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Manoel Bomfim - Pensador Da História

Nov 03, 2015

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Manoel Bomfim, “pensador da História” na Primeira República* Rebeca Gontijo
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  • Vimos as nossas tradies desnaturadas, os seus herosmos infama-dos, falseada a essncia da sua histria (...) Inimigos, no calunia-ram a Nao Brasileira como fizeram os seus historiadores, repeti-dos nos polticos. Em suas obras, confusas e opacas, desaparecemas qualidades caractersticas do povo, qualidades propositadamenteescondidas, quando no so ostensivamente negadas. Histrias essas pginas dadas ao registro dos nossos feitos?... No: cavalari-as... Um legtimo historiador teria de varrer tudo isso, expurgan-do, assim, os vcios e defeitos nacionais apontados, cotejando-oscom a realidade, para, desassombradamente, limpar o passado na-cional, e deix-lo nos valores demonstrados pelos fatos

    Manoel Bomfim, O Brasil na Histria, 1930

    Essas palavras foram escritas na segunda metade dos anos vinte do scu-lo passado por Manoel Bomfim (1868-1932), intelectual sergipano, autor deA Amrica Latina (1905), Atravs do Brasil (1910) co-escrito por Olavo Bi-lac (1864-1934) etc., alm de uma trilogia composta por: O Brasil na Am-rica (1929), O Brasil na Histria (1930) e O Brasil Nao (1931). Livros dedi-

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    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 23, n 45, pp. 129-154 - 2003

    Manoel Bomfim, pensador da Histriana Primeira Repblica*

    Rebeca GontijoDoutoranda/UFF

    RESUMO

    Este artigo analisa algumas das idias dointelectual Manoel Bomfim referentes historiografia e aos historiadores do Bra-sil. A fonte principal o livro O Brasil naHistria (1930), e a abordagem focaliza atenso presente em seus textos e emsua poca entre a busca da imparciali-dade cientfica e as exigncias de posicio-namento intelectual em defesa da nao.

    Palavras-chave: Manoel Bomfim; nao;

    histria nacional.

    ABSTRACT

    This article examines Manoel Bomfimsintellectual ideas regarding historio-graphy and Brazilian historians. Usingas main source Bomfims book entitledO Brasil na Histria (1930), this aproachfocuses on the tension in his book, bet-ween the search of scientific imparcia-lity and the demands for intellectual en-gagement in the defense of Nation.

    Keywords: Manoel Bomfim; nation; na-

    tional history.

  • cados anlise da formao da nacionalidade brasileira. O autor se empenha-va em criticar os historiadores e os polticos do Brasil que, segundo ele, te-riam deturpado a histria nacional e contribudo para a degradao da na-o. Interessado em resgatar as qualidades caractersticas do povo brasileiro que considerava esquecidas pela historiografia , ele desenvolveu uma re-flexo sobre o Pas e seus habitantes, em que possvel identificar dilogoscom pensadores de seu tempo e de outros tempos.

    Este artigo tem por objetivo apresentar algumas das idias de ManoelBomfim presentes no livro O Brasil na Histria: deturpao das tradies, de-gradao poltica1, no qual se localiza uma crtica escrita da histria do Bra-sil, balizada pelos aspectos que seu autor valorizava e desprezava na produ-o dos historiadores. A partir da identificao desse contedo, a abordagemdesenvolvida se aproxima de questes e problemas relativos histria da his-tria no Brasil e das discusses sobre a chamada questo nacional na Pri-meira Repblica, tecendo cruzamentos entre historiografia e nacionalismo.

    possvel localizar, no livro em questo, articulaes entre o modo co-mo seu autor pensava na histria como passado vivido e como narrativadeste passado elegendo temas, acontecimentos, personagens, intrpretes echaves explicativas, a partir dos quais ele compreendia a nao. Deve-se ob-servar que a reflexo de Manoel Bomfim no se apresenta como uma teoriada histria ou um projeto historiogrfico organizado em torno de proposi-es metodolgicas sistematizadas. Seu texto apresenta consideraes e posi-cionamentos sobre problemas de ordem epistemolgica e poltica, formula-dos segundo pressupostos cientficos norteados por noes extradas dabiologia, da psicologia, da sociologia e da histria.

    O texto que segue est dividido em trs partes: a primeira fornece algu-mas indicaes sobre o modo como Bomfim concebia a cincia e a relaciona-va ao estudo do social; a segunda parte explora a tenso, presente em seus tex-tos, entre a busca de cientificidade e imparcialidade e a demanda peloposicionamento intelectual, em um contexto marcado por paixes naciona-listas; a terceira focaliza aspectos da crtica historiografia e aos historiado-res, desenvolvida pelo autor. Considerando Manoel Bomfim como um pen-sador da histria, um crtico da historiografia e dos historiadores de sua poca(e tambm do perodo monrquico), supe-se que sua produo possui ele-mentos que podem contribuir para a compreenso do ofcio do historiadorna 1 Repblica, pois seus textos apresentam alguns exemplos das crticas squais os historiadores eram submetidos, das demandas que os pressionavame dos problemas que deviam enfrentar.

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  • SOBRE CINCIA, PAIXES E INTERESSES

    Para alm das particularidades que distinguiam os paradigmas cientficosdifundidos entre os intelectuais brasileiros da virada do sculo XIX, observa-se a convergncia de perspectivas no sentido de consagrar a cincia como omelhor meio para compreender e solucionar os problemas sociais. A cinciaera tida como o caminho ideal para reduzir os fenmenos sociais a leis e in-formaes objetivas, capazes de fomentar o desenvolvimento de instrumentosadequados a intervenes reformadoras na sociedade. Assim como grande par-te dos intelectuais do incio do sculo XX, Manoel Bomfim tambm valoriza-va o saber cientfico, considerando-o como um pressuposto legtimo e neces-srio para a apreenso da realidade. O papel da cincia seria explicar a origemdos males sociais e, ao mesmo tempo, propor solues, sendo que:

    A cincia alegada pelos filsofos do massacre a cincia adaptada explorao;

    a verdadeira, a pura, nos mostra a espcie humana progredindo sempre, em to-

    das as suas variedades com alternativas, sim, devidas degenerao de gru-

    pos e parcialidades, que abandonaram o esforo e a vida. Ela nos ensina o cami-

    nho do progresso, e nos garante o xito2.

    Bomfim era mdico, mas sua vida profissional foi dedicada educao,sendo que sua produo pode ser caracterizada por dois aspectos: cientificis-mo e civismo. Ele acreditava que o conhecimento cientfico seria o ideal paracurar os males sociais e avanar rumo ao progresso, pois a primeira condiopara conquistar a civilizao conhec-la. Da cincia derivaria o progresso,tanto material quanto intelectual. Ao mesmo tempo, dava grande importnciaao patriotismo, considerado fundamental para o fortalecimento do Brasil.

    Como psiclogo, Bomfim valorizava os aspectos psquicos que se re-fletiriam tanto nas idias quanto nas atitudes humanas e os sentimentosna anlise do social, sem abrir mo da razo. Em O Brasil na Histria, o ho-mem apresentado como um ser moral, cuja subjetividade lhe permitiria es-capar das influncias externas (do meio) e internas (da hereditariedade ps-quica e/ou biolgica), subordinando-as aos seus interesses. Existiriaminteresses gerais da espcie humana moral, justia, humanidade... emoposio a interesses particulares egostas. Os primeiros teriam sido mul-tiplicados atravs das relaes sociais que, ao favorecerem sentimentos so-cializadores, teriam contribudo para o predomnio de necessidades coleti-vas, necessrias para o progresso humano. nos sentimentos que o autor vaibuscar o como e o porqu da ligao entre os indivduos. Essa valorizao dasemoes pode ser ilustrada pela importncia que ele conferia paixo. Em A

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  • Amrica Latina, mesmo comprometido com a exposio de uma teoria nosmoldes apresentados pela cincia, o autor j havia declarado que:

    (...) certos comentrios parecero descabidos ou imprprios a uma demonstra-o que assim se fundamente (...). Seria preciso, acreditam certos crticos, umaforma impassvel, fria e impessoal; para tais gentes, todo argumento perde o ca-rter cientfico sem esse verniz de impassibilidade; em compensao bastariaafetar [a] imparcialidade, para ter direito a ser proclamado rigorosamentecientfico. Pobres almas!... Como seria fcil impingir teorias e concluses socio-lgicas, destemperando a linguagem e moldando a forma hipcrita imparcia-lidade, exigida pelos crticos de curta vista!... No; prefiro dizer o que penso, coma paixo que o assunto me inspira; paixo nem sempre cegueira, nem impedeo rigor da lgica3.

    A paixo tida como uma espcie de fora propulsora da vontade, capazde controlar ou guiar os interesses, sendo que, neste caso, paixes e interessesestariam relacionados com o campo das prticas cientficas e polticas dasquais o autor participava. Para Bomfim, os interesses estariam referidos co-munho de tradies cientficas e polticas (e, mais especificamente, na-cionais) , o que se opunha a uma prtica cientfica neutra, uma vez que taisinteresses continham em si mesmos as razes de uma parcialidade. O autoridentificava dois modos de lidar com essa parcialidade: negando-a ou expli-citando-a, sendo que ele defendia esta ltima opo.

    Em sua poca, a legitimidade da produo cientfica dependia da afir-mao e do reconhecimento de um saber neutro, imparcial, porque baseadoem mtodos racionais e critrios controlveis. Ao mesmo tempo, supunha-sehaver uma homologia entre os diversos nveis da realidade (o social, o biol-gico, o poltico, o econmico, etc.), o que permitia transpor categorias e afir-maes de uma esfera de conhecimento a outra. Bastava afirmar que se umaproduo cientfica era neutra (e neutra porque era cientfica) e, supunha-se,no haveria espao para metforas e analogias, mas apenas para relaes ho-molgicas e objetivas. Diferentemente de outros intelectuais de seu tempo,Bomfim no afirmava que a objetividade de suas formulaes fosse decor-rente de uma posio de imparcialidade diante dos fatos sociais, tomada co-mo condio indispensvel para uma abordagem que se pretendesse cientfi-ca. De acordo com Flora Sssekind e Roberto Ventura, ele rompera com aexigncia de neutralidade dominante no discurso cientificista de fins do s-culo XIX e incio do sculo XX, ao assumir sua vontade e interesses pessoaiscomo sendo o prprio motor da anlise a ser desenvolvida4. A objetividadeda cincia estaria, pois, na localizao dos interesses do cientista. Era a partirda identificao de tais interesses que se tornaria possvel, em primeiro lugar,

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  • situar o cientista em relao a seu objeto; e, em segundo, identificar as verda-des ditas ou omitidas. Mas, e no caso da histria? Como Manoel Bomfim pro-curou solucionar o conflito produzido pela exigncia de neutralidade e obje-tividade cientfica diante do reconhecimento da subjetividade, dos interessese das paixes? Quais seriam as implicaes dessas exigncias e interesses paraa escrita da histria?

    POR UMA HISTRIA CIENTFICA E APAIXONADA

    A importncia prtica da histria est, sobretudo, em multiplicar

    as foras dos que sabem utilizar as experincias do passado

    (KAUTSKY apud BOMFIM, O Brasil na Histria, 1930).

    Durante o sculo XIX, na Europa teve incio o processo de organizao einstitucionalizao das disciplinas, inicialmente de acordo com os parme-tros de cientificidade ditados pelas cincias naturais. A histria ganhou espa-o nas universidades, aumentando a expectativa de profissionalizao do tra-balho do historiador, ao mesmo tempo em que se afirmava uma concepomoderna de histria. Enquanto isso, no Brasil, os lugares da produo cient-fica eram os institutos histricos e geogrficos, os museus etnogrficos e asfaculdades de direito e medicina, onde a cincia com suas diferentes teo-rias, interpretaes e experimentos dava lugar discusso e divulgao deuma tica ou atitude cientfica possvel de ser experimentada de modo gen-rico. A cincia era tida como um princpio que se estendia aos mais diversosramos do conhecimento, orientando tanto a produo de estudos sobre a so-ciedade brasileira, quanto a literatura, as idias polticas, a poesia, as artes,etc. Contudo, tanto aqui como na Europa, a reflexo sobre a histria moder-na acompanhou processos de construo do Estado Nacional, o que prova-velmente contribuiu para uma permanente tenso entre a existente busca deimparcialidade relacionada difuso de ideais cientficos e da modernaconcepo da histria e a exigncia de posicionamento dos intelectuais relativa s discusses sobre o mundo do trabalho em transformao naquelemomento, e tambm sobre a chamada questo nacional.

    Manoel Bomfim esteve na Frana entre 1902 e 1903 perodo em que,inspirado pela leitura de Walter Bagehot (1826-1877), escrevera A AmricaLatina. Vigorava, ento, um amplo debate sobre o papel da cincia na univer-sidade e na sociedade, em meio ao conflito produzido pela busca de impar-cialidade e pela constante exigncia de posicionamento intelectual diante dosproblemas de seu tempo. O livro O Brasil na Histria foi escrito na segundametade dos anos de 1920, motivado por algumas idias desenvolvidas pelo

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  • autor no incio do sculo como ele mesmo afirma na nota de apresenta-o do livro e interessado em discutir questes consideradas urgentes noBrasil, aps a Primeira Guerra Mundial. Naquele momento havia certo em-penho no sentido de delimitar o trabalho do historiador moderno; discus-ses sobre as formas de insero do Brasil na modernidade; debates sobre anao e seus habitantes, etc. Era significativa a demanda por interpretaesda histria do Pas. De acordo com Tnia Regina de Luca, a histria brasileiraapresentava-se sem cor ou brilho, circunstncia que causava uma sensaode profundo desconforto, uma vez que a essa disciplina atribua-se a nobrefuno de ensinar aos cidados a cartilha do patriotismo. Acreditava-se quea histria deveria fornecer um conjunto coerente de tradies a serem parti-lhadas e, ao mesmo tempo, promover a ruptura com a tradio colonial que,a partir daquele momento, passaria a ser considerada como sinnimo de atra-so. Conduzidos pela mo firme da metodologia cientfica, os historiadoresdeveriam debruar-se sobre o passado, privilegiando certos indivduos e epi-sdios num trabalho de consagrao [e de excluso] que correspondia ne-cessidade de definir a nacionalidade5. Tarefa vista como imperativa diante deum quadro que para alguns era caracterizado pela falta de patriotismo, e pa-ra outros, pela inexistncia ou inviabilidade da prpria nao.

    Manoel Bomfim no pode ser considerado como um historiador, no sen-tido que, j em sua poca, era atribudo a autores como Capistrano de Abreuou Joo Ribeiro. O primeiro garantia sua identidade como historiador atra-vs de sua experincia no trato com fontes documentais em arquivos o queera fundamental num momento em que se almejava conferir cientificidade histria. O segundo, atravs de sua atividade docente e, como observou Patr-cia Santos Hansen, atravs da produo de reflexes mais filosficas sobre adisciplina6. No entanto, possvel situ-lo como um pensador da histria,recuperando seu trabalho como crtico da historiografia, disposto a fazer re-flexes sobre a matria e provocar os historiadores, num momento em queestes podiam ser identificados no por formao ou titulao, mas devido aum conjunto de prticas autodidatas e tradies intelectuais.

    De modo geral, a crtica literria em fins do sculo XIX e incio do scu-lo XX caracterizava-se pelos seguintes aspectos: rigidez tica expressa atra-vs da defesa de valores com base em critrios sociolgicos e/ou retricos;pragmatismo; ausncia de teorizao; indefinio de conceitos. Sobre essequadro comum desenvolviam-se estratgias crticas diferentes, que circula-vam em meio demanda por parte dos intelectuais e da elite letrada dapoca de explicaes sobre as particularidades do Brasil e a especificidadede ser brasileiro7. Supondo que a produo historiogrfica estivesse submeti-da s mesmas exigncias, preciso considerar o lugar da crtica em geral edo crtico Manoel Bomfim em particular ao refletir sobre a questo da ob-

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  • jetividade e do comprometimento e suas implicaes para o ofcio do histo-riador e para a escrita da histria no Pas.

    Enfocando a atividade crtica da historiografia expressa, principal-mente, no livro O Brasil na Histria , possvel recuperar sua reflexo so-bre a histria, onde esto presentes observaes sobre como a histria deveriaser escrita, que no se referem unicamente narrativa historiogrfica, mas quetambm tocam em questes metodolgicas referentes relao entre objetivi-dade e subjetividade no trabalho do historiador. possvel supor que estaatuao de Bomfim como crtico estivesse, ao menos parcialmente, relaciona-da sua atuao no mbito educacional. Esta suposio deriva da identifica-o em seu texto de elementos que permitem considerar sua crtica pedaggi-ca e doutrinria; uma crtica que se dedicava a apontar equvocos na escritada histria e a propor solues. possvel destacar alguns aspectos relativos aessa atuao como crtico e como educador, que deixam entrever problemashistoriogrficos e algumas de suas idias sobre o ensino da histria.

    Entre 1898 e 1902, Bomfim atuou no magistrio ensinando Moral e C-vica na Escola Normal, onde tambm foi professor de Pedagogia e Portugus.Nesta mesma escola, dirigiu o Pedagogium, instituio destinada pesquisaeducacional. Tambm foi membro do Conselho Superior de Instruo Pbli-ca do Distrito Federal, sendo que, em 1899, assumiu a Diretoria da InstruoPblica, cargo que deixou em 1907. Neste mesmo ano, atuou como deputadofederal, particularmente interessado em questes relativas ao ensino pblico.O cargo na Diretoria de Instruo Pblica parece ter sido de suma importn-cia, uma vez que cabia a esta instituio a definio dos contedos das disci-plinas escolares, atravs da indicao dos livros didticos a serem adotadosem todas as escolas pblicas; a fiscalizao da atuao dos professores e a dis-tribuio de recursos financeiros, etc. Ainda em 1899, Bomfim escreveu umparecer favorvel sobre o Compndio de Histria da Amrica (1900), de RochaPombo (1857-1933), que disputava num concurso a chance de ser adotadonos cursos de Histria da Amrica, da Escola Normal. Aps essa fase de atua-o na Instruo Pblica e na poltica, o autor passou a se dedicar produ-o de livros didticos e paradidticos, alm de continuar a publicar na im-prensa carioca. Esta trajetria, que vai da ocupao de cargos pblicos aotrabalho de escrever livros educativos, pode ser vista como estando de acordocom a perspectiva de uma misso a ser cumprida pelos intelectuais em suapoca, qual seja: a de lutar pelo projeto da educao como redeno nacio-nal, supondo que sua implementao seria capaz de garantir uma progressi-va transformao da sociedade brasileira, contribuindo para a definio dealgumas precondies indispensveis para se pensar no Brasil como nao.

    A instruo popular foi um assunto intensamente discutido a partir de1870 e durante as primeiras dcadas da Repblica. Dizia respeito s transfor-

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  • maes sociopolticas e econmicas do perodo, momento em que a educa-o passava a ser compreendida como um problema social, devendo ser com-patvel com a insero de homens livres (ex-escravos e imigrantes) num mer-cado de trabalho em expanso. Desde a virada do sculo, Manoel Bomfimdefendia a instruo popular como precondio para o progresso humanoque, por sua vez, conduziria ao progresso da sociedade. Esse papel progres-sista atribudo ao ensino lhe teria permitido afirmar a viabilidade do Brasildiante das teses deterministas que naturalizavam o atraso e o progresso dasnaes, orientando-se pelas noes de meio e raa8.

    Mas, antes de tentar compreender o modo como esse autor concebia oensino da histria, preciso lembrar que, no Brasil, a histria foi introduzidano currculo escolar na primeira metade do sculo XIX ou seja, no mo-mento de afirmao do Estado Nacional. A histria como disciplina escolarfoi estabelecida com a criao do Colgio Pedro II, em 1837, e era guiada pe-los parmetros do ensino francs. Este determinava que a histria da civiliza-o fosse norteada pela histria da Europa Ocidental. A histria do Brasil, co-mo disciplina distinta da histria universal, s surgiu em 1895. Eracaracterizada pela cronologia poltica e pelo estudo da biografia de brasilei-ros ilustres, alm de acontecimentos considerados relevantes para a afirma-o da nacionalidade. Cabia histria como disciplina escolar construir a me-mria da nao como uma unidade indivisvel e fornecer os marcos dereferncia para se pensar no passado, no presente e no futuro do Pas.

    A experincia de Bomfim como defensor da educao popular (comoprofessor, jornalista, poltico ou escritor de livros didticos) provavelmentecontribuiu para que ele pudesse estabelecer relaes entre o ensino da hist-ria e a instruo cvica. O autor compreendia a educao como uma tarefaurgentssima para a Repblica e para a Ptria, sendo que o professor deve-ria utilizar elementos da vida nacional em todas as disciplinas:

    Todos os exemplos de composio e redao, todos os problemas de matemti-

    ca; todos os exemplos de moral, de poltica, e de sociologia podem ser referidos

    vida nacional e so elementos de que pode se servir o professor inteligente e

    apto para dar sua escola um carter nacional9.

    Para Bomfim, a histria a ser ensinada baseava-se em antagonismos: oelemento nacional opunha-se ao estrangeiro (lusitano); o povo se opunha sclasses dirigentes. A histria deveria ser til no sentido de formar tradiescomuns, glorificando heris e valorizando a conscincia nacional. A tarefa es-pecfica do professor seria capacitar os alunos para julgar os fatos e os perso-nagens, identificar causas e efeitos e incutir-lhe sentimentos de admirao,entusiasmo ou reprovao. Contudo, para alm dessa viso da histria bas-

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  • tante informada por uma concepo clssica como matria submetida aojulgamento dos homens, Manoel Bomfim propunha que:

    O estudo da histria no se poderia limitar a simples enunciados dos fatos, que

    ficariam, deste modo, sem valor. No entanto, esse o carter que lhe do em mui-

    tos casos; e, com isto, se torna o ensino inteiramente rido, estril, difcil e in-

    til. nessas condies que vemos reduzir-se a instruo histrica crnica ex-

    clusivamente poltica, ou militar recitao de nomes de prncipes, listas de

    datas, indicao de casas reinantes... (citadas sem discernimento, e onde se amon-

    toam personagens banais, no permitindo ao aluno lobrigar uma seqncia ra-

    cional de efeitos, nem descobrir a linha geral do desenvolvimento necessrio ao

    grupo social, ou a evoluo das respectivas instituies). Os personagens se tor-

    nam, ento, inteiramente ilgicos; surgem como deuses, ou se movem como t-

    teres, porque ou no se destacam quase dos acontecimentos, ou so apresen-

    tados como a causa definitiva deles... Ora, uma das utilidades da histria

    mostrar-nos em que medida os indivduos influem, realmente, sobre a marcha

    dos acontecimentos, e de que forma se refletem sobre a alma dos heris as ne-

    cessidades e as aspiraes gerais. Do estudo da histria deve o aluno trazer esta

    noo: de que um homem no cria uma poca, mas pode concentr-la, sendo o

    realizador de uma aspirao10.

    Esta longa citao fornece algumas pistas importantes para compreen-der o modo como Bomfim pensava na histria, assim como permite identifi-car aspectos que o autor provavelmente valorizava na historiografia, base pa-ra a formulao de suas crticas posteriores sobre o assunto. Logo de incio, otexto indica sua rejeio da histria factual, baseada em nomes e datas e nacrnica poltica e militar. Nas entrelinhas est a crtica da narrativa que no capaz, no seu entender, de estabelecer uma seqncia coerente de aconteci-mentos, uma linha geral de evoluo, que permita acessar causas e efeitos. Doque se conclui que o autor valorizava a didtica de uma histria teleolgica.Mas o ponto central dessa passagem parece ser a referncia ao papel dos in-divduos na histria. Estes embora no criassem uma poca, concentrariamelementos que ajudariam a compreend-la.

    Dessa rpida apresentao da atuao de Bomfim como educador, pas-semos quela que motiva este trabalho: a atuao como crtico da historio-grafia, destacando que ambas no se encontram deslocadas uma da outra.

    Em O Brasil na Histria, Bomfim analisou a questo da objetividade ver-sus subjetividade, em relao ao trabalho do historiador. Ele props avaliaras implicaes para a escrita da histria da dupla exigncia de neutralidadecientfica e comprometimento intelectual, atravs de uma reflexo sobre o lu-

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  • gar dos interesses e das paixes. A histria do Brasil teria sido deturpada ne-gao dos interesses por parte dos historiadores em busca da imparcialidade.

    No segundo captulo Deturpaes e Insuficincias da Histria do Brasil ele se ocupou do que considerava como sendo as razes da deturpao dahistria do Brasil: a influncia da sociologia francesa (com destaque para opositivismo) e a ao de historiadores considerados antinacionalistas. A his-tria do Brasil teria sido deturpada devido a uma causa externa e a uma s-rie de causas internas. A primeira possuiria o efeito negativo de diminuir osvalores nacionais, assim como restringir o critrio dos historiadores oficiais.Quanto s causas internas, teriam pervertido a opinio pblica corrente, ne-gando o valor dos que fizeram o Brasil, ou seja, daqueles que teriam sido osverdadeiros responsveis pela afirmao da tradio.

    Como causa externa da deturpao, ele aponta a deficincia de critriohistrico para registrar as tradies nacionais, o que teria ocorrido devido influncia francesa. Considera que, por causa da facilidade da lngua e da re-lativa proximidade de tradies, essa influncia ter-se-ia feito presente, demodo negativo, na historiografia brasileira. Esta, assim orientada, acabou sen-do induzida a erros de julgamento sobre a histria do Brasil, pois que o fran-cs um critrio sempre falho no julgar os outros povos, sobretudo no mun-do moderno. Dois aspectos dessa influncia negativa so destacados eatacados. O primeiro aspecto a pouca plasticidade do francs. De acordocom o autor, pouco plsticos qualidade que permite a cada povo, sem sairde sua tradio, fecund-la no contato com outros povos , os franceses te-riam perdido a viso das distncias em relao aos outros (os estranhos), notendo sido capazes de reconhecer a realidade, desde que esta no dissesse res-peito s suas coisas prprias. Diante do extico, acusa-os de terem perdidotoda a lgica em busca de efeitos pitorescos ou de estranheza, o que os teriatornado capazes das mais ventrudas inverossimilhanas. Bomfim conside-rava os estudos franceses como caracterizados pela ausncia de rigor cientfi-co, uma vez que apresentavam, segundo ele, um reduzido critrio de obser-vao e, conseqentemente, uma pouca noo da realidade11. Critrios deobservao seriam, portanto, necessrios para um estudo rigorosamente cien-tfico, sendo que este deveria se basear nos mtodos da biologia e, tambm,no conhecimento psicolgico, que o autor considerava capaz de orientar, demodo objetivo, o estudo das subjetividades.

    O segundo aspecto atacado o positivismo da escola sociolgica france-sa. Para Bomfim, apesar do nome, nada menos positivo do que essa constru-o, que faz da ordem a condio essencial da evoluo. O autor critica a ri-gidez da obra de Comte (1798-1857), que considera incompatvel com amaleabilidade da vida. Tal rigidez seria expressa atravs de generalizaes

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  • preconcebidas, que conduziriam a uma frmula evolutiva: a lei dos trs esta-dos. O Positivismo seria, ento:

    A doutrina mais antiptica e mais avessa verdadeira humanizao da espcie;

    doutrina sem ductibilidade para corresponder aos imprevistos e novos aspectos

    da evoluo social, doutrina onde as qualidades gerais de uma mentalidade m-

    dia dominaram o gnio do indivduo, pervertendo-o, esterilizando-o no abuso

    das generalizaes outrance, e no exagero das frmulas, to ntidas quanto va-

    zias. Essas qualidades formam uma ambincia, ou gnio coletivo a que se subor-

    dina toda atividade12.

    Crtico das generalizaes, no conseguia evit-las quando, por exem-plo, empregava aspectos localizados em alguns estudos para caracterizar ofrancs e seu olhar sobre a realidade. Mas ele criticava, principalmente, as ge-neralizaes que teriam contribudo para erguer construes, para o total dahumanidade, com indues havidas somente da histria francesa, o que cor-responderia a minguar o Homem, para met-lo num bolso de cala. O au-tor via como contribuio positiva dos franceses a luta pelas liberdades pol-ticas; a herana intelectual dos enciclopedistas e das reivindicaesrevolucionrias. No entanto, observava que tais influncias sobre um pasdesamparado mentalmente, na degradao bragantina que o guiava produ-zira, sobretudo, maus resultados: distores dos julgamentos sobre a prpriatradio brasileira, sem critrios de observao prprios. Devido influnciade tal fator externo, uma histria deturpada teria sido produzida, orientada apartir de um critrio de emprstimo, insuficiente e incompatvel com umatradio genuinamente brasileira. Uma histria consagradora de grandes per-sonagens assim teria sido feita, desprezando aqueles que, segundo o autor,verdadeiramente teriam constitudo a gente do Brasil, e que seriam os leg-timos responsveis pelas tradies.

    Quanto s causas internas da deturpao da histria, possvel sinteti-z-las em trs procedimentos: 1) a negao ou camuflagem de interesses; 2) aperverso das fontes; 3) a reduo da histria enunciao de fatos e lis-tagem de nomes. Para Manoel Bomfim, a histria teria sido deturpada, ini-cialmente, atravs da negao dos interesses nada neutros do historiador. Adepurao dos fatos, em busca da suposta verdade, equivaleria a percorrer aescrita da histria sobre o referido fato identificando, antes de tudo, os inte-resses daqueles que a escreviam. Seria a partir da identificao de tais interes-ses que se tornaria possvel, em primeiro lugar, situar o historiador em rela-o aos fatos e, em segundo, identificar as verdades ditas ou omitidas. O bomhistoriador seria aquele capaz de valorizar a tradio brasileira (sendo brasi-leiro ou no), enaltecendo-a de acordo com certo rigor investigativo. Tam-

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  • bm seria aquele capaz de reconhecer que a escrita da histria era movida porinteresses e paixes dos quais no era possvel escapar, no valendo a penatentar. Ou seja, o autor considerava a dificuldade, seno a impossibilidade deobter que os historiadores apreciassem e avaliassem as situaes histricas deacordo com um critrio absolutamente objetivo. Este somente poderia ser da-do mediante a adoo de pontos de vista universais, representados pela idiade humanidade, de progresso e de justia, e no pela perspectiva nacional.

    Como foi visto antes, Bomfim utilizava a noo de interesse como pers-pectiva de anlise social. Procurava mostrar como a pretenso neutralidadee objetividade da cincia era negada pelo emprego no explcito de analogiase metforas. Quer dizer, criticava os procedimentos discursivos da cincia,observando que eles no eram assumidos como tal, sendo camuflados, natu-ralizados e legitimados como concluses derivadas da observao e compro-vao experimental. Contrariando a postura de ocultamento das prticas dis-cursivas, dizia que toda doutrina que se apia sobre a observao, e se acordacom as leis gerais do universo, deve ser tida como verdadeira at prova docontrrio. Tal prova no se daria somente atravs da experincia e da obser-vao, mas tambm da explicitao atravs dos procedimentos discursivos do interesse por trs da prtica cientfica.

    A segunda causa da deturpao da histria dizia respeito perversodas fontes em que ela estaria baseada, sendo necessrio que elas fossem ree-xaminadas. Contudo, sua histria do Brasil fundamentava-se no na desco-berta de files documentais, mas na reviso historiogrfica. Trata-se, portan-to, de um autor que embora estivesse preocupado com o uso das fontes, nose dedicava pesquisa arquivstica e pouco utilizava documentao primria.

    No incio do sculo, a utilizao de fontes primrias constitua um pres-suposto importante para o trabalho do historiador, visto que prevalecia a his-tria metdica, orientada pela crtica documental. Vigorava o preconceito doindito, que supunha a utilizao de fontes arquivsticas, compreendidas co-mo indcios seguros para uma informao correta e, conseqentemente, parao estabelecimento da verdade histrica. Por trs desse preconceito haveria asuposio idealista de uma realidade preexistente imutvel, espera da corretaidentificao pelo investigador13. A afirmao da histria como cincia, nummomento em que as fronteiras disciplinares eram pouco definidas, passava,portanto, pelo estabelecimento de um conjunto documental a partir do qualseria possvel construir o conhecimento histrico, definir o fazer historiogrfi-co e, deste modo, a identidade do historiador como um tipo de especialista.Sendo assim, compreende-se em parte a no-incluso de Manoel Bom-fim entre aqueles que, naquele momento, se moviam no sentido de definir ocampo historiogrfico. Porm, possvel argumentar que a no-incluso desseautor entre os historiadores, mais que indicar um tipo de falta no trabalho pro-

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  • duzido por ele (falta que o exclua), indicaria a existncia de diferentes discur-sos sobre o conhecimento e a prtica historiogrfica. Discursos que nem sem-pre estariam de acordo com aquele que lentamente se consolidava.

    Bomfim esquivou-se da pesquisa documental (arquivstica), optando porse dedicar crtica da historiografia. Este discurso, todavia, no foi suficientepara inclu-lo entre aqueles que criticava os historigrafos oficiais. O queem parte pode ser atribudo ao fato de que esse discurso possua, como eixonorteador, a afirmao do interesse nada neutro por trs da prtica de escre-ver a histria. Ao optar pela crtica historiogrfica, em vez do trabalho comfontes primrias, o autor procurou contrapor, de um lado, uma escrita da his-tria considerada oficial; e de outro, as fontes em que essa se baseava. O obje-tivo era claro: desconstruir o discurso historiogrfico minando-lhe as bases.Mostrar que a deturpao da histria ocorria atravs do estudo que per-vertia as fontes, porque supunha o autor no era capaz de depurar(filtrar) a tradio que tais fontes expressavam.

    Quanto terceira e ltima causa da deturpao da histria a redu-o da histria enunciao de fatos e listagem de nomes , referia-se in-fluncia positivista associada opo de escrever uma histria vista de cima.Manoel Bomfim se posicionou contra uma historiografia oficializada, quese limitava a enunciar fatos, reduzindo a histria crnica poltica ou militar,expressa atravs da recitao de nomes e datas. Essa escrita da histria valori-zava personagens que, inteiramente ilgicos; surgem como deuses, ou se mo-vem como tteres, porque ou no se destacam quase dos acontecimentos,ou so apresentados como a causa definitiva deles.... Pelo contrrio, o estudoda histria deveria desenvolver a noo de que um homem no cria uma po-ca, mas pode concentr-la, sendo o realizador de uma aspirao14. Ele suge-riu acreditar que uma das utilidades da histria seria mostrar em que medidaos indivduos poderiam influir sobre a marcha dos acontecimentos, e de queforma esses indivduos seriam capazes de articular necessidades e aspiraesgerais. A crtica oposio entre indivduo e sociedade est presente. O autoros observa como aspectos complementares dizendo que:

    Indivduo e sociedade, egosmo e simpatia, organizao e revoluo..., combi-

    nam-se na realizao da vida social, como em cada personalidade se combinam

    hbito e iniciativa, conservao e reforma, consciente e inconsciente, aspira-

    o de repouso e horror monotonia, disciplina e exigncia de liberdade..15

    Tendo em mente a relao entre cincia e histria, lembra que, se era daprimeira que derivaria o progresso, seria nas pginas da segunda, quando se re-gistrasse sinceramente a verdade, que se encontrariam os motivos de con-fiana coletiva capazes de fundamentar o desenvolvimento social. Herdeiro de

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  • uma tradio iluminista, Bomfim concebia a histria como orientadora, capazde valer como demonstrao de mrito e capacidade de realizao, que eleconsiderava como fundamentais para o progresso nacional. Tambm defendiaa existncia de uma humanidade universal, assim como de valores e objetivosconsiderados vlidos para todos: a liberdade e a felicidade, por exemplo.

    Ao produzir sua crtica historiogrfica em plenos anos vinte do sculopassado, o autor apresentou um ponto de vista que correspondia a uma con-cepo clssica da histria, em vias de ser ultrapassada. Sua preocupao emdestacar os interesses e paixes por trs das prticas historiogrficas ia de en-contro perspectiva de que a imparcialidade do historiador pressupostoda moderna concepo de histria estaria articulada ao desvendamentode uma verdade emprica, atravs da aplicao de um mtodo crtico na an-lise de fontes primrias. Como observa Angela de Castro Gomes, a modernaconcepo de histria buscava um critrio de verdade afastado de pressupos-tos ticos e polticos, de modo a permitir a associao entre historiadores compreendidos como produtores de bens culturais sem a exigncia de en-gajamento16. Contudo, entre os elementos valorizados por Bomfim como im-portantes para a boa escrita da histria, encontra-se a objetividade e o rigorinvestigativo na busca da verdade; a imaginao e a segurana de conceitos;a erudio e a lgica; o senso crtico e o afastamento de preconceitos, alm daarte, elegncia e leveza da narrativa. Trata-se, portanto, de aspectos comuns moderna concepo da histria.

    Pode-se concluir que a aplicao de ambas as concepes a clssica ea moderna precisa ser vista em relao complexidade dos fenmenos ex-perimentados durante as primeiras dcadas do sculo XX, quando a busca deobjetividade por parte de intelectuais e cientistas convivia com a demandapor uma atuao social e poltica engajada. Para compreender as representa-es de Bomfim sobre a histria, torna-se necessrio demarcar quanto as cha-madas concepes clssica e moderna da histria so construdas historica-mente, a partir das experincias vividas e das demandas sociais, no podendoser compreendidas como modos de pensar na histria absolutamente estan-ques e impossveis de serem associados.

    BONS E MAUS HISTORIADORES

    Considerando a crtica que fez aos historiadores do Brasil e acreditandoque ela possa fornecer pistas para a compreenso do modo como ele pensouna histria, proponho observar como esto representadas em seu texto as ima-gens do que identifico como sendo o bom e o mau historiador, vinculando-ass caractersticas de suas obras. Tal construo implicava ressaltar certos as-

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  • pectos do historiador-alvo, omitindo outros tantos, de modo a elaborar umaimagem suficientemente ilustrativa, ou exemplar, para sua argumentao.

    Ele criticou, entre outros com menos destaque, o trabalho de Gilbert Chi-nard apresentado como mestre de conferncias da Brown University, au-tor de LExotisme Americain (s/d) passando rapidamente pela obra de doisprofessores de universidades belgas de tendncias francesas C. de Lannoye H. Van-der Linder (Histoire de lExpansion Coloniale des Peuples Europeans,1907). E, finalmente, abordando A Terra e a Evoluo Humana (1922), de Lu-cien Febvre (1878-1956), apresentado como professor da Universidade deStrasburgo. Observemos mais de perto suas crticas a esses autores, tendo emmente que elas podem contribuir para a compreenso da historiografia queBomfim considerava ideal, demarcando-a, ainda que por oposio.

    Gilbert Chinard uma bela inteligncia francesa, dilatada por uma se-gura cultura norte-americana foi criticado porque, segundo Bomfim, almde dedicar pginas e pginas aos sucessos dos franceses no Brasil, incorreraem diversos erros: localizar o forte de Villegagnon ora na beira de um rio, orano Maranho; identificar Caramuru como um rei com os seus sditos; con-fundir a Flrida com o Brasil. Em suma, a crtica de Bomfim a Chinard resu-me-se na identificao de erros considerados como indcios de pouco crit-rio cientfico e pouca noo da realidade, ou melhor, pouco rigor com asinformaes.

    Quanto a Lannoy e Van-der Linder uma literatura rigorosamente ob-jetiva, cientfica , o autor considerou-os alheios histria da colnia devi-do afirmao de que a colonizao portuguesa [foi] antes de tudo costei-ra. E mais no disse, passando a uma obra que interpretou como sendo maisostensivamente cientfica: A Terra e a Evoluo Humana, de Lucien Febvre,que transuda cincia positiva. O nico ponto de discordncia em relao aFebvre diz respeito ao uso do meio ambiente como chave explicativa do so-cial. No livro analisado, o historiador francs defendia a idia de que o meiotropical seria um obstculo definitivo explorao humana, estando o Brasilcondenado por uma natureza vegetal sem sorrisos para o homem. Febvreserviu como exemplo da inexatido dos franceses, que

    Contam e julgam por preconceitos literatizados, a que subordinam a prpria

    fantasia (...) Fechados em casa, os franceses como que perderam a capacidade

    de estender os olhos por outros horizontes, e so inacessveis s outras realida-

    des. Possudos da manire, eles so inverossmeis, quando no puramente con-

    vencionais17.

    Como foi dito anteriormente, a crtica aos estudos franceses sobre o Bra-sil pode ser resumida em trs pontos interligados: um reduzido critrio de

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    Manoel Bomfim, pensador da Histria na Primeira Repblica

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  • observao, que resulta na pouca noo de realidade, indicativa da ausnciade rigor cientfico. A exigncia de rigor cientfico relacionada ao ideal deobjetividade e distanciamento que a concepo moderna de histria exigia fazia parte, portanto, das preocupaes de Manoel Bomfim. Contudo, suacrtica foi pontual, no se estendendo de modo analtico sobre a histria es-crita por outros autores, mas sim sobre pontos considerados vagos ou err-neos. Pontos que servem para ilustrar sua prpria argumentao, muito maisdo que para consolidar um contradiscurso crtico. Apesar disso, ele se empe-nhou em criticar os historiadores do Pas (brasileiros e estrangeiros) e, maisespecificamente, se ops a um modelo historiogrfico vigente durante o s-culo XIX, cujo maior exemplo ter sido Varnhagen. No momento em que es-creveu O Brasil na Histria, a obra de Varnhagen estava sendo retomada e sub-metida a leituras das mais diversas, entre as quais a de Manoel Bomfim, quesegundo Arno Wehling, foi seu crtico mais radical18.

    Mas alm da preocupao com o rigor cientfico, o trabalho de articula-o das informaes atravs da narrativa parece-me importante para pensarno caso de Manoel Bomfim. No terceiro captulo de O Brasil na Histria intitulado Os que fizeram a Histria do Brasil , o autor identifica parteda produo historiogrfica brasileira que considera ilegtima, atravs de umacrtica aos historiadores que responsabiliza pela deturpao da histria doPas. Tambm apresenta, de modo sucinto, aqueles que considerava como osverdadeiros historiadores nacionais: frei Vicente do Salvador, Robert Southey,Capistrano de Abreu e Joo Ribeiro.

    O principal alvo do seu ataque foi a histria portuguesa do Brasil escritapor historiadores que Bomfim considerava como ilegtimos representantesda nao brasileira porque seriam legtimos representantes da Coroa portu-guesa. Foi por isso que incidiu ferozmente sobre Rocha Pitta (1660-1738), odigno sdito do trono bragantino; Alves Nogueira (m.1913), o pr-holan-ds; e, sobretudo, Varnhagen, para quem reservou uma srie de adjetivos in-juriosos: historiador mercenrio; o menos humano dos homens; brasi-leiro de encomenda; sem bondade; patriotismo de conveno;deturpador da histria do Brasil. Historiadores por encomenda, opacos re-fratores, sem outro maior valor que o da distoro, teriam produzido, paraele, uma histria sem grande preocupao com a crtica e a doutrina nacio-nalista. Teriam optado por valorizar a erudio escrevendo vastas histrias,desenvolvidas em pormenores que revelaram to somente as

    (...) futilidades desencabidas (sic), inertes, indigestas, prprias somente, para

    abafar, do passado, o que tenha valor (...). Tentam, com esse esforo erudito, en-

    cher o vazio de pensamento e a nulidade de lgica19.

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  • Bomfim identificou a construo de um ortodoxismo histrico em cor-respondncia com a poltica imperial. Ortodoxismo que consistia em darcorpo a tudo que pudesse valer como prestgio para os que exploravam estaptria, contrariando mesmo, explicitamente, a expresso dos seus legtimossentimentos, velando as verdadeiras glrias da sua histria. Para ele, Varnha-gen teria sido, se no o primeiro, pelo menos o principal historiador a dar oBrasil Casa portuguesa reinante. Teria valido como escarafunchador de ar-quivos, mas esse mesmo valor ele o teria perdido ao apossar-se da histria defrei Vicente do Salvador, para torn-la coisa sua, e faz-la nos interesses dasua ambio. Neste ponto, acusa-o de haver se apropriado da obra do freisem cit-lo. Varnhagen aparece como exemplo mximo do mau historiador:

    Historiador grande historiador, no tinha nem a capacidade reconstrutorade Mommsem, nem o poder evocador de Thierry, ou a cincia estilizada de Tai-ne, ou o tom humano de Michelet e Gibson (sic). Hirto, nos desvos em que semeteu, sem pensamento para suster um passado, foi um panorama de cemit-rios: fez obra de secador absorvente, e ressequiu os assuntos, ao mesmo tempoem que velava os documentos. Quando chega o momento de dar de si mesmo,quando no podia ser, apenas, inerte e opaco, encontramo-lo o menos hu-mano dos homens, brasileiro de encomenda, sem bondade, num patriotismo deconveno20.

    A comparao de Varnhagen com Mommsen (1817-1903), Thierry (1795-1856), Taine (1828-1893), Michelet (1798-1874) e Gibbon (1737-1794) abreespao para comentrios sobre algumas das fontes nas quais Bomfim, prova-velmente, encontrava inspirao para suas representaes sobre a escrita dahistria e os historiadores. Tais fontes eram, sobretudo como o trecho ci-tado demonstra historiadores do incio do sculo XIX. Thierry, Michelet eTaine fizeram parte da gerao de historiadores franceses que viveram um pe-rodo marcado por paixes literrias e polticas. Ao recuperar em plena dca-da de 1920, os nomes de historiadores da primeira metade do sculo XIX momento marcado pela difuso de uma espcie de sensibilidade romntica Manoel Bomfim apresentou alguns parmetros para o trabalho a que sepropunha ao escrever sua trilogia sobre o Brasil: depurar a histria nacio-nal, livrando-a do que considerava como entraves ou obstculos ao pleno de-senvolvimento da nacionalidade. Parte desse esforo de depurao pode serpercebido em O Brasil na Histria, mais especificamente no captulo intitula-do O patriotismo brasileiro, quando o autor destaca a importncia dos es-critores e poetas romnticos: Castro Alves (1847-1871), lvares de Azevedo(1831-1852), Fagundes Varella (1841-1875), Jos de Alencar (1829-1877) eGonalves Dias (1823-1864), tidos como os melhores representantes do Pas

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  • nas letras. Cabe ressaltar que no se pretende aqui classificar Manoel Bomfimcomo um autor romntico. Em vez disto, o que se procura tentar compreen-d-lo como um pensador dotado do que pode ser identificado como uma sen-sibilidade romntica, sendo que esta teria sido informada por suas leiturasdos historiadores europeus e escritores brasileiros do incio do sculo XIX.

    Voltando crtica de Bomfim ao visconde de Porto Seguro, considera-seque ela possa servir como uma espcie de chave para a compreenso de OBrasil na Histria, uma vez que grande parte deste livro dedica-se a atacar aperspectiva historiogrfica de Varnhagen, atravs da utilizao de argumen-tos extrados do romantismo e do cientificismo. Bomfim escolheu a Histriada Independncia (1916) como livro exemplar de Varnhagen. Observou que ofato de se tratar de um perodo curto, com fatos precisos, ter-lhe-ia permiti-do document-lo relativamente bem. Porm, destacou a obra do visconde que considerava um reacionrio bragantista como deturpadora da his-tria do Brasil, expressa num estilo pesado, deselegante, sem arte. Uma dastemticas favoritas de Bomfim parece ter sido justamente a histria da Inde-pendncia, configurada como uma simples transmisso de domnio do reiao imperador. Para ele, adotamos o Estado portugus-bragantino, trazidocom os fujes de 1808, e que, pulando sobre 1831-32, veio a ser a miservel efeia tradio poltica em que ainda vivemos. A perspectiva de continuida-de, restando ao historiador resgatar o legtimo movimento de independnciaocorrido desde os primeiros tempos da colnia e que teria sido promovidopor colonos, portugueses de nascimento, mas brasileiros em tudo mais.

    Outro historiador alvo da crtica foi Pereira da Silva (1817-1897), no seulivro Histria da Fundao do Imprio Brasileiro (1864/1868). Para Bomfim,esse historiador teria seguido a trilha de Varnhagen ao escrever uma histriacheia de malevolncias sobre a Revoluo Pernambucana de 1817. Alm dis-so, no teria tido nenhum respeito pela verdade ao se dizer imparcial, cons-truindo a verso de uma Revoluo Pernambucana sem razes, como resulta-do do imprevisto o que, segundo Bomfim, contribura para a construode uma histria antibrasileira. A importncia de criticar Pereira da Silva, umhistoriador que ele prprio considerava menor, deve-se ao fato de que seusmuitos e espessos volumes teriam atingido um amplo pblico, para o qualno haveria outras obras que servissem como medida comparativa. Da a ne-cessidade de critic-lo. No seu dizer, Varnhagen e Pereira da Silva fizeram es-cola, onde se destacariam Fernandes Pinheiro (1825-1876), Mecedo (sic) eMoreira de Azevedo (1832-1903), pobres de esprito, legtimos continuado-res desse historiar, que no possuiriam critrios histricos, substituindo-ospor eptetos. E assim tais historiadores teriam construdo uma narrativa pon-tuada por termos que desqualificariam personagens histricos, denegrindo-os sem explicao. Para Manoel Bomfim,

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    Revista Brasileira de Histria, vol. 23, n 45

  • Foi nos esconderijos de tais histrias que desapareceram os grandes mrtires e

    verdadeiros precursores da independncia do Brasil, aqueles cuja existncia, mes-

    mo com a derrota em que se lhes tirou a vida, tornou impossvel a submisso,

    ou ainda, a simples unio do Brasil a Portugal (...)21.

    O autor alegou que atravs da pena desses historiadores a histria nacio-nal fora escrita e deturpada, difamando os herosmos genuinamente nacio-nais e consagrando aquilo a que esses se opunham: a poltica imperial. O co-ro dos historiadores bragantinos teria se ocupado em falsificar a histria doBrasil, relegando a segundo plano os acontecimentos que para ele possuamsignificado relevante no rol das tradies nacionais. Deste modo, a Insurrei-o Pernambucana teria sido esquecida; a unidade nacional, confirmada co-mo resultado da independncia promovida pela monarquia bragantina; e osbandeirantes paulistas, difamados.

    Bomfim acreditava que, contra a natureza, contra o esprito americano,contra a prpria histria portanto, contra as tradies nacionais foraconstruda uma histria do Brasil com o intuito de demonstrar que a naodeveria pertencer dinastia que fizera a Independncia. Empreiteiros dessahistria, os historiadores teriam deturpado ou esquecido qualidades essen-ciais do carter brasileiro, inventando vcios e crimes por conta da nao.No seu dizer, uma histria triste assim foi feita, merecendo exclamaes deprotestos, repugnncias, clera, motejo, repulsa...; contudo, o intuito da cr-tica era destacar na historiografia (ou, nas historiagens) os hiatos, acasos,erudies chulas e elogios parvos que constituram efeitos antinacionais.

    De acordo com o autor, os primeiros e legtimos historiadores do Brasilteriam sido dois: frei Vicente do Salvador e Robert Southey. Frei Vicente(c.1567-c.1636) escrevera a Histria da Amrica Portuguesa (1627), conside-rada a primeira e genuna histria do Brasil, onde se encontraria um teste-munho de f, em depoimento pitoresco e expressivo, insubstituvel quanto aoque foi diretamente conhecido pelo autor, constituindo a aurora da menta-lidade brasileira e da histria nacional.... Mas o primeiro crime da historio-grafia teria sido deixar desconhecida para o pblico nacional a obra que con-siderava como a primeira apresentao do Brasil ao mundo: a Histria doBrasil, do historiador ingls Robert Southey (1774-1843), publicada entre1810 e 1822 na Inglaterra. Foi traduzida para o portugus e publicada em seisvolumes em 1862, ou seja, aps a publicao da Histria Geral do Brasil, deVarnhagen, lanada entre 1854 e 1857.

    Southey nosso amigo, historiador poeta, grande corao era oexemplo mximo do bom historiador que, segundo Bomfim, o Brasil aindano produzira. Considerava-o assim porque acreditava que, ao valorizar a his-tria brasileira que em nenhuma outra de Portugal inferior, o ingls havia

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    Manoel Bomfim, pensador da Histria na Primeira Repblica

    Julho de 2003

  • se orientado por um critrio de verdade. Ele identificou no historiador in-gls a valorizao da nao brasileira, aspecto que considera raro na historio-grafia que criticava e caro na que propunha. Valorizar a nao era, por si s,suficiente como um indcio de verdade histrica. A depurao dos fatos, embusca da suposta verdade, equivaleria a percorrer a escrita da histria identi-ficando, antes de tudo, os interesses daqueles que a escreviam. Seria a partirda identificao de tais interesses que se tornaria possvel, em primeiro lugar,situar o historiador em relao aos acontecimentos; e, em segundo, identifi-car verdades ditas ou omitidas. O bom historiador seria aquele que valorizas-se a tradio brasileira (sendo brasileiro ou no), enaltecendo-a de acordocom certo rigor investigativo. Tambm seria aquele que fosse capaz de reco-nhecer que a escrita da histria era movida por interesses e paixes dos quaisno era possvel escapar.

    Outro tipo de historiador que mereceu sua crtica foi aquele que mesmosem a pretenso da imparcialidade (impossvel, conforme Bomfim), apoiava-seem alegadas competncias e no peso de uma multiplicada produo para defen-der determinadas opinies. Assim ele criticou Oliveira Lima (1867-1928) au-tor de D. Joo VI (1909) e a Histria do reconhecimento do Imprio (1901). Con-siderou-o um bom exemplo dos historificantes contemporneos, que a ttulode objetivismo se sentiriam desobrigados da tarefa de alcanar a verdade histri-ca, desobrigados de assumir os interesses por trs da prtica historiogrfica.

    Outro que no lhe escapou foi Euclides da Cunha. Mesmo reconhecen-do o desenvolvido prestgio intelectual em torno de seu nome e predispon-do-se a considerar seus conceitos com ateno, afirmou que ele abusara doseu enorme e justo prestgio literrio para, a pretexto de resumir os antece-dentes da Repblica, recapitular a histria bragantina at o ponto de relacio-n-la com a unidade nacional brasileira.

    Capistrano de Abreu e Joo Ribeiro representariam excees dignas dedestaque, pois no se confundem na mentalidade dos clssicos deturpado-res. O primeiro foi considerado por Bomfim como um grande pensamentovotado histria do Brasil, superior a doutrinas e a consagraes, que tim-bra em ser apenas, um lcido e incansvel pesquisador, a organizar bom ma-terial para a verdadeira histria do Brasil. Porm, Capistrano no foi poupa-do da observao de que, embora pudesse ter aceito ser o autor da verdadeirahistria nacional, a modstia e um rigoroso objetivismo o tem afastado detal tarefa. Disse a seu respeito:

    No que lhe falte horizonte de idias, nem capacidade de generalizao e segu-

    rana de conceitos, ou senso crtico, para estender o pensamento por toda a rea-

    lidade do Brasil (...). No entanto, quem tenha tratado com esse puro espcime

    de homem de cincia a sua cincia, guarda a convico de que ele jamais se

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    Rebeca Gontijo

    Revista Brasileira de Histria, vol. 23, n 45

  • atirar a uma obra de conjunto, que tanta vez exige afirmar por simples de-

    duo, ou compor em imaginao, a projetar conceitos sem outro sustentculo

    alm da pura lgica. Pesquisador intransigente, prendeu-se ao regime mental do

    rigoroso objetivismo. Eis a significao da sua obra22.

    Quanto a Joo Ribeiro (1860-1934) historiador por direito de ma-gistrio, historiador por direito, principalmente, de muito saber, na lucidezde um descortino seguro Bomfim destacou que preferiu limitar-se ao di-daticismo escrevendo uma srie de manuais. Apesar disso, sua obra tem sidode boa orientao, lineada com coragem e preciso. Considerava-o comouma inteligncia vida, perenemente incorporada atividade do pensamen-to moderno que,

    Sob a mscara de displicncia ou de impassibilidade, tem como caracterstica

    mental o gosto pelas generalizaes e o pendor pelas doutrinas. Destarte, rara

    ser a conjuntura histrica em que ele no engaste uma teoria, muitas vezes ori-

    ginal, ou, pelo menos, um julgamento pessoal, penetrante, apesar de quanta con-

    vencionice possa haver em contrrio23.

    Contudo, Ribeiro tambm no escapou de ser criticado. Apesar de ter seuvalor reconhecido, foi acusado de na rapidez de pginas exguas, as generaliza-es e as doutrinas lhe do um carter esquemtico que, algumas vezes, aprovei-ta a preconceitos em que se amparam os que deturpam a histria nacional. Bom-fim criticou suas afirmaes de que mesmo hoje, se no fora a monarquia, aIndependncia seria um problema insolvel e que sem os exaltados, impos-svel fazer revolues e, com eles, impossvel governar,24 retrucando com osexemplos da Inglaterra, em 1645, da Frana em 1789 e da Rssia de 1917.

    Escrevendo sobre a histria em momentos distintos, no contexto de 1903-1905 e no de 1925-1931, Bomfim discordava das explicaes vigentes sobre oatraso do Pas. Nos dois perodos, tais explicaes relacionavam como razesdo atraso: a fatalidade do passado colonial e os determinismos naturais traduzidos pelo meio (no to ressaltado no segundo momento) e pela raa.Bomfim, no entanto, seguiu outro caminho ao privilegiar os contedos his-tricos. Na concepo deste pensador da histria, os problemas sociais, osmales da nao brasileira originaram-se das relaes histricas que aqui sedesenvolveram e cuja compreenso s poderia ser alcanada pelo conheci-mento da histria. Tal conhecimento teria adquirido, em seu pensamento, oscontornos e contedos de uma conscincia histrica medida que his-toriografia caberia registrar e consolidar aspectos do passado capazes de cons-truir um sentido para o futuro.

    O autor escreveu O Brasil na Histria num momento em que havia a per-

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  • cepo de que a histria estaria por ser feita. Essa perspectiva ajuda a enten-der sua crtica a Capistrano de Abreu e a Joo Ribeiro tidos por ele comodois dos mais aptos historiadores de sua poca mas que ainda no teriamrealizado a verdadeira histria do Brasil. O primeiro devido a um rigorosoobjetivismo, que o teria impedido de fazer uma obra de conjunto. E o se-gundo, devido s generalizaes e s doutrinas, que o teriam conduzido a umainterpretao esquemtica, pouco atenta s especificidades locais.

    Pode-se concluir, ento, que o bom historiador tambm estaria por serfeito, e para tanto seria preciso critrio histrico orientado pela objetividadee pelo rigor investigativo na busca da verdade. Alm disso, precisaria desen-volver a capacidade de assumir posicionamentos claros em relao ao fazerhistoriogrfico, ou seja, a capacidade de explicitar interesses e paixes, almde ampliar o horizonte de idias. A bondade e a humanidade seriam favor-veis, assim como a erudio, desde que posta a servio da valorizao da his-tria brasileira. A erudio pela erudio no lhe interessava, pois escrever ahistria teria um nico sentido: resgatar as tradies e enaltecer os valoresnacionais de modo a situar o Brasil, com suas particularidades, no mbito deuma histria geral. Dizia Bomfim que para nada serviria uma escrita que sprovocasse indigesto de erudio para mostrar: como arrotavam os Etrus-cos, e a que horas se benzia Camaro...25. A lgica, a capacidade de escara-funchar arquivos e organizar material (fontes) para a escrita da histria tam-bm seriam bem-vindas, assim como a capacidade reconstrutora, que emtermos de narrativa exigiria o que o autor denominava de poder evocador.Este ltimo estaria relacionado ao estilo, caracterizado pela arte, elegncia eleveza da narrativa, que tambm deveria possuir um tom humano. A segu-rana de conceitos valorizada como importante, assim como o senso crti-co. A superioridade em relao a doutrinas e consagraes poderia ser um va-loroso atributo, da mesma forma que a ausncia de preconceitos. Por fim, aconfiana no prprio mrito e na importncia da tarefa a cumprir sinaisde conscincia das tradies complementariam aquilo que foi identificadoaqui como o historiador ideal, segundo Manoel Bomfim.

    Esta espcie de receita para o bom historiador no se encontra sintetiza-da desta forma em seus textos. Trata-se de uma interpretao baseada na iden-tificao dos pressupostos para a boa historiografia, recolhidos nos trs pri-meiros captulos de O Brasil na Histria. Considera-se que a histria tenhasido pensada por Bomfim de modo a avaliar o fazer dos historiadores a partirde seu produto: o texto histrico. Mais do que qualquer instituio concreta,a histria seria a depositria dos desejos e das realizaes, atravs dos tem-pos e das classes sociais. Tais desejos e realizaes representariam, para oautor, um estmulo conscincia considerada fundamental para a afirma-o do passado e implementao do futuro. O papel da histria seria cons-

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  • truir a conscincia da nao sobre si mesma, a partir dos fatos coligidos e in-terpretados. Por isso ela deveria ser: sincera, purificada, vivaz, exata... capazde orientar, estimular e defender o desenvolvimento nacional de que partici-pamos, e que se torna cada vez mais consciente nas aspiraes comuns26.

    Diante desse papel atribudo histria, Bomfim refletiu sobre as possi-bilidades de uma histria universal, considerando que bastaria justapor ashistrias nacionais para se obter a total historificao dos povos. Tal procedi-mento somatrio produziria o que o autor considerava como uma verdadei-ra monstruosidade, visto que as histrias parciais no se completam, nemcoincidem nos limites de umas com as outras. Este uso da histria teriapermitido que alguns povos considerados de grande prestgio intelectual epoltico e para afirmao desse mesmo prestgio elaborassem uma hist-ria universal como complemento da nacional, organizando-a de modo a cons-tituir um fundo onde se destacaria a histria das naes mais poderosas. Re-sultaria, finalmente, na existncia de vrias histrias universais, conforme apredominncia de grandes tradies nacionais, que assim apareceriam comocentros de gravitao das outras tradies27.

    O autor compreende que uma histria geral da humanidade deveriaser uma obra de socializao humana, preparadora da inteira solidariedadeda espcie: a conquista completa do planeta, e a aproximao da humanida-de, mediante o relacionamento das suas diferentes partes. Ele diferia, por-tanto, da perspectiva das histrias universais europias, por consider-las co-mo estando submetidas aos interesses de cada nacionalidade.

    Pode-se afirmar que Bomfim deslocou o eixo de abordagem do ponto devista da histria nacional, inserida e determinante da histria universal, parauma compreenso de tais histrias nacionais em suas particularidades. Essashistrias constituiriam uma histria geral no submetida aos desgnios nacio-nais, mas capaz de inclu-los e relacion-los a partir de valores que seriam ou deveriam ser, para ele comuns humanidade. Consoante o autor, as his-trias universais constituiriam um alegado de fatos banais sendo necessriotornar evidente a deturpao constante da histria ora podada, ora exa-gerada, segundo convm s tradies dominantes com o objetivo de valo-rizar sucessos exclusivos de determinadas naes, sem maior preocupao coma evoluo geral da humanidade. Ele identificou como egocntrica a hist-ria escrita no critrio de quem a faz, correspondendo ao que cada grupo viae compreendia de si para si, deturpando aspectos da sua prpria tradio, con-tribuindo para a degenerao do prprio grupo nacional. Na escrita dessa his-tria egocntrica a escolha seria tudo. Da a importncia de investigar as cir-cunstncias em que se fazia fazer que deturpava ou enaltecia a histrianacional, a fim de inseri-la na histria geral da humanidade.

    Bomfim acreditava que o valor geral da histria seria deturpado na me-

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  • dida do valor que cada historiador atribusse ao seu povo em relao a umaescala da civilizao. Deste modo, a histria ficaria a servio das civilizaesque, num determinado momento, apresentassem um maior valor ativo decontribuies na escala da evoluo humana; valor que nada mais seria queuma diferena de poder. Ou seja, as histrias construdas sob medida paradeterminadas naes fundamentar-se-iam no ponto de vista exclusivo dessasmesmas naes. Mentira verificada, mas, consentida, e aplicada no valor deexatido assim o autor considerava as histrias construdas sob o julga-mento francs ou a presuno germnica, em detrimento daquelas que se-riam escritas por outros povos. Nada mais difcil, segundo ele, do que achar olimite justo entre povos grandes e pequenos, fortes e fracos. Contudo,

    Os mais poderosos abusando da superioridade relativa, desnaturam a situao,

    atribuem a si mesmos toda a fora, e dividem as naes em grandes e peque-

    nas. No domnio da histria, elas ainda procedem mais desafrontadamente, que

    no h meio de pedir contas do abuso de prestgio. Nem, mesmo, devemos es-

    tranhar que seja assim28.

    Ao mesmo tempo, Bomfim ressaltou a importncia da subjetividade dohistoriador, que imbudo de valores advindos da tradio que o inspirava, de-veria ser capaz de apreciar e registrar os valores morais e mentais de um po-vo, utilizando como medida sua prpria conscincia e tradio. Para ele, pre-tender, no caso, o efetivo objetivismo, pretender que o indivduo saia de simesmo, que se dispense todo um critrio de julgamento, como o de visar fo-ra de qualquer horizonte. Em suas palavras,

    A histria nos responde (...) no critrio de quem a faz, pois que, de fato, cada

    grupo v e compreende a civilizao de si para si, e deturpa os apreos gerais,

    como nas conscincias se deturpa a noo de prprio valor pessoal (...). E a est

    a escolha, que tudo. Verificadas as condies em que se faz a histria para o

    uso universal, cabe a cada povo defender a prpria histria, num esforo que de-

    ve ser proporcional ao valor aparente das histrias deturpadoras29.

    Seria verificando as falsidades e distores histricas que seria possveladquirir a liberdade de esprito necessria para elevar o julgamento por so-bre preconceitos, e estimar, das histrias contadas, o que merece estima e apre-o. Tal programa se imporia como condio essencial para os povos/naeshumildes, vale dizer, aqueles cujas tradies se encontrassem extremamentedeturpadas (caso do Brasil). Somente assim tais povos/naes podero veri-ficar conscientemente o valor da sua tradio nacional, proclam-la desas-sombradamente, e tirar dessa mesma tradio indicaes e estmulos, para a

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  • sua plena expanso. Bomfim argumentou sobre os usos e funes da hist-ria, no apenas apontando sua importncia como registro das tradies queconfiguram o carter nacional, mas criticando a histria universalizante, almde chamar a ateno para a existncia de interesses individuais (subjetivos) epolticos no fazer historiogrfico.

    O caso de Manoel Bomfim, um autor que no fazia parte do pequenomundo dos historiadores demarcado por atividades docentes, exercciodo jornalismo e, sobretudo, pesquisas em arquivos ajuda a compreenderalgumas das idias sobre como, por qu e por quem a histria deveria ser es-crita. Tambm ajuda a avaliar a existncia, em um mesmo perodo, de dife-rentes percepes do trabalho historiogrfico e, conseqentemente, de dife-rentes usos da histria. As interpretaes do autor a respeito da histria, dahistoriografia e dos historiadores de seu tempo no podem ser separadas desuas representaes sobre o fazer poltico. Esta associao que permite ana-lisar sua atitude crtica, assim como possibilita recuperar a funo que eraatribuda escrita da histria, em seus textos. Em sua poca, a historiografiae os historiadores eram avaliados em meio tenso entre uma cincia que sequeria neutra e imparcial e interesses particularistas; entre a demanda poruma concepo moderna de histria fundada na crtica dos documentos,da memria e da tradio e as constantes exigncias de posicionamentointelectual, em defesa da nao. Para Bomfim, escrever a histria era uma ta-refa ao mesmo tempo cientfica sendo que o autor rejeitava a idia de umacincia neutra e imparcial e patritica, sendo que o compromisso com averdade histrica identificava-se com o compromisso com a nao.

    NOTAS

    * Este artigo uma verso de um dos captulos da minha dissertao de mestrado, que temo mesmo ttulo, defendida na UFF, em dezembro de 2001. A pesquisa teve apoio do CNPq,no primeiro ano, e da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FA-PERJ), na etapa final.1BOMFIM, Manoel. O Brasil na Histria: deturpao das tradies, degradao poltica.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930, p.139.2Idem, A Amrica Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p..329.3Idem,, pp. 35-6.4SSSEKIND, Flora e VENTURA, Roberto. Histria e dependncia: cultura e sociedade emManoel Bomfim. Rio de Janeiro: Moderna, 1981, pp.12-5.5DE LUCA, Tnia Regina. A Revista do Brasil: um diagnstico para a (N)ao. So Paulo:UNESP, 1999, pp.86-7; ver tambm OLIVEIRA, Lcia Lippi de. A questo nacional na Pri-meira Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1990.

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  • 6HANSEN, Patrcia Santos. Feies & fisionomia: a Histria do Brasil de Joo Ribeiro. Riode Janeiro: Access, 2000.7LIMA, Luiz Costa. A crtica literria na cultura brasileira no sculo XIX. In: _____. Dispersademanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, pp.. 30-55.8Segundo Andr Pereira Botelho, a idia de uma reforma social como resultado da aoeducativa permitiu a Bomfim ultrapassar uma explicao biolgica da sociedade e cons-truir outra, de ordem histrico-cultural, atravs da qual o autor pde enfatizar a possibili-dade de mudana histrica. BOTELHO, Andr Pereira. O batismo da instruo: atraso, edu-cao e modernidade em Manoel Bomfim. Campinas, SP: UNICAMP/Dep. de Sociologia,dissertao de mestrado, 1997, pp. 71 e 74-5.9BOMFIM apud SILVA, Jos Maria de Oliveira. Da educao revoluo: radicalismo re-publicano em Manoel Bomfim. So Paulo: USP/Departamento de Histria, 1990, disser-tao de mestrado, p..23.10BOMFIM apud ALVES FILHO, Aluzio. Pensamento poltico no Brasil Manoel Bom-fim: um ensasta esquecido. Rio de Janeiro: Achiam, 1979, p.42.11BOMFIM, O Brasil na Histria.... op.cit., pp..56 e 63-68.12Idem, pp. 64-5.13WEHLING, Arno. Estado, Histria, Memria: Varnhagen e a construo da identidadenacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.153.14BOMFIM apud ALVES FILHO. Op. cit., p.42.15BOMFIM, O Brasil na Histria..., Op. cit., p.172.16GOMES, ngela de Castro. Histria e historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1996.17BOMFIM, O Brasil na Histria... Op. cit., pp.62-3.18WEHLING. Op. cit., p.205.19BOMFIM, O Brasil na Histria..., op. cit., pp. 111 e 120.20Idem, pp.122 e 132.21Idem, p.132.22Idem, p. 137, nota 1.23Idem, p. 137.24RIBEIRO apud BOMFIM, pp. 137-8.25BOMFIM, idem, p.53.26Idem, pp. 37-8.27Idem, p. 39.28Idem, pp. 39-40.29Idem, pp. 41-2.

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    Artigo recebido em 2/2003. Aprovado em 4/2003.