em silêncioSuas cores.Enterrei à noite minhas estrelasPerdi graças e gigantesPara não perdê-las.Ah, mundo de terra e medo!

7

Somos crianças nesta noite escura.Tudo mais não sabemos.Largas raízes madurasApressam nosso passo,E é de amor e açoO teu longo abraço em toda minha cintura.Somos crianças nesta noite escura.Morno rumor de sombras

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E de folhasDesfaz a rosa que eu te prometiaTemos olhos e sonhos.E eu não sou aquela que o teu sonho pedia.

8

Amado e senhor meu: Perguntei a mim mesmaO que te faz aos meus olhos desejado.E aquele anjo que é o meu, dessassombrado,Andrógino e ausente emudeceu.Será a luz da tua casa o encantadoOu tens encanto maior aos olhos meus?E aquele anjo que é o meu, mudo e aladoPrudente como um anjo adormeceu.Será a mulher, a que te tem guardadoEm vigia constante como a um deus,Que faz com que eu te sinta o mais amado?E sonâmbulo meu anjo respondeu:

- Ai de ti, a de sonhos exalados.

9

Tenho pedido a todos que descansemDe tudo o que cansa e mortifica:O amor, a fome, o átomo, o câncer.Tudo vem a tempo no seu tempo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Tenho pedido às crianças mais sossegoMenos riso e muita compreensão para o brinquedoO navio não é tream, o gato não é guizo.

Quero sentar-me e ler nesta noite calada.A primeira vez que li Franz KafkaEu era uma menina. (A família chorava).Quero sentar-me e ler mas o amigo me diz:O mundo não comporta tanta gente infeliz.

Ah, como cansa querer ser marginalTodos os dias.Descansem anjos meus. Tudo vem tempoNo seu tempo. Também é bom ser simples.É bom ter nada. Dormir sem desejar,Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai.Tenho pedido a todos que descansemDe tudo o que cansa e mortifica.Mas o homem não cansa.

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Balada do Festival (1955)

a meu irmãoa Lygia e Goffredo

Não falemos.E que as vontades primeiraspermaneçamgigantescas e disformessem caminho nenhumpara o mundo dos homens.

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I

Corpo de argilameu triste corponão é verdade

se te disseremmiha elegiaser mais vaidadedo que homenagem.

Por que o seria?Me adivinhastequando a palavranada dizia

e o longo tempo(quando se amava)havia diasem que choravas

e estremecias.

Falam de ti.Da tua pouca felicidade.

Mas o que importaa infinidade dos teus amantes

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Obra poética reunida Hilda Hilst

se toda vezque te entregavasextenuado

te perdias.Ah, se a poesiame permitissevôos mais altos

mesmo na morteas confidênciasque eu te faria...

Ainda me tens.E bem por issodestila em mimteu peso enorme.E no poemaque te dedico

meu triste corpoainda uma vezchora comigochora comigo.

II

a Fernando Lemos

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Já não sei mais o amore também não sei mais nada.Amei os homens do diasuaves e decentes esportistas.Amei os homens da noitepoetas melancólicos, tomistas,críticos de arte e os nada.

Agora quero um amigo.E nesta noite sem fimconfiar-lhe o meu desejoo meu gesto e a lua nova.

Os que estão perto de mimnão me vêem... Estende a tua mão.Ficaremos sós e olhos abertospara a imensidão do nada.

III

Haste pensativa e débilda rosa que tenho na memória.Te pareces comigo na efêmera vontadede ser mais vida e menos morte.Só nos falta o amor. Grande. Sem mácula.O poema infinito para mim,a eternidade para tua rosa.

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IV

a Vinícius de Moraes

Na hora da minha morteestarão ao meu lado mais homensinfinitamente mais homens que mulheres.(Porque fui mais amante que amiga)Sem dúvida dirão coisas que não fui.Ou então com grande generosidade:Não era mau poeta a pequena Hilda.

Terei rosas no corpo, nas mãos, nos pés.Sei disso porque fiz um pedido piegasà minha mãe: “Quero ter rosas comigona hora da minha morte.”

E haverá rosas.São todos tão delicadostão delicados...

Na hora da minha morteestarão ao meu lado mais homensinfinitamente mais homens que mulheres.E um deles dirá um poema sinistroa jeito de balada em tom menor...

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Tem tanto medo da terraa moça que hoje se enterra.Fez poema, fez sonetomuito mais meu do que dela.Lá, lá, ri, lá, lá, lá, lá.

V

Maior que o meu sonho de viagemé o amor que te tenho muito amado.Maior que o meu cantosó o filho nascido da ternurae este... existe em mim. Perplexoe esplendoroso filho de amor.

VI

Nada mais tenhona memóriarosa dos ventostransitóriaonde estarásdepois de todoo meu tormento...

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Hás de ficartão só, tão sóno pensamentoe depois deleo que restarsal e areiaesquecimentohá de voltarpara o teu sonosecular.

Rosa dos ventoseu te imaginoviagem, navio.Mas o que háé o sofrimentode ver o rioo rio, o rio(pobre de mim)e nunca o mar...

VII

Inadvertida rosa.Quis avisar-tedo roteiro sem fimdas urzes e da ventania.(Já era tarde quando

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Obra poética reunida Hilda Hilst

pensei em procurar-te.De nada adiantaria)

Deixaste a terraque te alimentavae o lírio. Te lembras?Aquele que aos teus pés crescia.Nada somos sem ti.No entanto, espera.Na tua voltadeixarão que eu faleporque sou poeta. E te direi...

estrela inéditana vastíssima escuridãoque se contorna. Surgiste.

VIII

BALADA PRÉ-NUPCIAL

Menina, nunca na vidavi coisa igual a tua bocanem nunca meus olhos viramteu corpo e tua carne moça.Deixa que eu sinta a belezade tuas coisas escondidas.

E o cravo desabrochado

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se expandia, se expandia...

Deixa meu peito ondular-senas tuas pernas de repentepermitidas. E prometo...prometo mares e mundose te imagino subindoas escadas de uma igrejanós dois as mãos enlaçadasnossa culpa redimida.Deixa menina que eu digaaquela palavra loucano teu ouvido... Não ouças!mas deixa, porque no amoras palavras se transformame têm um outro sentido.Me abraça e morre comigo.

E as duas coisas se chocaramna mesma doida investida...Soluço que não se ouvia(espaçado e comovido)e o cravo que se expandiafoi se abrindo, foi se abrindoem choro, promessa e dor,florindo o filho do medomuito mais medo que amor.

IX

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Amado, não tão meumas tão amado e em noitese transformando. Tua voz

rumor de coisas pressagas.

Amo-te tanto. Poetajá não sou. Nem mesmo amante.Na minha estrela sem luz

existe um medo maiorque o de perde-te. Te amarpressentido e renascendo

áspera rocha... fonte...

X

CANCÃOZINHA TRISTE

E fiz de tudo...Fui autêntica, durante algum tempo.Fui inquietude e fragilidade.Brilhei em roda de amigos.Pratiquei o esporte com violênciae uma vez (trágica melancolia!)nadei com aparente desenvoltura(peito arfante e dilacerado)

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mil metros na butterfly...Fui amante, amiga, irmã,sorri quando ele me disse coisas amargas...

E nada o comove.Nada o espanta.E ele mentee mente amorcomo as crianças mentem.

XI

Tenho penadas mulheres que riem com os braçose choram de mentira para os homens.E descobrem o seio antes do convitee morrem no prazer... olhos fechados.

Tenho penado poeta feito para só ser pai... e ser poeta.E daqueles que dormem sobre o papelà espera do vocábuloe dos que fazem filhos por acasoe dos doidos e do cão que passa

e de mim... que espero a mortena confusão e no medo.

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XII

Serena facedistanciandoo meu desejo.Tão longe estásque já nem seio que te assombraalga ou areiamar ou lampejo

de desencanto.

A minha bocaemudeceu.Se retornandonão a encontrarespensa no amorchama e soluçoque se perdeu.

Solto os cabelose fico à espera.

Mas sobre mimcomo na mortecrescem as heras.

XIII

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Amadíssimo, não fales.A palavra dos homens desencanta.

Antes os teus olhos de pratana noite espessa do teu rosto.Antes o teu gesto de amor

espera e infinito e de murmúrio,água escorrendo da fonte, espuma de mar.

Depois, descansarás em meu peitoas tuas mãos de sol. O vento de amanhãsepultará em meu ventrecálido como areia, fecundo como a mar,

a semente da vida.

Ouve: Só o prantogrita agora em meus ouvidos.

XIV

BALADA DO FESTIVAL

Na verdade apareceuvindo de terras distantesum homem quase poetaque me amou e que se deu

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Obra poética reunida Hilda Hilst

a mim e a outras também.E dizia ao telefonecoisas tão ternas, tão tudo,que só de ouvi-lo, e esperá-lomuita mulher se perdeu.Muita mulher... também eu.Amei-o naquela pressade horas marcadas e hotéis...dentro de mim a promessade amá-lo ainda que fossena velha China, nos mares,dentro de algum avião.E quando ele me chamavaeu toda vagotoniaia e vinha e pressentiao homem que me fugiade passaporte na mão.

Agora estou tão cansadaperdi-me na confusãode ser amante a amada.Se ainda vou procurá-loem Paris ou em Vienanão me perguntem, amigos,que eu faço um olhar tão tristetão triste de fazer pena...Na verdade apareceuvindo de terras distantesum homem asas e Orfeu.

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XV

Haverá sempre o medoe o escondido prantono meu canto de amor.

Dos homens e da mortemais noite que aurorasem verso e pensamentoconcebi. Nas criançasamei os olhos e o risoo clamor sem ouvidoo medo, o medo, o medo.

Se a fantasiaaproximar de mima tua presença,fica. A teu lado, serei amante sem desejo:Pássaro sem asa.Submerso leito.

XVI

Há uma paisagem sem cor dentro de mim.Vejo-a tão perto e tão esplêndida...súbita luz, nave dourada, espelho,

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e transformando-se em névoaintacta submerge.

Sem dúvida, meu amigo, a ilhaseria o nosso porto.E depois dela viria o monólogoe a certeza das coisas impossíveis.

XVII

a Luiz Hilst

O poema se desfaz. Bem sei.E aos poucos morre.Se o gênio do poeta conseguissea palavra com sabor de eternidade.Dizer da amiga que se foie abria os olhos noturnos sem vontade.Dizer do amante alguma coisa a maisalém da espera.Dizer da mãe, ó amadíssima,tudo o que a boca não dize que se perde.

Tão sós estão os homens e a palavra.Por que não haverá um outro mundosem ruído nem boca,mudo, esplendidamente mudo?

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XVIII

BALADA DO CONDENADO À MORTE

Nossa Senhora das Trevas!Nossa Senhora de Tudo!Presos na minha gargantaa palavra e o soluço.Mais um minuto, depoisa dor, o vazio, o escuro.Tenho medo, minha mãe...olhar de pedra dos homensdescontrole de meus braçosmeu peito que esmaga e arde.Nossa Senhora das Trevas!- Ah, meu filho, agora é tarde...

- Um dia me leva, pai,pra ver o mar e o navio?Meu filho triste e pequeno,tem pena de mim, perdoaas coisas que nunca dei.ah, minha mãe, sinto o gostode sangue a minha bocae perto de mim a morteé silêncio, desespero,e se não fosse verdade...

Tenho medo, tenho medo...

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Meu peito me esmaga e ardeNossa Senhora das Trevas!- Ah, meu filho, agora é tarde...Nossa Senhora de Tudo!Senhora dos Condenados!

XIX

Nada de novo tenho a dizer-vos.E se tivesse também não vos diria.Os versos são prodígios escondidosda minha fantasia.Hão de ficar assim. Solenes. Mudos.E por que não?

Quem alguma vez os leucom o mesmo amorcom que os escrevi

e na mesma solidão...

XX

Nós, poetas e amantes,o que sabemos do amor?temos o espanto na retinadiante da morte e da beleza.Somos humanos e frágeis

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Obra poética reunida Hilda Hilst

mas antes de tudo, sós.

Somos inimigos.Inimigos com muralhasde sombra sobre os ombros.E sonhamos. As vezesdamos as mãos àquelesque estão chorando.(os que nunca choraram por nós)

Ah, meus irmãos e irmãs...Ai daqueles que nos amame que por amor de nós se perdem.Ah, pudéssemos amar um homemou uma mulher ou uma coisa...Mas diante de nós, o tempose consome, desaparece e não pára.

Ouvi: Que vossos olhos se inundemde pranto e água de todo o mundo!Somos humanos e frágeismas antes de tudo, sós.

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Balada de Alzira (1951)

A meu pai

Somos iguais à morte. Ignorados e puros. E bem

depois (o cansaço brotando nas asas) seremos

pássaros à procura de um deus.

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I

Eu cantarei os humildesos de língua travadae olhos cegosaqueles a quem o amor feriusem derrubar.

Cantarei o gestodos que pedem e não alcançama resignação dos santoso sorriso velado e inútildos homens conformados.

Eu cantarei os humildeso homem sem amigoso amante sem esperançade retorno.

Cantarei o gritode escuta universale de mistério nunca desvendado.Serei o caminhoa boca abertaos braços em cruza forma.

Para mimvirão os homens desconhecidos.

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II

“De tudo ficou um poucoDo meu medo. Do teu asco.”Carlos Drummond de Andrade

O que ficou de mimalém de eu mesmanão o sei.Nem o digas às criançasporque no que ficoua palavra de amorestá partida

imperceptível sombrade flor no ramo frágil.Nem o diga aos homensEra o rioe antes do rio havia areia.Era praiae depois da praia havia o mar.Era amigoah! e se tivesse existidoquem sabe ficava eterno.

Nada ficou de mimalém de eu mesma.Tênue vontade de poesiae mesmo isso

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Obra poética reunida Hilda Hilst

imperceptível sombrade flor no ramo frágil.

III

Naquele momentoo riso acaboue veio o espantoe do meu choroo desentendimentoe das mãos unidasveio o temor dos dedose da vontade de vidaveio o medo.

Naquele momentoveio de ti o silêncioe o pranto de todos os homensbrotou nos teus olhos translúcidose os meus se afastaram dos teuse dos braços compridosveio o curto adeus.

Naquele momentoo mundo paroue das distânciasvieram águase o barulho do mar.

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E do amorveio o grande sofrimento.

E nada restoudas infinitas coisas pressentidasdas promessas em chama.Nada.

IV

Ah! Se ao menos em tieu não me dissolvesse.E se ao menos contigoficar pouco de mimlembrança de algum diaou meu nome guardarum momento de sol...

Se ao menos existisseem nós a eternidade.

V

Acreditariamse eu dissesse aos homensque nascemos

tristemente humanos

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e morremos flor?

Acreditariamque a presença é ausentequando o olhar se perdenas alturas?

Acreditariamser a nossa vidavontade consciente de não ser?

E ser luz e estrelaágua, flor.

VI

a um amigo

Estás ausente.Mas há no amorcomo que eternasobrevivência.É como a rosaque não se cortae nem se colhepela manhã.

Estás ausente.

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Ams este amoré bem aquelefeito de estrelasque persistiramaté que o diase aproximasse.

Estás ausente.Vivo e perenenestes abismosdo pensamento.

VII

Restou um nome de brumano meu eterno cansaço.

Restou um tédio cinzano meu todo silêncio.

Tanta tristeza no meu sono imenso...

VIIIà Gisela

I

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O poema não vem.E quando vem é falho,impreciso.Este canto sem nomeé um apeloaos homens à escutae às mulheres.

Há tempos que sua ausênciaronda os caminhos do sonoenvolve-se igual à redeno mistério de minha vida.

Boiavam antes os peixesà tona do pensamento.

Havia estrelas do marno fundo dos castiçais.

II

Manhã raiada ou soluço perdido na madrugada,transformado em folha, fruto,brotando igual à palmeiraem terra sem tradiçãomesmo assim,tragam esta poesiaque é preciso falar

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da amiga que se indo emborademora até voltar.E deste amor de pensá-lasem revê-lanascerá o meu cantomais sentidoque o cantar dos amantessatisfeitos.

III

Homens distantes do mundoscumbidos pelo sonho,dia virá em que as nausestarão sem nenhum portoe as velas sem direção.Nem haverá uma estrelabuscando o brilho de outrorae sem ela algum poetafazendo o último apelo:

- Procurem o poema virgem.Manhã raiada ou soluçoperdido na madrugada...IX

POEMA DO FIM

A morte surgiu

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intocável e pura.Depois, teu corpo se alongouinteiro sobre as águas.Dos teus dedos compridosestouraram florese ficaram árvoresao sol.

Escorreguei meus braçosno teu peito sem queixae cobri meu corpocom teu corpo de espuma.

.................................................

Ainda ontemos homens colheram rosasque nasceram de nós.

X

Brilhou um medo incontidona tua face de luz.E teu amor resguardou-see silenciou.

Quis esconder os meus dedosnos teus cabelos de mágoamas a tua mágoa era grande

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para fugir no meu gesto.

Agora o amor é inútile inútil o meu consolo.Estamos sós.

Entre o teu amore o meu afago,aquele triste mundo de certezas.

XI

Amado, quando morreresmil estrelas cor de sanguevirão cobrir-te o peito.Uma delas ficaráperdida por entre os dedos.À outra tu contaráso livro que não fizestereza que não aprendestee vontade que tivestede ver amigo chorandochorando por causa tua.

E todos hão de notarágua clara nos teus olhose sombra nos teus cabelose pena que vai crescer

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no teu coração de luto.

Pena desses que ficaramconsumidos na incertezaou pena daquela amanteque nunca soube dizero que sonhamos ouvir.

Os homens hão de chorarno teu momento de morte.Porque dirás às estrelastodas as coisas caladasque só a mim revelaste.

XII

O teu gesto de alegrianunca será para mim.

O teu conflito noturnoeste simpousará na minha face.

Existe sempre o marsepultando pássarosrenovando soluçosrompendo gestos.Existe sempre uma partida

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começando em titomando formae sumindo contigo.

Existe sempre um amigo perdidoum encontro desfeitoe ameaços de pranto na retina.

Existe um canto de glóriainiciado nuncamas guardado no meu peitodissolvendo a memória.

E além da canção incontidado teu amor ausentealém da irrevelada amarguradesta esperaexiste sempre a terradesfazendoas vontades primeiras de Existir.

XIV

Há no meu mundogesto de lutoque me adivinhamuro de pedrase intercalandono meu caminho

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Obra poética reunida Hilda Hilst

como uma sombrade amarguratomando formaquase serenae inconsolávelde criatura.

Há o desconsolopermanecendonos meus prelúdiosde alegria.Só tenho a timas tão distanteque não me ouves.Chamo e perguntose não me queresmas o teu gritode assentimentochega cansadoao meu ouvidoe assim cansadodesaparececomo um lamento.

Meu muito amadobem o quiseraque esta vontadeque se avolumano pensamentose fosse embora.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Bem o quisera.

XV

a Carlos Drummond de Andrade

A rosa do amorperdi-as nas águas.

Manchei meus dedos de lutanaquela haste de espinho.E no entanto a perdi.Os tristes me perguntaramse ela foi vida p’ra mim.Os doidos nada disserampois sabiam que até hojeos homensdela jamais se apossaram.

Ficou um resto de queixana minha boca oprimida.Ficou gemido de mortena mão que a deixou cair.

A rosa do amorperdi-as nas águas.Depois me perdino coração de amigos.

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XVI

“O que vemos das coisas são as coisas.” Fernando Pessoa

As coisas não existem.O que existe é a idéiamelancólica e suave

que fazemos das coisas.

A mesa de escrever é feita de amore de submissão.No entantoninguém a vêcomo eu a vejo.Para os homensé feita de madeirae coberta de tinta.Para mim tambémmas a madeirasomente lhe protege o interiore o interior é humano.

OS livros são criaturas.Cada página um ano de vida,cada leitura um pouco de alegria

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e esta alegriaé igual ao consolo dos homensquando permanecemos inquietosem resposta ãs suas inquietudes.

As coisas não existem.A idéia, sim.

A idéia é infinitaigual so sonho das crianças.

XVII

BALADA DE ALZIRA

O homem que não foi meuum dia será de Alzira.E passará os seus dedossobre suas pernas de virgeme contará o segredodaquele olhar de menina.Amado, bem o sabiaque os meus delírios noturnosnunca te resguardariamdo sabor dos frutos novos.Os homens querem Alzirae os escondidos dos marese as conchas que não se lançamàs vontades das marés.

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Há muito que pressentiateu gesto de retirada(como a noite espera o diamergulhada em silêncio)Alzira, menina purateu corpo feito de líriosassustava aquele meumaduro e já sem vontadede lutas e de emboscadas.

................................................

O homem que não foi meu(porque me deu estertoresque à outra seriam dados)em tardes de fevereiroAlzira levou pr’a longe.

.................................................

Aquela menina puraficou pétala fendidaflor com mil olhos de águaespantados e noturnos.

Alzira soluço brandoe face tão misteriosaque pena tenho guardadapor te saber corrompida.

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Presságio (1950)

Poemas Primeiros

À minha mãe

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Voltando (porque tua volta sinto-a numpresságio) acenderei luzes na minha porta efalaremos só o necessário.

Terás pão e vinho sobre a mesa.

Virás acabrunhado (quem sabe) como ofilho que retorna.

Nesse dia, a lamparina de teu quartodeixarás que fique acesa a noite inteira.

O amor sobrevive.

E seremos talvez amor e morte ao mesmotempo.

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I

Stela, me perguntaramse permaneces no tempo.Se teu rosto de corale teus cabelos de pedraficarão indefinidosno espaço, pedindo soll.

Ainda ontem te vi. Olhar quase estagnado.Descias azuis escadascom aquele teu chale verde.Aquele chale de Stela parecia feito d’água:verde aguado, verde aguado.

Debaixo dos teus dois braçostrazias rosas molhadas.

Aquelas rosas de Stelae Stela me perguntandose a morte é cousa que passa.

Stela, que desconsolo.Não sabes onde terminaa aurora de tua presença.

No tempo, se é que existes,só ficarás peregrina.

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Como pesa: Stela e eu.

II

Me mataria em marçose te assemelhassesàs cousas perecíveis.Mas não. Foste quase exato:doçura, mansidão, amor, amigo.

Me mataria em marçose não fosse a saudade de tie a incerteza de descanso.Se só eu sobrevivesse quase nula,inerte como o silêncio:o verdadeiro silêncio de catedral vazia,sem santo, sem altar. Só eu mesma.

E se não fosse verão, e se não fosse o medo da sombra,e o medo da campa na escuridão,o medo de que por sobre mimsurgissem plantas e enterrassemsuas raízes nos meus dedos.

Me mataria em marçose o medo fosse amor.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Se março, junho.

III

Gostaria de encontrar-te.

Falar das cousasque já estão perdidas.

Tuas mãos trementesse desmanchariamna sonoridadedos meus ditos.

Faria de teus olhosluz,de tuda bocaum eco.

Nos teus ouvidoseu falaria de amigos.

Quem sabe se amarias escutar-me.

IV

Brotaram floresnos meus pés.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E o quotidianona minha vidacomplicou-se.

Diferença tristeaborrecendo o andarde minhas horas.Rosa Mariatem flores na cabeça.Maria Rosa as leva no vestido.E esse nascer de floresnos meus pés,atrai olhares de espanto.

Ainda ontemme vieram dizerse eu as vendia.Meus pés iriamcom flores andarsobre o teu silêncio.Tua vidano meu caminho,na caminhada grotescadaqueles meus pés floridos.

De tanto serem zombadasmorreram adolescentes.Pobres pés, pobres flores.Murcharam ontem,hoje secaram.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

E o quotidianona minha vidacomplicou-se.

V

Amargura no diaamargura nas horas,amargura no céudepois da chuva,amargura nas tuas mãos

amargura em todos os teus gestos.

Só não existe amarguraonde não existe o ser.

Estão sendo atropeladosem seus caminhos,os que nada mais têm a encontrar.Os que sentiram amargura de felescorrendo da boca,os que tiveram os lábiosmacerados de amor.Estão terrivelmente sozinhosos doidos, os trsites, os poetas.

Só não morro de amargura

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Obra poética reunida Hilda Hilst

porque nem mais morrer eu sei.

VI

Água esparramada em cristal,buraco de concha,segredarei em teus ouvidosos meus tromentos.Apareceu qualquer cousaem minha vida toda cinza,embaçada, como águaesparramada em cristal.Ritmo coloridodos meus dias de espera,duas, três, quatro horas,e os teus ouvidoseram buracos de concha,retorcidosno desespero de não querer ouvir.

Me fizeram de pedraquando eu queriaser feita de amor.

VII

Maria anda como eu:Impossibilitada de fazer

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Obra poética reunida Hilda Hilst

tudo o que quer.

Tem mãos amarradas,ar de doente, olhar de demente,cansada.

Maria vai acabar como eu:covarde nas decisões,amante das cousas indefinidase querendo compreender suicidas.

Maria vai acabar assim sem rumo,andando por aí,fazendo versose tendo acessosnostálgicos.

Maria vai acabarbem tristemente.De qualquer geito,lendo jornais,tendo maridoindefinido.

(Não sei poeque Mariaquer compreendermuito, demais,a vida do suicida.E Maria vai acabarse fartando de vida.)

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Obra poética reunida Hilda Hilst

A vida, coitada,é camarada, gosta de Maria,quer fazer Maria viver mais,porque Maria é desgraçada.Quer deixá-la para o fim,assim à mostra,e eu francamente não entendoporque Maria não gostada vida.

VIII

Canção do mundoperdida na tua boca.

Canção das mãosque ficaram na minha cabeça.

Eram tuas e pareciam asas.

Pareciam asasque há muito quisessem repousar.

Canção indefinidafeita na solidãode todos os solitários.

Os homens de bem

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Obra poética reunida Hilda Hilst

me perguntaramo que foi feito da vida.

Ela está parada.Angustiadamente parada.

O que foi feitoda ternura dos que amaram...

Ficou na miha cabeça,nas tuas mãos que pareciam asas.Que pareciam asas.

IX

Colapso hibernaldas cousas ausentes.Desfila diante de mimo teu olhar parado.NA minha frentehá figuras de mortostecendo roupas brancas,e na tua vidahá qualquer cousa de tristeque não foi contado.

Coragem de viver os diassem falar de loucosquando há qualquer louco

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no infinito,pedindo uma lembrançae contei os seus dias de vidanos meus sonhos.

Existe um deus qualquernas minhas entranhas.

Pobre loucuraatrofiando o amor da amada.Teu pobre olharatrofiou minha vida inteira.

X

Olhamos eternamentepara as estrelascomo mendigosque eternamenteolham para as mãos.

E imaginamoscousas absurdasde realização.Cousas que não existeme cujo valoré o de consistiremparte da ilusão.

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E olhamos eternamentepara as estrelasporque parecem diferentes.E quando agrupadaseu as revejo individualizadas.Estrelas... só.Quem sabe se daquela imensidãoelas sofrem o mal dissolvente,passivo,mas dissolvente ainda: solidão.

Brilham para o mundo.No entanto estão sozinhasna lúgubre fantasia de pontas.

Nunca, meditem,nunca as encontraremospois elas olhamigualmente para nóse nos desejamporque estão sós.

XI

Quando terra e floreseu sentir sobre o meu corpo,gostaria de ter ao meu lado tuas mãos.e depois, guardar meus olhos dentro delas.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XII

Dia doze... e eu não suportareio estado normal das cousas.O ano que vem, não vou desejarfelicidades a ninguém.

Nem bom natal, nem boas entradas.

Meus amigos sabem de tudo o que eu sei.E continuam a viver sem iterrupção, apressadamente como no ato do amor.São doidos e não percebem que amanhãCristina não virá.Que amanhã Cristina vai morrer porque ama a vida.

Amanhã serei corajosamente Cristina.Eu, amando todos os que sofrem.Eu... essência.

Mas os meus amigos, coitados,não percebem.Fazem filhos nascer, fazem tragédia.Não sabem que o amor não é amore a natureza é um mito.

Não sabem de nada os meus amigos.E não vou explicar

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Obra poética reunida Hilda Hilst

porque podem ficar sentidos.São puros, vão morrer como anjos.Vão morrer sem nada saberdaqueles dias perdidos.

Vão morrer sem saber que estão morrendo.

XIII

Me falaram de um deus.Eu chorava na quietudedos dias sós.

A irmã morta sorriao riso pálido dos santos.

Me falaram de um deus.Deus em branco.Deus que faz de flores, pedras.E de pedras, compreensão.

Deus amargurado.Chora e gemena quietude dos dias sós.

Consolo.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

XIV

Fui monjavestida de negroem labirinto azul.

Antes do Serhavia um homemconscientedestruindoo lirismodescuidadodas madrugadas.

Estava presentenas conversas dos bares- solitárias histórias.Estava presentena fusão dos homens medíocrese dos homens sem cor.

Em azul e negroeu vi o esboçode um caso triste,aquele doidoprocurando as mãos.As mãos que deixarasobre alguma mesade mármore azuladoem algum labirinto azul.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Andei tanto por corredores vaziosque nas minhas chagasnão existem pés.Inconsciente monja vestida de negro,teus cabelos eram feitos de conchas,teu véu de redes do mar.Entre os dedos tinhas contas coloridas.Mas, havia um homemconscientedestruindo o lirismodas tua madrugadas.

Morreu o mundo das monjas.Morreu o mundo das mãos.Sou doida desfiguradaprocurando mãosmergulhadas em azul.

Sou quase mortano descanso estérilda cor negra.

XV

À Gisa

Amiga, muito amiga.

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Tristemente pensei nesses teus olhos tão tristes.Os homens não mais te compreendem.A vida, tu mesma compreendeste muito.O teu grande desejo de cousas novasdesapareceu no rol das cousas velhas.O teu amor por ele transformou-seem amor maior: amor por tudo o que se extingue.Nunca foste tão verdadeiracomo nestes últimos dias de corajosa submissão.Se a morte amedronta,acaba placidamente, sem dizer adeusaos teus amigos, acaba sem preparação para o final,acaba sem melancolia, acaba sem dó.

E depois... acaba assim: na convicçãode que se não findasses por resolução,a vida faria de ti, ó doce amiga,refúgio dos que não mais se entusiasmam,apoio dos homens solitários.

Hoje e só hoje, pensa com alegria no amor,pensa que as árvores estão todas em flor: azuis,amarelas, vermelhas. Pensa que vais acabarno desespero de um dia de sol...Pensa naqueles que não são e nunca hão de sero que és agora.

Acaba depois sem um soluço, sem tragédia,sem dizer adeus aos teus amigos,acaba... só.

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XVI

Tenho preguiçapelos filhos que vão nascer.

Teremos que explicar tanta cousa a tantos deles.Um dia hão de me perguntartudo o que perguntei:Mãe, porque não possover Augusto quando quero?Mãe, andei lendo muito esses diase estou quase chegandoa encontrar o que queria.

Inutilidade das palavras.

Tenho preguiça,tanta preguiçapelos filhos que vão nascer.Dez, vinte, trinta anose estarão procurando alguma cousa.Nunca se lembrarãodaqueles que já morrerame procuram tanto.Vão custar (ó deuses)a entender aquelesque se mataram.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Os filhos que vão nascer,coitados!Hão de pensar que são elesos destinados.Hão de pensar que vocênunca passou o que eles estão passando.

Os filhos que vão nascer...

Insatisfeitos.Incompreendidos.

XVII

Todos irão sempre contra tiporque tens pureza.

Porque o agitado de tuas mãosé quase nostálgico.

Porque teus olhosficarão abertospara quem os viu uma única vez.

Todos irão sempre contra tiporque hás de querer

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Obra poética reunida Hilda Hilst

um mundo novo e diferente.Porque és estranhoe diferente para o nosso mundo.

És quase um loucoporque não dás atençãoà toda gente.

Dirão que és poeta.Porque a poesia aparece nos teus gestoscomo aparece fé na oração de um crente.Amaste quase todas as mulheres.Mas o amor agora é tão difícil.

Não existes para mim.Mas agitado, febril,quase doente, és vivo...

Vivo demais para viver conosco.

XVIII

Ah, ternura dos diasque prometiam alguma cousa.Ah, noites que esperavam vida.

Disseste que o mundodificulta o caminho dos bonse que pesa tanto nos teus ombros

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o estandarte do amor.

Tua vida consumiu-senum sonho adolescente.Teus olhos há muitonão dizem nadae simulam mistérioquando sorris.

Sabes alguma cousaalém dos homens.

Soubesses ao menosa eterna escuridãodos que procuram luz.

XIX

As mães não querem mais filhos poetas.

A esterilidade dos poemas.A vida velha que vivemos.Os homens que nos esperam sem versos.O amor que não chega.As horas que não dormimos.A ilusão que não temos.

As mães não querem mais filhos poetas.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

Deram o gritodesesperadodas mães do mundo.

XX

Antes soubesse euo que fazer com estrelas na mão.Se dilacerar-lhes a pontaou simplesmente não tocá-las.Se estão perto cegam meus olhos.Se estão longe as desejo.

Antes soubesse euo que fazer com estrelas na mão.

XXI

Estou viva.Mas a morte é música.A vida, dissonância.Minha alegria é comofim de outono porquetive nas mãos ainda floresmas flores estriadas de sangue.

Há cristais coloridosnos teus olhos.

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Vida viva nos teus dedos.

Estou morta.Mas a morte é amor.

Não fiz o crime dos filhosmas sonhei bonecos quebradossonhei bonecos chorando.

Alguns dias maise serei música.Serás ao meu ladoa nota dissonante.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

BIBLIOGRAFIA DE HILDA HILST

A) POESIA

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Anhambi, 1959.6) Ode fragmentária. São Paulo, Anhambi, 1961.7) Sete cantos do poeta para o anjo (ilustr. de Wesley Duke Lee). São

Paulo, Massao Ohno, 1962.8) Poesia (1959/1967). São Paulo, Editora Sal, 1967.9) Júbilo memória noviciado da paixão (capa e diagramação de

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10) Da morte. Odes mínimas. São Paulo, Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1980.

11) Poesia (1959/1979). São Paulo, Ed. Quíron/INL, 1980.12) Poemas malditos gozosos e devotos. São Paulo, Massao

Ohno, 1984.13) Cantares de perda e predileção (capa de Olga Bilenky).

Massao Ohno/M. Lydia Pires e Albuquerque, 1983.

14) Sobre a tua grande face. São Paulo, Massao Ohno, 1986.15) Alcoólicas. São Paulo, Maison des vins, 1990.16) Amavisse. São Paulo, Massao Ohno, 1989.17) Do desejo. Campinas, Pontes, 1992. (inéditos “Do desejo” e

“Da noite” e republicação de Amavisse, Sobre tua grande face e Alcoólicas)

18) Bufólicas (desenhos de Jaguar). São Paulo, Massao Ohno, 1992. 19) Cantares do Sem-Nome e de partidas. São Paulo, Massao Ohno, 1995.

B) FICÇÃO

20) Fluxofloema. São Paulo, Perspectiva, 1970.21) Qadós (capa de Maria Bonomi) São Paulo, Edart, 1973.

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Obra poética reunida Hilda Hilst

22) Ficções (capa de Mora Fuentes). São Paulo, Quíron, 1977.23) Tu não te moves de ti. São Paulo, Cultura, 1980.24) A obscena senhora D (capa de Mora Fuentes). São Paulo,

Massao Ohno, 1982.25) Com os meus olhos de cão e outras novelas. São Paulo,

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Pontes, 1993. 27) Estar sendo. ter sido. São Paulo, Ed. Nanquim, 1997. (A SAIR)

TRILOGIA ERÓTICA

28) Caderno rosa de Lori Lamby (capa e ilustr. de Millôr Fernades). São Paulo, Massao Ohno, 1990.

29) Contos d’escárnio (capa de Pinky Wainer). Textos grotescos. São Paulo, Siciliano, 1990.

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