A construco ritual da pessoa: a possesso no Candombl
A construo ritual da pessoa: a possesso no Candombl1 (Religio e
Sociedade 12 (1): 22-54 (ago. 1985)
Marcio Goldman*
Acontecia com a possesso o mesmo que com o totemismo? Estaramos
condenados a v-la desvanecer-se como objeto no momento mesmo em que
a isolamos? Ser possvel trat-la como algo menos brutal do que uma
fora selvagem que individualiza e pe parte os que a experimentam?
Responder essas questes colocar-se na via de uma explicao
verdadeiramente antropolgica do transe. E para faz-lo convm, em
primeiro lugar, indagar-se acerca do estranho fascnio por ele
exercido sobre o discurso ocidental ilustrado. Essa indagao,
contudo, no pode se efetuar no vcuo de concepes culturais frouxas e
apenas mais ou menos datadas. Seria possvel restringir a amplitude
da investigao a manifestaes concretas da possesso e aos discursos
igualmente concretos que tentaram delimit-la e dela dar conta.
Algumas observaes de carter mais amplo e genrico so entretanto
necessrias, em primeiro lugar.O xtase no e de forma alguma a
primeira constatao a fazer estranho a esse largo campo cultural
chamado de modo bastante simplificador de ocidental. Ao longo do
tempo, o Ocidente tem mantido uma estranha e equvoca relao com os
fenmenos extticos, relao marcada, sobretudo, por oposio ao lugar
ocupado pelo xtase e pelos que o experimenta diretamente na maior
parte das sociedades estudadas pelos antroplogos, pelo signo da
excluso. A suposta racionalizao progressiva das prticas religiosas
e intelectuais dos gregos, o combate efetuado pela Igreja Catlica
contra todos aqueles que se arriscam a um contato no-intermediado
com o sagrado e a medicalizao das prticas espritas so apenas
algumas das faces dessa excluso global que o Ocidente tem
impostoqueles que buscam a experincia direta do sagrado tendo como
nico intermedirio seus prprios corpos.As razes dessa excluso devem
sem dvida ser buscadas em dois lugares distintos, mas
complementares: primeiramente, na forma especfica de
desenvolvimento das instituies religiosas no mundo ocidental, onde
uma centralizao progressiva fez com que o monoplio da relao com as
potncias sagradas se encontrasse irremediavelmente ameaado pelo
simples reconhecimento de que essa relao poderia se efetuar por
outros meios. E, mais do que isso, correr-se-ia o risco de ver a
palavra divina apresentada diretamente, quando sua legitimidade s
reconhecida quando representada por um corpo sacerdotal
institucionalizado. A revelao crist se d apenas uma vez e a partir
deste momento s pode ser repetida por quem de direito; as revelaes
trazidas pela possesso, ao contrrio, so contnuas, repetem-se
indefinidamente, podem variar, e seus portadores podem ser, ao
menos virtualmente, qualquer um.H entretanto uma outra
caracterstica na possesso que coloca em questo outro dos mais
arraigados dogmas culturais da sociedade ocidental. O possudo ,
evidentemente, um ser unitrio, e no entanto, de modo paradoxal, ele
mais do que um. O que fazer ento dessa unidade do eu to cara ao
Ocidente e da qual Mauss traou brilhantemente o esboo de histria
(Mauss, 1935)? Como aceitar que o sujeito pode se colocar fora do
domnio de sua conscincia sem enxergar a uma manifestao de um estgio
pr-civilizado ou mesmo a irrupo de um processo patolgico? As formas
de xtase reconhecidas como mais ou menos legtimas pelo Ocidente,
longe de questionarem essas constataes, reforam-na. Pois, de um
lado, o possesso demonaco est obviamente fora de si, inconsciente
(as faltas por ele cometidas nesse estado no so consideradas
pecados), e preciso salvar sua alma, ou seja, restituir sua
unidade; por outro lado, o mstico cuja alma busca ascender at Deus
encara sua trajetria ao mesmo tempo como ascese e como mergulho no
interior de si, pois apenas a que a unidade com Deus pode ser
encontrada. Nada de semelhante com essas populaes em que a
divindade toma de fora o corpo do fiel, cavalga-o, atira-o ao solo,
apaga sua conscincia, mas tudo isso em benefcio do grupo e sem
qualquer busca de unidade.O combate cultural e poltico movido pelo
Ocidente contra as formas religiosas baseadas na possesso no
conheceu, na verdade, em momento algum, um ponto final. Denunciadas
e mesmo banidas em algumas reas, ressurgiam transfiguradas em outro
momento e situao. Nesse sentido, o contato estabelecido com novas
civilizaes, cada vez mais intenso a partir do sculo XVI, teve o
efeito de introduzir novos elementos no debate. A constatao
progressiva de que praticamente todas as sociedades apresentavam
algo de semelhante s possesses demonacas abria, evidentemente, a
possibilidade do reconhecimento desse tipo de experincia como
inscrita na natureza humana, e por conseguinte de sua normalidade
potencial. No entanto, por um movimento contrrio provocado pelo
particularmente violento etnocentrismo ocidental, chegou-se a
atribu-la a uma espcie de naturezapr-humana ou pr-social: assim
como se acreditava que os possudos pelo demnio no Ocidente eram
aqueles que no possua o controle de si prprios, ou seja, aqueles
que no conseguiam assumir totalmente sua cultura da a predileo
demonaca pelas mulheres, seres vistos como situados no limiar das
fronteiras da cultura com a natureza , acreditou-se tambm que povos
inteiros que se supunha viverem em pleno estado de natureza
estariam, com muito mais razo ainda sob este ponto de vista, a merc
dos ataques do diabo e de suas incontveis falanges.A Antropologia,
que se estabelece a partir do sculo XIX como um dos ramos do saber
cientfico, num dilogo incerto com precisamente aquilo que a tradio
ocidental exclui, encontra ento nos fenmenos de possesso um loquaz
interlocutor. Como no caso de outros tantos fatos estudados pela
cincia antropolgica, poder-se-ia contudo levantar a suspeita de que
talvez se esteja lidando aqui, tambm, com um desses fenmenos
inerentes nossa prpria sociedade e que, projetados sobre outros
panos de fundo culturais, sofrem uma espcie de difrao deformadora.
No que diz respeito especificamente ao campo da chamada
Antropologia da Religio, defrontamo-nos constantemente com
processos semelhantes. Sem dvida, a dissoluo do conceito de
totemismo (Lvi-Strauss, 1975) o melhor exemplo de denncia e
esclarecimento de uma tal perspectiva etnocntrica; no entanto, bvio
que a lista dessas projees no se esgota a, e realidades como a
feitiaria, o fetichismo e, talvez, a possesso parecem guardar em
algum nvel o mesmo coeficiente ilusrio da iluso totmica.
I.A POSSESSO NO BRASIL
Se a observao do transe em sociedades exticas e distantes,
prximas apenas por contingncias polticas e econmicas derivadas da
explorao colonial, provocou esse questionamento inevitvel de certos
dogmas ocidentais, bem como a tentativa de neutralizao terica deste
questionamento, pode-se imaginar o que se passa quando tais
fenmenos ocorrem no interior de uma cultura que busca afirmar um
alto grau de civilizao, libertando-se das amarras de um passado
visto como obscurantista e inferior. De fato, isso o que sucede em
finais do sculo XIX no Brasil, sendo expresso pelos autores da poca
na crena de que duas sociedades desigualmente desenvolvidas e
racionalmente hierarquizadas coabitavam o mesmo territrio, e no
receio de que a camada inferior (negra e primitiva) terminasse por
abastardar a superior (branca e civilizada).A possesso, claro,
compunha esse quadro primitivo e aterrorizante da cultua negra e
era encarada mesmo como um de seus traos mais aberrantes. Roger
Bastide (1973:304) parece acreditar que a nfase obstinada dada
possesso pelos primeiros estudiosos dos cultos afro-brasileiros se
deve ao fato de que, em sua maioria, tratava-se de mdicos por
formao. Ao contrrio, parece bvio que foram exatamente esses estados
mrbidos do transe que fizeram com que mdicos, legistas e
psiquiatras tivessem se dedicado ao estudo de um objeto terica e
praticamente to distante de suas preocupaes cotidianas (ao lado,
sem dvida, de suas inquietaes com as questes de eugenia).Assim, o
destino do transe nos cultos afro-brasileiros era o gabinete mdico,
e o diagnstico que o esperava s podia ser o de enfermidade mental.
essa a posio dos primeiros estudiosos do tema.Assim, para Nina
Rodrigues (1900), o pioneiro dos chamados estudos afro-brasileiros,
a explicao do transe no oferece qualquer dificuldade especial.
Tratar-se-ia, de fato, de uma perda da personalidade terrestre do
filho-de-santo que assumiria ento a personalidade de seu orix (p.
73). A utilizao do conceito de personalidade sintomtica. Com esse
modelo que curiosamente coincide com o modelo consciente dos
informantes, bastando para isso que no se leve a srio demais a noo
de personalidade que, no entanto, paradoxalmente, ser a chave da
explicao2 Nina Rodrigues sustentar ento, baseado em certas colocaes
da psiquiatria de Janet, que a possesso um estado de sonambulismo
provocado, com desdobramento e substituio da personalidade (p.81) e
que, deste modo, fenmeno semelhante s perturbaes histricas3. Seu
alto grau de incidncia entre os negros baianos dever-se-ia, segundo
nosso autor, a seu fraco desenvolvimento intelectual, o que os
predisporia a esse tipo de transtorno. Nina Rodrigues analisa ento
o transe aceitando desde o incio, e como pedra de toque de toda a
sua concepo, o postulado ocidental de uma unidade do eu que s
perdida em situaes classificadas como patolgicas, situaes s quais a
possesso forosamente assimilada j que a especificidade da concepo
de pessoa, nos quadros da qual o xtase tem lugar, no reconhecida
como legtima.Mais de trinta anos aps Nina Rodrigues, Arthur Ramos
(1940 especialmente o captulo VII), tambm mdico legista e
psiquiatra, retornaria questo da possesso, criticando seu
predecessor pela utilizao limitadora dos modelos de Janet. Ramos
prope que me vez de associar-se a possesso histeria pura e
simplesmente, tingindo tal associao de um indisfarvel biologismo,
dever-se-ia optar por um modelo pretensamente mais complexo, onde o
transe poderia ser ligado a mltiplos tipos de perturbao mental.
Mais especificamente, ele derivaria de uma regresso que atingiria
estados afetivos profundos, arcaicos, restos hereditrios de um
primitivo estgio de vida(p. 283). Ora, este primitivo estgio de
vida coincidiria tanto na ordem da ontognese quanto na da
filognese: o transe e a doena mental seriam, um na ordem social, o
outro na individual, manifestaes de camadas arcaicas do
inconsciente humano. Finalmente, essa explicao de origem
nitidamente junguiana mesclada ao conceito de participao de
Lvy-Bruhl, que explicaria anecessidade que o "primitivo experimenta
em trazer as divindades para perto de si (p. 260). Novamente, uma
concepo etnocntrica da noo de pessoa, que no deixa lugar para as
matizes e variaes locais, corrompe toda a anlise.Se uma relativa
ateno foi dedicada, aqui, s teses de Nina Rodrigues e Arthur Ramos
acerca da possesso, isso se deve basicamente ao fato de que esses
dois autores delimitaram um certo espao terico para a anlise do
transe. Nesse espao movem-se ainda autores como Etienne Brazil
(1912), Gonalves Fernandes (1937), Manuel Querino (1938) e outros
que tm em comum a preocupao de encontrar uma explicao para o transe
atravs da utilizao de modelos biologizantes e psiquiatrizantes,
ligando-o s mais variadas formas de perturbao mental, da histeria
ao alcoolismo e ao uso de drogas entorpecentes.A partir da dcada de
40, contudo, esse espao terico-explicativo comea a sofrer uma
interessante toro. Herskovits (1941), Bastide (1945;1961), Eduardo
(1948), Ribeiro (1952) sero os principais responsveis por uma
reviravolta na direo dos estudos afro-brasileiros, reviravolta que
iria frutificar, embora tomando forma nova e mesmo aparentemente
oposta posio desses predecessores tericos, nas dcadas de 60 e 70. A
principal idia trazida como novidade por esses autores a firme
convico de que o transe , acima de tudo, umfato socialna acepo
durkheimiana do termo, e que portanto ele pode e deve ser explicado
apenas em relao ao contexto social e no atravs do recurso a
categorias extradas da psicopatologia individual. Em outros termos,
longe de ser patolgica e individual, a possesso seria um fenmeno
normal e social. Tanto Bastide quanto Herskovits e seus alunos (Ren
Ribeiro e Octvio da Costa Eduardo) insistiro basicamente no carter
socialmente adaptativo do transe. Indivduos socialmente
marginalizados e discriminados (por motivos raciais, de classe ou
mesmo sexuais) encontrariam nos cultos afro-brasileiros e
especificamente no transe mstico um modo de inverter sua baixa
posio social: tomados pelas divindades africanas transformar-se-iam
em deuses e reis, compensando assim seustatussocial inferior. A
possesso contribuiria assim para a adaptao desses indivduos
sociedade mais ampla, altamente estratificada e dificilmente
permevel por canais normais, caractersticas que tenderiam a colocar
esses indivduos estruturalmente inferiores como que fora do jogo
social se os cultos no lhes oferecessem a iluso compensatria de uma
participao.Pode-se dizer, creio, que a partir de 1961 (com a
publicao do livro de Cndido Procpio Camargo), mas mais
especificamente ainda durante a dcada de 70, essa abordagem do
transe enquanto fato social normal se solidificar, acompanhando o
avano geral da cincia antropolgica e a influncia de uma certa
modalidade moderna do funcionalismo. A explicao para a possesso
passar, contudo, por uma nova toro, embora as idias bsicas
colocadas por Herskovits e Bastide permaneam quase que as mesmas, e
embora isso no seja geralmente reconhecido. Autores como Peter Fry
(1977), Luz e Lapassade (1972), Diane Brown (1974), Yvonne Velho
(1976), entre muitosoutros, ora reconhecem a inverso hierrquica
presente na possesso, tendendo ento a explic-la no como um modo de
adaptao social, mas como uma forma de protesto de certas camadas
socialmente desprivilegiadas, ora tratam-na mecanismo de reforo da
ordem social mais abrangente. Seja como mecanismo de reforo, seja
como estratgia de inverso, o que sustentado aqui, explcia ou
implicitamente, que os cultos afro-brasileiros no possuem, ao menos
plenamente, um contedo prprio, ou seja, so vistos como puras formas
que remetem ou falam de outras realidades tidas como mais
substantivas (a estrutura social mais abrangente).Creio ento se
possvel sustentar, de modo muito sumrio como no poderia deixar de
ser aqui, que historicamente foram apresentados dois modelos para a
anlise da possesso nos cultos afro- brasileiros e, por implicao,
para os prprios cultos como um todo. Por um lado, o modelo mais
antigo e hoje completamente ultrapassado por seu reducionismo e
evolucionismo comprometedores prope explicar o transe reduzindo-o a
um fator biolgico, patolgico e individual, seja ele de carter
histrico, neurtico, ou a simples conseqncia do uso de bebidas
alcolicas ou de txicos. A outra explicao, sustentada a partir da
constatao de ser a possesso um fato socialmente determinado, a
despeito de suas implicaes biopsicolgicas, defender a idia de que
para explic-la preciso conect-la com a ordem social abrangente, ora
vendo-a como mecanismo adaptativo, ora como instrumento de protesto
social, ora como meio de reforo da ordem existente. importante
notar que essas duas vias reproduzem de modo bastante direto, como
seria de se esperar, as principais tendncias tericas contemporneas
para o estudo do transe. Assim, autores como Luc de Heusch (1971)
tentam construir uma teoria geral da possesso, encarando-a como uma
forma de perturbao mental socialmente captada, seja como uma tcnica
pr-mdica para a cura de doenas mentais, seja como vestimenta
cultural para a prpria doena mental. No outro plo, encontramos
autores como Ioan Lewis (1971) e Mary Douglas(1970) que vem no
transe um canal para as manifestaes de protesto dos setores
oprimidos de qualquer sociedade.Apesar de suas divergncias bvias,
essas duas vertentes de explicao para o transe a biologizante e a
sociologizante apresentam contudo, me parece, um ponto em comum a
que estritamente necessrio estar atento. Ambas as perspectivas
tendem a explicar a possesso reduzindo- a a alguma coisa que lhe ,
de uma forma ou de outra,exterior,seja no plano biolgico, seja no
sociolgico. Ou seja, tanto as teorias mais gerais sobre o transe
quanto aquelas restritas aos cultos afro-brasileiros incidem num
erro metodolgico e epistemolgico comum, oreducionismo. evidente que
no pretendo negar que a possesso tenha aspectos biopsicolgicos e
muito menos que tanto ela quanto o culto de que faz parte,
inseridos que esto numa sociedade mais ampla sobre a qual seu poder
muito reduzido, no digam algo acerca dessa sociedade ou reflitam
algo de sua estrutura. A questo deve ser colocada em outro nvel e
diz respeito ao processo de conhecimento de um fenmeno como a
possesso e de suas relaes com o que lhe exterior, embora
conectado.Reduzir o transe ao nvel biolgico e/ou psicolgico
esquecer uma das mais bsicas regras do mtodo sociolgico que
assegura que os fatos sociais processam-se num plano que lhes
especfico e devem ser estudados neste nvel de autonomia. Mais do
que isso, os antroplogos sabem desde Mauss que os fatos sociais
sototais,ou seja, articulam e do sentido a realidades de outros
nveis: fisiolgico, psquico etc. (cf. Lvi-Strauss, 1950). Assim,
antes de reduzir o transe ao psicobiolgico, ou de trat-lo atravs de
um ecletismo interdisciplinar que s conduz a confuses perturbadoras
(por exemplo, Walker, 1972), cumpriria, ao contrrio, tentar
compreender e demonstrar como um fato socialmente determinado e
socialmente vivido pode induzir fenmenos de outro nvel. No estou
descartando, portanto, a possibilidade de que outras cincias
forneam elementos para uma compreenso do transe creio mesmo que
isso quase essencial. O problema esperar que tais cincias,
quaisquer que sejam elas, nos forneam a chave explicativa de um
fenmeno que, sobretudo por ser total, cabe por direito e dever ao
antroplogo estudar.Por outro lado, o tratamento sociologizante,
embora sem sombra de dvidas muito mais adequado que o anterior por
respeitar o princpio de autonomia do plano scio-cultural, incorre
num erro paralelo ao da perspectiva biopsicologizante. Tomando a
idia de fato social de um modo por demais durkheimiano, tenta-se
aqui determinar de que modo o transe refletiria realidades mais
profundas, da ordem da estrutura social. Ora, ao fazer isto
perde-se de vista que a estrutura social na verdade a resultante da
coexistncia e interligao de mltiplos planos, cada um dotado de uma
densidade prpria, ou seja, de uma certa dose de especificidade (cf.
Lvi-Strauss, 1950). Nesse sentido, a conexo do transe com
estruturas sociais mais inclusivas no pode ser feita de modo direto
e imediato, sendo preciso levar em considerao as possveis mediaes
oferecidas pelaestrutura da possessoe pelaestrutura do cultoem que
ela se processa. Pois se no h dvidas de que as relaes internas ao
culto so influenciadas pelas relaes sociais mais amplas, tambm
verdadeiro que elas funcionam como lentes que fornecem aos membros
do grupo uma via de acesso especfica para a realidade social
exterior e influem, portanto, de modo decisivo na percepo e
experincia vividas por essas pessoas. O que quero dizer com isso,
em relao a meu objeto de estudo especfico, que embora no possam
restar dvidas de que tanto o transe quanto os cultos
afro-brasileiros falem da sociedade brasileira preciso ressaltar
que eles o fazem atravs de uma linguagem que estruturada de modo
especfico. Em suma, a conexo da possesso com a "estrutura social s
pode ser um ponto de chegada e nunca de partida.Minha hiptese bsica
ento a de que para entender de modo completo a articulao do transe
e do culto com a sociedade brasileira estritamente necessrio
analisar em primeiro lugar as estruturas do transe e do culto. Ou
seja, preciso primeiro considerar a possesso em si para depois,
atravs de aproximaes sucessivas, atingir as conexes com a sociedade
abrangente.Num tal sentido, o relativo fracasso (no que diz
respeito especificidade do transe) das tentativas tericas de
explicao anteriormente resumidas talvez possa, quando cotejado com
os dados empricos, ser ilustrativo e indicar uma pista por onde
seguir. Pois se onde os primeiros autores no viam nada alm de fatos
individuais, os mais recentes enxergam apenas a ao macia da
estrutura social sobre os indivduos; isto talvez no se deva a
simples diferenas tericas ou mesmo ideolgicas, mas a alguma
particularidade do fenmeno em questo, particularidade para a qual
estritamente necessrio estar atento se desejamos superar os
impasses anteriores.Na verdade, esta particularidade bastante bvia,
e realmente notvel que tenha passado despercebida da maior parte
dos estudiosos do tema a exceo, como sempre, Roger Bastide. Em
primeiro lugar, evidente que a possesso umrituale que, portanto,
sua explicao deve necessariamente passar por uma certa concepo
sobre o que o rito. Em segundo lugar, tambm bastante bvio, mas
talvez no tanto, que no modelo nativo o transe atua atravs de uma
perturbao, ou de uma transformao, para ser mais exato, do fiel que
o experimenta. Ou seja, o transe opera sobre o indivduo humano.
Esta aparente banalidade deixa imediatamente de s-lo se lembrarmos
que a noo de indivduo no nem unvoca nem universal, e que se
tentarmos dar conta de realidades culturais outras a partir de
nossa prpria concepo acerca da pessoa humana, o mximo a que
chegaremos a uma srie infindvel de projees etnocntricas
deformadoras. isto, alis, o que acontecia com Nina Rodrigues,
Arthur Ramos e tantos outros, que insistem, at hoje, em falar da
possesso como um processo de dissociao da personalidade, como se a
noo mesma de personalidade (ao menos no sentido aqui utilizado) no
fosse problemtica, e a crena num indivduo uno e, a princpio,
indivisvel que o termo dissociao necessariamente supe no fosse
praticamente exclusiva de algumas ideologias ocidentais. Nesse
sentido seria mais apropriado, sem dvida, dizer que a possesso est
intrinsecamente ligada com a noo de pessoa adotada pelo grupo que a
pratica. Isto significa que, alm de uma certa concepo de ritual, o
transe exige, para ser justamente compreendido, uma determinada
teoria sobre a noo de pessoa.Deste modo, creio ser possvel
sustentar que a possesso um fenmeno complexo, situado como que no
cruzamento de um duplo eixo, um de origem nitidamente sociolgica, o
outro ligado a nveis mais individuais. Talvez esteja aqui uma das
razes das incompreenses tericas de que foi vtima o xtase religioso,
na medida em que as explicaes que tentam dele dar conta costumam
dissociar estes dois eixos, tratando exclusivamente de um deles ou,
quando ambos so encarados, adotando uma perspectiva mecanicista e
atomizante. Para evitar estes problemas preciso sustentar, creio,
que a possesso s revela sua estrutura profunda ao ser tratada
simultaneamente sob o duplo ponto de vista de uma teoria da
construo da pessoa e de uma teoria do ritual.
II.POSSESSO E PERSONAGEM
A interdependncia da estrutura da possesso e da noo de pessoa
nos cultos afro- brasileiros foi pressentida, pela primeira vez,
por Roger Bastide. De fato, Bastide supe que a explicao da possesso
passa pela anlise dos mltiplos cmodos do castelo interior, cada um
dos quais com sua liturgia exttica (Bastide, 1961:226). No entanto,
essa linha de investigao no foi levada a termo por Bastide, que
preferiu insistir na idia de que o filho-de-santo umpersonagemisto
, algum que se imagina prefigurar na Terra um drama mtico
(1973:316-7): o xtase repetiria ento, no ritual, um plano mtico
onde os indivduos encarnam os deuses e suas relaes; o ritual
exttico um ritual-experincia-vivida (1961:200) e a possesso no uma
simples substituio, mas uma metamorfose da personalidade (ibidem:
201-2). essa a idia bsica. a partir dela que Bastide sustentar que
no apenas no momento do rito que os orixs influenciam os homens,
mas que na sua vida, nas suas estruturas psquicas, o homem todo
inteiro simboliza o divino (ibidem: 235). Em outros termos, o
candombl seria uma mquina para a fabricao de personagens que os
filhos-de-santo abraariam por serem mais satisfatrios e
destatusmais elevado do que aqueles representados cotidianamente
por eles, experimentando ento uma compensao por seu
baixostatussocial: na dana exttica o negro abandona seu eu de
proletrio, seu eu social, para se transformar, sob o apelo
angustioso dos tambores, no deus dos relmpagos ou na rainha dos
oceanos (ibidem: 1973:316).O modelo de Bastide representa, creio, a
melhor aproximao explicativa j apresentada para o transe no
candombl. No obstante, ele possui duas idias, centrais, com as
quais impossvel estar, hoje, de acordo. Em primeiro lugar, a
identificao do filho-de-santo com seu orix pressupe, evidentemente,
a existncia prvia de dois seres individualizados, dotados de
caractersticas internas prprias (o eu psicolgico do filho e o
modelo da personalidade do orix) que, apenasa posteriori,podem se
aproximar. Na verdade, no bem isso que parece ocorrer. O orix antes
de tudo uma fora natural csmica, e no uma individualidade de
qualquer espcie; tambm o filho-de- santo, conforme veremos,
encarado como multiplicidade, que o orix ajuda a construir e no
simplesmente modificar ou qual ele se agrega depois de acabada.Alm
disso, a concepo bsica que est atrs de todo o esquema de Bastide
sem a qual ele no faria sentido a problemtica noo extrada de
Griaule de que, nas sociedades africanas, o mito modela a organizao
social: a estrutura do social est determinada pelas concepes
religiosas... O social apenas inscreve no solo e encarna nas relaes
interindividuais as leis da mstica (ibidem: 370). Para Bastide isso
seria ainda mais verdadeiro no caso do candombl, j que aqui a
superestrutura religiosa teria sido separada e autonomizada da
infra-estrutura sociolgica durante o processo de escravizao (cf.
Bastide, 1971 para maiores detalhes; o assunto a exaustivamente
tratado. Ora, este tipo de viso, ao cometer o erro simtrico e
inverso quele de inspirao funcionalista, que insiste em ver no mito
a expresso direta da estrutura social, no pode fornecer uma
explicao adequada para as estruturas religiosas, na medida em que
estas seguemsendo explicadas (ou, desta vez, servindo para explicar
sistemas a elas extrnsecos). Como demonstrou Lvi-Strauss, o mito, o
rito e a estrutura social devem ser encarados como nveis de
manifestao dos mecanismos de ajustamento do homem ao mundo e dos
homens entre si, nveis que se processam segundo cdigos diferentes
embora intertraduzveis, e nenhum dos quais ocupa uma posio
privilegiada ou determinante ao menosa priori(cf. Lvi-Strauss,
1962:247; cf. tambm Merleau-Ponty, 1948:184, onde, pela primeira
vez, parece, o problema foi colocado nestes termos). Neste sentido,
a relativa autonomia da estrutura cosmolgica e ritual do candombl
convidaria antes a trat-las de forma estrutural, e no a buscar
nelas uma potncia de determinao que elas evidentemente no podem
possuir.Mais recentemente, Claude Lpine (1978) procurou prosseguir
na trilha traada por Bastide, e seu trabalho apresenta tanto as
virtudes quanto os defeitos do modelo do mestre. Basicamente,
trata-se de encarar o candombl como um sistema de classificao do
universo, classificao que abarcaria tambm os seres humanos, nico
aspecto a nos interessar aqui. Nesse plano estaramos, segundo a
autora, s voltas com um sistema de tipo totmico que operaria atravs
do estabelecimento de relaes entre as diferenas existentes entre os
seres humanos e aquelas observveis na natureza, natureza esta
representada por sua vez pelos orixs. O candombl seria nesse
sentido um sistema totmico clssico, tal como aqueles analisados por
Lvi-Strauss (1975), onde uma homologia postulada entre um sistema
de diferenas culturais e uma outra situada na natureza. Sua
especificidade, contudo, que aqui o sistema seria distendido at
atingir as prprias diferenas interindividuais, na medida em que,
sabe-se, para alm do orix geral comum a um grupo de indivduos, cada
pessoa pensada como filha de uma divindade nica, divindade esta que
sempre uma qualidade especfica do orix geral. O esquema engenhoso
e, at certo ponto, verdadeiro; pode, contudo, ser alvo de algumas
objees bastante importantes que o comprometem.Primeira objeo:
estaria de fato o candombl baseado numa lgica de tipo totmico,
mesmo que no configurasse, dadas as peculiaridades histricas de seu
desenvolvimento, um sistema totmico propriamente dito? Que o
candombl comporta um sistema de classificao evidente demais para
ser discutido; que este sistema opera simultaneamente nos planos da
natureza e da cultura tambm bastante bvio; e, no entanto, a hiptese
de que sua estrutura ltima consistiria num sistema de homologias
entre diferenas naturais e culturais desse ser considerada com mais
cuidado. Ao nvel do orix geral ela parece de fato vlida, na medida
em que cada orix representa uma fora da natureza e , ao mesmo
tempo, o senhor da cabea de um certo nmero de seres humanos (que no
configuram, alis, um grupo). Assim, poder-se-ia dizer que a
diferena entre os filhos de Omolu e aqueles de Oxum homloga oposio
terra/gua, e assim por diante para cada par de orixs. No entanto,
quando consideramos o orix especfico, as coisas no ficam to claras.
Pois embora o Orix de cada indivduo lhe seja particular e nico,
diferenciando-o portanto de todos os outroshomens, poderamos
perguntar a que diferena natural corresponderia essa diferenciao
pessoal e social.Mas h mais. Ao criticar as teorias antropolgicas
clssicas que erigiam arbitrariamente o totemismo em instituio
substantiva, Lvi-Strauss demonstrou que algicatotmica
essencialmentemetafrica,excluindo radicalmente ocontato
metonmico,que vem a caracterizar outro tipo de sistema, um sistema
justamente no-totmico. Assim, os Ojibwa (de quem a palavra totem
FOI TOMADA DE EMPRSTIMO PELA Antropologia) apresentam, ao lado de
um sistema propriamente totmico que associa espcies animais e
grupos sociais atravs de suas diferenas internas, e que exclui
irremediavelmente o contato entre seus elementos, um sistema munido
de espritos guardies com os quais o indgenatem que entrar em
contato direto(cf. Lvi-Strauss, 1975:28-32). EmO pensamento
selvagem,este segundo sistema qualificado: seu paradigma mais bvio
seria o sacrifcio, unidade mnima de uma estrutura religiosa que
operaria buscando atingir uma associao metonmico entre a divindade
e os homens, entre o sagrado e o profano (cf. Lvi-Strauss,
1976:256-262. Voltarei logo a este ponto, aqui essencial). Ora, o
orix especfico, individual, situa- se integralmente sobre o eixo do
contato metonmico: para ele que so efetuados os sacrifcios, ele
quepossuiseu filho; ele portanto o verdadeiro objeto de culto de
todo o sistema. Claude Lpine confunde ento em sua anlise os
elementos totmicos do candombl com aqueles propriamente religiosos,
e tratando os segundos como se fossem da mesma ordem que os
primeiros no consegue atingir a verdadeira estrutura lgica em
operao no sistema.Mas Lpine no se detm na tese de que o candombl
seria um sistema de totmico. A esta dimenso estrutural ela
acrescenta uma outra de carter funcional. Neste plano, os orixs so
encarados como tipos psicolgicos de uma psicologia popular, espcie
de terapia que liberaria o homem do mundo alienante e
despersonalizante que ele habitaria cotidianamente, oferecendo-lhe
um meio de reforar sua identidade.Para que o culto possa cumprir
sua funo, Lpine supe que a iniciao construiria uma Segunda
personalidade, mais forte, mais individuada, menos alienada do que
a primeira, reforando assim a identidade pessoal do fiel (cf.
Lpine, 1978:383). aqui, alis, que a autora situa sua explicao para
o transe, desenvolvida, segundo ela, a partir da teoria pavloviana
dos reflexos, a nica compatvel com seu modelo estruturalista (sic).
A possesso consistiria, de seu ponto de vista, na destruio da
personalidade simblica, cotidiana do possess atravs do uso de
drogas, do cansao, da msica, das danas etc. e em sua substituio
pela outra personalidade construda ao longo de todo o processo de
iniciao ao culto.Esse segundo aspecto da teoria de Claude Lpine a
funo teraputica do candombl repousa sobre um conjunto de crenas
realmente existentes entre os fiis do culto, mas que ela
levademasiado a srio. Como vimos na parte II, verdadeiro que os
filhos-de-santo se referem por vezes a seus comportamentos e aos
dos outros usando como paradigma traos de suas personalidades
msticas, que so aqueles caracteres que os mitos atribuem a seus
oloris. Expresses relacionando Oxum com covardia, Oxumar com traio,
Oxal com rancor etc. so de fato utilizadas. So encaradas contudo
com um esprito mais jocoso do que srio, e no se cr que reflitam
nada de muito essencial. Tudo se passa como entre os Algonkim, onde
os membros do cl do lobo ameaam devorar aqueles do porco, porque os
lobos comem porcos (cf. Lvi-Strauss, 1975:31). Na verdade, a
influncia do orix sobre o indivduo deve ser buscada em outra parte
que no o seu comportamento pessoal.Mas a interpretao funcional de
Claude Lpine assim como seu esquema estrutural no falha apenas
devido a um mal-entendido etnogrfico. Ao tentar explicar o modelo
totmico do candombl, ela insiste em utilizar como chave de
compreenso um outro modelo, de aparncia psicolgica, mas que na
verdade possui, sobre um outro plano, caractersticas igualmente
totmicas. Pois ao definir o totemismo do candombl como um sistema
de classificao e ajustamento depersonalidades,a autora recorre,
implcita e inconscientemente, ao nosso prprio totemismo aquele que
define cada indivduo, diferencia-o dos demais e o classifica,
associando-o sua personalidade (cf. Lvi-Strauss, 1976:247).
Conferindo arbitrariamente ao segundo modelo o nosso um estatuto
cientfico, Lpine sofre a iluso de ter explicado o primeiro o do
candombl quando na verdade ela apenas traduziu em termos
etnocntricos e deformadores um modelo mtico-cosmolgico da pessoa em
um outro de carter psicologizante. Nesse sentido ela se v obrigada
a supor, sem no entanto confess-lo, aquilo que duas psiclogas
sustentam explicitamente: que as prprias concepes mticas e
cosmolgicas dos orixs no passariam de cristalizaes de tipos
psicolgicos humanos empiricamente existentes (cf. Augras, 1983; cf.
Correa, 1976).Ao analisarem o candombl como um sistema de
personagens ou personalidades, tanto Roger Bastide quanto Claude
Lpine incidem num erro terico fundamental, erro que explica em
ltima instncia a inadequao de seus modelos. Nenhum dos dois, apesar
de repetidas profisses de f neste sentido, leva realmente a srio a
investigao da noo de pessoa adotada por esta religio. Ora, como
lembra Michel Cartry, a no-investigao desta noo conduz geralmente a
um etnocentrismo especialmente pernicioso, na medida em que no se
consegue dar conta do modo pelo qual um grupo pensa sua relao (do
homem) com as instituies sociais e com a natureza (cf. CNRS,
1973:16-17). Termina-se pois, invariavelmente, projetando uma certa
concepo da pessoa humana aquela de indivduo, no sentido de Dumont,
to particular ao Ocidente concepo que corri inevitavelmente todo o
trabalho terico. Assim, o mximo que Bastide e Lpine reconhecem no
candombl que este sistemaclassificaou, na melhor das hipteses,
modifica certos padres de personalidade previamente existentes.
certo que desde Durkheim os antroplogos sabem que as sociedades
humanas classificam no apenas o mundo em que vivem como tambm os
indivduos e grupos que as compem. Foi entretanto com Marcel Mauss
que esta perspectiva se alargou, ao se perceber que uma viso
estritamente classificatria implicava, de algum modo, uma concepo
demasiado positivista da sociedade humana. Isso porque ela
pressupe, em ltima anlise, que o social no consiste em nada alm de
um outro nvel mais complexo, certamente, mas isto no basta que se
superpe a realidades prontas e acabadas, realidades de ordem fsica,
fisiolgica e psicolgica. Desta maneira impossvel perceber o carter
modificador e criador que a cultura exerce sobre esses outros
nveis.Nesse sentido, estudos recentes tm insistido sobre o carter
constituinte exercido pela sociedade ao atualizar concretamente
suas concepes da pessoa humana (cf. especialmente CNRS, 1973;
Lvi-Strauss, 1977; Viveiros de Castro, Seeger e Da Matta, 1979).
aqui que creio ser possvel encontrar um caminho que conduz a uma
melhor elucidao dos mecanismos do transe no candombl, e, talvez, de
uma forma mais geral. Em outros termos, e ao contrrio do que
parecem supor Bastide e Lpine, acredito ser preciso encarar a
possesso e a noo de pessoa como um sistema mais dinmico que no s
classifica como tambm visa produzir tipos especficos de pessoas, no
certamente no sentido de gerar personalidades ou tipos psicolgicos,
mas no de uma atualizao concreta de certas concepes simblicas do
ser humano e de se lugar no universo.Para encontrar tal caminho
preciso antes investigar, ainda que de modo sumrio, a estrutura da
noo de pessoa em um terreiro de candombl, o modo pelo qual ela
construda ao longo do tempo, bem como sua conexo com o transe
exttico. Os dados aqui utilizados so parte do material obtido na
pesquisa do professor Wagner Neves Rocha (de quem fui auxiliar de
pesquisa e a quem agradeo imensamente) em um terreiro de candombl,
nao Angola, situado em Tribob, prximo a Niteri, entre 1978 e 1980.
Mais tarde (1982-1983) confrontei tais dados com outros recolhidos
por mim em um terreiro, tambm Angola, situado em Ilhus, Bahia. Para
alm de algumas discrepncias (perceptveis tambm, evidentemente, no
confronto com grupos estudados por outros pesquisadores), o mesmo
esquema bsico foi encontrado. Alm disso pode-se supor a existncia
de uma estrutura comum subjacente aparente diversidade dos grupos
empricos, sendo que essa estrutura que deve consistir no verdadeiro
objeto de investigao. Utilizo pois os dados de Tribob devido a seu
grau de explicitao e nitidez, o que, no sendo este um trabalho
etnogrfico, facilitar a exposio das idias acerca dos temas aqui
enfocados.
III.POSSESSO E CONSTRUO DA PESSOA
Os membros do terreiro em questo sustentam que o esprito do ser
humano composto sempre por:a)Sete orixs,dos quais um o dono da
cabea (Olori senhor do Ori), ou seja, o orix principal; e seis
outros diferenciados quanto sua importncia e chamados
respectivamente de segundo (Junt), terceiro etc. santos. Entre
esses sete orixs incluem-se necessariamente Oxal, Exu e Omolu,
sendo que sua posio relativa no Ori de cada pessoa varia. Os outros
quatro orixs tambm variam, e a esse conjunto de sete santos d-se o
nome de carrego de santo. Os orixs de uma pessoa so conhecidos pelo
pai-de-santo atravs de uma prtica divinatria conhecida como jogo de
bzios e, aparentemente, no derivam de qualquer tipo de herana
familiar, como acontece na frica.b)Um Er.O Er uma qualidade
infantil do orix e um intrprete do santo. A Segunda definio
atribuda tendo em vista o fato de que o orix no fala usando, quando
deseja transmitir alguma mensagem, o Er que uma entidade faladora e
brincalhona. Por outro lado, o termo qualidade do orix remete a uma
das caractersticas marcantes dessas foras espirituais. Com efeito,
embora os orixs sejam concebidos como foras da natureza, presentes
portanto em toda parte, tais foras no so vistas como homogneas,
formando antes um espectro de vibraes; existem tantas vibraes
principais quanto orixs, mas dentro da mesma faixa podem ser
distinguidas subdivises de modo infinito at se atingir o orix
pessoal de cada filho- de-santo. Este ainda apresenta uma qualidade
eternamente infantil, j que s h Er ligado a orixs individuais: a
cada fiel, seu Er. No se trata pois, aqui, de almas de crianas
mortas, como acontece na umbanda.c)O Egum.Por esse termo define-se
geralmente as almas dos mortos que permanecem perambulando pela
Terra. So espritos desencarnados essencialmente diferetnes e
inferiores aos orixs. Por outro lado, embora se sustente que todo
ser humano traz na cabea um Egum, nega- se a possibilidade da
reencarnao. Trata-se na verdade de um Egum-de-santo. Esse definido,
de forma algo confusa, como uma alma que nunca esteve encarnada e
que no pode ser assimilada: alma da pessoa, propriamente dita
(conhecida por Eled ou Emi, sopro vital que anima o corpo).
Similarmente, fala-se em Er-de-santo, que corresponde ao que
definimos no item anterior, e em Er simplesmente, que vem a ser a
alma desencarnada de uma criana morta.d)O Exu.Em primeiro lugar, ao
contrrio de Er e do Egum, Exu um orix, no se identificando com o
diabo cristo, mas sendo visto como um mensageiro dos deuses, um
intermedirio entre homens e orixs. Nessa funo, Exu visto como um e
como muitos: alm de ser o orix mensageiro em geral, multiplica-se,
pois cada orix possui um Exu que lhe serve de escravo, de
mensageiro particular. Assim, todos tm em sua cabea um Exu, que a
qualidade particular escrava de seu Olori.Nesse esquema, os sete
santos do carrego respondem pelas funes medinicas mais profundas; o
Egum representa a eterna ligao com o passado e o Exu a projeo para
o futuro. O Er, como qualidade do Olori, pode ser includo
nocarrego.So exatamente esses componentes da pessoa os responsveis
pela possesso, em suas vrias modalidades, no candombl. Essas
modalidades, contudo, jamais so contemporneas, e de acordo com seu
tempo de iniciao sua idade no santo que um filho-de-santo
experimenta um ou outro tipo de transe. Assim, se antes de ser
iniciado no se pode dizer precisamente que ele possudo, no obstante
pode-se sustentar ser ele influenciado por fenmenos ligados
possesso: por um lado, a obsesso por espritos de mortos (Eguns) que
pode provocar doenas e perturbaes em geral; por outro abolao,o
momento em que seu Olori o atira sem sentidos ao cho demonstrando
que exige sua iniciao e que s com ela permitir que volte a si. Na
iniciao, diz-se que o filho-de- santo assenta seu Olori. Isto quer
dizer que o pai-de-santo fixa, atravs de sacrifcios rituais, o orix
na cabea do filho. Ao longo do tempo este ter seus seis outros
orixs do carrego sucessivamente assentados em cerimnias designadas
como obrigaes e que acontecem com um, trs, cinco, sete, quatorze e
vinte e um anos de iniciao. A cada obrigao um orix assentado, de
modo que aps vinte e um anos de iniciado um filho-de-santo tem todo
seu carrego assentado, tornando-se ento um tata.A cada obrigao, o
orix assentado passa a poder possuir o filho-de-santo, a partir da
iniciao, quando o Olori que sempre ser o responsvel pelas possesses
mais freqentes comea a possu-lo rotineiramente. Isso, ao contrrio
do que se poderia supor, um sinal que vai acompanhado de um
fortalecimento progressivo do filho-de-santo, que cada vez mais
controla suas possesses. Assim, enquanto um filho recm-iniciado (um
Ya) possudo a qualquer instante, mesmo fora do ritual, e um filho
com pouco tempo de feito vira constantemente no santo, algum com
quatorze anos de iniciado dificilmente incorpora e um tata de vinte
e um anos jamais o far, a no ser que ele prprio o deseje.Com a
obrigao de um ano (assentamento do Junt), o filho-de-santo passa a
Ter o direito de entrar em transe, vez por outra, com seu Exu e com
seu Egum de santo, que devem ser tambm assentados nessa ocasio.
Esses tipos de possesso no so bem vistos no candombl, sendo
interpretados como sinal de fraqueza do mdium. Na obrigao de sete
anos ocorre a entrega do Dec, ritual que procede passagem do filho
a pai-de-santo potencial, ou seja, outorga-lhe o direito de iniciar
seus prprios filhos-de-santo. A entrega do Dec significa que o
filho-de-santo est desse momento em diante submetido apenas aos
orixs, pois at seu pai-de-santo perdeu o poder sobre ele ao lhe
entregar os objetos de sua iniciao (assentamento dos orixs, cabelos
cortados na feitura etc.) o Dec que lhe davam controle sobre o
filho. Ora, a submisso aos orixs tem tambm seu fim: ao atravessar a
obrigao de vinte e um anos, tendo todo seu carrego de santo
assentado, sendoraramente possudo e, presumivelmente, grande
conhecedor dos mistrios do candombl, o filho-de- santo
torna-setatae, diz-se, nem mesmo os orixs o dominam.O candombl
aparece ento como um sistema altamente complexo que procura
paulatinamente incrementar a fora espiritual de seus membros. Antes
de iniciar-se, o futuro filho-de-santo est submetido a tudo: aos
iniciados, aos eguns, aos orixs. Iniciado, controla os eguns,
usa-os como seus escravos, mas depende ainda de seu pai-de-santo e
dos orixs. Com sete anos e com seu Dec liberta- se do primeiro, e
com vinte e um no depende mais de nada, controlando tudo com sua
vontade: tornar-se umtata.Percebe-se ento que o ser humano pensado
no candombl como uma sntese complexa, resultante da coexistncia de
uma srie de componentes materiais e imateriais o corpo (ara), o
Ori, os orixs, o Er, o Egum, o Exu. O que h neste sistema de
particular, e que faz com que o candombl seja umareligiono sentido
estrito do termo e no apenas um sistema de classificao, que embora
todo homem seja pensando como nascendo necessariamente composto por
esses elementos, sua existncia permanece em estado, digamos,
virtual, at o momento em que esses elementos so fixados pelos ritos
de iniciao e de confirmao. O assentamento progressivo das vrias
entidades espirituais corresponde justamente a esse aspecto,
fazendo com que o fiel deixe de pertencer a ,e de depender de, como
os no-iniciados, entidades abstratas e gerais, e passe a ser
constitudo por seres individualizados e concretos o seu orix, o seu
Exu etc. Tudo se passa ento como se fabricao da divindade especfica
(pois, no candombl, o santo feito)a partir de um princpio geral
correspondesse a gnese de um indivduo novo (na medida em que a
cabea tambm feita).Acontece apenas que este indivduo nasce aos
poucos, e de modo bastante lento, j que apenas depois de vinte e um
anos de iniciado que sua pessoa pode estar completa, isto , todos
os seus componentes tendo sido individualizados e, portanto, ele
prprio tambm. At atingir este momento ideal, o equilbrio do seu eu
de tipo instvel, altamente instvel, dependendo do cumprimento de
toda uma srie de obrigaes e proibies rituais cuja violao, ao
destruir este equilbrio, pode chegar a destru-lo enquanto pessoa,
ou seja, a aniquil-lo.Nesta concepo da pessoa humana e de sua
construo, sustentada no candombl, a possesso ocupa um lugar
central. Conforme foi possvel constatar no item precedente, a
continuidade do processo de construo da pessoa, com os sucessivos
assentamentos de seus componentes, acompanhada por um acrscimo, em
extenso, do transe, ou seja, adquire-se o direito (e mesmo o dever)
de incorporar cada nova entidade assentada. Este acrscimo tem
contudo sua contrapartida numa diminuio no ritmo e na constncia do
xtase quanto mais velho no santo menos um fiel deve ser possudo, at
que no final do processo de construo de seu ser, com vinte e um
anos de feito, o transe cesse totalmente de atingi-lo. Em outros
termos, poder-se-ia talvez dizer que quantomais estvel o equilbrio
da pessoa pela incorporao sucessiva de seus componentes menos a
divindade deve tom-la.Pode-se sustentar legitimamente ento, creio,
que sendo a questo central da iniciao ao candombl a manuteno de uma
certa unidade, bastante precria, de uma pessoa eternamente pois que
mltipla ameaada de desequilbrio e destruio, a possesso apareceria
como um dos instrumentos, tambm precrio e provisrio, para a
manuteno deste equilbrio, instrumento que com sua verdadeira
chegada, quando completados os vinte e um anos necessrios para que
a pessoa seja definitivamente construda, tende a se extinguir por
completo depois de vir declinando em freqncia ao longo de todo o
tempo utilizado nessa construo.Se verdade ento, como afirma
Lvi-Strauss, que a questo da identidade e da pessoa se apresenta de
modo simtrico e inverso entre os Samo do Alto-Volta, estudados por
Fraoise Hritier, e os Boror do Brasil central, pesquisados por
Christopher Crocker, na medida em que... entre os Samo, o problema
procede da fragmentao do indivduo em almas ou duplos, enquanto que
entre os Boror, o problema da identidade consiste em compor ou em
recompor o indivduo por meio de emblemas e de posies. (Lvi-Strauss,
1977:180).Poder-se-ia dizer que o candombl situa-se a meio caminho,
reunindo sinteticamente essas duas questes, j que se trata aqui de,
a mesmo tempo, conceber uma pessoa folheada e mltipla, composta por
almas e duplos, e tratar de recomp-la, no certamente por meio de
emblemas e de posies, mas sim atravs de um complexo sistema ritual,
que responde pelo carter religioso do candombl. Da tambm a estreita
interdependncia, sustentada acima, entre a noo de pessoa e a
estrutura ritual no candombl, estruturada que cumpre ento analisar
agora.
IV.Possesso e Ritual
A noo de ritual tem sido, desde Durkheim, objeto de importantes
controvrsias tericas dentro da Antropologia. As concepes acerca de
sua natureza, estrutura e funo variam enormemente entre as
correntes tericas e at mesmo entre os autores. Alguns supem
tratar-se de um momento em que, atravs da criao e da manifestao de
sentimentos comuns, a solidariedade social e, portanto, a prpria
sociedade so criadas e recriadas incessantemente. Outros, ao
contrrio, prefeririam ver a um instante em que a angstia e o
sofrimento inevitavelmente experimentados pelo homem em suas relaes
com os outros homens e com o mundo em que vive, encontrariam um
canal de expresso e ento, liberados, permitiriam a continuidade da
vida social, temporariamente livre destas ameaas de efeito
disruptivo. Enfim, h os que crem que o rito no passaria da
encarnaovivida de um modelo mstico, fornecido primeiramente pelos
mitos e pela cosmologia adotados pelo grupo.Estes trs modelos,
percebe-se facilmente, so congruentes com os tipo de anlise
utilizados nos estudos sobre os cultos afro-brasileiros, tal qual
resumidas na Segunda parte deste trabalho. No difcil notar que o
primeiro esquema, de origem durkheimiana e
estrutural-funcionalista, pretende derivar o ritual da estrutura
social encarada como o sistema concreto de inter-relaes pessoais,
terminando por atribuir a ele uma funo psicolgica de reforo de
sentimentos comuns. J o segundo modelo, de inspirao nitidamente
malinowskiana e utilizado hoje em dia por autores como Edmund Leach
e, especialmente, Victor Turner, inverte essa posio e, ao invs de
fazer derivar os sentimentos do ritual, pretende ver neste ltimo
uma expresso direta daqueles. Finalmente, no terceiro caso,
imagina-se que o comportamento ritual no passa da transposio
emprica de certas idias msticas adotadas pelo grupo.4Ora, como
sustenta Lvi-Strauss, ligar o rito a estados afetivos ou a formas
msticas de pensamento no pode esclarecer em nada sua natureza
ltima, e nem sequer o fato mesmo desta ligao, supondo-se que ela
realmente exista (cf. Lvi-Strauss, 1971:597). Ou seja, a prpria
ligao entre ritual, afetividade e misticismo uma questo a ser
desvendada pela anlise positiva do rito, no podendo portanto jamais
dar conta dele. Fazendo pois do prprio problema sua soluo, as
anlises do ritual so levadas inevitavelmente a se perderem num
labirinto de idias confusas e obscuras, numa floresta de smbolos
opaca, procedimento que no pode caber numa perspectiva
verdadeiramente cientfica (cf. Lvi-Strauss, 1971:596-597).Nesse
sentido, estritamente necessrio encontrar uma explicao de carter
intelectualista para o rito, e trabalhar com ela at o final sem
abrir concesses a um afetivismo fcil. No mesmo texto citado acima,
Lvi-Strauss se coloca a tarefa de buscar este modelo
no-emocionalista, e a maneira pela qual o ritual a encarado , alm
de modelar de um ponto de vista terico abrangente, espantosamente
esclarecedora dos mecanismos especficos doritual do transe,em
especial tal qual se manifesta nos cultos afro-brasileiros. Para
desenvolver essa perspectiva seria contudo estritamente necessrio,
dis Lvi-Strauss, desembaraar o ritual de tudo aquilo que com ele se
misturaempiricamente, para poder chegare a trat-lo em si mesmo e
por si mesmo (cf. Lvi-Strauss, 1971:598). Ora, o que, com freqncia
est[a mesclado ao rito justamente o mito, e se no pudermos separar
um do outro terminaremos por explicar o segundo acreditando ter
definido e dado conta do primeiro. Para isso, preciso primeiro
reconhecer a exisncia de toda uma mitologia implcita ao rito,
mitologia que se encontra num estado de...notas, de esboos ou de
fragmentos; em lugar que um fio condutor as rena, cada uma
permanece ligada a tal ou qual faxse do ritual; ela lhe fornece a
glosa, e somente por ocasio dos atos rituais que essas representaes
m[iticas sero evocadas. (Lvi-Strauss, 1971:598).Ora, se nos
desembaraarmos desta mitologia implcita distinta da mitologia
explcita onde as narrativas existem por conta prpria e so evocadas
independentemente do ritual constataremos a existncia, no rito, de
um gigantesco esforo para evitar falar, esforo que, mesmo quando o
ritual fala, se manifesta na evidncia de que muito menos importante
a o que dizem as palavras proferidas do que o modo mesmo pelo qual
elas so ditas (cf. Lvi-Strauss, 1971:600-601). neste plano que se
pode de fato islar os dois mecanismos estruturais bsicos de
funcionamento da operao ritual. De um lado, teramos um processo de
fragmentao (morcellement):...no interior de classes de objetos e de
tipos de gestos, o ritual distingue infinitamente e atribui valores
discriminativos s menores nuanas. Ele no se interessa por nada de
geral, mas torna ao contrrio mais sutis as variedades e
subvariedades de todas as taxonomias... (Lvi-Strauss, 1971:601);de
outro a repetio (rptition):... a mesma frmula, ou frmulas
aparentadas pela sintaxe ou assonncia retornam a intervalos
prximos, no valendo, se se pode dizer, seno s dzias; a mesma frmula
deve ser repetida um grande nmero de vezes consecutivas, ou ento
ainda, uma frase onde se concentra uma escassa significao se
encontra presa e como que dissimulada entre dois conjuntos de
frmulas todas semelhantes mas vazias de sentido (Lvi-Strauss,
1971:602).Embora estes dois mecanismos paream primeira vista
opostos, bvio que eles so idnticos, na medida em que a fragmentao,
ao reduzir as diferenas a intervalos infinitesimais, termina por
abolir os afastamentos diferenciais numa quase-identidade, obtendo
portanto o mesmo efeito buscado pela repetio. Em ambos os casos,
tentar-se-ia ento apagar os intervalos e diferenas constitutivos
dos seres e do mundo. Em outros termos, e aqui que se pode
encontrar a essncia do rito, o ritual consiste numa operao lgica
inversa quela praticada pelo pensamento mtico. Este, sabe-se,
caracteriza-se como um operador de descontinuao, de introduo
deafastamentos diferenciais numa realidade encarada primeiramente
como contnua5. E so exatamente esses afastamentos diferenciais,
manifestos geralmente sob a forma de oposies binrias, que
constituem a condio e a matria-prima para a construo de todo e
qualquer conjunto significativo, pois o sentido, evidentemente,
exige a diferena.No entanto, e est aqui o ponto crucial, parece
claro que esse mundo pensado, descontnuo e estvel, est sempre
defasado em relao quele vivido, marcado pela continuidade e pela
tenso transformadora. O ritual seria ento, neste sentido, uma
satisfao ltima prestada pelo pensamento vida, pois ele tentaria de
modo sempre vo e fracassado, j que seu sucesso s poderia implicar o
congelamento da prpria marcha do pensamento , atravs de fragmentaes
e repeties que tendem ao infinito, restaurar a continuidade perdida
do vivido, no prprio plano do pensado, extenuando-se num esforo to
vo quanto essencial. Finalmente, exatamente esse seu carter
continuista e obsessivo que permite a to decantada associao do
ritual com estados de tenso e angstia que, longe de o explicarem,
parecem antes derivar de seus mecanismo que, simultaneamente,
apontam para um objetivo e negam-se a alcan-lo, gerando nesse
processo os estados psicolgicos mencionados:Em suma, a oposio entre
o rito e o mito aquela do viver e do pensar, e o ritual representa
um abastardamento do pensamento submetido s servides da vida. Ele
reconduz, ou antes tenta em vo reconduzir as exigncias do primeiro
a um valor limite que ele no pode jamais atingir, seno o prprio
pensamento se aboliria. Essa tentativa desesperada, sempre votada
ao fracasso, para restabelecer a continuidade de um vivido,
desmantelada sob o efeito do esquematismo pelo qual a especulao
mtica a substitui, constitui a essncia do ritual e d conta dos
caracteres distintivos que as anlises precedentes lhe reconheceram
(Lvi-Strauss, 1971:603).Como aplicar ento este modelo analtico do
rito, de forma a esclarecer o caso particular do ritual exttico no
candombl? Constatando, em primeiro lugar, que a distino entre uma
mitologia explcita e autnoma de um lado, e uma outra implcita,
ligada necessariamente ao desenrolar dos rituais, essencial no
apenas para entender a verdadeira natureza do sistema do candombl,
mas tambm para compreender alguns erros tericos cometidos a seu
respeito. Pois se este culto manifestaem alto grau o segundo tipo
de mitologia implcita , o primeiro s aprece nele de forma
extremamente dbil e no determinante. Os mitos do candombl
dificilmente poderiam ser considerados um sistema autnomo e
independente, do tipo daquele existente entre as populaes indgenas
sul e norte-americanas. Eles parecem antes formar uma espcie de
recurso mnemotcnico (cf. Lvi-Strauss, 1976:89-90) que serve como
guia para o correto cumprimento de todos os complicados detalhes
dos rituais, sejam estes sacrifcios, divinao, iniciao ou possesso.
Ou seja, e ao contrrio do que supe Roger Bastide, por exemplo, os
mitos no determinam, especialmente no candombl, os ritos, estando
em vez disto a eles subordinados e servindo basicamente para
marc-los e conduzi-los de forma apropriada. Em outros termos, creio
ser possvel dizer que aqui a questo da eficcia simblica, ligada
obviamente aos rituais, muito mais relevante do que o puro exerccio
classificatrio implicado no exerccio do pensamento mtico6.No que no
haja classificao no candombl elas existem e so bastante
sofisticadas (cf. Lpine, 1978 para descrio e anlise desses
sistemas). No entanto, preciso retomar a distino levistraussiana,
levantada mais acima, entresistema totmicoesistema religioso.O
primeiro, de ordem metafrica e que opera atravs do estabelecimento
de correspondncia entre sistemas dediferenas,parece estar em ntida
conexo com estruturas de classificao e com o pensamento mtico, onde
a questo bsica , sem dvida, a da instaurao e do jogo dos
afastamentos diferenciais essenciais para que osentidoseja gerado.
Por outro lado, a religio, ao contrrio, aparece antes como situada
no eixo metonmico docontato,visando essencialmente abolir as
diferenas postuladas no outro nvel, colocando-se ento no reino do
rito e de sua eficcia que, como acabamos de ver, um mecanismo
voltado para o estabelecimento de continuidades. Nesse sentido,
fundamental frisar o carter essencialmentereligiosodo candombl,
reconhecendo que as diferenas s so a postuladas para serem
ultrapassadas, ou, ao menos, para que se tente ultrapass-las no
processo ritual7.De fato, toda a mitologia explcita do candombl
parece reduzir-se, no final das contas, estria da separao entre o
Ai e o Orum; outrora estes dois mundos seriam um s, e a passagem
entre ambos era constantemente efetuada, at que uma falta humana
provocou sua eterna disjuno, permanecendo os homens no Ai, as
entidades espirituais no Orum (cf. para uma apresentao extensa
deste ponto: Lpine, 1978:123, Woortman, 1977:17-33; Elbein dos
Santos, 1977:passim).Ora, justamente esta disjuno entre o mundo
humano e o divino que todos os rituais do candombl buscam negar: o
sacrifcio, que implica a passagem de substncia de um domnio para o
outro (cf. Elbein dos Santos, 1977); a iniciao, que consiste na
fixao de um duplo do orix sobre o Ai (cf. Lpine, 1978); a tradio do
poste central nag (cf. Bastide, 1973) ou da cajazeira gge (cf.
Barreto, 1977), que simbolizam a unio dos dois mundos; e,
finalmente, o transe e a possesso que, durante um breve instante,
necessariamente passageiro, suspendem todas as distncias entre o Ai
e o Orum, fazendo com que os orixs encarnem nos homens e transmitam
a estes alguma coisa de sua essncia divina, ao mesmo tempo em que
uma certa dose de humanidade lhes insuflada pelos fiis que
concordam em receb-los.
V.A Possesso e a Construo Ritual da Pessoa no Candombl
necessrio ento articular agora, finalmente, possesso, ritual e
noo de pessoa, tal qual observados no universo do candombl. Para
faze-lo preciso lembrar, em primeiro lugar, que a lenta construo da
pessoa neste sistema religioso efetuada em funo de um complexo
conjunto de rituais que se sucedem ao longo de um amplo perodo de
tempo. Cada um desses rituais, conforme foi observado, tem por
objetivo fixar um orix que tambm um componente de sua pessoa na
cabea do filho-de-santo e, alm disso, e este ponto essencial,
dar-lhe o direito e o dever de ser por ele possudo. Aps vinte e um
anos de obrigaes, e com o stimo santo assentado, atinge-se um
estado em que acontece uma possvel liberao dos constrangimentos do
transe; atinge-se igualmente a valorizada e desejada situao de tudo
controlar, tornando-se senhor de si (e de outros, poderamos
acrescentar). Pode-se ento dizer acima que apenas aos vinte e um
anos de santo, com seus sete orixs (ao lado do Exu, do Er e do
Egum) assentados, que apessoaest realmente construda, j que apenas
nesse momento que seus mltiplos componentes encontram uma certa
estabilidade mais duradoura. E no por acaso que justamente nesse
momento a possesso possa cessar inteiramente de se produzir, depois
de sua freqncia j vir declinando ao longo do tempo, j que o transe
aparece como o instrumento, precrio e provisrio, de um equilbrio
instvel que o da estrutura da pessoa que o experimenta.Nesse
sentido, ento, a realidade mltipla e folheada da pessoa parece
condenada a dar lugar a um ser uno e indiviso, o que nos leva a
constatar a existncia, neste nvel, de um primeiromovimento de
continuao, operado por uma seqncia de rituais, da iniciao (e, antes
dela, a lavagem de contas e o Bori) obrigao de vinte e um anos,
passando por todas as obrigaes intermedirias. A pessoa postulada
ento como fragmentada, e todo o esforo do sistema parece voltado
para fundi-la numa grande unidade. Este esforo est, contudo, como
todo esforo ritual, votado ao fracasso, ou ao menos a um relativo
fracasso. Os nicos seres verdadeiramente unitrios so os orixs, no
sentido de orix geral (e, ainda aqui, esta formulao apenas
aproximada), e para o homem a atingir a unidade equivaleria ento
evidentemente a divinizar-seintegralmente.A possibilidade de que
isto ocorra reconhecida pelo sistema de crenas, na medida em que,
num certo sentido, os orixs forma homens e, portanto, estes
poderiam se tornar orixs. Toda a mitologia de Xang o orix que mais
claramente elevou-se de uma condio humana para uma outra, divina
serve para marcar bem este horizonte possvel. No entanto, na vida
real, esta ascenso se v sempre comprometida pelos acidentes do
percurso, pela no-observncia das prescries e proibies rituais que,
forando uma certa desagregao da pessoa, impedem a apoteose ltima
desta, devendo ento os homens se contentarem com a situao mxima
detata,que oferece uma espcie de equivalente minorado da
metamorfose divina. H aqui ento, na relao entre possesso e construo
da pessoa, uma primeira iluso de continuidade: a pessoa, mltipla,
busca unificar-se, mas este esforo tende sempre a ser mal-sucedido,
e ela deve terminar por se contentar com uma soluo de
compromisso.Por outro lado, no que toca relao entre possesso e
ritual, uma outra iluso de continuidade tambm parece operar. Ao
procurar trazer o orix Terra, o mecanismo do transe repete, como
vimos, aquele do sacrifcio. Este, sabe-se, opera provocando uma
continuidade entre a divindade e os homens, atravs de um animal
colocado como intermedirio e que, ao ser abatido, deixa aberto um
canal para que a graa divina flua at o mundo humano (cf.
Lvi-Strauss, 1976:256-262). Ora, a possesso no passa de uma forma
especfica de comunicao atravs deste canal; de um ponto de vista,
portanto, mantm uma relao de complementaridade com o sacrifcio, na
medida em que a iniciao que torna possvel o transe normal, ou seja,
comunicativo consiste justamente em sacrificar animais sobre o Ori
do filho-de-santo para que ele possa receber seu orix, abrindo
portanto o canal atravs do qual a comunicao homem/Deus se efetuar8.
Alm disto, este canal precrio, pois sendo a descontinuidade Ai/Orum
profunda e eterna h sempre o risco de que ele se feche, e apenas a
repetio indefinida dos ritos e a estrita observncia das regras e
tabus que permitem a manuteno das relaes de comunicao entre os dois
universos.Mas existe tambm um outro aspecto nas relaes entre
possesso e sacrifcio, tal qual colocadas no candombl. Alm de sua
complementaridade, ambos so, num outro eixo, suplementares. Pois se
o sacrifcio parece corresponder a umcontato simblicocom os deuses
(na medida em que no so eles que se manifestam, mas apenas sua graa
que flui) provocado pelamorte realde umcorpo outro(o animal
sacrificado), a possesso parece antes gerar umcontato realcom os
deuses provocado pelamorte simblicade um espritoprprio.Isto porque
so os prprios deuses que se manifestam, e para que isto se torne
possvel necessrio que, no o corpo, mas quilo que o anima se afaste,
num movimento semelhante ao que ocorre na morte, cedendo assim o
espao no qual se encarnar o orix. Assim, a possesso sacrifcio, e o
vocabulrio da iniciao, quando o novio morre para renascer como
cavalo-de-santo, se esclarece inteiramente. Esclarece-se tambm e
isto essencial o motivo pelo qual devem os orixs possuir seus
filhos. Pois se em determinados cultos afro-brasileiros,
especialmente na umbanda, as entidades espirituais encarnam para
trabalhar e dar conselhos, isto no verdadeiro para o candombl, onde
os trabalhos (os rituais) devem ser praticados pelo prprio fiel,
consciente, e onde os orixs no costumam falar, a no ser muito pouco
e muito raramente. Contudo, se encararmos o transe como sacrifcio,
poderemos perceber seu sentido, e entender o que querem dizer os
fiis quando apontam para as terrveis conseqncias, tanto para o
cavalo quanto para o mundo como um todo, no caso de a possesso no
se processar regularmente: o primeiro poderia enlouquecer, e o
prprio mundo ser aniquilado se a comunicao se interrompesse. Ora,
Olivier Herrenscmidt detectou, muito justamente, a existncia de
duas concepes acerca do sacrifcio: uma que o encara apenas como a
revivescncia simblica de um momento glorioso do passado (sacrifcio
simblico, tal como se processa no catolicismo e, de forma ainda
mais ntida, no protestantismo da Reforma) e uma outra que o situa
como fora essencial para a manuteno de um certo equilbrio do mundo,
atravs da reciprocidade por ele estabelecida entre o universo
humano e o divino. justamente essa concepo de sacrifcio eficaz que
tem lugar no candombl, tanto no que se refere ao sacrifcio
propriamente dito, quanto no que diz respeito possesso, que
consiste ento numa manifestao desta eficcia ao assegurar
simultaneamente o equilbrio provisrio da pessoa humana, no plano
individual, e a comunicao e reciprocidade com os orixs no plano
cosmolgico.Sacrifcio e possesso so, pois, deste ponto de
vista,rituaisque buscam incessantemente lanar uma ponte entre dois
universos irremediavelmente separados, j que sua separao a prpria
condio de existncia da vida, tal qual a conhecemos. Nesse sentido,
seus esforos so sempre vos e devem contnua e ininterruptamente ser
retomados. por isso que, falando rigorosamente, a possesso no s
jamais completa o que pretende, como tambm nunca chega a
completar-se a si prpria. Porque, alm de no poder refundir, de modo
perptuo, o Ai e o Orum, o modelo nativo sustenta que no jamais o
orix como um todo que se encarna (o orix geral), mas apenas uma
nfima frao sua; caso contrrio, nem o filho-de-santo que o recebe,
nem o prprio mundo poderiam suportar a infinita potncia que sobre
eles se abateria, sendo imediatamente aniquilados.Isto, alm de
confirmar a hiptese levantada acima acerca da dupla natureza, ao
mesmo tempo totmica (em seu aspecto geral) e religiosa (em seu
aspecto de qualidade especfica) do orix (e do prprio candombl),
aponta para um outro fracasso lgico contido na operao do transe:
alm de no reunir Ai e Orum, cuja distino significa a forma acabada
da exigncia de descontinuidade sem a qual o prprio pensamento no
pode funcionar, a possesso no pode chegar jamais a fundir, ao menos
completamente, homem e deus, j que nela apenas um pequeno fragmento
deste ltimo que se manifesta.Existem assim trs insucessos
estruturais no ritual da possesso tal qual manifesto pelo sistema
do candombl: um sincrnico, que impede a fuso total entre homem e
divindade; outro diacrnico, que no permite a unificao total da
pessoa humana e sua converso ltima em orix; e finalmente um
terceiro, poder-se-ia dizer de ordem acrnica, j que antecede o
prprio sistema sendo sua condio de existncia, e que mantm separados
o Ai e o Orum, sustentando assim que o mundo terreno e o mundo
divino no podem jamais, a despeito de todos os esforos, chegar a se
confundir. O candombl parece ento corresponder a uma tentativa
eterna, pois que sempre fracassada, que se esfora em ligar esses
domnios, e sua perenidade e resistncia talvez reflitam, em ltima
instncia, esta incapacidade que deixa como nica alternativa possvel
solues de compromisso e dedicao integral. Estamos s voltas pois com
umareligio,no sentido estrito do termo, com um sistema que desenha
um outro mundo, que se esfora por toc-lo, mas que s pode, na melhor
das hipteses, tangenci-lo: como numa miragem que, tocada, s pode
desaparecer.No nos iludamos, contudo. Os fracassos do candombl no
poderiam ser apontados como supostas provas da existncia, a, de uma
mentalidade primitiva ou pr-lgica que desconheceria as leis
fundamentais do pensamento lgico. Na verdade, tais fracassosso
lgicos,e esto relacionados tanto com a estrutura do processo ritual
quanto com uma verdadeira ontologia presente no sistema. Essa
ontologia foi brilhantemente pressentida e esboada por Roger
Bastide que, nas trs pginas mais importantes e esclarecedoras
jamais escritas sobre o candombl, demonstrou sua estrutura bsica
(cf. Bastide, 1973:371-373). Seria preciso talvez reproduzir
integralmente este texto, denominado, de forma significativa, A
concepo africana da personalidade, para que pudssemos nos dar conta
de sua profundidade, assim como de sua beleza. Na impossibilidade
de uma tal reproduo, deverei aqui me contentar em resumir, de um
modo que compromete inevitavelmente a densidade do texto, suas
idias centrais.Bastide demonstra que a concepo doSeradotada pelo
candombl aproxima-se muito mais da ontologia medieval do que da
filosofia ps-crtica. Kant teria estabelecido de fato a inexistncia,
entre oSere oNo-Ser,de estgios intermedirios: oSerexiste ou no
existe, eis tudo. Os medievais, ao contrrio, admitiam a presena de
intermedirios entre esses dois extremos, admitiam uma escala de
existncias de graus doSer.Existe-se maisoumenos. esta em verdade a
concepo central docandombl: entre oNo-Serdo homem (no-iniciado) e
oSerpleno dos orixs, uma continuidade poderia ser imaginada e
construda, continuidade que seria percorrida por aqueles que,
ingressando no culto, passam por todos os rituais e aceitam todas
as obrigaes e todos os tabus. O caminho entre oSere oNo-Ser ento
uma estrada aberta, cheia de idas e vindas, de perigos, que se
acentuam ao longo da caminhada. Pois se o cumprimento das prescries
permite a passagem em um sentido, sua no-observncia, as faltas e
pecados histricos ameaam todo o sistema de entropia, devolvendo
aoNadaaquilo queEra.Conseqentemente, a possesso nada mais do que o
oferecimento, por um fugaz instante, desta realizao doSer,e sem ela
o prprio sistema deixaria de operar.Deste modo, se a
oposioSer/No-Ser a matriz bsica a partir da qual so geradas todas
as oposies com que trabalham os mitos que no fazem mais do que
traduzir, atravs de afastamentos cada vez menores, esta ciso
fundamental (cf. Lvi-Strauss, 1971:621), os ritos talvez se
caracterizem por seu turno, ao menos quando encarados do ponto de
vista da possesso (e tambm do sacrifcio), como um esforo para
ultrapass-la tambm, mas no mais atravs da reduo progressiva da
distncia entre os plos em oposio, e sim tentando atravess-la de um
s golpe, postulando umcontinuumque poderia conduzir de um extremo
ao outro se o prprio esforo para superar este vazio no implicasse j
sua existncia insupervel , tornando portanto impossvel a anulao do
fato da oposio, e votando o rito a um trabalho infinito, que s
poderia cessar com o aniquilamento do pensamento e da prpria
vida.
Concluses
A ttulo de concluso, gostaria de retomar algumas questes bsicas
que tm permeado os estudos afro-brasileiros e que, por serem
freqentemente mal colocadas, ou antes, por serem colocadas sem que
se leve em considerao a natureza e a estrutura do sistema
investigado, tm recebido algumas respostas bastantes
insatisfatrias. O objetivo desta retomada no , absolutamente,
esclarecer por completo essas questes o que exigiria certamente um
outro trabalho inteiramente dedicado a isto , mas indicar de que
maneira a anlise estrutural do sistema pode fornecer sugestes para
sua resoluo.Em primeiro lugar, vimos que os dois temas bsicos que
articulam praticamente todas as explicaes correntes a respeito do
transe exttico so ora a questo dadoena,ora a questo dasociedade.No
primeiro caso, a possesso encarada seja como enfermidade mesmo,
seja como forma de tratamento pr-mdico para ela; no segundo, ela
vista tanto como mecanismo de reforo da ordem social abrangente
quanto como instrumento de sua inverso, seja esta simblica ou
no.Digamos de incio que, apesar de suas divergncias bvias, todas
estas explicaes so em parte verdadeiras, errando apenas na medida
em que tentam fazer de uma ligao contingente a causa essencial do
fenmeno estudado. Assim, verdade que certas doenas podem conduzir
ao culto, queeste fornece um meio para controlar (de modo bastante
eficaz, por vezes) algumas delas, e que ele funciona como arena de
manipulaes scio-polticas. No entanto, tudo isso s possvel devido a
caractersticas da prpria estrutura do sistema. Se admitirmos que a
enfermidade pode ser vivida como experincia de ciso da pessoa,
poderemos talvez compreender que a possesso, tcnica simblica de
construo desta unidade e de manuteno de um certo equilbrio, possa
estar estruturalmente ligada a ela. Se admitirmos tambm que a
manipulao scio-poltica (reverso destatus,compensao, ascenso
simblica etc.) implica, de certo modo, um estabelecimento
decontinuidadesentre segmentos usualmente descontnuos, poderemos
ento entender melhor que uma religio estruturalmente voltada para a
produo docontinuumpossa se ligar a este tipo de realidade, e isto
de vrias maneiras diferentes e, at mesmo, contraditrias entre si.
Em outros termos, parece haver uma espcie de aptido estrutural da
possesso e do candombl em ligar-se a certos estados patolgicos ou
micropolticos, estados que no podem portanto constituir a causa
explicativa de nenhum dos dois, limitando-se a ser fenmenos locais
com os quais o culto, devido a presses externas e de ordem
histrica, pode chegar a se agenciar.Um outro tema clssico nos
estudos afro-brasileiros fica tambm mais bem esclarecido ao
adotarmos esse ponto de vista. Pois, ao invs de ver no sincretismo
religioso uma pura incapacidade de uma raa em absorver preceitos
religiosos demasiadamente abstratos (Nina Rodrigues) ou uma
assimilao psicanaltica de arqutipos inconscientes (Arthur Ramos,
Roger Bastide) ou, ainda, a aceitao por parte do escravo da
ideologia de uma classe superior (Bastide novamente, bem como
diversos autores contemporneos), conviria antes aceitar que um
sistema assentado na busca de uma continuidade possui um poder de
flexibilidade e uma capacidade de assimilao de novas realidades
sensivelmente superiores queles apresentados pelas estruturas
mitolgicas que parecem sofrer muito mais ao se verem envolvidas com
a histria. isto que parece fazer. Outra questo tradicional a de
que, com o passar do tempo, o candombl africano tenda se
desenvolver no sentido de cultos mais sincrticos, dos quais a
umbanda o exemplo mais evidente. Pois nesse tipo de culto h uma
espcie de hipertrofia do aspecto ritual do sistema matriz, fazendo
com que seu lado mais mtico ou cosmolgico ceda totalmente frente a
um frenesi incontrolvel de ritos e manipulaes simblicas. Em outros
termos, o desenvolvimento e o predomnio progressivo da umbanda
podem ser entendidos como a realizao emprica de uma das
virtualidades contidas no candombl virtualidade que corresponde
justamente a seu aspecto ritualstico j predominante, e mais
resistente aos avanos da histria , realizao que tem sua
particularidade explicada por uma espcie de retorno infra-estrutura
sociolgica abrangente, na procura de um contexto que pudesse
fornecer oposies e descontinuidades a serem trabalhadas e superadas
pelo sistema, oposies e descontinuidades que, no caso do candombl
mais tradicional, ainda so extradas de uma estrutura mtica e
cosmolgica de procedncia, ao menos em parte, africana. Num tal
processo, o carter ritual s poderia se acentuar ainda mais na
medida em que aperda do nvel inteligvel (os sistemas de classificao
interiores ao culto) como que compensada por concesses cada vez
mais explcitas ao vivido.Finalmente, conviria voltar-se para a
questo que parece, por trs de todas as diferenas tericas, funcionar
como mola propulsora dos chamados estudos afro-brasileiros. Pois de
Nina Rodrigues aos autores contemporneos, o que tem preocupado os
estudiosos das religies de procedncia africana no Brasil ,
basicamente, o enigma de sua estranha permanncia da escravido ao
Brasil industrial moderno. Onde seria preciso ento buscar o sentido
da sobrevivncia dessas prticas e dessas crenas, estruturadas em
sistemas to elaborados, e dos quais s foi possvel aqui fornecer um
esboo e analisar uma nfima frao? Certamente no do lado de uma pura
sobrevivncia de uma muito antiga filosofia africana como ainda
querem alguns (e isto ora num sentido pejorativo, assinalando uma
incapacidade racial para o progresso, ora num tom de aprovao pela
manuteno de uma herana tradicional). Invertendo radicalmente esta
postura, outros parecem tentados a buscar as razes desta permanncia
na relao, sempre atual, que o sistema manteria com estruturas
sociais abrangentes e determinantes aquelas da sociedade
brasileira.O primeiro raciocnio peca por excesso de idealismo,
supondo uma inrcia das instituies culturais que obviamente no pode
existir. Se o sistema permanece e ele de fato permanece , isto se
deve antes, em parte, ao fato de que como vimos, ele exprime certas
propriedades lgicas universais do pensamento humano, mas tambm por
que sua forma especfica de atualizar estas propriedades congruente
com um determinado contexto histrico e sociolgico particular.Por
outro lado, situar esta permanncia do lado de uma pura funo
desempenhada em benefcio da sociedade abrangente, ou mesmo de
indivduos isolados, cometer o erro inverso e simtrico quele
praticado pela perspectiva anterior; supor que um sistema funciona
a despeito de sua estrutura; no querer ver que para desempenhar
determinada funo, uma estrutura especfica exigida.Em outros termos,
como demonstrou Pierre Smith a propsito de um conjunto de crenas
compartilhado por um grupo de populaes africanas, absolutamente
necessrio distinguir um dispositivo simblico, que a primeira e
fundamental atualizao do pensamento, matriz de significaes e de
relaes humanas, da utilizao ideolgica que dele pode ser feito, para
fins diversos e freqentemente opostos entre si, fins que devem
contudo ser compatveis com a estrutura do prprio dispositivo (cf.
CNRS, 1973:488-490). Isto significa que talvez a permanncia dos
cultos afro-brasileiros, seja sob sua forma mais tradicional, seja
sob suas modalidades mais sincrticas, especialmente com a umbanda,
esteja relacionada, antes, a uma certa compartibilidade demonstrada
pela estrutura do culto em relao a uma srie de problemas histricos
concretos colocados pela nova realidade em que ele foi inserido;
problemas que devero, um dia, ser cuidadosamente analisados.
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*Esta citao de Lvi-Strauss, bem como as seguintes, foram
traduzidas pelo autor deste trabalho.
1*Antropologia PUC, RJ.
Este artigo consiste basicamente em um remanejamento de parte de
minha dissertao de Mestrado,defendida em maro de 1984 no Programa
de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ.
Agradeo pois ao meu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, bem
como aos demais memebros da banca examinadora, Drs. Roberto da
Matta e Peter Fry, pela ateno e orientao a mim prestadas. Agradeo
tambm ao CNPq e Fundao Ford/ANPOCS pelas bolsas recebidas em
diferentes pocas e que tornaram possvel a realizao deste trabalho,
que teve uma primeira verso apresentada no 6 Encontro Anual da
ANPOCS. Grupo de Trabalho Cultura Popular e Ideologia Poltica.
Friburgo, outubro 1982.*
2De fato, o primeiro iniciado a raspar a cabea em cada grupo de
novios que se inicia conjuntamente (Barco de Ias) recebe o nome de
Dofona, palavra nag que significa literalmente tornar-se vazio em
primeiro lugar.
3Essa aproximao, tantas vezes efetuada, entre possesso e
histeria altamente significativa. Sabe-se que com Freud a noo de
histeria foi dessubstantivada e privada de toda realidade
discriminadora, servindo antes para revelar mecanismos universais
do psiquismo humano. Seria preciso ento, talvez, acontecer com a
possesso o mesmo que com a histeria?
4 interessante notar que tambm no que diz respeito aos modos de
investigao da noo de pessoa, Michel Cartry localiza essas trs
tendncias bsicas (cf. CNRS, 1973:23-25). De fato, parecem tratar-se
de verdadeiras estruturas elementares do pensamento antropolgico.
Cartry prope como alternativa um modelo que busque discernir, por
trs dos modelos nativos, uma estrutura inconsciente mais profunda,
sem colocar a falsa questo da origem social ou psicolgica do
mstico, ou da origem mstica do social e do psicolgico. esta a
postura terica que pretendi assumir aqui, tanto no que diz respeito
noo de pessoa quanto no tratamento do ritual.
5No me preocuparei com a crtica de Luc de Heusch, que sustenta a
existncia de rituais descontinuadores (cf. Heusch, 1974:233-234).
Ainda que isto seja verdadeiro a respeito de outros grupos, como os
Nuer por ele citados como exemplo, no vlido no que toca ao
candombl, onde mesmo o afastamento de espritos obsessores de mortos
apenas a conseqncia de rituais de reforo da pessoa, que possuem,
como tentarei mostrar adiante, carter nitidamente continuista.
Alis, talvez isso seja verdadeiro para todo rito de separao, que
dependeria ento de uma continuidade estabelecida em outro plano
mais fundamental.
6Talvez este predomnio do ritual e da mitologia implcita sobre o
sistema mitolgico explcito seja funo do processo de escravizao que,
como mostrou Bastide, destruindo a infra-estrutura sociolgica qual
um possvel sistema totmico estaria ligado, determinou a passagem de
toda a estrutura para um nvel mstico. No entanto, interessante
lembrar que vrios africanistas tm observado o que eles denominam
vazio mitolgico-africano, a inexistncia de sistemas msticos
comparveis aos americanos. Neste sentido, talvez a frica pudesse
ser o continente da religio, assim como a Amrica a terra da
mitologia, a Austrlia, a ptria do totemismo etc.
7isto talvez exploique o erro de Bastide, insistindo sobre a
existncia de uma lgica da participao no candombl e,
simultaneamente, o de Claude Lpine ao critic-lo, postulando um
sistema de classificao totalmente descontinuista. Na verdade, ambos
erram o alvo porque confundem o sistema de classificao propriamente
dito (onde Lpine est certa) com a prtica ritual (onde Bastide tem
toda a razo). Isso no invalida o fato de a posio de Claude Lpine
ser mais slida, na medida em que evidente que no existe qualquer
pr-logismo no candombl, mas sim um sistemaperfeitamente lgico sendo
trabalhado por prticas rituais.
8Por isto ilusrio tentar estabelecer, como o fez Luc de Heusch,
uma oposio entre religies baseadas na possesso (das quais os cultos
afro-brasileiros seriam um dos exemplos possveis) e aquelas
construdas sobre o modelo do sacrifcio (tipo que a tradio
judaico-crist ilustraria). Ao contrrio, ao menos no caso do
candombl, possesso e sacrifcio constituem os dois princpios sobre
os quais se sustenta toda a estrutura religiosa.
Disponvel em:
http://asintese.blogspot.com.br/2013/04/a-construcao-ritual-da-pessoa-possessao_2.html