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  A O s cader s cader s cader s cader s cader nos de Antonin Artaud: nos de Antonin Artaud: nos de Antonin Artaud: nos de Antonin Artaud: nos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatr escritura, desenho e teatr escritura, desenho e teatr escritura, desenho e teatr escritura, desenho e teatr o o o o A A A A A ndré Silveira Lage Os cader Os cader Os cader Os cader Os cader nos de Antonin Artaud nos de Antonin Artaud nos de Antonin Artaud nos de Antonin Artaud nos de Antonin Artaud inda pouco conhecido no Brasil, os Ca- dernos de Rodez e de Ivry 1  de Antonin  Artaud constituem um conjunto poético e gráfico considerável, que abalou a recep- ção crítica da obra de Antonin Artaud na França, provocando reações polêmicas, tanto no que diz respeito à sua natureza específica, quan- to no que diz respeito à problemática editorial que os concerne. Diferentemente dos textos 2  do período pós-asilar de sua vida, esses 406 cader- nos não se configuram como uma obra propria- 311  André Silveira Lage é pós-doutorando da Escola de Comunicação e Artes da USP. 1  A partir do anos 80, esses cader nos começaram a ser publicados pelas edições Gallimard. Os Cahiers de Rodez  (tomo XV a XXI das Obras completas ) reúnem cronologicamente os cadernos escritos por Artaud de fevereiro de 1945 a maio de 1946, data de sua saída de Rodez. Os Cahiers de retour à Paris (tomos  XXII à XXV ) reúnem os cadernos escritos de junho de 1946 a janeiro 1947. Os cadernos redigidos a partir desta data e até a morte de Artaud, no dia 04 de março de 1948, não foram ainda publicados. Paule Thévenin foi a responsável pelo deciframento, pela transcrição, pela transmissão e edição desses cadernos. Podemos encontrá-los reproduzidos parcialmente e em fac-símile em diversos livros ou catá- logos de exposicão. Ver o livro de Paule Thévenin & Jacques Derrida,  Antonin Artaud: Dessins et Por- traits , o catálogo Œuvres sur papier da exposição realizada no Musée Cantini, e mais recentemente, o catálogo da exposição Antonin Artaud  realizada na Bibliothèque Nationale de France (de 7 novembro a 4 fevereiro de 2007). 2 No final de sua vida, Artaud reencontra pouco a pouco a força criadora e publica diversas obras, tais como Artaud le mômo [Artaud o momo , 1947], Ci-gît, précédé de la  Culture Indienne [Aqui jaz, precedi- do da  Cultura Indígena, 1948], Van Gogh le suicidé de la société [Van Gogh o suicida da sociedade, 1947], Pour en finir avec le jugement de dieu [Para acabar com o julgamento de deus, 1948]. mente dita, não foram realizados em vista de uma publicação, não foram destinados ao lei- tor. Território desconcertante, tanto pela exten- são (milhares de páginas) quanto pelo modo de escritura (fragmentos, rabiscos, anotações, tex- tos jorrados em bloco, de um único sopro), eles colocam um problema para a crítica literária: como situá-los em relação às outras obras de  Artaud ? Estariam ou não “à margem” daquilo que consideramos sob a expressão “literatura”? Sylvan Tanquerel defende, por exemplo, o estatuto “marginal” desses cadernos, conside- rando-os ora “como fora do campo da literatu- R5-A3-AndréLage.PMD 13/05/2010, 16:05 311
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Os Cadernos de Artaud

Oct 04, 2015

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odranoel2014

Essay on Artaud (Portuguese)
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  • AOOOOO s c a d e rs c a d e rs c a d e rs c a d e rs c a d e rnos de An ton in A r t aud :no s de An ton in A r t aud :no s de An ton in A r t aud :no s de An ton in A r t aud :no s de An ton in A r t aud :e s c r i t u r a , de senho e t ea t re s c r i t u r a , de senho e t ea t re s c r i t u r a , de senho e t ea t re s c r i t u r a , de senho e t ea t re s c r i t u r a , de senho e t ea t rooooo

    AAAAA ndr Si lveira Lage

    Os caderOs caderOs caderOs caderOs cadernos de Antonin Artaudnos de Antonin Artaudnos de Antonin Artaudnos de Antonin Artaudnos de Antonin Artaud

    inda pouco conhecido no Brasil, os Ca-dernos de Rodez e de Ivry1 de AntoninArtaud constituem um conjunto poticoe grfico considervel, que abalou a recep-o crtica da obra de Antonin Artaud na

    Frana, provocando reaes polmicas, tanto noque diz respeito sua natureza especfica, quan-to no que diz respeito problemtica editorialque os concerne. Diferentemente dos textos2 doperodo ps-asilar de sua vida, esses 406 cader-nos no se configuram como uma obra propria-

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    Andr Silveira Lage ps-doutorando da Escola de Comunicao e Artes da USP.1 A partir do anos 80, esses cadernos comearam a ser publicados pelas edies Gallimard. Os Cahiers de

    Rodez (tomo XV a XXI das Obras completas) renem cronologicamente os cadernos escritos por Artaudde fevereiro de 1945 a maio de 1946, data de sua sada de Rodez. Os Cahiers de retour Paris (tomosXXII XXV) renem os cadernos escritos de junho de 1946 a janeiro 1947. Os cadernos redigidos apartir desta data e at a morte de Artaud, no dia 04 de maro de 1948, no foram ainda publicados.Paule Thvenin foi a responsvel pelo deciframento, pela transcrio, pela transmisso e edio dessescadernos. Podemos encontr-los reproduzidos parcialmente e em fac-smile em diversos livros ou cat-logos de exposico. Ver o livro de Paule Thvenin & Jacques Derrida, Antonin Artaud: Dessins et Por-traits, o catlogo uvres sur papier da exposio realizada no Muse Cantini, e mais recentemente, ocatlogo da exposio Antonin Artaud realizada na Bibliothque Nationale de France (de 7 novembro a4 fevereiro de 2007).

    2 No final de sua vida, Artaud reencontra pouco a pouco a fora criadora e publica diversas obras, taiscomo Artaud le mmo [Artaud o momo, 1947], Ci-gt, prcd de la Culture Indienne [Aqui jaz, precedi-do da Cultura Indgena, 1948], Van Gogh le suicid de la socit [Van Gogh o suicida da sociedade, 1947],Pour en finir avec le jugement de dieu [Para acabar com o julgamento de deus, 1948].

    mente dita, no foram realizados em vista deuma publicao, no foram destinados ao lei-tor. Territrio desconcertante, tanto pela exten-so (milhares de pginas) quanto pelo modo deescritura (fragmentos, rabiscos, anotaes, tex-tos jorrados em bloco, de um nico sopro), elescolocam um problema para a crtica literria:como situ-los em relao s outras obras deArtaud ? Estariam ou no margem daquiloque consideramos sob a expresso literatura?

    Sylvan Tanquerel defende, por exemplo,o estatuto marginal desses cadernos, conside-rando-os ora como fora do campo da literatu-

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    ra e relevando das anlises medicais, ora comouma espcie de texto-anterior ou canteiro dasltimas obras, ora ainda como um corpus con-cernindo a produo dos anos 40 sendo fre-quentemente objeto de leituras gerais e tem-ticas.3 Delphine Lelivre, por sua vez, critica oprprio trabalho editorial, ao constatar a extre-ma disparidade entre a verso manuscrita e averso apresentada pelas edies Gallimard.Apoiando-se em noes da crtica gentica tex-tual (pr-redacional, unidade de pgina ecadernos de notas), ela critica o partido to-mado pelas Edies Gallimard, que no repro-duziu a topografia do texto pgina, linha,margem, interlinha nem os croquis e os dese-nhos, nem mesmo a pontuao manuscrita,portanto atpica.4

    O conjunto desses 406 cadernos redigi-dos durante o seu internamento em Rodez e em

    Ivry constitui a parte mais importante do Acer-vo Artaud da Bibliothque Nacionale de France,em Paris. Ao consult-los, percebi, entre outrosaspectos, o impacto visual e vocal da pgina, aprecariedade do suporte, a dimenso ttil queos regem, e, sobretudo, a importncia da di-menso do arquivo (tanto do ponto de vista es-ttico quanto poltico). V-los, peg-los, folhe-los e l-los uma experincia de forte impacto.Na Frana, duas edies fac-smiles desses ca-dernos j foram publicadas pela Gallimard: 50dessins pour assassiner la magie (2004)5 e oCahier: Ivry, janvier 1948 (2006)6. Vale lembrartambm o Artaud: Oeuvres, Quarto Gallimard(2004), que retoma diversos textos contidosnesses cadernos, propondo ao leitor um reper-trio amplo e vasto.7

    Todos esses cadernos constituem umterritrio extremamente fecundo da obra de

    3 Tanquerel, Sylvan. Antonin Artaud et la magie scripturale des cahiers, in revue Socit Lacte dcrire.n. 81, 2003, p. 8.

    4 Lelivre, Delphine. Scnographie dun sujet: Les feuillets manuscrits des Cahiers de Rodez, in Europe,n. 873-874, Janvier-fvrier 2002, p. 219. A autora reitera em diversas passagens os limites da versoeditada pela Gallimard, cuja diagramao contribuiu para textualizar, isto , apresentar sob a forma detexto, o que no estado inicial, mais prximo de instantneos de escritura desprovidos de toda preocu-pao literria. Argumenta ainda que textualizar o manuscrito significa linearizar a escritura, hierar-quizar a informao, organiz-la para torn-la legvel.

    5 Essa edio reuniu em um nico livro um prefcio que introduz o leitor na trama da escritura e dodesenho, as reprodues fac-smiles do manuscrito original do texto, uma retranscrio colocada emparalelo e uma compilao de reprodues fac-smiles intitulada Dessins pris des cahiers de notes [De-senhos extrados de cadernos de notas]. Os desenhos escolhidos para acompanhar esta edio de 50desenhos para assassinar a magia foram publicados segundo a ordem de sua apario nos doze cadernosretidos por Artaud para este projeto.

    6 Essa edio reuniu a reproduo fac-smile do prprio caderno, um prefcio e uma retranscrio dotexto publicada parte.

    7 Como, por exemplo, os textos que foram escritos para serem proferidos na ocasio da primeira exposi-o de seus desenhos e retratos, na Galeria Pierre, em 1947: Alienar o ator (caderno 298, maio 1947),O Teatro e a Cincia (caderno 329, julho 1947) e Trs textos para serem lidos na Galeria Pierre (caderno325, julho 1947). Como tambm um repertrio rico de textos sobre o teatro, o desenho e o corpo,todos eles escritos durante os dois ltimos anos de sua vida: Notas para uma Carta aos Balineses(caderno 246, fevereiro 1947), O corpo humano (caderno 295, maio 1947), O rosto humano (caderno316, julho 1947), Eu coloco a questo do desenho (caderno 260, maro 1947), Dez anos que a lingua-gem partiu (caderno 285, abril 1947), 50 desenhos para assassinar a magia (caderno 396, janeiro 1948),entre outros.

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  • OOOOOs cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro

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    Artaud. Considero-os no como uma obra pro-priamente dita (no sentido de obra acabada, fei-ta, concluda, ou gramaticalmente bem sucedi-da como diria Artaud), mas como uma espciede dramaturgia ntima, um reservatrio de pen-samentos, uma picto-coreografia (Derrida),que se configura, pouco a pouco, de maneirainstvel, fragmentada, anrquica e mltipla. Elesso contemporneos da produo dos grandesdesenhos, dos retratos e dos auto-retratos e en-cenam alguns temas recorrentes em seus ltimosescritos, a saber, a luta contra deus e o pai-me, a revolta contra a misria do corpo hu-mano e a sua m constituio anatmica, a for-a da magia e a reivindicao revolucionria deum novo corpo humano, corpo infinitamentepotencial, com poder de explodir, em luta con-tnua contra a arte, a organizao do organismo,a representao, a lngua carcaa e deus. Corpoindissociavelmente poema-desenho-teatro.

    Nesse sentido, seria impossvel desvincu-lar a natureza desses cadernos das outras poti-cas que os constituem como tal: o desenho e oteatro. essa imbricao entre a escritura, o de-senho e o teatro que me parece ser uma de suascaractersticas fundamentais. Ocupar o espaoda pgina desses cadernos com diferentes mo-dos de expresso, satur-lo de signos verbais eno-verbais, habit-lo com desenhos informes,objetos indecifrveis, blocos, caixas, caixes,pregos, pedaos de membros, fragmentos derostos, barras, pontos, manchas, rabiscos, ano-taes, reflexes, pensamentos diversos, listas denomes, listas de quadros e de obras, relatos desonhos, textos s vezes acabados, nascidos de ums jorro (como os textos escritos em 1947 sobreo desenho, o teatro, a anatomia humana), tudoisso uma maneira de combinar dois gestos escrever e desenhar. No entanto, raro que os

    desenhos venham ilustrar, figurar o que o textodiz. Nem ornamento, nem ilustrao, eles in-troduzem, ao contrrio, uma mesma pulsao,cuja fora de dilaceramento seria idntica daescrita. Tanto o traado dos signos verbais quan-to a materialidade do grafismo nos confrontamcom essa fora de dilaceramento que alm deteatralizar a visualidade da pgina e de introdu-zir o princpio da dissonncia, traduz tambm oque Jacques Derrida chama de pensamento dolance, que o pensamento da pulso mesma,da fora pulsiva, da compulso e da expulso. Dafora antes da forma.8

    50 desenhos para assassinar a magia50 desenhos para assassinar a magia50 desenhos para assassinar a magia50 desenhos para assassinar a magia50 desenhos para assassinar a magia(cader(cader(cader(cader(caderno 396)no 396)no 396)no 396)no 396)

    O caderno de nmero 396, contendo o texto50 desenhos para assassinar a magia se inscrevenessa perspectiva do pensameto do lance doqual fala Derrida. Ao examinar as reproduesfac-smiles do manuscrito de 50 desenhos paraassassinar a magia, a primeira impresso que setem a de que ele foi escrito de um s golpe,em um nico gesto. A prpria grafia de Artaudnos sugere tanto a velocidade9 de uma escrituraque segue o impulso do pensamento quantouma forma de escritura arcaica, pictogrfica, naqual as letras so percebidas de maneira plsticae como desenho. Percebemos tambm que omanuscrito impregnado e atravessado peloimpulso do lanamento, do projtil, caracters-tica que pode ser verificada nas marcas da perfor-mance da qual procede o manuscrito: martela-do com a ajuda de um instrumento pontiagudo,ele perfurado em diversos lugares, formandovisualmente uma constelao de pequenos fu-ros que aparecem desde a primeira pgina, atra-

    8 Derrida, J. & Bergstein, L. Enlouquecer o subjtil, 1998, p. 43.9 Lembremos tambm que a velocidade foi, no tempo do surrealismo, dos Champs magntiques [Cam-

    pos magnticos] e dos desenhos automticos de Andr Masson, um fator determinante.

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    vessando e repetindo-se em todas as outras. Po-demos analisar esses furos10, essas pequenas per-furaes performativas (Derrida) como as mar-cas do gesto fsico e vocal que os precedem, eseria difcil l-los sem pensar no papel da dic-o, da declamao e da escanso que lhes soindissociveis. Na pgina manuscrita no hnenhum desenho, mas paradoxalmente, o de-senho est al, ele habita a pgina, traa um pen-samento sob a forma de exploses de subjetivi-dade, de blocos de sopro que disseminam, napgina impressa, sua natureza essecialmente vo-cal. Em outras palavras, enquanto marca, figurae trao do gesto fsico e vocal que os engendram,esses furos so o desenho. Eles cravam o supor-te inerte da representao (a folha de papel atravessada), dinamizando-o, tornado-o maispotente. Eles nos conduzem tambm a pensar anoo de voz no apenas como uma oralizaoda escritura, mas tambm como um campo deforas impregnado na letra, no trao escrito edesenhado, rompendo assim com a concepotradicional que ope a voz letra, o vocal aoescritural e ao visual. Resumindo: esses furosanunciam de maneira emblemtica essa rela-o entre a prtica do desenho e o valor pls-tico e objetivo do sopro.11 Eles indicam-nosque o desenho em Artaud uma mquina quetem sopro12:

    () levanto-me / procuro / consonncias, /adequaes / sons, / balanos do corpo / edos membros / que reproduzam o ato ().13

    Em Artaud, desenhar no significa repre-sentar por traos alguma coisa, mas supe umcorpo-a-corpo com a questo da lngua. Dese-nhar submeter a lngua uma espcie de tor-so e de escanso que desestabiliza a sintaxe e queengaja o corpo inteiro. Escandir, lembremos,consite em decompor a lngua em elementosconstitutivos atravs da voz, em analis-la mes-mo. uma antiga prtica da declamao dapoesia atravs da qual se faz sobressair o cortedas slabas em unidades mtricas. Mas Artaudvai muito mais longe. Escandir pode tambmser compreendido como uma eletrocuo queArtaud inflige lngua, como uma corrente deeletricidade vocal que produz o que a poesiaescrita no capaz de dizer: um ritmo, uma sen-sao, uma respirao, uma melodia cujas mo-dulaes sonoras so minuciosamente experi-mentadas e estudadas com preciso, com esserigor implacvel que fundamenta uma de suasdefinies da Crueldade.14

    10 Lembremos tambm dos sortilgios de Artaud, essas estranhas cartas, essas missivas conjuratrias quemisturavam desenho e escritura sobre folhas de papel meticulosamente perfuradas e queimadas comum fsforo ou a ponta de um cigarro.

    11 Artaud, A. 50 dessins pour assassinier la magie. 2004, p. 32. Traduo livre.12 Artaud, A. Oeuvres. Quarto Gallimard, 2004, 1513.13 Artaud, A. 50 dessins pour assassinier la magie. 2004, p. 31. Traduo livre.14 A teoria do Teatro da Crueldade em Artaud foi muitas vezes mal compreendida, torturada, maltratada,

    pois confundida com um teatro de sangue, com exposio de rgos, mal fsico, tumulto e sadismo.Em diversos textos do Teatro e seu duplo, Artaud tenta explicar o que ele entende por crueldade,concebendo-a no no sentido episdico, acessrio, por gosto sdico e perverso de esprito, por amordos sentimentos estranhos e das atitudes malss, mas no sentido de apetite de vida, de rigor implac-vel, no sentido de turbilho de vida que devora as trevas. Fica claro que a crueldade em questo no fsica, nem moral. Ela , antes de tudo, vital intimamente ligada ao prprio princpio da vida : Tudo

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  • OOOOOs cadernos de Antonin Artaud: escritura, desenho e teatro

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    Eu sopro, / canto, / modulo / mas no poracaso / no / tenho sempre / como que umobjeto prodigioso / ou um mundo / para criare para chamar.15

    Explorar as potencialidades sonoras dalngua, fazer ouvir tanto a palavra organizadacom vistas a um sentido lgico quanto o fonemapuro, sua exploso e seu nascimento, so opera-es indissociveis de uma oralidade e de umagestualidade que presidem e constituem comotal essas prticas que se contaminam reciproca-mente: o desenho, a escritura e o teatro. Ou seja,ambas as prticas remetem intensidade de umaao, ao mesmo tempo gestual e vocal:

    Meus desenhos so puramente / e simples-mente a reproduo no / papel / de um gesto/ mgico / que exerci / no espao verdadeiro /com o flego de meus / pulmes / e minhasmos / com minha cabea e meus 2 ps / commeu tronco e minhas / artrias etc.16

    Nos ltimos anos de sua vida, Artaud ti-nha o hbito de exercer o golpe de seu sopro, depraticar a escanso, utilizando simultaneamen-te um martelo que ele batia sobre um grandetronco de madeira. Numa carta de setembro de1945 endereada Roger Blin, ele descreve maisuma vez os recusos dessa prtica que lhe permi-tia experimentar as modulaes de sons, as vi-braes de cada slaba, os diferentes ritmos damatria verbal:

    Um de meus recursos cantar frasesescandidas quando escrevo, como outros canta-riam viens poupoule ou auprs de ma blondee outro recurso golpear com meu sopro a at-mosfera e minha mo, tal como se maneja ummartelo ou uma foice para fazer jorrar almas so-bre meu corpo e o ar.17

    Escrever. Escandir. Dar golpes com o so-pro e com o martelo. O que era para Artauduma maneira de dizer o texto potico, de faz-lo sair da pgina escrita como num desejo decapturar a palavra em seu nascimento, eranormalmente confundido pelos mdicos doshospitais psiquitricos com delrio desenfrea-do, histeria verborrgica, alienao mental. Taismdicos desconheciam que o teatro do sopro edo grito era uma maneira de praticar metodica-mente a sua teoria do Teatro da Crueldade e,pelo vis de tais operaes, reinventar a suaprpria anatomia. Numa carta a Jean Paulhan,ele precisa:

    Estou sempre aqui em perigo de ser tratadode louco e de agitado quando trabalho aqui,seja em gestos, seja em cantos, seja em ca-minhadas, seja em atitudes do meu Atletis-mo afetivo.18

    Tudo indica que o sopro como temticarecorrente em Rodez estaria relacionado com otrabalho do ator, mas ateno, o ator aqui emquesto no um comediante, ele no utilizaseu corpo para construir uma personagem, no

    que age uma crueldade. Disse crueldade como poderia ter dito vida. (Artaud, A. 1999, p. 133, 118,119, 134). Sobre essa questo da crueldade, ver o meu artigo O Teatro segundo Artaud : ou aReinveno do Corpo, in Revista FIT 3 [Festival Internacional de Teatro]. Belo Horizonte: Rona Edi-tora, 2008, p. 62-71.

    15 Artaud, A. 50 dessins pour assassinier la magie. 2004, p. 31-32. Traduo livre.16 Ibidem, p. 27 e 28. Traduo livre.17 Artaud, A. Tomo XI. 1974, 119. Traduo livre.18 Artaud, A. Ibidem, p. 127-128.

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    se inscreve no espao da representao. Ao con-trrio, ele age com seu corpo para devolver o cor-po ao corpo. Isto , ele age com o seu corpo paraconcretizar o que Artaud nomeia uma certaoperao de transmutao fisiolgica, e de me-tamorfose orgnica verdadeira do corpo huma-no.19 Ou seja, a finalidade do teatro , nesse

    RESUMO: Este artigo pretende apresentar os cadernos de Rodez e de Ivry de Antonin Artaud,levando-se em considerao tanto um breve esboo da problemtica editorial que os concerne quantouma reflexo sobre a sua natureza especfica. Trata-se de mostrar ainda como a natureza especficadesses cadernos indissocivel daquilo que neles esto em jogo, a saber, a articulao, no interiordo prprio espao da pgina, de trs poticas (a escritura, o desenho e o teatro) que se definem e secontaminam reciprocamente, potencializando assim um tema extremamente primordial que surgea partir de Rodez: a reinveno da anatomia.PALAVRAS-CHAVE: cadernos de Antonin Artaud; escritura; desenho; teatro.

    sentido, a reinveno da anatomia. E essa rein-veno passa pelo corpo, pelo ritmo, pela voz,pela exploso desse verbo vibrtil, espasmdi-co e metdico que coloca o teatro dentro docorpo e que faz do corpo humano o lugar privi-legiado do ato teatral.20

    19 Artaud, A. Oeuvres. Quarto Gallimard, 2004, p. 1547.20 Faa danar a anatomia humana, de cima para baixo e de baixo para cima, de trs para frente e de

    frente para trs, escrever Artaud no grande poema de 1947 intitulado O Teatro da Crueldade. Ouento: O teatro da crueldade quer fazer danar simultaneamente plpebras com cotovelos, rtulas,fmures e dedos dos ps, e que isso seja visto.

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