O encontro entre a história de vida de Mestre Alcides, a memória e a cultura oral na luta por uma educação partilhada ROBERTA NAVAS BATTISTELLA* 1 “Nós, como somos de culturais tradicionais, a gente sempre abre uma roda de conversa cantando alguma coisa, falando alguma coisa. Eu vou cantar um Ponto do Congo – Catupé Cacundê, lá de Minas, que eu dancei desde criança e ainda faço parte deste grupo até hoje. Não temos as caixas aqui, mas vai sem caixa… Quando eu fui para cumbara grande, (quando fui para cidade grande) eu passei no injó de jambê, (passei na igreja) o n’nganga tava no altar, (n’nganga é um título de poder, pode ser uma imagem do santo daquela igreja) eu com meu tipunga na mão, (eu fiquei com meu chapéu na mão) ô marunga ajoelha no chão (ajoelha no chão), côro: ô marunga ajoelha no chão quando eu pisei nesse chão eu senti a terra tremer eu pensei que fosse o meu peso e não era era o peso de vocês côro: ô marunga ajoelha no chão...” (Trecho do ponto de Congado Catupé Cacundê – Mestre Alcides) Conheci Mestre Alcides, Alcides de Lima Tserewaptu, no interior das vivências de um curso de extensão ministrado por mestres da cultura oral e acadêmicos em dezembro de 2012, intitulado Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento, sediado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Por meio desta iniciativa, pude vivenciar, experimentar e refletir sobre propostas e novas abordagens conceituais do universo das culturais orais do Brasil e das possibilidades de uma maior socialização destes saberes no âmbito do ensino em geral, motivo que me encantou para pensar um projeto de mestrado e partilhar boas inquietações, também, ao longo deste texto. As discussões apresentadas durante a semana de atividades do curso dialogaram com a experiência da minha monografia 2 , na qual já havia defendido o processo de produção de * Universidade de São Paulo; mestranda no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, do Núcleo Diversitas – FFLCH; bolsista CAPES. 2 Breve descrição da monografia pelas duas autoras, Luana Zorzette e Roberta Navas Battistella, disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=SuL39DzzzLY> Acesso em: 24 fev.2016.
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O encontro entre a história de vida de Mestre Alcides, a ... · referência para as aproximações iniciais da capoeira. ... acumuladas pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro
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O encontro entre a história de vida de Mestre Alcides, a memória e a cultura oral na luta por
uma educação partilhada
ROBERTA NAVAS BATTISTELLA*1
“Nós, como somos de culturais tradicionais, a gente sempre abre uma roda de
conversa cantando alguma coisa, falando alguma coisa. Eu vou cantar um Ponto do
Congo – Catupé Cacundê, lá de Minas, que eu dancei desde criança e ainda faço
parte deste grupo até hoje. Não temos as caixas aqui, mas vai sem caixa…
Quando eu fui para cumbara grande, (quando fui para cidade grande)
eu passei no injó de jambê, (passei na igreja)
o n’nganga tava no altar, (n’nganga é um título de poder, pode ser uma imagem do
santo daquela igreja)
eu com meu tipunga na mão, (eu fiquei com meu chapéu na mão)
ô marunga ajoelha no chão (ajoelha no chão),
côro: ô marunga ajoelha no chão
quando eu pisei nesse chão
eu senti a terra tremer
eu pensei que fosse o meu peso e não era
era o peso de vocês
côro: ô marunga ajoelha no chão...”
(Trecho do ponto de Congado Catupé Cacundê – Mestre Alcides)
Conheci Mestre Alcides, Alcides de Lima Tserewaptu, no interior das vivências de um
curso de extensão ministrado por mestres da cultura oral e acadêmicos em dezembro de 2012,
intitulado Pedagogia Griô e Produção Partilhada do Conhecimento, sediado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Por meio desta
iniciativa, pude vivenciar, experimentar e refletir sobre propostas e novas abordagens
conceituais do universo das culturais orais do Brasil e das possibilidades de uma maior
socialização destes saberes no âmbito do ensino em geral, motivo que me encantou para
pensar um projeto de mestrado e partilhar boas inquietações, também, ao longo deste texto.
As discussões apresentadas durante a semana de atividades do curso dialogaram com a
experiência da minha monografia2, na qual já havia defendido o processo de produção de
* Universidade de São Paulo; mestranda no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras
Legitimidades, do Núcleo Diversitas – FFLCH; bolsista CAPES. 2 Breve descrição da monografia pelas duas autoras, Luana Zorzette e Roberta Navas Battistella, disponível em:
audiências públicas nos estados e nas conferências de cultura em 2010. Esse processo foi
imprescindível para que o Projeto de Lei conquistasse o posto de uma das 32 prioridades da
política cultural do Brasil na II Conferência Nacional de Cultura. Atualmente, Alcides é
membro da Comissão Nacional dos Griôs e Mestres de Tradição Oral do Brasil.
O breve relato necessitou ser resumido devido ao espaço e proposta de discussão deste
momento, mas na composição do projeto de mestrado, nos baseamos em diversas definições
da história oral para que se pudessem extrair possibilidades de análise e reflexão sobre a
relação que constitui com Mestre Alcides, como também das entrevistas realizadas, as
vivências e este modo de partilhar conhecimento.
O historiador José Carlos Sebe Bom Meihy e a historiadora Fabíola Holanda,
apresentam a história oral como “um recurso moderno usado para a elaboração de registros,
documentos, arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos”
(2014:17). Outro aspecto inerente à essa maneira de construir conhecimento é que também
representa “uma história do tempo presente”, “reconhecida como história viva”. Conta,
portanto, com a entrevista como sempre sendo um processo mediado pelo diálogo (2014:19).
Já o autor Paul Thompson nos indica que a “história oral é uma história construída em
torno de pessoas” (1992:44), admitindo e reconhecendo que “heróis” podem vir não somente
das instâncias institucionais de liderança, “mas dentre a maioria desconhecida do povo”. Um
novo fator interessante que toca diretamente ao encontro geracional entre mim, pesquisadora
de vinte e oito anos, e Alcides de Lima, mestre de capoeira de sessenta e nove anos, é como a
história oral pode propiciar o “contato – e a compreensão – entre classes sociais e entre
gerações. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos” (1992:44).
Estamos partilhando formas de ser, valores e respeito frente à diversidade, ou seja,
conhecendo, aprendendo e produzindo com e sobre o outro.
Verena Alberti define a história oral como um “método de pesquisa que privilegia a
realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam,
acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de
estudo” (2013:24). No projeto que propusemos realizar, não falamos em objeto, mas sim de
sujeito, relação mais horizontalizada, na qual este é o sujeito conceitual configurando-se, ao
mesmo tempo, como objeto e sujeito da pesquisa-diálogo. É um processo de desconstrução do
sujeito pesquisador e da dilatação de seu papel de interlocução e mediação junto à sua
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proposta temática e, neste caso, junto ao Mestre Alcides e toda a riqueza de sua trajetória de
vida.
Consideramos que as narrativas sobre as histórias de vida, baseadas nesta transmissão
pela palavra falada, têm seu legado não somente na veracidade, mas na certeza do sujeito e de
sua história. “Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se
na história de sua vida” (BOSI, 2003:37).
MEMÓRIA E CULTURA ORAL
Para pensarmos a caminhada de um griô e o sentido da memória na transmissão de
saberes por meio da tradição oral, precisamos dissertar brevemente sobre os caminhos de
alguns griots da África e buscar as possíveis relações com a narrativa apresentada pelo Mestre
Alcides; como também a adoção deste conceito aqui no Brasil. Vamos perpassar pela tradição
oral, pela memória e pelas manifestações culturais como congado e capoeira, constantemente
em diálogo com narrativa da vida de Alcides para refletirmos de que maneira foram
constituindo este Griô.
Em um processo de reconstrução da lembrança no âmbito da história oral é necessário
reconhecer que Mestre Alcides, por sua capacidade de contar e recontar minuciosamente os
fatos, vivências, com aspectos místicos, caracteriza sua memória por meio destes traços e pela
(re)invenção da própria vida. Ele compreende profundamente a importância da palavra, que
aqui se encontra ao conceito de tradição oral, e busca disseminá-la em todos os espaços em
que atua. Além dele, como mesmo disse, “ter uma ancestralidade aguçada”, que vê, sente e
tem vontade de compartilhar quase que a todo tempo.
E o que podemos considerar por tradição oral? Identificá-la em seu valor pleno, é
afirmar sua íntima conexão à grande escala da vida, recuperando dela seus aspectos e
buscando suas múltiplas relações e pensamentos (KI-ZERBO, 2010:169). Literalmente, a
tradição oral aparece como “repositório e o vetor do capital de criações socioculturais
acumuladas pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro museu vivo” (KI-ZERBO, 2010:
XXXVIII).
Mestre Alcides estabeleceu com o universo da tradição oral, desde sua infância,
relações de aprendizado, não somente atreladas à ancestralidade de sua família, como também
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pelos encontros com pessoas, lugares, situações, nas quais aprendia por meio de diálogos,
vivências e da cultura oral, assim constituindo a diversidade da sua identidade.
Os modos de pelos quais aprende, coleta e transmite este conhecimento vivido,
perpassaram e perpassam necessariamente pela oralidade; compreendê-la como a principal
forma de partilha de valores e conhecimento no contexto brasileiro é perceber e reconhecer
que é pelo discurso da tradição oral que estabelecemos um dos vínculos mais arraigados entre
a palavra e o homem (KI-ZERBO, 2010:168).
O conceito de tradição oral dialoga com Jan Vansina (2010), que nos apresenta sua
definição como sendo “de fato, um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para
outra”4 . As figuras que representavam esta transmissão, em África, eram os mestres da
tradição oral e griots5, que podem ser divididos em griots músicos, griots embaixadores e
genealogistas.
“Segundo o antropólogo guineano Sory Camara (1992, p7), só no final do século
XVII, com as relações estabelecidas nas viagens colonizadoras, a França e o
Ocidente tomaram conhecimento da figura que hoje chamamos de griot. Os homens
foram então chamados de guiriot ou griot e as mulheres de guiriotte ou griotte. No
entanto, os gritos já eram conhecidos pelos viajantes árabes a partir do século XV.
Para os europeus, eles eram apenas músicos, já para os árabes, poetas. Ainda hoje é
muito comum se considerar griot unicamente um artista ou contador de histórias. No
entanto seus atributos, sua função e sua missão são bem mais amplos e profundos”.
(BERNAT, 2013:49)
No caso específico do Brasil, ao investigarmos como se deu o uso adaptado da
terminologia griot no português, descobrimos que a responsável por esse abrasileiramento é
Líllian Pacheco6, datando em 1998. Líllian esteve presente no curso de extensão Pedagogia
Griô e Produção Partilhada do Conhecimento. Neste mesmo momento, estava seu
4 VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J.(coord.) Metodologia e Pré História da
África, História Geral da África. Brasília: UNESCO, 2010. p.139,140. 5 Hampâté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África,
História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. p.193. 6 Líllian Pacheco, educadora biocêntrica, facilitadora de biodança, escritora e poeta; criadora da Pedagogia Griô;
idealizadora e coordenadora pedagógica do projeto institucional Grãos de Luz e Griô, Lençóis BA e dos projetos
Ação Griô Nacional, Trilhas Griôs Chapada Diamantina e Universidade Griô; Primeiro lugar nacional no prêmio
Itaú Unicef; primeiro lugar nacional no prêmio Democratização Cultural, Destaque Nacional no Prêmio Cultura
Viva; assessor da Comissão Nacional dos Griôs e Mestres e da Rede Ação Griô na sistematização da Lei Griô
Nacional; Escritora, organizadora e produtora dos livros Pedagogia Griô: a reinvenção da roda da vida; O Mito
do Diamante; Nação Griô: o parto mítico da identidade do povo brasileiro e O Amor e a Amora: as lutas de uma
mulher com deus; e de roteiros de aula espetáculo e vídeos apresentados em festivais locais, regionais, nacionais
e internacionais; co-coordenadora do Projeto de Curso de Extensão e Pós Graduação na Pedagogia Griô e
Produção Partilhada do Conhecimento - Diversitas – USP.
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companheiro e griô iniciado nas tradições orais do Mali, em África, Márcio Caires. No artigo
publicado no Dossiê Pedagogia Griô 7 , organizado pelo Núcleo Diversitas, com o qual
colaboramos com a organização, Pacheco diz que:
[…] O contato com a palavra veio do universo da Antropologia e da História da
África. Porém utilizá-la, não foi uma decisão científica, foi uma orientação espiritual
que vivenciamos, eu e Márcio Caires, com o universo de segredos e mistérios das
culturas de tradição oral de Lençóis, Bahia. O que posso dizer é que a palavra foi
abrasileirada durante nossa caminhada como educadores e idealizadores do Grãos de
Luz e Griô, nas comunidades de Lençóis, Chapada Diamantina em busca de criar
um projeto politico pedagógico e uma pedagogia nas comunidades tradicionais da
região onde nascemos…Compreendemos que não podíamos nos relacionar com os
mestres griôs como pesquisadores acadêmicos com instrumentos e linguagens de
tradição escrita, compreendemos que tínhamos que assumir o lugar de aprendizes da
tradição oral com a sua própria linguagem de vínculo, elaboração e transmissão…”
(PACHECO, 2014:56)
Griô simboliza uma forte expressão, tanto da valorização dos saberes orais oriundos dos
recônditos rurais e das cidades brasileiras, como da valorização do encontro entre a
brasilidade e o mundo diverso que a compôs. Logo, o saber do griô está calcado na tradição
oral, aqui definida por um saber que é transmitido de geração em geração, e que reinaugura a
cada novo nascimento a reprodução de si própria, e do contato com o outro. É possível pensar
que tal tradição seja compreendida como um saber que habita o corpo e que se expressa na
contação de histórias, pelo ritmo e encantamento sonoros e por objetos que carregam uma
longa historicidade, ou até mesmo em celebrações e manifestações culturais do congado e da
capoeira.
Ao narrar sua vida, Mestre Alcides afirmou que, quando ainda estamos vivos, de uma
forma ou de outra, somos o nosso próprio testemunho. Tal fala dialoga diretamente com o que
o autor Hampâté Bâ (2010) entende por testemunho, definindo-o como “todas as declarações
feitas por uma pessoa sobre uma mesma sequência de acontecimentos passados” 8 . Tais
declarações podem estar baseadas em “narrativas de testemunhos oculares, boatos ou em uma
nova criação baseada em diferentes textos orais”9.
Desta maneira, conforme aponta Beatriz Sarlo, não há “testemunho sem experiência,
mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da
7 Disponível em: <http://diversitas.fflch.usp.br/node/3661> Acesso em 29 mar.2016. 8 Hampâté Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África,
História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. p.193. 9 Idem.