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Escola de Verão para Juventudes Polícas Progressistas da América Lana 2 ª O modelo de desenvolvimento que vigora na América Lana e no cenário global pode ser caracterizado, de maneira breve, como produtor e reprodutor de desigualdades. O trabalho como dimensão criadora e propulsora do desenvolvimento deve ser uma questão central na análise críca sobre esse tema. As controvérsias são imensas em torno desse conceito; no entanto, na sociedade capitalista e patriarcal em que vivemos, é incontornável o fato de que as relações de dominação e exploração são historicamente reproduzidas nos processos de desenvolvimento desse sistema. Para pensar essa relação entre trabalho e desenvolvimento, tomamos como tarefa inicial a reflexão críca sobre o conceito de trabalho – e, com isso, já entramos no cerne da questão. Parmos do suposto que os conceitos são historicamente construídos e definidos e redefinidos de acordo com o contexto e as perspecvas dos sujeitos, que tanto podem ser crícas como legimadoras da ordem social. Do ponto de vista de quem detém o poder nessa sociedade, os conceitos são reestruturados para responder à necessidade de novas explicações que jusfiquem as relações sociais que vigoram em cada contexto social e histórico, as quais são determinadas pelas estruturas de poder. Se o modo de produção, por um lado, “se altera em consequência dos resultados acumulados do trabalho da Texto de Maria Betânia Ávila, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pesquisadora e Coordenadora de Relações Instucionais do SOS CORPO Instuto Feminista para a Democracia. TRABALHO, DESENVOLVIMENTO E OS IMPACTOS NA VIDA COTIDIANA
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Dec 13, 2015

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Escola de Verão para Juventudes Políticas Progressistas da América Latina

O modelo de desenvolvimento que vigora na América Latina e

no cenário global pode ser caracterizado, de maneira breve, como produtor e

reprodutor de desigualdades. O trabalho como dimensão criadora e propulsora do

desenvolvimento deve ser uma questão central na análise crítica sobre esse tema.

As controvérsias são imensas em torno desse conceito; no entanto, na sociedade

capitalista e patriarcal em que vivemos, é incontornável o fato de que as relações

de dominação e exploração são historicamente reproduzidas nos processos de

desenvolvimento desse sistema.

Para pensar essa relação entre trabalho e desenvolvimento,

tomamos como tarefa inicial a reflexão crítica sobre o conceito de trabalho – e,

com isso, já entramos no cerne da questão. Partimos do suposto que os conceitos

são historicamente construídos e definidos e redefinidos de acordo com o contexto

e as perspectivas dos sujeitos, que tanto podem ser críticas como legitimadoras

da ordem social. Do ponto de vista de quem detém o poder nessa sociedade, os

conceitos são reestruturados para responder à necessidade de novas explicações

que justifiquem as relações sociais que vigoram em cada contexto social e histórico,

as quais são determinadas pelas estruturas de poder. Se o modo de produção, por

um lado, “se altera em consequência dos resultados acumulados do trabalho da

Texto de Maria Betânia Ávila, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pesquisadora e Coordenadora de Relações Institucionais do SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia.

TRABALHO, DESENVOLVIMENTO E OS IMPACTOS NA VIDA COTIDIANA

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atividade humana – as relações sociais necessárias para levar a efeito a produção

também se alteram e do mesmo modo as concepções que justificam e interpretam

essas relações”. (Foracchi e Martins, 2006, p. 4)

Faz parte da ideologia neoliberal tratar a realidade social como

formada, de um lado, por estruturas permanentes, naturalizadas e funcionais, e

de outro, por uma soma de indivíduos, que nessa visão constituem uma multidão

fragmentada, para assim evadir das leituras dessa realidade as relações sociais,

retirando do cenário mundial os confrontos sociais e políticos que transformam as

relações e as estruturas de poder. Sobre o conceito de relação social retomamos aqui

as questões colocadas por Kergoat: “o que é importante na noção de relação social

– definida pelo antagonismo entre grupos sociais – é a dinâmica que ela introduz,

uma vez que volta a colocar a contradição, o antagonismo entre os grupos sociais

no centro da análise, e que se trata de contradição viva, perpetuamente em via de

modificação e de recriação”. (KERGOAT, 2002, p. 244) O que a autora coloca é que

se tomarmos em conta apenas as estruturas, isso nos levará a um raciocínio que

negaria a possibilidade da existência dos sujeitos, como se os indivíduos agissem

somente a partir da ação das formas exteriores. Para ela, é contra a visão solidificada

de estrutura social “que se insere o raciocínio em termos de relações sociais (com

seu corolário: as práticas sociais): relação significa contradição, antagonismo, luta

pelo poder, recusa de considerar que os sistemas dominantes (capitalismo, sistema

patriarcal) sejam totalmente determinantes” (KERGOAT, idem).

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Essa visão de sistema “dominante” como aquilo que não é

“totalmente determinante” constrói uma abertura para entender o movimento de

subversão à ordem, que constitui o sujeito, e para enxergar as dinâmicas individuais

e coletivas que formam as tensões e revelam as contradições que engendram a

vida social. É uma perspectiva que leva a perceber as novas práticas presentes nas

relações sociais e os movimentos que formam o devir. (Ávila, 2010)

Uma outra ação forte dos sujeitos do conhecimento, que sustentam

as teses do neoliberalismo, é a tentativa permanente de decretar o fim do trabalho,

como se o trabalho fora algo que pudesse ser extinto da vida social. Uma coisa é

a eliminação dos empregos formais, a desregulação que leva à perda de direitos

dos trabalhadores e trabalhadoras, outra coisa é a ideia de que uma sociedade

pode se reproduzir sem o trabalho. Mas essa investida contra a existência social

do trabalho e sua importância para a economia e para a política está justamente

ligada à tentativa de negar os antagonismos e as contradições, ignorando assim

as relações de exploração e dominação nessa fase do capitalismo, para desse

modo destituir de sentido os sujeitos das lutas no campo do trabalho, negar sua

organização e colocá-los/as como historicamente fora do lugar.

Uma das formas de confrontar essa ideologia e esse sistema de

dominação é justamente visibilizar o trabalho e as relações sociais que engendram

e são engendradas na sua dinâmica. Como afirma Antunes (2005), o trabalho é

uma questão central dos nossos dias. As teóricas e pesquisadoras feministas desse

campo, não só insistem na centralidade do trabalho nesta sociedade como também

produziram uma reestruturação desse conceito.

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Trabalho produtivo e reprodutivo

O conceito de trabalho ao longo do tempo foi referido apenas ao

trabalho produtivo. Assim foi tratado pelas ciências sociais, pela economia, nos

planos de desenvolvimento das políticas nacionais e dos organismos internacionais.

O trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico, assim definido no contexto da

sociedade capitalista patriarcal, esteve fora do conteúdo que dava significado ao

conceito de trabalho até muito recentemente. A reestruturação desse conceito

para alcançar as duas esferas do trabalho é parte de um processo político e de uma

prática de produção do conhecimento que se constroem a partir do movimento

feminista em uma relação dialética.

Para Marx e Engels (1991), o trabalho é o lugar da construção de

si, como sujeito, sendo assim a dimensão fundante da ontologia do ser social.

Porém, nessa concepção, é o trabalho definido como produtivo, que está sendo

considerado. O trabalho reprodutivo fica fora dessa dimensão ontológica, e assim,

fica excluído como uma prática de trabalho, sendo descartada dessa forma uma

experiência concreta, cotidiana, e sobretudo de trabalho das mulheres. Como

conseqüência, as relações de trabalho do campo reprodutivo não são consideradas

como um elemento da exploração e dominação que estrutura relações sociais.

Na análise marxista, a reprodução é tratada apenas como substrato do processo

produtivo, e o trabalho reprodutivo, realizado no espaço doméstico e elemento

central para a reprodução social, não é levado em conta. Os custos da reprodução

da força de trabalho são contados apenas a partir do consumo dos produtos

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necessários à manutenção e reprodução dos trabalhadores/as, mas todo trabalho

investido no cuidado, na produção da alimentação, na organização e manutenção

do espaço de convivência familiar está fora da conta que configura a mais-valia e,

portanto, que mede o grau do lucro na exploração capitalista.

Nós nos reportamos às análises de Marx e Engels porque são

as que nos interessam como referência matriz, pois foi a partir de conteúdos

teórico e do método de análise produzidos por esses autores, e sobretudo por

Marx, que foram construídas as bases teóricas para uma análise feminista que

desse conta da exploração e dominação das mulheres na sociedade capitalista

e patriarcal. Mesmo com todo o questionamento feito sobre a teoria marxista,

que não considerou a exploração e dominação patriarcal como elementos

indissociáveis do desenvolvimento capitalista, foi a partir do resgate da tradição

dessa teoria crítica, que surgiram as teorizações feministas que podem sustentar

um projeto emancipatório, à medida que trabalham a questão das contradições e

antagonismos das relações sociais de gênero e do seu imbricamento com outras

relações sociais como classe e raça.

A tradição funcionalista do Durkheim, por exemplo, outro teórico da

questão do trabalho nessa sociedade, não poderia ser essa referência na medida

em que está embasada em uma concepção de manutenção da ordem social, pois

como diz Pfefferkorn (2007) referindo-se a esse autor

para ele, a divisão do trabalho social própria às sociedades modernas é um

modo de organização superior. É primeiramente um fator de integração

social. Na perspectiva desse autor este é o fundamento do laço social, quer

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dizer daquilo que assegura a coesão nas sociedades contemporâneas. O que

opõe os membros da sociedade é remetido ao impensado ou ao patológico.

(PFEFFERKORN, 2007, p. 40-41)

Repensando essa questão com base em uma dimensão histórica

mais alargada, Hannah Arendt (2005) analisa a divisão entre trabalho produtivo

e trabalho reprodutivo a partir da Grécia antiga, evidenciando a falta de valor do

“labor”, que corresponde justamente ao trabalho reprodutivo, e a sua relação

histórica com a servidão. Poderíamos, aí também, falar de um trabalho que em

princípio foi tomado como não trabalho e, portanto, como o lugar da constituição

do não sujeito. Historicamente, assim, associado a uma relação de servidão.

É a partir da construção do conceito de trabalho como pertinente

às esferas produtiva e reprodutiva que a análise crítica sobre a divisão social do

trabalho pode evidenciar a existência de uma divisão sexual do trabalho como uma

dimensão estrutural no interior da primeira divisão. Do ponto de vista histórico,

segundo KERGOAT (2002), é possível observar que a “estruturação atual da divisão

sexual do trabalho surgiu simultaneamente ao capitalismo” (p. 234) e que a relação

do trabalho assalariado não teria podido se estabelecer na ausência do trabalho

doméstico. Para a abordagem aqui apresentada, vejamos a definição de Danièle

Kergoat, para quem:

A divisão sexual do trabalho tem por características a designação prioritária

dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, como

também, simultaneamente, a captação pelos homens das funções com forte

valor social agregado (políticos, religiosos, militares etc.). Esta forma de divisão

social tem dois princípios organizadores: o princípio da separação (há trabalhos

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de homem e trabalhos de mulher) e o princípio hierárquico (um trabalho de

homem "vale" mais que um trabalho de mulher. (KERGOAT, 2002, p. 89)

Se, historicamente, instituiu-se na sociedade capitalista/patriarcal

a divisão sexual do trabalho que atribui às mulheres as tarefas domésticas e aos

homens as atividades produtivas, na prática, sempre houve mulheres que estiveram

tanto na esfera da produção como na esfera da reprodução. O trabalho reprodutivo,

em geral ausente das análises clássicas sobre desenvolvimento e reprodução social,

o qual sustenta a reprodução da força de trabalho e da humanidade permanece,

majoritariamente, de responsabilidade das mulheres. Os homens se mantiveram,

até hoje, pelo menos a maioria, apenas na esfera da produção. Atualmente, a

inserção das mulheres no mercado de trabalho formal ou informal se expandiu.

"Vivencia-se um aumento significativo do trabalho feminino, que atinge mais de

40% da força de trabalho em diversos países avançados e tem sido absorvido

pelo capital, preferencialmente no universo do trabalho part-time, precarizado e

desregulamentado." (ANTUNES, 2000, p. 105)

Na reestruturação produtiva se reatualizam as formas de divisão

sexual do trabalho no interior da esfera produtiva. Cabe às mulheres uma reinserção

nos trabalhos precarizados, flexibilizados, o que significa perda de direitos. Os

trabalhos a domicílio ultra precários são basicamente feitos por mulheres. E em

muitos países a redução da jornada de trabalho com redução de salário atinge

prioritariamente as mulheres, além de resgatar uma abordagem conservadora para

justificativa da necessidade de um retorno ao “lar”.

O fato de o trabalho em tempo parcial, precarizado e

desregulamentado, atingir preferencialmente as mulheres está, no contexto da

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globalização, dentro de uma reconfiguração da divisão sexual do trabalho. As

análises sobre desigualdade no mercado de trabalho são importantes, mas só

mediante uma análise que contemple mercado de trabalho e trabalho doméstico

é possível aprofundar a compreensão da relação de desigualdade das mulheres

na divisão sexual do trabalho. Isso nos leva a pensar o trabalho como dimensão

central na constituição da vida cotidiana que, para Torns (2001), aparece como

o “cenário analítico”, a partir do qual podemos observar como se desenrola

essa dinâmica e por meio do qual tem sido possível delimitar as presenças e as

ausências masculinas e femininas, de maneira estrita, e reconhecer, a partir daí, a

hierarquia que as preside.

A divisão sexual do trabalho dá significado às práticas de trabalho no

interior de cada uma de suas esferas. No campo produtivo, há uma representação

simbólica do trabalho de homens e do trabalho de mulheres e uma divisão de

tarefas que responde a essa representação. Essa divisão incide também sobre o

valor do trabalho de homem e de mulher, expresso no nível diferenciado de salários

e no desvalor do trabalho doméstico. Além disso, no trabalho produtivo há uma

captura das habilidades desenvolvidas no trabalho doméstico.

Há tarefas no interior do espaço doméstico consideradas pequenos

trabalhos masculinos, ligados à habilitação do homem como trabalhador da

esfera produtiva, como, por exemplo, os consertos na estrutura física das casas,

serviços elétricos, e outros que não estão diretamente vinculados às necessidades

incontornáveis de manutenção da vida no cotidiano.

As políticas públicas de bem-estar social que, segundo Oliveira

(1998), vêm sustentar a reprodução da força de trabalho na parte não coberta pelo

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capitalista no trabalho pago, geram o que ele chama de “direitos de antivalor”.

Portanto, ao tempo socialmente necessário para a reprodução, somam-se,

segundo ele, essas políticas públicas. Consideramos que deve ser acrescentado,

ainda, o trabalho doméstico não remunerado e remunerado como parte dessa

sustentação. A questão é a sua importância para a reprodução social. É em relação

a essa questão que Moraes interroga: “se os capitalistas...puderem diminuir os

custos de reprodução da força de trabalho, aproveitando-se da dupla jornada das

mulheres, por que investiriam em creches e equipamentos coletivos que minorem

os trabalhos domésticos?”(MORAES, 2003, p. 99). Esse trabalho, necessário à

reprodução social, é funcional para o sistema capitalista e patriarcal.

Em uma crítica feita à teoria sobre mulher e desenvolvimento, que

partia de uma análise da produção de mercadorias para explicar a situação do

trabalho das mulheres, Lourdes Benería e Guita Sen dizem que “para um completo

entendimento da natureza da discriminação, salário das mulheres, participação

das mulheres no processo de desenvolvimento, e implicações para ação política,

analistas devem examinar as duas áreas da produção e reprodução, assim como a

interação entre elas”. (BENERÍA & SEN, 1986, p.152)

O modelo de desenvolvimento em curso na América Latina, que se

caracteriza como capitalista, racista e patriarcal, reproduz desigualdades como

consequência direta da sua lógica e da sua dinâmica. Nesse sentido as desigualdades

de gênero classe e raça estão imbricadas como parte do processo. Como parte

dessa reprodução a população jovem vê-se diretamente afetada por essas relações

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na sua inserção no mundo do trabalho. A relação entre gerações também se

constitui como uma relação social, portanto faz parte da mesma imbricação. As

relações desiguais de classe, raça e gênero são reproduzidas e mantidas a partir de

um sistema de poder que se sustenta na produção articulada dessas desigualdades

e que ao mesmo tempo produz uma percepção fragmentada dos problemas.

Posicionar-se contra esse sistema estruturalmente produtor de injustiças é, em

primeiro lugar, reconhecer as várias formas de desigualdades e discriminações e as

consequências sobre a realidade social.

O capitalismo está atingindo patamares jamais alcançados de

acumulação, ou seja, o capitalismo alcançou atualmente o maior grau de

acumulação da sua história. Tão grande que está criando uma defasagem profunda

entre a capacidade de produzir riqueza e a capacidade de redistribuí-la em um

patamar que possa alimentar a relação entre produção e consumo em níveis

funcionais para o sistema que se mantém pela produção e superação de crises

como parte estrutural do seu funcionamento. Podemos perceber que o grau de

desigualdade se aprofundou, pois a crise atual, que tem no sistema financeiro o

centro do qual emanam os problemas, tem sido “enfrentada”, pelos países que

detêm a hegemonia do poder econômico, em favor do capital financeiro.

O conceito de trabalho produtivo esteve sempre associado à

dominação da natureza. Essa visão levada ao extremo na sociedade capitalista

se expressa hoje em modelos produtivos que causam danos irreparáveis ao meio

ambiente, que ameaçam a reprodução da vida cotidianamente, e que têm levado a

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uma tentativa cada vez maior de mercantilização dos bens comuns da humanidade

e de todas as fontes naturais de riqueza. A lógica do mercado está assentada numa

lógica produtivista e na produção incessante de criação de novas necessidades.

É evidente que, como cada vez se produz mais, cada vez mais é preciso vender.

O acesso ao consumo é moldado de acordo com as possiblidades dos sujeitos

consumidores a partir dos seus pertencimentos de classe, raça e gênero no sentido

de manter e reproduzir as desigualdades e hierarquia nas quais estão inseridos.

Cada vez mais são produzidos objetos caríssimos e sofisticados para consumo de

elite e ao mesmo tempo se produzem milhões de objetos semelhantes na aparência

mas de baixa qualidade para o consumo massificado. Na lógica de mercado, na

ideologia subjacente a ela, a inclusão social se faz pelo consumo, e nesse conceito

de inclusão já está subtendida a desigualdade social. O mercado, atualmente,

lança mão de todos os meios midiáticos de massa para capturar o sentido da

vida cotidiana e reificá-la como uma dimensão determinada exclusivamente pela

capacidade de consumo. As mensagens midiáticas para incentivar o consumismo

têm como alvo sobretudo as mulheres e os jovens.

A pluralidade dos sujeitos políticos e de suas lutas permitiu

o aprofundamento da crítica a esse sistema. Por exemplo, a crítica à lógica

produtivista que sustenta esse sistema está sendo radicalmente (no sentido

ir a suas raízes) reformulada a partir da teoria crítica, mas avançando ou

reestruturando toda a formulação em termos da relação entre produção e

desenvolvimento, com o objetivo de combater qualquer relação hierárquica

entre produção, reprodução e meio ambiente.

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Questões sobre desenvolvimento

O desenvolvimento é pleno de definições, muitas vezes conflitantes.

Uma das formas usadas para sua definição é a sua adjetivação: desenvolvimento

econômico, desenvolvimento humano, desenvolvimento sustentável e assim por

diante. Na maioria dos casos essas qualificações aparecem como contraponto

ao conceito de desenvolvimento econômico ou para questionar sua lógica, em

geral predatória, que não leva em conta as necessidades humanas e costuma

estar submetida aos interesses dos setores que dominam o poder econômico.

No entanto, o que podemos afirmar é que as dimensões econômicas, social,

política e cultural são indissociáveis. A afirmação de cada campo particular do

desenvolvimento pode ser interessante de um ponto de vista analítico, ou mesmo

para revelar suas várias dimensões e contradições, mas, na prática, são dimensões

imbricadas em um mesmo processo.

A América Latina não está fora do processo de globalização e,

portanto, dos seus efeitos perversos provocados pelos modelos de desenvolvimento

impostos pela correlação de forças hegemonizada pela tendência neoliberal. Esta

ainda vigora, de maneira contraditória, nos países da região nos quais avançaram

os processos de democratização no campo popular democrático, e que em graus

diferenciados fazem contraposição a essa tendência, e de maneira contundente

em países que se mantêm alinhados a essa perspectiva. Os efeitos nefastos desse

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processo sobre as condições de trabalho são imensos. A reestruturação produtiva e

reprodutiva trazida pela globalização aumentou a expansão do trabalho precarizado

e sem direitos dentro de uma divisão internacional do trabalho que penaliza

sobremaneira os países do sul e os/as migrantes desses países no contexto dos

países do norte. É importante frisar que apesar de ser mais visível a reestruturação

produtiva, há também uma reestruturação das relações de trabalho no campo

reprodutivo dentro dessa divisão internacional do trabalho, que tem como uma

de suas fortes características a migração das mulheres dos países do sul para os do

norte, para assumirem o trabalho como empregadas domésticas.

Muitos países da América Latina são exportadores de força de

trabalho para o trabalho reprodutivo para os países do Norte. Internamente,

na própria América Latina, também acontece a migração de mulheres para o

trabalho reprodutivo. A categoria das empregadas domésticas, nessa região, é

formada por um contingente em torno de 14 milhões de trabalhadoras. Segundo

análises da OIT (2010), em sua maioria elas convivem com extensas jornadas de

trabalho, baixas remunerações, escassa cobertura de seguridade social e alto nível

de descumprimento das normas laborais. As mulheres são mais pobres que os

homens em todos os países da região. As maiores diferenças de gênero ocorrem na

Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá, República Bolivariana da Venezuela, República

Dominicana e Uruguai. A taxa de pobreza das mulheres é 1,15 vez maior que a dos

homens. (OIT, 2010) Nos estratos mais pobres da população latino-americana estão

as mulheres negras e em grande parte dos países também as mulheres indígenas.

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A população jovem enfrenta grandes problemas em relação ao

mercado de trabalho. Cerca de 20% das pessoas jovens na América Latina não

estudam nem trabalham. As mulheres constituem 72% desse total. “Pelas maiores

dificuldades que têm em ingressar no mercado de trabalho, e muitas vezes, por

padrões culturais, atribuem-se às mulheres tarefas domésticas no interior das

famílias, que assumem também ao se casarem e/ou terem filhos.” (OIT, 2007, p. 40)

No campo do trabalho produtivo, elemento crucial do

desenvolvimento econômico, um problema central na América Latina diz respeito às

relações de trabalho com alto grau de exploração e à concentração da riqueza que

leva à criação de empregos precários e dificulta a criação de novos postos. Segundo

a OIT, “os jovens enfrentam maiores desvantagens no mercado de trabalho, pois

normalmente eles têm acesso a empregos de alta rotatividade, temporários ou

eventuais, com menos proteção social e com salários inferiores”. (OIT, 2007, p. 26)

A OIT preconiza a necessidade de uma legislação voltada para a garantia da proteção

social no sentido de “impedir que os jovens se incorporem a um emprego através de

um contrato precário, sem garantias sociais nem cobertura de seguridade social...

Isso impulsionaria trajetórias juvenis de trabalho positivas”. (OIT, 2007, p. 30)

O emprego estável é uma das principais demandas das pessoas

jovens de 15 a 29 anos. Dois de cada três jovens trabalham em atividades

informais, nas quais frequentemente a remuneração é menor do que um salário

mínimo e sem cobertura da seguridade social. A análise da realidade social dos

jovens na América Latina mostra, como parte da dinâmica de reprodução das

desigualdades, um “retrato da juventude trabalhadora com impacto de fortes

discriminações de gênero e de etnia”. (Ibase/Polis, 2008)

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No modelo neoliberal de desenvolvimento acontece uma nova

forma de apropriação da forma de exploração da mão de obra feminina, a partir

da divisão trabalho produtivo x reprodutivo, para implantação de políticas sociais

a baixo custo baseadas na exploração da capacidade de as mulheres exercerem

múltiplas atividades com criatividade e eficiência nas jornadas de trabalho

cotidiano. Essa capacidade é explorada pelos projetos de desenvolvimento, para

cobrir a falta de distribuição de renda das políticas governamentais. Isto é, essa

forma de exploração ajuda a diminuir os custos com a reprodução social, o que

contribui para a concentração da riqueza.

A produção da pobreza é um produto da mesma lógica de poder

que constrói a concentração da riqueza e não um resultado inesperado do

modelo econômico. Não é algo que esteja fora do controle, é antes algo que

necessariamente tem de ocorrer dentro da permanência de um modelo que se

sustenta nas desigualdades.

Com isso queremos dizer que as relações de produção e acumulação

de riquezas, de repressão e discriminação sexual, de racismo não constituem

dimensões estanques da vida social, mas, ao contrário, são elementos constitutivos

de uma determinada ordem social. A dissociação entre esses campos e entre eles

e a política é uma necessidade do sistema de poder capitalista e patriarcal que, ao

fragmentar e dissociar essas várias dimensões, fragiliza as estratégias de resistência.

A expressão contundente das várias engrenagens da dominação desse sistema é a

própria realidade social, que, tomando o caso da América Latina, apresenta um

grau elevadíssimo de desigualdade social de classe, raça, etnia e gênero.

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Desenvolvimento é um processo e só pode ser democrático se a

pluralidade dos sujeitos coletivos estiver presente nas decisões sobre os seus rumos.

O avanço político de vários países na América Latina cria um contexto favorável

para impulsionar mudanças, e nesse processo os jovens organizados politicamente

devem ser sujeitos estratégicos.

Como questão de método devemos pensar a democracia e o

desenvolvimento como processos indissociáveis. Esse método deve servir como

referência para os contextos nacional e global e para a relação entre eles. As abordagens

que tomam esses termos como dimensões separadas na organização da vida social

fazem que haja, de um lado, a despolitização das decisões e ações denominadas como

de desenvolvimento, e, de outro, restringem o sentido da democracia ao exercício da

prática política, sobretudo ao âmbito da democracia representativa.

Um jeito de se contrapor a essa abordagem é aquela que coloca a

luta por cidadania como uma forma de qualificação da construção da democracia,

que opera justamente no sentido da conjunção das dimensões de que estamos

tratando. A referência à cidadania está vinculada a uma demanda por um Estado

promotor de bem-estar social e a uma democratização das formas de participação

política e de exercício do poder. Essa tem sido uma prática dos movimentos sociais

na região que aliam a luta por direitos e por democracia participativa e direta à

perspectiva mais ampliada de transformação social.

Outra questão importante é a relação entre vida cotidiana e

democracia. A radicalização do projeto democrático exige que o cotidiano seja

tomado como uma questão fundamental da sua agenda política e da reflexão

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teórica de quem pensa a transformação social. A partir daí a dicotomia entre esfera

pública e esfera privada e a hierarquização da relação entre produção e reprodução

podem ser questionadas e repensadas. A organização do tempo social é feita a partir

dessa dicotomia e dessa hierarquização, as quais são baseadas nas desigualdades

de gênero e de raça e são fundamentais para reprodução e acumulação do capital.

É na vida cotidiana que os efeitos perversos dos modelos de

desenvolvimento ganham sentido e geram sofrimentos. É no dia a dia que as

desigualdades sociais tomam formas concretas como existência humana.

Desenvolvimento e tempo do trabalho no cotidiano

Uma forma concreta de avaliar os efeitos dos processos de

desenvolvimento consiste em analisar os seus impactos sobre a vida cotidiana, pois

é nela que estão a vida em comum e a vida do dia a dia. Apesar dos avanços

científicos e tecnológicos alcançados no desenvolvimento da sociedade capitalista, a

qualidade de vida para a maioria das populações está marcada pela precariedade.

Ao trabalho como elemento central na análise sobre desenvolvimento

podemos acrescentar que o tempo do trabalho determina a organização do tempo

social na vida cotidiana. Duas questões nos parecem importantes na reflexão sobre

a organização do tempo social: em primeiro lugar, a dimensão que a apropriação do

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tempo de trabalho tem na relação entre capital e trabalho. Trazer essa dimensão

para o tempo da vida cotidiana oferece a possibilidade de vê-lo como o tempo

concreto da existência das pessoas que, para assegurar sua própria reprodução,

vendem sua força de trabalho. A outra diz respeito à desigualdade no uso do

tempo social. As mulheres no cotidiano, diferentemente dos homens, dividem o

tempo entre trabalho reprodutivo e trabalho produtivo. Na relação de classe a

apropriação do tempo dos/as trabalhadores/as pelos/as patrões/oas leva a uma

desigualdade na forma segundo a qual que cada classe pode usufruir do tempo

social. Para mulheres e homens, há uma desigualdade nesse uso do tempo social,

que se realiza em conexão com as desigualdades de classe e que é decorrente de

relações sociais de sexo/gênero/raça.

Em um enfoque a partir da relação entre capital e trabalho sobre o

tempo do trabalho no cotidiano, podemos dizer que o tempo que sobra da atividade

produtiva, para a “classe que vive do trabalho” (ANTUNES, 1999), é contado como um

tempo do descanso, do lazer, do cuidado consigo mesmo/a, isto é, da reconstituição

de cada pessoa como força de trabalho. O tempo do trabalho doméstico do cuidado

com a reprodução da vida das pessoas não é levado em conta na organização

do tempo social dentro da relação entre produção e reprodução. Esse tempo do

trabalho reprodutivo não poderia ter sido considerado na teoria marxiana, pois sua

grade teórica está referida especificamente ao valor do tempo do trabalho na esfera

produtiva a partir da sua equivalência como mercadoria e a partir da venda da força

de trabalho na relação entre capital e trabalho, o que exclui o tempo de trabalho

na esfera reprodutiva. São relevantes as questões: qual é o tempo para os cuidados

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necessários para produzir os meios de manutenção da vida individual e coletiva,

isto é, para o desenvolvimento das tarefas que garantem a alimentação, o abrigo, a

vestimenta, o cuidado, o aconchego, e a manutenção do espaço doméstico? Qual

o tempo social definido para o cuidado com as pessoas que não têm condições de

cuidar de si mesmas, como as crianças, idosos/as e outras pessoas sem condições

física ou mentais para isso? Esse tempo de trabalho, que não é percebido como

parte da organização do tempo social, é retirado do tempo que forma o dia a dia das

mulheres como parte das atribuições femininas, determinadas por relações de poder

que entrelaçam a dominação/exploração patriarcal à capitalista.

A duração da “sobra” do trabalho produtivo é fruto de processos

históricos, de transformações nas relações sociais entre capital e trabalho. Não

é o mesmo em todo lugar, nem para todos/as os/as trabalhadores/as. Como

consequência de um longo processo de lutas e conflitos, foram instituídos direitos

sociais e trabalhistas que regulam a duração da jornada de trabalho e definem os

dias de folga semanal e de férias, mas para se ter acesso a esses direitos é preciso

estar legalmente registrado/a como empregado/a, constituindo um vínculo social

que assegura outros direitos e também deveres. Esses períodos liberados da

produção são, portanto, um direito de cada trabalhador/a de se reconstituir física

e mentalmente. Na atualidade, com a crescente precariedade das relações de

trabalho, esses direitos têm sido ameaçados e em muitos casos desestruturados.

O trabalho informal, que está fora da proteção social, é um campo no qual

predominam as mulheres. Nesse caso, a relação entre tempo de trabalho para

produzir uma renda e tempo do trabalho reprodutivo traz configurações bastante

irregulares e difíceis para as mulheres.

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A forma de desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma

vida cotidiana na qual o tempo social que conta – o uso do tempo que tem valor

– é aquele empregado na produção de mercadorias, gerador de mais-valia, porque

a noção de valor está diretamente vinculada ao valor de troca que caracteriza a

mercadoria. Nesse enfoque, portanto, tem um sentido mercantil, restrito a essa

relação, pois, como ressalta Carrasco, “em nossas sociedades capitalistas atuais, a

organização do tempo social vem determinada fundamentalmente pelo tempo do

trabalho mercantil”. (CARRASCO, 2005, p. 52) A mais-valia é a base da acumulação

do capital. Portanto, a apropriação do tempo de trabalho é uma dimensão fundante

e permanente da sociabilidade capitalista. "Tempo como medida que se impõe

por excelência na primeira sociedade industrial, a partir dos aportes de Marx, que

utiliza o uso do tempo para fixar a equivalência entre tempo de trabalho (jornada

laboral) e preço (salário).” (TORNS, 2002, p. 141). Porém, “o binômio tempo-

dinheiro preside a atual organização sócio-produtiva que vai acompanhada por

representações simbólicas herdadas do ideal de maximizar e quantificar os usos

do tempo”. (TORNS, idem) Por isso, segundo esta autora, as demandas e lutas pela

redução da jornada de trabalho que não questionam o modelo de temporalidade

subjacente podem ser tomadas como um aceitação do modelo dominante.

Se na vida cotidiana está a tensão entre a alienação e a desalienação,

há também uma tensão de natureza prática entre as atividades produtivas,

reprodutivas e as possibilidades de deslocamento para outras esferas da vida

social. Contudo, os sujeitos não são meros receptáculos de uma ordem absoluta,

mesmo quando se configura uma relação de dominação. Segundo Antunes (2002),

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“a referência à vida cotidiana e as suas conexões com o mundo do trabalho e da

reprodução social é imprescindível, quando se pretende apreender algumas das

dimensões mais importantes do ser social”. (ANTUNES, 2002, p. 170)

Deve-se considerar que mesmo quando a alocação do uso do

tempo das pessoas é feita sob um constrangimento social, é possível adquirir

graus diferenciados de autonomia para lidar com esse constrangimento e também

para tentar transformá-lo. O que chamo de constrangimento está relacionado à

dominação ideológica, à falta de meios materiais, à subjetivação da dominação, à

coerção pela violência etc.

Partindo da elaboração sobre vida cotidiana em Lefebvre (1958,

1961, 1972), Martins (2000) coloca que, para o primeiro, a pobreza tem um

significado bem diverso da concepção limitada de pobreza material que era

característica da época de Marx.

A pobreza é pobreza de realização das possibilidades criadas pelo próprio

homem para sua libertação das carências que o colocam aquém do

possível. Numa sociedade e num tempo de abundâncias possíveis, inclusive

e especialmente abundância de tempo para desfrute das condições de

humanização do homem, em que a necessidade de tempo de trabalho é

imensamente menor do que era há um século, uma das grandes pobrezas é a

pobreza de tempo (MARTINS, 2000, p. 104).

Em um mundo globalizado, sobre o qual se diz transformado na relação

da organização do seu tempo social pela tecnologia, que permite deslocamentos cada

vez mais rápidos, comunicação imediata entre pessoas em qualquer país do mundo,

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aceleração do grau de produtividade etc., é importante explorar como campo de

estudo a persistência dos tempos sociais marcados pela lógica da desigualdade, ou

melhor, como o emprego da tecnologia refaz essa lógica para atender às exigências do

desenvolvimento econômico ditadas pelo processo de globalização.

O desenvolvimento tecnológico não tem possibilitado a liberação

de tempo livre para “a classe que vive do trabalho”. (ANTUNES, 2000) Nem

tampouco tem garantido melhoria nas condições reais do trabalho para a grande

maioria da população. Para isso são necessárias políticas públicas que garantam

que as tecnologias sejam utilizadas em benefício, não somente da sofisticação

dos produtos e do aumento da produtividade, mas sobretudo em benefício da

cidadania para a classe trabalhadora. De acordo com a OIT (2007), para os jovens

na América Latina o cenário atual exige a implantação de políticas públicas

que garantam que o conhecimento sobre as tecnologias aliado a outros fatores

possam de fato garantir outra maneira de inserção no mercado de trabalho. A

entidade acrescenta que “há um cenário favorável para a juventude que deve ser

aproveitado, para isso, são necessárias políticas que abram oportunidades para

todos, facilitando a difusão massiva e inclusiva do conhecimento produtivo e das

novas tecnologias”. (OIT, 2007, p. 25)

As políticas públicas para engendrar novas relações entre trabalho

e cidadania devem ser consideradas como uma forma de se contrapor à lógica dos

modelos de desenvolvimento que prevalecem na região e mundialmente, os quais

utilizam o avanço tecnológico como elemento de poder e exploração. Lefebvre

(1958) já colocava em questão que “o mesmo período que viu o desenvolvimento

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estupendo das técnicas aplicadas à vida cotidiana viu também uma, não menos

estupeficante, degradação da vida cotidiana para as grandes massas humanas”.

(LEFEBVRE, 1958, p. 15). No contexto atual o desenvolvimento das tecnologias para

os mais variados fins serve não só para manter, mas também para elevar a um

grau antes impensável, a hierarquização entre produção x reprodução. Os usos da

tecnologia como meio para explorar e dominar têm levado a uma realidade na qual

trabalhadores/as são descartados/as, a natureza é ameaçada, animais e plantas são

produzidos nos laboratórios. Assim a vida e as formas de resistência no cotidiano

ficam ainda mais difíceis, sobretudo quando o tempo da existência é tragado pela

exploração do tempo do trabalho.

Regra geral, ou a pessoa está no mercado de trabalho com muito

mais comprometimento do seu tempo ou está totalmente fora dele, sem nenhum

controle sobre o seu tempo e sem possibilidade de usufruir o tempo liberado das

ocupações chamadas de produtivas. Porque alguém sem recursos financeiros

perde sua autonomia de decidir sobre sua participação na vida social. Muitas

vezes, a própria liberdade de ir e vir fica comprometida. Por exemplo, como

todas as possibilidades de deslocamento nas cidades e no campo, e entre esses

espaços urbanos e rurais são realizadas através de meios de transporte privados,

portanto dentro da esfera das relações mercantis, há necessidade de ter dinheiro

para circular em qualquer dimensão – dentro do território local e do território

mundial. O desemprego, que significa a falta de uma renda para viver, quando por

longo período e/ou sem proteção social, produz um processo de desagregação

que coloca o sujeito em descompasso com um cotidiano marcado pela inserção

no mercado de trabalho.

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Na América Latina há um abismo entre a vida cotidiana e a história,

pois a conquista de direitos e os avanços no processo de democratização política

ainda não se expressam de maneira concreta no cotidiano da maioria da população.

Um processo de transformação que leve à emancipação dos sujeitos, garantindo

a igualdade com justiça social, requer também a construção de concepções

que possam levar em conta a pluralidade das experiências nesse continente,

que reconheçam a experiência dos povos originais dessa terra como sujeitos

fundamentais para construção de outras formas de desenvolvimento que levem a

um outro mundo possível no continente.

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