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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v. 1, Curitiba: Artembap, 2014. 97 PENALVA, UM PÓS-MODERNISTA NA MÚSICA POPULAR: ANÁLISE DO ARRANJO DA CANÇÃO CARINHOSO Eduardo Fabrício Frigatti 1 [email protected] Resumo O presente artigo discute os procedimentos composicionais empregados por José Penalva, na elaboração de seu arranjo da canção Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Para tanto, faz uso dos conceitos de forma clássica desenvolvidos por Willian Caplin a fim de compreender como elementos tonais livres se associam às características perceptivas das funções formais para garantir inteligibilidade da obra. Palavras-chave: Pixinguinha; José Penalva; Funções formais; Arranjo PENALVA, A POSTMODERN IN POPULAR MUSIC: ANALYSIS OF THE ARRANGEMENT OF THE SONG CARINHOSO Abstract This paper studies the procedures used by the Brazilian composer José Penalva for elaboration of his arrangement of the song Carinhoso, by Pixinguinha and Braguinha. He took into account the concepts of classical form developed by Willian Caplin, in order to understand how free tonal elements could be associated with perceptual features of formal functions to ensure the work’s intelligibility. Keywords: Pixinguinha; José Penalva; Formal functions; Arrangement 1 Compositor e violonista, é formado em musicoterapia pela Faculdade de Artes do Paraná (Fap) e licenciado em Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Atualmente, com orientação do Prof. Dr. Maurício Dottori, cursa o Mestrado em Música do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná.
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Feb 04, 2018

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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v. 1,

Curitiba: Artembap, 2014.

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PENALVA, UM PÓS-MODERNISTA NA MÚSICA POPULAR: ANÁLISE DO ARRANJO DA CANÇÃO CARINHOSO

Eduardo Fabrício Frigatti1

[email protected]

Resumo O presente artigo discute os procedimentos composicionais empregados por José Penalva, na elaboração de seu arranjo da canção Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. Para tanto, faz uso dos conceitos de forma clássica desenvolvidos por Willian Caplin a fim de compreender como elementos tonais livres se associam às características perceptivas das funções formais para garantir inteligibilidade da obra. Palavras-chave: Pixinguinha; José Penalva; Funções formais; Arranjo

PENALVA, A POSTMODERN IN POPULAR MUSIC: ANALYSIS OF THE ARRANGEMENT OF THE SONG CARINHOSO

Abstract This paper studies the procedures used by the Brazilian composer José Penalva for elaboration of his arrangement of the song Carinhoso, by Pixinguinha and Braguinha. He took into account the concepts of classical form developed by Willian Caplin, in order to understand how free tonal elements could be associated with perceptual features of formal functions to ensure the work’s intelligibility. Keywords: Pixinguinha; José Penalva; Formal functions; Arrangement

1 Compositor e violonista, é formado em musicoterapia pela Faculdade de Artes do Paraná (Fap) e licenciado

em Música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Atualmente, com orientação do Prof. Dr. Maurício Dottori, cursa o Mestrado em Música do programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná.

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A década de oitenta marca uma mudança na escrita do compositor José Penalva em

direção às premissas pós-modernas2, sendo que, neste período, a maior parte de sua

produção foi destinada para coro a cappella3. Dentre estas, algumas são arranjos de músicas

do cancioneiro popular brasileiro, e utilizam procedimentos composicionais da música de

vanguarda orientados pelos ideais estéticos daquele momento. No Catálogo Comentado da

Obra de José Penalva – organizado pela Dra. Elisabeth Seraphim Prosser com auxílio do

próprio compositor –, o arranjo de Carinhoso, de 1983, é descrito como tonalmente livre

sendo composto por uma “melodia tonal com elaboração harmonicamente livre. Acentuada

presença de acordes de sétima, nona, décima-primeira e décima-terceira justapostos e sem

resolução. Cromatismo, acordes com notas agregadas. Tratamento polifônico imitativo”

(PROSSER, 2000. p. 161).

Em um gênero inerentemente tonal como o choro, de que maneira os elementos

acima podem ser utilizados sem prejuízo à inteligibilidade formal ou em favor dela? Sem

dúvida a melodia – dada de antemão – deve ajudar o ouvinte a compreender a peça, mas,

em seu arranjo, Penalva respeita as características perceptivas próprias da fraseologia do

choro?

O choro surgiu em festas promovidas por funcionários públicos que compunham a

classe média carioca no final do século XIX e início do século XX. Tais festas de salão eram

animadas com polcas, schottiches, mazurcas, valsas e quadrilhas (TINHORÃO, 1997). Os

músicos populares tocavam essas danças europeias com sotaque exacerbadamente

sentimental ligado à música portuguesa e à malícia rítmica herdada da cultura africana. A

2 Em 1972, o compositor José Penalva participou de um evento, na cidade de Roma, que discutia a vanguarda

dos anos cinquenta. Segundo ele, nesse encontro, que contava com a presença de compositores como J. Cage, P. Boulez e L. Berio, chegou-se à conclusão de que havia um hermetismo muito grande na música e que essa era a principal causa da sua falta de aceitação e compreensão por parte do público (PENALVA apud PROSSER, 2000). Buscando uma aproximação, muitos compositores começaram a rever sua escrita e abandonaram as técnicas antes empregadas ou reincorporaram elementos da música tonal, modal, popular entre outros procedimentos. Essa nova produção musical – de caráter múltiplo, pluralista e híbrido – passou a ser denominada de pós-moderna (BUCKNIX, 1998; SALLES, 2003). 3 Essas peças podem ser dividas em dois grupos: de caráter puramente estético, em que o compositor é “ele

mesmo” e escreve com maior liberdade, usando várias técnicas distintas; e outra de caráter estético e de entretenimento, na qual o compositor aproveita elementos folclóricos ou populares e faz uso moderado de procedimentos legados da fase anterior. Em ambos casos, o fim maior do trabalho composicional é a busca de maior expressividade tentado uma maior comunicação com o ouvinte (PROSSER, 2000).

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maneira ‘chorada’ com que os músicos ‘amoleciam’ as danças é uma das prováveis origens

para a ‘choro’ (CAZES, 2005).

A partir do século XVIII, muitas danças de salão das cortes europeias adotaram a

forma rondó. Posteriormente, tal estrutura formal se tornaria uma das características mais

marcantes do choro (ALMADA, 2006, p. 9).

O rondó da polca-choro cristalizou-se numa forma-padrão que consiste, geralmente, em três partes com 16 compassos cada. A primeira (ou parte A) é a principal [...]. É apresentada quatro vezes durante a execução de um choro: as duas primeiras em ritornelo, na abertura, as duas outras intercalando as entradas das partes B e C (que também são apresentadas com as suas respectivas repetições [...]. Temática e motivicamente falando, as três partes, na maioria das vezes, têm grande autonomia, soando como se fossem três choros independentes, sem fortes ligações de parentesco). Na verdade, os principais elementos de coesão entre as partes (além da estrutura formal recorrente) são as relações mútuas entre as tonalidades.

No choro, as estruturas de período e de sentença resumem quase a totalidade de

possibilidades de construção fraseológica, havendo o predomínio da primeira. Muitas de

suas seções, estruturadas tanto como período ou como sentença, apresentam normalmente

quatro frases de quatro compassos cada. Em geral, cada frase tem uma função4 baseada em

sua condução harmônica (ALMADA, 2006).

Da mesma maneira que o choro teve em sua gênese a estrutura periódica da dança,

as primeiras sonatas do estilo pré-clássico herdaram a forma binária e a periodicidade frásica

das danças barrocas, acrescentando a elas a concepção dramática da estrutura formal – tão

cara ao classicismo. Essa simetria estrutural gera um nível de independência das frases,

permitindo às formas5 clássicas uma estruturação baseada na articulação entre as frases

(ROSEN, 1976).

O musicólogo norte-americano William Caplin (1998) afirma haver quatro de tipos de

tema6 comuns no classicismo: sentença, período, pequena ternária e tema híbrido. Cada um

4 Almada discute que tais funções tendo como parâmetro de construção o período, já que, segundo o autor,

trata-se da estrutura mais comum no choro. 5 Rosen (1976) usa o termo estilo clássico no lugar de forma clássica, pois, segundo ele, a teorização formal do

classicismo se deu a posteriori. Ainda, assim, o autor do presente artigo preferiu usar a palavra forma para evitar discussões e explicações semânticas dispensáveis no momento. 6 Não se deve confundir motivo temático com tema. Para Caplin o tema é uma unidade estrutural constituída

por um conjunto de funções de início, meio e fim.

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deles apresenta características próprias, sendo primordial para sua clareza o tipo de

condução harmônica empregada.

Sem se prolongar demasiadamente na questão, é possível traçar algumas analogias

entre o choro e as obras classicistas: origem da forma em ambos, suas estruturas e o

tratamento motívico. Essas similaridades tornam possível a utilização dos conceitos

desenvolvidos por Caplin, originalmente destinados à música erudita do período clássico, no

presente estudo. Em resumo, suas conceituações nos parecem mais apropriadas, pois:

enfatizam o papel das progressões harmônicas locais como determinantes da forma;

distinguem entre função formal7 e estrutura de agrupamento8; reduzem a importância do

conteúdo motívico como critério de definição formal, embora o tratamento desse contribua

para funcionalidade formal; mesmo estritas, suas categorizações formais podem ser

aplicadas de modo flexível; a teoria é descritiva e empírica (CAPLIN, 1998).

CARINHOSO, DE PIXINGUINHA

Carinhoso foi composta por Pixinguinha9 em 1917. Por possuir um esquema formal

atípico para os choros da época, o compositor não a gravou nem a tocou em suas

apresentações. Apenas em 1928, registrou em disco esse choro. Em 1936, a pedido da

cantora e atriz Heloísa Helena10, Braguinha11 criou – às pressas – versos para o choro de

Pixinguinha. No ano seguinte, Orlando Silva12, acompanhado por Pixinguinha e sua

7 “O papel específico desempenhado por uma passagem musical em particular na organização formal do

trabalho. Geralmente expressa uma sensação temporal de começo, meio, fim, antes-do-começo, ou depois-do-fim. Mais especificamente, pode expressar uma ampla variedade de características e relações formais” (CAPLIN, 1998, p. 254-255). 8 Caplin (1998, p. 255) entende como uma “organização compartimentada, perceptivelmente significante em

um espaço de tempo (grupo, unidade, parte, seção etc.) em qualquer ou todo nível hierárquico em um movimento”. 9

Alfredo da Rocha Vianna Filho, conhecido como Pixinguinha (1897-1973), foi um flautista, saxofonista, compositor e arranjador brasileiro. 10

Heloísa Helena de Almeida Lima (1917-1999) foi uma atriz e cantora brasileira. 11

Carlos Alberto Ferreira Braga (1907-2006), conhecido como Braguinha e também como João de Barro, foi um

compositor brasileiro, famoso pelas suas marchas de carnaval. 12

Orlando Silva (1915-1978).

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orquestra, gravou a versão com letra. A partir de então, a canção ficou tão famosa que se

tornou um marco da cultura popular brasileira (SEVERINO; MELLO, 1998).

Do ponto de vista da análise formal13, dois aspectos chamam atenção na história

dessa canção: a estrutura atípica e a criação a posteriori de seus versos. No que tange à

primeira observação, como será analisado adiante, esse choro possui um esquema formal

ABAB, diferentemente do ABACA que era predominante na época. As suas seções, embora

obedeçam à simetria típica do estilo, são constituídas por uma sentença – menos estrita

devido à expansão de suas funções formais – e que constitui a parte A; um contrasting

middle mais uma sentença de dezesseis compassos que forma a parte B.

O segundo ponto é a razão para o autor deste trabalho evitar deliberadamente a

discussão mais profunda de qualquer relação entre palavra e música no que concerne à

forma. Não que os versos, criados muitos anos mais tarde do que a música, não tenham

influência nas sugestões pictóricas do arranjo em questão, mas suas funções parecem ligar-

se à clarificação ou turvamento da forma e da melodia em alguns trechos, ou como

elemento de contraste em outros. Contudo, a estrutura global não foi determinada pelos

versos, pois existia previamente.

Ao esquema formal original, além de realizar algumas alterações na repetição de A,

Penalva acrescenta no final da repetição do B uma estrutura baseada no material temático

de A. Portanto, podemos descrever a forma final do arranjo como: ABA’B’.

Toda seção A é uma única sentença de dezesseis compassos, assim como na canção

original. O que chama atenção a priori é o fato de Penalva ter escrito o arranjo com um início

tético, enquanto a transcrição o faz anacrústico (Ex. 1.1 e 1.2). A frase de apresentação, que

normalmente duraria quatro compassos, estende-se por oito. Para isso Pixinguinha repete a

mesma ideia básica quatro vezes: duas idênticas e duas transpostas, sendo uma dessas com

uma alteração na última nota.

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Para auxiliar a discussão, será utilizada a transcrição que Almir Chediak (2004) fez da mesma peça. Essa transcrição foi feita a partir da gravação de Orlando Silva e Pixinguinha, de 1937.

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Exemplo 1.1 – Frase de Apresentação - Arranjo de Penalva de Carinhoso (Pixinguinha)

Exemplo 1.2 - Frase de apresentação - original de Carinhoso (Pixinguinha)

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No início da transcrição, é possível constatar o que Caplin chama de prolongação da

tônica14, permanência na mesma função tonal que cria estabilidade e ausência de

movimento harmônico. No arranjo, Penalva mantém a mesma concepção, embora agregue

algumas dissonâncias ao trecho. O compositor campineiro também parece explorar um

pouco mais a tensão gerada pela chegada ao iii, inserindo uma pequena mudança no

acompanhamento do tenor, que prepara o clímax da dinâmica desse agrupamento (Ex. 1.1).

Durante toda a frase de apresentação, o pulso – no arranjo – é levemente ausente.

Talvez por isso Penalva tenha decidido não iniciar a peça com um compasso anacrústico.

Como fez, o arranjador consegue evitar que a melodia ataque o tempo forte a cada

compasso. Além disso, o impulso da melodia se desloca para o terceiro tempo. Tais

alterações rítmicas, aliadas à harmonia estática, ao pedal do baixo e aos movimentos

cromáticos das vozes intermediárias, geram uma leve sensação de flutuação com um tênue

acúmulo de energia até o final da frase de apresentação quando há um crescendo que

conduz a sequência harmônica que prevalecerá na função formal de continuação (Ex. 1.1).

O tratamento sequencial da melodia na frase subsequente também se dá no baixo

(Ex. 3). Este imita parcialmente a estrutura rítmica da melodia. Isso turva um pouco a

percepção da harmonia, mas não a sensação de sequência e aceleração do ritmo harmônico

– características fundamentais para a fragmentação que ocorre na função de continuação

(CAPLIN, 1998) (Ex. 3).

Exemplo 3 – Tratamento sequencial da melodia

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Quanto à tonalidade, a transcrição de Almir Chediak está em lá maior e o arranjo de Penalva em mib maior.

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Após a perda de energia, a soprano inicia a função continuação-cadencial sozinha,

com base na ideia rítmica inicial, que o baixo também utiliza (Ex. 3). A melodia transpõe esse

motivo – c – nos compassos seguintes, sugerindo uma sequência (Ex. 3, soprano). A

harmonia, após uma ascensão quase paralela no compasso 14, chega ao acorde de ré bemol

maior com sétima maior e nona maior, que se transforma em nona menor no compasso 16

ao chegar a si bemol (Ex. 4). Embora não haja um acorde de dominante, é possível ter a

sensação de resolução por duas razões: pela chegada muito clara, pela primeira vez, do

acorde de tônica – sem a terça; e pelo salto de quarta ascendente do baixo que precede a

tônica. Esse salto do si bemol ao mi bemol, que o baixo realiza, destaca-se em relação ao

movimento descendente por grau conjunto das outras vozes, além de ocorrer no tempo

fraco e sozinho, privilegiando sua escuta (Ex. 4).

Exemplo 4 – Cadência seção A

A primeira sentença, ou tema principal, embora polifônico, apresenta diversas

passagens em que as vozes se movem juntas, com o mesmo valor rítmico. Logo, pode-se

afirmar que há um predomínio de uma textura coral. Ressalta-se também o modo como

Penalva destaca a melodia em relação às outras vozes durante todo tema principal: ela está

na voz mais aguda; movimenta-se ou sobre pausas ou sobre notas com durações maiores; e,

o mais importante, somente ela tem letra, pois as demais vozes cantam em bocca chiusa.

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A seção B pode ser divida em dois grupos estruturantes: um contrasting middle e

uma sentença. Penalva muda a armadura de clave de todo o B e anota “Mais Agitado” para o

primeiro grupo estruturante, o que não ocorre na transcrição nem parece necessário, visto

que as harmonias dos temas seguintes claramente estão em torno do tom principal. O

trecho pode ser divido em duas frases. A primeira dessas frases se desenvolve sobre a

tonalização da mediante do tom principal; e a segunda prepara uma retransição para o tom

principal (Ex. 5.1).

Exemplo 5.1 - Contrasting middle

No arranjo, a primeira frase do contrasting middle é realizada quase totalmente pelas

vozes femininas, sendo que as masculinas entram apenas no final ligando essa frase à

próxima (Ex. 5.1). É a primeira vez que as demais vozes têm letra. Como a entrada das vozes

é em stretto, a inteligibilidade do texto diminui. Penalva faz um divise do soprano15, sendo

que a mezzo-soprano assume a melodia nos compassos 17 e 18 e a contralto nos compassos

18-19 (Ex. 5.1). Também é possível dizer que a melodia se encontra todo o tempo no

contralto, cabendo ao soprano, uma antecipação no compasso 17 e uma intervenção no

compasso 18 (5.1). Devido à trama polifônica, a condução harmônica dessa primeira frase

não é clara no arranjo, embora seja perceptível uma sugestão de outra região tonal.

A segunda frase (comp. 21-23) apresenta uma condução harmônica mais nítida em

relação à primeira. Na transcrição é possível perceber uma nova tonalização no V do tom

15

Procedimento que repetirá adiante.

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principal. Essa nova tonalização permitirá a peça voltar à região tonal inicial. Nesse trecho do

arranjo é possível abstrair uma condução harmônica sugerida, sobretudo, pelas vozes

masculinas: (V) IV-V2-iii7 (ou mesmo I6) e iº7 (também pode ser entendido como viiº7/iii).

Esse acorde pode ser classificado como ornamental, pois adia a chegada ao I, que ocorrerá

no início da próxima estrutura, mas com alteração da terça.

Essas duas frases terminam no terceiro tempo do compasso 23, havendo uma clara

cisão com o que segue. Como visto, a passagem descrita apresenta grande contraste com o

que lhe precede em termos de dinâmica, conteúdo motívico, textura e estrutura. Segundo as

considerações de Caplin (1998) sobre a forma clássica, poder-se-ia classificar essa passagem

como contrasting middle, estrutura frequente em pequenas formas ternárias ou binárias. No

entanto, não há qualquer tentativa de recapitulação de A, o que caracteriza a pequena

forma binária.

As considerações acima apontam para um fato claro na audição da obra: a

instabilidade do referido trecho. Para Caplin (1998) o contrasting middle não é tão

estruturado quanto a seção anterior, o que lhe confere certa instabilidade. Tal instabilidade

é em grande parte oriunda principalmente da harmonia que pode apresentar progressões

sequências para reforçar a instabilidade harmônica ainda mais. Embora, no arranjo, a

instabilidade esteja apenas sugestionada pela melodia, visto que o tratamento polifônico

distorce a percepção da harmonia, é clara a sensação de instabilidade que se utiliza não só

do tratamento harmônico mais denso, mas também, por exemplo, pelas entradas iniciais

sucessivas que geram grande tensão no limiar do trecho, adensando a textura. Ao fim, há, ao

menos na transcrição, uma cadência perfeita, omitida no arranjo. Após essa cadência, uma

sétima menor é adicionada ao acorde final reintroduzindo o tom inicial. Tal procedimento

pode ocorrer na retransição do tom subordinado para o principal (CAPLIN, 1998).

A segunda parte da seção B é formada por uma introdução e uma sentença (Ex. 6.1).

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Ex. 6.1 – Segunda parte da seção B

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Há uma introdução do primeiro tema que vem após uma pequena cisão no compasso

23, aclarada pelo texto. Também é possível perceber um ganho de energia através da

ascensão melódica e a condução harmônica, que parte de um si bemol menor até chegar ao

viiº do tom principal. Na transcrição, a primeira frase tem oito compassos, mas no arranjo

apenas seis. Isso se deve à já mencionada alteração do compasso inicial e à contração

rítmica da frase: ‘dos braços meus’. Notória é a utilização, no antecedente, da segunda frase

da transição como acompanhamento. Prática comum em Haydn, sobretudo nos quartetos

(ROSEN, 1976). Esse procedimento também remete à função do violão de sete cordas no

conjunto típico de choro, ao realizar contracantos que ‘dialogam’ com a melodia (figura 6).

No arranjo, a função de continuação pode ser identificada na sequência melódica, na

sequência harmônica implícita da melodia e na fragmentação rítmica, mesmo que a

harmonia do acompanhamento não realize uma sequência, pois, do compasso 31 ao 33,

mantém uma estrutura de acorde semelhante que muda no compasso 34 para preparar a

função cadencial. Aliás, esse procedimento de paralelismo total ou parcial – como na

primeira sentença – é uma característica do tratamento harmônico empregado por Penalva

na função de continuação.

Há uma elisão entre a função de continuação e a função cadencial no verso “e só

assim então”. Nessa cadência, Penalva faz uma clara alusão ao acorde de Dominante. Antes

da chegada desse acorde (incompleto, mas perceptível), o arranjador conduz a harmonia a

uma vaga sensação de ii – embora esse se mostre alterado: la natural e, posteriormente, fá

sustenido no contralto, que retorna a fá natural no tenor (comp. 36, figura 6). O acorde de

dominante é introduzido apenas com sua tônica: si bemol, que se entende por três tempos.

De modo inesperado, Penalva passa a resolução melódica para o baixo. O longo tempo à

espera por essa resolução permite ao arranjador a troca de registro sem prejuízo à

inteligibilidade e sem causar estranheza, mas sim surpresa. O acorde de dominante está

invertido e com a quinta alterada um semitom abaixo (fab = mi). A força da resolução

melódica, ampliada pela inesperada troca de registro, junto ao rebaixamento da quinta,

garante a força atrativa do acorde mesmo estando invertido e sem a sétima. Nessa

passagem é nítida a concepção de melodia e acompanhamento, seguida por uma seção

polifônica. Assim, distinguem-se claramente as funções que a compõe.

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A seção B no arranjo não é simétrica na escrita, como se pode esperar em um choro

tradicional e como ocorre na transcrição. Isso se deve às alterações rítmicas empregadas

pelo arranjador. No entanto, a cisão no compasso 23 e a permanência prolongada em uma

única nota ao final da seção, compensam essa assimetria.

O final da seção B elide ao início de A’. A principal diferença desta para A, é o fato de

que nessa seção todas as vozes possuem letra. Tal procedimento aproxima os planos

hierárquicos das vozes, ressaltando a tensão entre elas, assim como sua polifonia (Ex. 7.1).

Exemplo 7.1 – Seção A’

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Também é possível notar a inserção de intervalos que aumentam a tensão harmônica

em determinados trechos (Ex. 7.1). Mas a modificação intervalar mais chamativa ocorre no

início da cadência. Ao descer meio tom, Penalva nega o tom mi bemol maior predominante

na melodia da canção. E, nesse caso, negá-lo – onde ele quase sempre esteve claro – é

reafirmá-lo indiretamente (Ex. 7.2).

Exemplo 7.2 – Mudança da cor tonal por alteração do modo sugerido

Após a repetição ipsis litteris de B até o compasso 36, Penalva acrescenta, ao

fechamento dessa seção, uma extensão cadencial com uma cadência evadida que mantém

em suspenso a resolução. Essa extensão inicia com o baixo, por meio de imitação,

executando o si bemol em oitava com o soprano. Esse, após um decréscimo de energia, não

canta o final do verso que se esperava, mas reintroduz a ideia básica do tema principal

modificado. Em seguida, o baixo se dirige a sol bemol, concretizando a cadência evadida ao

dar início a um novo material que mantém em suspensão o precedente.

Durante os compassos seguintes (Ex. 8.2), há um grande pedal sobre o qual é

repetida a ideia básica modificada. Somente no compasso 46b o pedal é retirado junto com

a interrupção das demais vozes, restando apenas o soprano. Após três tempos de destaque

do soprano, no compasso 47b, o baixo, com indicação de acelerando e forte, introduz o

motivo de fechamento da seção B, com o vocábulo ‘num’. Tal expressão parece remeter às

batidas do coração. A seguir, o arranjador faz um cluster distribuído sobre o baixo de mi

bemol, cujas entradas desencontradas e sempre com notas mais agudas, aliadas ao

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crescendo, aumentam a tensão do acorde final. Com exceção da cadência, todo trecho tem

grande coesão tímbrica devido à bocca chiusa, sendo essa mudança da textura um reforço

da ideia de extensão cadencial.

Exemplo 8.2 – Extensão Cadencial

CONCLUSÕES

Penalva consegue recriar o contexto da canção de modo original e sem que esta

perca sua identidade. Isso parece possível graças ao manejo do material harmônico, textural

e textual, orientando o ouvinte e clarificando a percepção das estruturas formais. Por

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exemplo, dentro do contexto da peça, as funções de continuação são tratadas com

paralelismos total ou parcial do acorde; e as cadências que encerram as seções são mais

claras em relação às demais – tal como uma peça clássica, mas com elementos distintos.

Além disso, os finais estruturais sempre contam com um ou mais elementos cadenciais

ligados à cadência perfeita, o que destaca seu fechamento: em A, o salto de si bemol a mi

bemol; em B, o motivo melódico. Aliás, o motivo melódico que arremata o fechamento

estrutural de B parece conceder mais força em relação à cadência de A. É interessante notar

que Penalva enfraquece a resolução de B com uma elisão; e de B’ com o cluster final.

Outro ponto de destaque é o contraste entre texturas polifônicas distintas para

aclarar os blocos estruturais que a melodia sugere. Tal manejo garante, por exemplo, a

distinção das duas passagens que compõe a primeira sentença, visto que o tratamento

polifônico dilui a clareza harmônica; ou a distinção entre o contrasting middle e a segunda

parte de B. No arranjo, a harmonia parece, em geral, criar ambientações como no início de A

ou no segundo tema de B, e sugestões de movimentações próximas às que a melodia sugere

e que se concretizam na transcrição. Assim, a textura empregada enfatiza ou distingue

melhor as funções formais e os blocos estruturais.

A utilização do texto como procedimento de hierarquização da espacialidade é um

ponto chave para alterar a percepção de A em sua repetição, assim como para aumentar o

grau de suspensão na cadência evadida em B’ ao retirar a letra das vozes. Logo, em muitas

passagens, a combinação entre texto e textura é fundamental para expressar o sentido

formal que, na canção original, é garantido pela harmonia. Ainda que não tenha originado a

forma da canção como mencionado anteriormente, o arranjador usa as características do

texto para manipular a forma da canção: aclarando ou turvando.

Assim, pode-se constatar uma possibilidade de assegurar a inteligibilidade das formas

com elementos tonais livres (ou não tonais), desde que esses expressem ou possam ser

auxiliados por outros elementos a expressar as características perceptivas intrínsecas às

funções formais. Há uma estrutura anterior – baseada na percepção – regendo as

possibilidades das manifestações musicais de qualquer forma; estrutura que Penalva

respeita em seu arranjo, tornando-o inteligível e gerador de expectativas.

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ROSEN, C. The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven. 2. ed. Londres: Faber and Faber, 1976.

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