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In: Temticas. IFCH/UNICAMP, Campinas, ano 11, nmero 21/22, 2003,
pp. 75-100.
Na contracorrente do naturalismo: relaes sociais na interpretao
do Brasil de Manoel
Bomfim
Andr BOTELHO
Resumo
O artigo objetiva expor a matria da reflexo de Manoel Bomfim e
definir uma das
suas linhas fundamentais de desenvolvimento. Na pesquisa do
conjunto da sua obra
procuramos explorar os elementos que configurariam a construo da
sua problemtica, isto
, as formas pelas quais Bomfim selecionou, formulou e resolveu
aquilo que tomou como
seu problema. Apresentamos, nesse sentido, a problemtica da
educao como redeno
nacional em torno da qual se organizam a reflexo, a obra e a
prpria atuao poltico-
intelectual de Manoel Bomfim no contexto social da Primeira
Repblica. Esta nfase na
educao teria permitido ao autor afastar-se do paradigma biolgico
dominante na poca
para realizar uma reflexo de carter histrico-cultural
relativamente pioneira sobre as
possibilidades de remisso do atraso brasileiro e assim da prpria
insero do pas no
progresso da modernidade burguesa atravs da educao.
Palavras-chave: educao paradigma biolgico modernizao
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Introduo
A adeso da intelectualidade brasileira na virada do sculo XIX
para o XX ao
cientificismo naturalista, sobretudo atravs do chamado racismo
cientfico, importado da
Europa para o Brasil, periferia do capitalismo industrial ento
em expanso, ilustra de
diferentes formas o uso provinciano que a cincia pode assumir em
naes de matriz
colonial. Pode-se considerar que a adoo do biolgico como
paradigma de explicao da
sociedade deu-se, freqentemente, em detrimento de uma espcie de
sentimento dos
problemas nucleares da experincia brasileira (Rego, 1998, p.
78), sobretudo, a
escravido, sob a qual, ao longo de trs sculos, formamo-nos
socialmente. Como observou
a propsito Roberto Schwarz
Ao converter-se viso cientificista, e sobretudo terminologia
correspondente, o escritor modernizado abria mo da inteligncia das
coisas depositada na linguagem comum, na lgica do cotidiano, na
prtica poltica e nas regras da insero social dele mesmo. Ou melhor,
relegava a plano secundrio o que sabia por experincia prpria e
alheia a respeito do funcionamento do pas. Em troca adquiria uma
superioridade duvidosa, para qual contribuam o culto Cincia e ao
Progresso, mas tambm a credulidade tradicional e a admirao primria
pelo palavreado impronuncivel. A descontinuidade mental introduzida
por essa reforma do esprito, que no foi a ltima de sua espcie,
merece reflexo. Ao menos em parte ela repunha, com fachada de
teoria, a fratura social que em tese a Abolio devia superar [...] a
ala cientificista de nossos crticos, diante do auto-exame social a
que a dissoluo da ordem escravista convidava, foi buscar autoridade
e recursos intelectuais na miragem da cincia europia, assimilada em
variante degradada, quase supersticiosa (Schwarz, 1997, p.
113).
Se a perspectiva dos autores da chamada gerao modernista de 1870
com relao
ao naturalismo no foi unvoca, ainda assim suas diferentes
inseres ideolgicas nem
sempre implicaram em procedimentos metodolgicos distintos, dada
a imposio no
perodo de um mtodo histrico-gentico nas interpretaes do Brasil
(Rego, 1993, p.
168). Poucos, no entanto, em meio a contracorrente, para
utilizarmos ainda expresses de
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Roberto Schwarz, souberam educar o seu vis na figurao e anlise
das relaes sociais
(por oposio a naturais) de que formava parte e a cuja filtragem
sujeitaram o vagalho
naturalista (Schwarz, 1997, p. 115).
Neste trabalho trato da reflexo de um autor que quando comparado
ao seus
contemporneos, pode ser considerado inovador na sua maneira de
pensar o Brasil
justamente por ter sabido filtrar em pontos decisivos o influxo
naturalista predominante no
seu tempo, tendo antes educado sua perspectiva na prpria figurao
das relaes sociais:
Manoel Bomfim (1868-1932).
Tanto a formao de Manoel Bomfim, quanto o desenvolvimento da sua
reflexo
transcorreram num contexto intelectual e poltico marcado pelo
predomnio, no Brasil, dos
paradigmas naturalistas e das explicaes deterministas do mundo
social sob a tica das
teorias raciais, climticas e geogrficas. E j no seu primeiro
ensaio de interpretao do
Brasil, A Amrica Latina: males de origem, redigido em 1903 em
Paris e publicado no
Brasil em 1905, malgrado um certo uso metafrico da terminologia
biolgica corrente,
Manoel Bomfim critica a transposio de categorias biolgicas ao
estudo da sociedade, a
qual, segundo ele, se organizaria por estruturas sociais
especficas no assimilveis pelo
biolgico (Bomfim, 1993). Afirmando a especificidade do processo
histrico e das relaes
sociais, Bomfim no apenas recusou a homologia entre biologia e
sociedade, como tambm
acabou por decifrar o carter ideolgico do racismo em suas relaes
com o imperialismo
europeu corrente (Alves Filho, 1979; Botelho, 1997; Aguiar,
2000).
Como a reflexo desenvolvida por Manoel Bomfim sobre a formao da
sociedade
brasileira pode afastar-se, em pontos decisivos, dos paradigmas
naturalistas dominantes no
seu espao/tempo? Tanto em sua trajetria, quanto em sua obra,
Manoel Bomfim perseguiu
os elementos que permitiriam formular um programa de reforma
moral da sociedade como
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condio essencial para a modernizao e a constituio efetiva da nao
no Brasil. Nesse
empenho destaca-se, sobretudo, sua defesa do carter redentor da
educao (Botelho,
1997). Minha hiptese que essa defesa da educao, tomando como
premissa a idia de
que os sistemas educacionais moldariam as sociedades,
pressupunha, a prpria recusa da
assimilao do social pelo biolgico como categorias homlogas,
implicando na explicao
dos fenmenos sociais em termos de contingncia antes que de
essncia, isto , em termos
histricos e no biolgicos.
Enfatizando a idia de plasticidade humana, isto , de ao externa
de carter social
em oposio idia de propriedades inatas prprias lgica determinista
racial
(Mannheim, 1974), na formao e transformao do homem e da
sociedade, Manoel
Bomfim, na verdade, colocou em discusso a idia mais ampla de
mudana histrico-
social. Desse modo, sua obra contribuiria para deslocar a
discusso da formao do povo e,
consequentemente, da organizao da sociedade brasileira, de um
mbito puramente
biolgico para outro histrico-social mais complexo.
Cientificismo e atraso
Cultivados na atmosfera modernizante dos anos finais do Imprio
no Brasil, os
intelectuais integrantes da chamada gerao modernista de 1870
empenharam-se antes de
tudo em sintonizar o pensamento brasileiro com a filosofia e a
cincia mais avanadas da
poca numa flagrante tentativa de demonstrar a sua prpria
modernizao. E o perodo da
virada do sculo de tal modo marcado por transformaes sociais
mais amplas, que em
parte confere sentido histrico perseguio de um ideal de
modernidade por parte da
intelectualidade do pas. Importante reconhecer, nesse sentido,
que foi justamente atravs
da discusso da questo racial que se abriu efetivamente o debate
no pensamento brasileiro
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sobre a formao do povo e sobre as formas de organizao da
sociedade (Bastos, 1996, p.
79).
A orientao naturalista europia dominante na virada do sculo XIX
para o XX nos
estudos das coletividades humanas egressas do sistema colonial
marcou profundamente
tanto o pensamento social brasileiro, quanto as disciplinas em
vias de formao, como a
sociologia, a antropologia e a psicologia social. Sob o influxo
dominante do darwinismo
social e do organicismo spenceriano, o biolgico foi adotado como
modelo epistemolgico
legtimo de explicao cientfica da sociedade, configurando, assim,
a viso de uma luta
universal dos organismos pela sobrevivncia e de uma hierarquia
natural que dividiria a
humanidade em raas superiores e inferiores (Schwarcz, 1996).
A adoo dos dogmas raciais no esteve circunscrita s nossas
fronteiras nacionais.
Tomando-os como leis cientficas, supostamente irrefutveis, a
intelectualidade latino-
americana em geral do perodo formulou - sob a batuta de
publicistas do imperialismo
europeu, como o conde Arthur de Gobineau, autor do prolixo
Ensaio sobre a desigualdade
das raas (1853) - uma srie de diferentes diagnsticos sobre o
trgico destino reservado s
naes latino-americanas em funo da nossa constituio racial. o
caso de autores como
Agustn lvares: Manual de patologa poltica (1899); Csar Zumeta:
El continente
enfermo (1899); Manuel Ugarte: Enfermedades sociales (1905),
Alcides Arguedas: Pueblo
enfermo (1909) entre outros que consideravam a suposta doena da
Amrica Latina um fato
cientfico que, curiosamente, no parecia exigir qualquer
demonstrao. Da, como
observou Eve-Marie Fell, nos primeiros anos do sculo XX, a
pergunta desses ensastas no
ser propriamente: Estaremos doentes?; mas sim, sintomaticamente:
De que estamos
doentes? (Fell, 1994, p. 51).
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At a dcada de 1930 numa linha muito sinuosa que viria de Slvio
Romero (1851-
1914) at Gilberto Freyre (1900-1987), a mestiagem foi
considerada como o processo
constitutivo por excelncia da particularidade da formao social
brasileira. Duas posies
distintas sobre a idia de raa vinham ordenando a produo
intelectual brasileira at ento:
partindo ambas da miscigenao, uma acreditava que ela levaria
esterilidade seno
biolgica, ao menos cultural, e procurava sustentar a
inviabilidade do pas frente a qualquer
esforo civilizatrio; a outra posio procuraria justamente nos
libertar dessa suposta
condenao, apresentando, para isso, um tipo de teraputica tnica
que assegurasse o
gradual predomnio dos caracteres brancos sobre os caracteres
indgenas e, sobretudo,
negros na nossa populao miscigenada: a chamada teoria do
branqueamento.
A principal decorrncia terico-metodolgica dessas perspectivas
seria a relativa
indistino entre as idias de raa e cultura predominante em grande
parte do pensamento
social brasileiro at meados da dcada de 1930. Alis, mais uma
vez, esse aspecto no diz
respeito apenas ao contexto brasileiro, mas importante tambm
para o caso da Amrica
Latina em geral onde o predomnio de um paradigma biolgico foi
acentuado pela prpria
coexistncia social de grupos tnicos muito variados num contexto
de relativos atraso
econmico-social e instabilidade poltica (Ibidem).
No caso brasileiro, so conhecidas as pretenses com que Gilberto
Freyre procurou
estabelecer Casa-grande & senzala (1933) como o primeiro
estudo de carter sociolgico a
romper com a lgica racial caracterstica at ento da nossa produo
intelectual.
Permanece ainda, no entanto, como controvrsia se o autor teria
abandonado, de fato, a
utilizao da noo de raa, ou mesmo se teria distinguido seu
emprego da de cultura
(Bastos, 1986; Arajo, 1994). E, embora a distino entre essas
categorias s tenha se
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consolidado a partir da dcada de 1930, ela apresenta como que
uma histria pregressa para
a qual, inclusive, no faltam sequer a atribuio de diferentes
artfices singulares.
No seu estudo sobre raa e nacionalidade no pensamento
brasileiro, Thomas
Skidmore, por exemplo, sugere que caberia ao Captulos de histria
colonial (1907) de
Capistrano de Abreu (1853-1927), seguindo o prprio influxo da
mudana do pensamento
antropolgico na Europa e nos Estados Unidos da poca, a primazia
da distino entre as
idias de raa e cultura entre ns (Skidmore, 1989, p. 120). J
Roberto Ventura, como
sugere sua interpretao de Glosas heterodoxas a um dos motes do
dia; ou variaes anti-
sociolgicas (1884-7), observa que, embora tenha negado a
existncia da cincia social, de
um mtodo e de um objeto prprios a ela, Tobias Barreto
(1839-1889), na verdade, teria
rejeitado pioneiramente a assimilao da sociedade ao organismo
biolgico como estruturas
homlogas, negando assim a idia de que a luta social seguiria os
mesmos parmetros do
struggle for life (Ventura, 1991, p. 155). Jos Paulo Paes, por
sua vez, considera que, a
despeito de no ter conseguido se desvencilhar plenamente da noo
de raa enquanto
categoria instrumental, Cana (1902) de Graa Aranha (1868-1931)
apresenta um
desmascaramento ideolgico pioneiro do racismo posto em moda pela
Escola do Recife
(Paes, 1992, p. 93). Importante relevar que nesses dois ltimos
casos, isto , segundo as
perspectivas de Roberto Ventura e Jos Paulo Paes, a primazia de
Tobias Barreto ou de
Graa Aranha, respectivamente, na refutao da assimilao do social
pelo biolgico est
diretamente referida a prpria interpretao do Brasil de Manoel
Bomfim.
Do meu ponto de vista, contudo, mais importante do que procurar
determinar a
precedncia de um ou outro autor, identificar como esses autores
- e aos acima citados
teramos ainda que acrescentar os liberais Tavares Bastos
(1837-1875) e Joaquim Nabuco
(1849-1910), por exemplo - puderam e souberam, em meio
contracorrente, educar sua
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perspectiva na figurao das relaes sociais, filtrando em pontos
decisivos o influxo
naturalista predominante no seu tempo. Acrescente-se o fato de
que estudos recentes tem
inclusive chamado a ateno para o fato de que o prprio
culturalismo dos anos 30, quer no
Brasil, quer na Amrica Latina em geral, no correspondeu, na
verdade, a uma ruptura
conceitual com relao a perspectiva hierarquizada das raas, que
tendeu a persistir de
modo subjacente, quando no explcito, mantendo intacto, porm, seu
juzo correspondente
na exaltao da cultura europia, ou na ocidentalizao, nos estudos
das coletividades
humanas egressas do sistema colonial (Fell, 1994;
Martinez-Echazabal, 1996).
Isso posto, preciso considerar, com relao ao Brasil, que no se
tratava
simplesmente da adoo servil ou mecnica por parte da
intelectualidade local das teorias
naturalistas dos publicistas do imperialismo europeu, mas,
tambm, da atualizao do
pensamento brasileiro face ao modelo cientfico dominante da
poca. A prpria importao
de novas teorias cientficas e filosficas - como o evolucionismo,
o darwinismo social, o
organicismo spenceriano e o positivismo - para o Brasil nos anos
70 do sculo XIX
celebrizada por Slvio Romero como um bando de idias novas
sobrevoou sobre ns -,
estava associada expectativa de que a cincia fundaria um tipo de
autoridade mais
racional e civilizada do que a patronagem: A sua terminologia,
to prestigiosamente
moderna quanto estranha vida corrente, anunciava rupturas
radicais; prometia substituir o
mecanismo atrasado da patronagem oligrquica por espcies novas de
autoridade, fundadas
na cincia e no mrito intelectual (Schwarz, 1990, p. 159).
A sustentao de fundo desse quadro de reflexes sobre o destino do
pas vinha do
processo de crescente industrializao e racionalizao burguesas da
Segunda Revoluo
Industrial que, observado pelo ngulo de um pas egresso do
sistema colonial, como o
Brasil, no poderia deixar de refletir seu atraso relativamente
ao desenvolvimento material
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e cultural da Europa, e, tambm, cada vez mais, dos Estados
Unidos. O ponto decisivo
aqui reconhecer que, embora a adoo do biolgico como modelo
epistemolgico de
explicao da sociedade possa exprimir genericamente a tentativa
de atualizao do
pensamento brasileiro ao discurso cientificista dominante da
poca, essa modernizao se
realizou atravs da prpria naturalizao da nossa herana colonial e
das relaes sociais
que, tendo por base a experincia de trs sculos de escravido,
estruturaram a sociedade
brasileira. No foi fortuito, nesse sentido, que o cientificismo
no tenha incorporado os
termos correntes em que vinha se dando a luta em torno da
escravido no pas, bem como
sua carga de fora histrica e impasse (Idem, 1997, p. 114). No
ser demais lembrar,
ento, que o racismo cientfico constituiu inclusive uma aparncia
socialmente necessria
(Adorno, 1986, p. 89) da escravido.
A especificidade do social
A obra de Manoel Bomfim bastante prolixa quanto aos temas e
matrias tratadas,
assim como foram diferentes os gneros narrativos por ele
utilizados na formulao da sua
interpretao do Brasil. No campo do ensasmo, alm de A Amrica
Latina: males de
origem, Manoel Bomfim escreveu outros quatro longos ensaios: uma
trilogia sobre a nossa
formao nacional composta por O Brasil na Amrica. Caracterizao da
formao
brasileira (1929), O Brasil na histria. Deturpao das tradies,
degradao poltica
(1930), O Brasil nao. Realidade da soberania brasileira (1931),
alm de Cultura e
educao do povo brasileiro (1932) publicado postumamente.
Excetuando-se sua tese Das
nephrytes com a qual diplomara-se na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, sua estria
no campo intelectual deu-se como autor de literatura escolar
nacional numa parceria, em
1899, com Olavo Bilac (1865-1918): Livro de composio - a segunda
obra de literatura
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escolar deste que, no ano anterior, junto a Coelho Neto
(1864-1918), havia publicado A
terra fluminense. Bomfim foi no apenas um dos principais
artfices dessa modalidade
narrativa, como ainda voltaria, recorrentemente, a exprimir-se
atravs dela. No perodo
entre a publicao de A Amrica Latina, em 1905, e O Brasil na
Amrica, em 1929,
retomaria sua antiga parceria com Olavo Bilac: Livro de leitura
(1901) e Atravs do Brasil
(1910). Sozinho, Bomfim publicou ainda mais duas obras do gnero:
Primeiras saudades
(1920) e Crianas e homens (s.d.). Seus livros propriamente
didticos so: Compndio de
zoologia geral (1902), Elementos de zoologia e botnica gerais
(1904), A cartilha (1922),
Lies e leituras (1922) e Livro dos mestres (1922). Diretamente
da sua experincia, ao
longo de quase quinze anos, como diretor do Pedagogium e tambm
como professor da
Escola Normal, resultaria outra parte significativa da sua obra
geralmente negligenciada
pelos crticos: Das alucinaes auditivas dos perseguidos (1904), O
Fato psquico
(1904), Lies de pedagogia: teoria e prtica da educao (1915),
Noes de psicologia
(1917), Pensar e dizer: estudo do smbolo no pensamento e na
linguagem (1923), O
Mtodo dos testes: com aplicaes linguagem do ensino primrio
(1926). Na mesma
clave de interesses, pronunciou uma conferncia intitulada O cime
numa das
concorridas sees das Conferncias Literrias organizadas por
Medeiros e Albuquerque
(1867-1934) no Instituto Nacional de Msica.
A crtica tem reiterado a idia de antecipao das idias de Bomfim
relativamente
ao iderio dominante do seu tempo e contexto social
principalmente pela sua negao do
paralelismo entre o social e o biolgico e a conseqente recusa em
assimilar e explicar um
pelo outro. Trusmo no Brasil aps os anos 30, na poca dos estudos
antropolgicos de
Nina Rodrigues, contudo, essa postura metodolgica afigurou-se,
um acervo de erros,
sofismos e contradies palmares, nas palavras ento credenciadas
do j notvel Slvio
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Romero em um dos vinte e cinco artigos dedicados a dizer a
verdade, do ponto de vista
dos dogmas deterministas, raciais e geogrficos, ento
considerados como leis cientficas,
sobre A Amrica Latina: males de origem (Romero, 1906).
Nesta obra, segundo Thomas Skidmore, Manoel Bomfim teria de fato
refutado as
trs principais escolas do racismo cientfico dominantes no Brasil
da poca: as doutrinas
racistas de base emprica, a escola historicista do pensamento
racista e o darwinismo social
- valendo lembrar que a teoria poligenista da degenerescncia do
mulato, de Agassiz, j
estava, poca, desacreditada na Europa (Skidmore, 1989, pp.
130-5). Mais cptica quanto
ruptura, a anlise das ideologias do carter nacional de Dante
Moreira Leite retoma,
aparentemente sem o saber, a associao feita originalmente por
Gilberto Freyre (1944, p.
41) entre Manoel Bomfim e Alberto Torres (1865-1917). No
obstante sua rejeio geral do
quadro de referncias tericas deterministas da poca, a obra de
Manoel Bomfim, e a de
Alberto Torres, seriam marcadas de modo fundamental pela idia de
hereditariedade
social, isto , de transmisso de traos psicolgicos dos povos o
que, segundo o autor,
constituiria um fator de continuidade em relao fase ideolgica de
explicao do
Brasil. Sugere Dante Moreira Leite:
Manoel Bomfim conseguiu perceber, j no comeo do sculo, os
equvocos das teorias racistas que [...] exerceriam influncia to
grande no pensamento brasileiro. Algumas de suas teses eram to
avanadas para a poca, que s viriam a ser reencontradas algumas
dcadas depois [...] Ao mesmo tempo, no entanto, Manoel Bomfim no se
libertaria da idia de transmisso de traos psicolgicos. Assim, pde
afirmar que no existe dvida quanto hereditariedade social e,
citando Ribot, afirma que num povo esta soma de caracteres
psquicos, que se encontram em toda a sua histria, em todas as
instituies e pocas, chama-se carter nacional [...] A permanncia do
carter nacional o resultado e ao mesmo tempo a prova experimental
de hereditariedade psicolgica das massas (pp. 163-164). Admite, por
isso, que embora as populaes da Amrica tenham variado e o ambiente
seja outro, as
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qualidades dominantes de carter so as mesmas, mostrando bem
claramente o parentesco que entre elas existe (Leite, 1983, p.
281).
Thomas Skidmore, por sua vez, tambm associaria Manoel Bomfim a
Alberto
Torres ressalvando, no entanto, a pequena penetrao das idias do
primeiro autor no seu
tempo, ao contrrio do segundo (Skidmore, 1989, p. 131). preciso,
contudo, observar que
este tipo de associao genrica nem sempre permite compreender as
diferenas
fundamentais que tanto ao nvel das idias, quanto no do sentido
poltico delas, podem
distanciar irreconciliavelmente um autor do outro. Sobre a
costumeira associao entre
Bomfim e Torres, observa apropriadamente Roberto Ventura:
A crtica de Manoel Bomfim s concepes evolucionistas tem, como
conseqncia, o questionamento tanto do liberalismo quanto do
racismo. Alberto Torres tambm contestou o carter absoluto da luta e
da concorrncia, pois ambas no excluiriam a solidariedade entre os
indivduos. Enquanto a crtica de Bomfim aponta para o socialismo,
Torres formula um projeto autoritrio e corporativo que, partindo da
desiluso com o liberalismo republicano e com a representao popular,
defende a centralizao poltica, sob o comando de um Estado forte
(Ventura, 1991, p. 158).
importante relevar que desde A Amrica Latina (1905) Manoel
Bomfim no
apenas nega o paralelismo entre o biolgico e o social, recusando
a teoria do racismo
cientfico como modo de interpretao e explicao da realidade
social brasileira, como
identifica e denuncia o carter ideolgico da sua adoo por parte
dos seus contemporneos
- irnica e iradamente por ele chamados de socilogos da
rapinagem. Utilizando a noo
de parasitismo social, tomada, contudo, zoologia, Manoel Bomfim
formulou uma
interpretao original, ainda que ambgua, da formao social
brasileira. Sua anlise volta-
se para o passado, compreendido como o processo de colonizao da
Amrica Latina
(sempre articulado, no entanto, a movimentos histricos mais
amplos e,
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circunstancialmente, comparado com a colonizao da Amrica do
Norte) e, tambm, das
prprias caractersticas culturais e psicolgicas dos povos ibricos
colonizadores.
No plano metodolgico, portanto, a anlise de Bomfim, seguindo o
prprio influxo
do tempo, insere-se naquela tradio dos diagnsticos sobre o
Brasil geralmente
circunscrita ao paradigma da dependncia cultural, j que em funo
do seu prprio tempo
e contexto social lhe faltariam alguns dos instrumentos
necessrios e decisivos para
constituir, tambm nesse plano, uma efetiva ruptura. Como recusa
tanto uma explicao
racial quanto outra estritamente psicolgica, Manoel Bomfim
interpreta o atraso brasileiro
em funo do que sugere constituir as causas histricas dessa
condio: o parasitismo
de uma nao sobre outra e, internamente, de uma classe social
sobre outra.
Embora sua anlise se concentre mais no primeiro nvel da relao de
parasitismo
social, isto , entre naes parasitas e naes parasitadas - em
parte compreensvel em
funo do predomnio da ideologia nacionalista do seu tempo - ela
igualmente desmistifica
e desautoriza, no plano nacional, as justificativas
deterministas raciais para a excluso
poltica dos grupos sociais dominados, remetendo-a antes causas
histricas. Merece
relevo, tambm, de outro lado, a discusso do autor sobre a
problemtica da produo e
apropriao do valor-trabalho ao nvel das relaes internacionais
entre pases
perifricos e potncias imperialistas que progressivamente ganha
complexidade crtica
no desenvolvimento da sua reflexo. No tendo se apropriado, no
entanto, de um
vocabulrio e de um instrumental conceituais adequados aos
fenmenos sociais, os ensaios
de Manoel Bomfim, principalmente A Amrica Latina, permaneceram
nos marcos de uma
terminologia metafrica da biologia.
Analisando A Amrica Latina a partir do seu plano textual, Flora
Sssekind e
Roberto Ventura consideram que o texto de Manoel Bomfim
inscreve-se no panorama
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intelectual da poca como contradiscurso, isto , como discurso
crtico elaborado no
interior do prprio discurso ideolgico dominante no seu tempo e
contexto de produo,
como seu negativo ou sua contradio. Todavia, o prprio modo
particular de
apropriao da linguagem naturalista pela narrativa de Bomfim j
delinearia, segundo os
autores, um esforo de subverso ou rompimento com os paradigmas
deterministas
raciais e geogrficos que enformavam tal linguagem. So esses
aspectos que levam os
autores a se perguntarem a propsito da noo de parasitismo social
de Bomfim: Uma
teoria biolgica da mais valia? (Sssekind & Ventura,
1984).
Se em relao ao aparato instrumental que serve de base a Manoel
Bomfim no
conjunto da sua obra ensastica - moldado a partir da linguagem
biolgica prpria
racionalidade cientfica da virada do sculo, mas no atravs da
idia de raa como
categoria explicativa pode-se dizer que no h, efetivamente, uma
alterao substantiva ao
longo do seu desenvolvimento, preciso reconhecer, de outro lado,
que entre A Amrica
Latina (1905) e O Brasil na Amrica (1929) h mudanas no prprio
enfoque do nacional,
no que alis segue mais uma vez o prprio influxo ideolgico do
tempo.
Pode-se dizer, nesse sentido, que de A Amrica Latina (1905) a O
Brasil na
Amrica (1929) opera-se um aprofundamento da perspectiva analtica
e do prprio objeto
de estudo do autor. Num movimento do geral para o particular, da
interpretao da insero
das sociedades latino-americanas em geral no ento chamado
concerto das naes para a
brasileira em particular, procurando compreender os fatores
histricos determinantes (ou
males de origem), na evoluo destas sociedades, Manoel Bomfim
vai, progressivamente,
aprofundando e detalhando sua perspectiva analtica na
caracterizao do processo
especfico de formao histrica do Brasil. Mantendo o corte
temporal de A Amrica Latina
nas suas obras posteriores - a evoluo histrica da colonizao,
passando pelo recuo sobre
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as caractersticas dos povos colonizadores, avanando at a diviso
internacional do
trabalho contempornea -, a anlise de Manoel Bomfim vai se
desdobrando, cada vez mais,
em relao uma historiografia da formao nacional brasileira,
marcada muitas vezes por
uma preocupao quase ontolgica de definio do prprio ser nacional.
Assim, a
formao da nao que vai ganhando progressivamente o primeiro plano
da sua
interpretao.
Ao longo de trs dcadas, Bomfim amadureceu sua tese dos males de
origem,
segundo a qual, os problemas econmicos, polticos e culturais
contemporneos do Brasil, e
dos outros pases da Amrica Latina, decorreriam do prprio
processo histrico de
colonizao e da herana cultural ibrica dos colonizadores. Esta
herana no caso do Brasil
seria acentuada pelo sistema escravista sob o qual nos formamos
e a monarquia bragantina
que institucionalizou as relaes polticas no sculo XIX. Bomfim
chama a ateno
sobretudo para a permanncia na vida moderna brasileira desses
traos pretritos
arcaizantes da nossa formao reunidos por ele na expresso
bragantismo. Em suma, e
como j havia observado Joo Cruz Costa, pode-se dizer que a
degenerao produzida
pela colonizao portuguesa e a conseqente degradao da vida social
e poltica
brasileira constitui o prprio leitmotiv da sua obra (Costa,
1967, p. 409). Ainda que no
possa tratar da questo nesta oportunidade, vale registrar que
foi, sobretudo, na obra do
historiador portugus Joaquim Pedro de Oliveira Martins
(1845-1894) que Manoel Bomfim
encontrou alguns dos elementos fundamentais para formular sua
crtica do papel do legado
ibrico, em geral, e portugus, em particular, na formao da
sociedade brasileira. H no
conjunto da sua obra uma presena constante de referncias vrias
obras o historiador
portugus, sobretudo, O Brasil e as colnias portuguesas (1880). E
a obra de Oliveira
Martins, como sugere Paulo Franchetti, foi consultada por
diferentes autores brasileiros do
-
16
incio do sculo XX, uma vez que em nenhum outro escritor portugus
do sculo XIX se
poder encontrar uma crtica to feroz, sistemtica e radical do seu
pas e da sua cultura
(Franchetti, s.d., p. 3).
Transcender o atraso social, ou o arcasmo, implicava, para
Manoel Bomfim, em
combater rigorosamente a herana Ibrica e sua influncia
degeneradora da vida
contempornea. Para tanto, pensava Bomfim, fazia-se necessrio,
sobretudo, reformular o
sistema educacional brasileiro. Em seu conjunto, no entanto, os
ensaios de Bomfim
mantm-se no mbito do paradigma da dependncia cultural e, assim,
circunscrito
convico de que a resoluo da questo nacional poderia se
desenvolver num mbito
estritamente nacional. Convico ou propriamente ideologia, isto ,
representaes que nas
prticas sociais enraizadas no tempo e no espao so
persuasivamente compostas de
interesses particulares necessidades gerais, que a rigor apenas
seria refutada com o
deslocamento da unidade de anlise da sociedade nacional para a
forma de integrao
do pas no desenvolvimento capitalista mundial, ou da teorizao da
dependncia cultural
para a conceituao de capitalismo dependente operada na obra de
Florestan Fernandes
nos anos 50 e 60 (Cardoso, 1996).
Educao e relaes sociais
No pouco que se escreveu sobre Manoel Bomfim desenhou-se-lhe uma
imagem
ambgua: no obstante sua antecipao relativamente a sua gerao
intelectual teria
permanecido, contudo, vtima de um injusto esquecimento por parte
de geraes
posteriores, particularmente a de 30, cuja produo intelectual
sua reflexo sobre o Brasil
prenunciaria em linhas gerais. Nesse sentido, diferentes
intrpretes acentuaram aquilo que
entendem, e expressam de forma mais ou menos manifesta, no sem
alguma frustrao,
-
17
como um paradoxo do pensamento bomfiniano: pois ao mesmo tempo
em que afirmou a
especificidade do social, recusando-se a assimil-lo
metodologicamente ao biolgico,
fazendo-se inclusive crtico das motivaes ideolgicas que ento
levava os seus
contemporneos a adotarem o racismo cientfico como fator
explicativo do nosso atraso,
localizando-o, antes, no processo histrico da formao social
brasileira, e que percebe as
contradies essenciais da dinmica social entre dominantes e
dominados (ou parasitas e
parasitados segundo sua terminologia) em termos relativamente
prximos aos do
materialismo histrico, Manoel Bomfim - frustrando expectativas -
decepcionaria ao
conduzir o desdobramento propositivo da sua anlise nos parmetros
de uma ideologia
ilustrada que, no lugar de uma transformao estrutural da
sociedade brasileira, como sua
anlise princpio parecia indicar, prope apenas uma reforma da
sociedade atravs da
educao. Antonio Candido concentra, nesse sentido, o tom dessa
decepo:
Caso curioso o de um pensador como Manoel Bomfim, que publicou
em 1905 um livro de grande interesse, A AMRICA LATINA injustamente
esquecido(talvez por se apoiar em superadas analogias biolgicas,
talvez pelo radicalismo incmodo das suas posies), ele analisa o
nosso atraso em funo do prolongamento do estatuto colonial,
traduzido na persistncia das oligarquias e no imperialismo
estrangeiro. No final, quando tudo levava a uma teoria da
transformao das estruturas sociais como condio necessria, ocorre um
decepcionante estrangulamento da argumentao e ele termina pregando
a instruo como panacia. Num caso desses, ns nos sentimos no mago da
iluso ilustrada, ideologia da fase de conscincia esperanosa de
atraso que, significativamente, fez bem pouco para evit-la
(Candido, 1987, p. 147).
Ainda que este seja, de fato, o tom geral da crtica a Manoel
Bomfim, o papel dessa
ideologia ilustrada na formao da sua reflexo no tem sido tratada
de forma mais
sistemtica. Minha interpretao procura, nesse sentido, reatar os
fios que me parecem
constituir partes de um mesmo problema, que desfeito pelos seus
crticos anteriores no
-
18
permite uma compreenso adequada do prprio ncleo constituinte da
reflexo
bomfimniana: sua recusa do racismo cientfico est diretamente
associada ideologia da
educao como redeno do atraso. Noutras palavras: ao invs de
constituir um paradoxo,
o decepcionante estrangulamento da argumentao (Ibidem) tanto
reflete o prprio
contexto social analiticamente interrogado e reconstrudo pelo
autor, quanto exprime uma
ordenao intelectual peculiar a ele. No teria sido, portanto, a
prpria defesa da educao
popular - e a nfase na idia de plasticidade humana que ela supe
- o fator decisivo que
teria permitido a Manoel Bomfim afastar-se dos paradigmas
deterministas e sua tendncia a
explicar o processo social em termos orgnicos, morfolgicos e
raciais dominantes na sua
poca?
Pois, se a conscincia do atraso constitui a constatao da qual
partem diferentes
intelectuais contemporneos a Bomfim para proporem em seguida
algum meio de redeno
dos nossos males de origem, nas formas (quase sempre frmulas)
atravs das quais essas
proposies se realizam terica e politicamente que talvez residam
chaves importantes para
a compreenso das diferenas fundamentais que dissociam
decisivamente alguns autores
entre si. Nesse sentido, sabemos, por exemplo, que Slvio Romero
que tamanha influncia
exerceu na formao do pensamento social brasileiro, foi um
defensor convicto e ardoroso
de um tipo de redeno tnica do pas atravs do gradual
embranquecimento da
populao expresso na chamada teoria do branqueamento. Mais do que
ideologia
discriminatria baseada no dogma da supremacia das chamadas raas
arianas, a teoria do
branqueamento foi pensada por seus artfices, sobretudo, como
meio normativo de
assegurar a coeso ou unidade tnica do pas, tomada como
fundamental para assegurar a
supremacia dos brancos. Diz Slvio Romero
-
19
O tipo branco ir tomando a preponderncia, at mostrar-se puro e
belo como no velho mundo. Ser quando j estiver de todo aclimatado
no continente. Dois fatos contriburam largamente para tal
resultado: de um lado a extino do trfico africano e o
desaparecimento constante dos ndios, de outro a imigrao europia
(Romero, 1978, p. 55).
Enquanto a maior parte dos intelectuais da sua gerao possuam uma
viso
pessimista da realidade social brasileira, Manoel Bomfim
volta-se criticamente para essa
postura, tanto ao nvel das idias quanto no nvel poltico,
identificando suas bases na
prpria adoo das teses raciais como paradigma explicativo da
realidade social. Critica
assim a suposta inviabilidade do pas para ingressar no progresso
da modernidade, a que
estaramos destinados, demonstrando inclusive (com uma incrvel
lucidez crtica para a
poca) como a importao das doutrinas raciais europias cumpriam
determinadas funes
ideolgicas no prprio iderio liberal-oligrquico mais amplo da
Primeira Repblica.
Mais ainda: ao rejeitar a assimilao do social pelo biolgico,
reclamando a
especificidade do processo histrico-social, sua interpretao da
formao social brasileira
afasta-se, metodologicamente, em pontos cruciais do lugar comum,
por assim dizer, da
cincia do seu tempo, e antecipa, num certo sentido, a discusso
que marcaria a prpria
formao da sociologia no Brasil nos anos 30. Talvez seja possvel
pensar, portanto, que
essa ideologia ilustrada, na verdade, tenha cumprido um papel de
mediao na passagem
de uma viso pessimista, dominante na virada do sculo, para outra
mais otimista quanto a
viabilidade de instaurao do progresso da modernidade num pas
recm sado do sistema
escravista. exatamente neste sentido que a defesa da educao
popular de Manoel
Bomfim, tomando como premissa que os sistemas educacionais
moldariam as sociedades,
permitira-lhe fazer frente s teses deterministas fundadas no
dogma da hierarquia natural
entre homens e naes.
-
20
Objeto da minha dissertao de mestrado, no tratarei nesta
oportunidade do papel e
dos contedos da problemtica da educao como redeno nacional na
reflexo de Manoel
Bomfim (Botelho, 1997; 1999). Observo apenas que, embora no
tivesse sido tratada de
modo sistemtico pelos seus crticos anteriores, no passou
despercebida. Ainda no calor da
hora, Slvio Romero considerou, do ponto de vista do paradigma
das desigualdades inatas,
ou de capital gentico, que a alfabetizao das massas jamais
produziria resultados
estveis, dada a incompatibilidade da nossa composio racial com o
funcionamento de
instituies democrticas (Romero, 1906). Dante Moreira Leite a
considerou
contraditria: como para ele, Manoel Bomfim no se teria libertado
inteiramente da
perspectiva da hereditariedade social das qualidades psicolgicas
na definio de um
carter nacional, como poderia ento propor a educao como fator de
correo das
caractersticas psicolgicas de um povo? (Leite, 1983, p. 281). J
Thomas Skidmore
considerando-a como prescrio, concluiu que o diagnstico de
Manoel Bomfim foi
mais original do que a sua proposio (Skidmore, 1979, p. 135).
Flora Sssekind e Roberto
Ventura observam, por sua vez, ainda que tambm neste caso a
questo no integre o
escopo dos principais temas analisados, que a posio de Manoel
Bomfim face s
possibilidade de redeno da nao atravs da educao no permaneceu
inalterada ao
longo do desenvolvimento da sua obra ensastica. A iluso
ilustrada a que se refere
Antonio Cndido teria sido superada, segundo os autores, em obras
posteriores A
Amrica Latina (1905) e efetivamente rompida em O Brasil nao
(1931). O argumento
infelizmente no desenvolvido mas, apenas positivando essa
superao, os autores
concluem que: No por a, na educao como soluo, que se pode
criticar Manoel
Bomfim. De educao, ele passa revoluo (Sssekind & Ventura,
1984: 52).
-
21
O tema da revoluo constitui um dos ncleos mais complexos de O
Brasil
nao. Considerando-a inevitvel e inadivel em funo do movimento
histrico mais
amplo do capitalismo, Manoel Bomfim discute em pginas muito
expressivas qual seria a
melhor adequao dos modelos de revoluo, ento disponveis,
realidade brasileira e
suas aspiraes singulares. Nesse sentido rejeita tanto a Revoluo
russa, quanto ataca o
fascismo de Mussolini e a Revoluo de 1930. Para Bomfim a nossa
Revoluo tenderia
a ser mais prxima mexicana. Diz o autor:
Tolhidos num descritrio que ibrico, abstramos do meio a que
pertencemos, nada aproveitamos da experincia que a histria deste
continente, como incapazes de aprender o que realmente lio para ns
outros. Por outro lado, apurando se possveis as formas e os
processos mexicanos, teramos o lineamento da revoluo possvel,
indispensvel e eficaz. Nem fascismo nem jargo da III Internacional,
mas um programa que dimana diretamente da situao histrica e
geogrfica: reparaes justssimas e inadiveis; afirmao de nimo
nacional com a emerso bem explcita numa ptria para a massa popular
a quem ela deve pertencer; preparo inteligente desta mesma populao
com a plena conscincia dos fins diretos, quanto o possvel; terra
para os que desejam trabalh-la... isto, que absolutamente
indispensvel, ali se vem realizando desde o modesto zapatismo.
Isto, poderamos tent-lo... desde que haja a trama renovadora e
renovada em que as eras se desenham para refazerem-se. Essa trama,
expresso cinemtica bem prpria, seria a nova classe realizadora
(Bomfim, 1996, pp. 572-3).
Se a problemtica do carter redentor da educao no permanece, de
fato,
inalterada ao longo das trs dcadas que, separando A Amrica
Latina de O Brasil Nao,
constituem o prprio percurso de desenvolvimento da reflexo de
Manoel Bomfim,
preciso reconhecer, por outro lado, que Bomfim no romperia
efetivamente com a
proposio do carter redentor da educao. Uma anlise acurada de O
Brasil nao pode
indicar com propriedade que, na verdade, h sim uma alterao da
avaliao de Manoel
Bomfim quanto ao interesse do governo republicano em adotarem,
de fato, o caminho
pedaggico, por assim dizer, oferecido por sua teorizao para a
modernizao da
-
22
sociedade brasileira. Nesse sentido, a prpria temtica da revoluo
em O Brasil nao est
relacionada idia educativa do autor: apenas uma revoluo que
depusesse as elites
tradicionais do poder asseguraria, ou estaria apta a assegurar,
a realizao da educao das
massas; esta sim a mais adequada e legtima condio de instaurao
do progresso da
modernidade no pas e recorrente preocupao intelectual e poltica
de Manoel Bomfim.
Sugere o autor:
Imprio ou Repblica, se os dirigentes brasileiros tivessem a
justa compreenso dos interesses nacionais e patriotismo para
preparar a nao em vista da vida moderna, seramos hoje um modelo de
sociedade pacfica e inteligentemente produtora [...] Apesar disso o
Brasil continua a ser o pas de analfabetos e impreparados, com uma
mdia humana mais baixa do que a de qualquer dos povos chegados
civilizao. Assim nos formamos, assim estamos e assim seguiremos,
porque, na inferioridade dos governantes, os sucessivos regimes
precisam viver sobre uma populao politicamente nula, socialmente
bem atrasada e mentalmente desvalorizada. E a massa da nao
brasileira foi cuidadosamente amesquinhada na ignorncia [...]
Concretamente: para evitar o desastre, temos de agir sobre as novas
geraes, robustecendo-lhes o corpo, e, sobretudo, apurando-lhes as
energias de pensamento, desenvolvendo-lhes o carter em lucidez e
poder de vontade, para a solidariedade da ao. Tanto vale dizer: h
que educ-las, como o exigem as condies do mundo moderno, ainda que,
para tanto, seja preciso refazer a ordem poltica (Idem, 1996, pp.
518-20).
Sendo os males que ento atingiam a Repblica os mesmos que haviam
afligido a
Monarquia, Manoel Bomfim acaba por se afastar de uma soluo
estritamente institucional
para o problema do atraso brasileiro; isto , segundo o crescente
realismo que marca o
desenvolvimento da sua interpretao do Brasil, o segredo do
problema do atraso no
estaria mais, como ento pensava nos seus anos de juventude como
publicista da Repblica,
na adoo de um novo sistema poltico para o pas. E, ainda que
retome sua proposio da
educao como redeno nacional na sua ltima obra ensastica, Cultura
e educao do
povo brasileiro, justamente em O Brasil nao que a problemtica
emerge com toda a
-
23
dramaticidade prpria s auto-avaliaes dos intelectuais e, no caso
de Manoel Bomfim, de
toda uma trajetria dedicada defesa da educao pblica e
popular.
Embora o ponto importante aqui seja reconhecer que a nfase
conferida ao carter
redentor da educao, ao longo da formao e desenvolvimento da sua
reflexo, tenha
permitido a Manoel Bomfim afastar-se das teorias deterministas
raciais, e do seu modo
correspondente de pensar o pas, fundamental, perceber tambm que
a ambigidade com
que a questo seria formalizada em O Brasil nao - ainda que no se
trate, de fato, de um
aprofundamento ou detalhamento daquilo que poderia vir a
constituir propriamente uma
ruptura de perspectivas tericas e da viso de mundo - aponta para
a prpria decepo de
Manoel Bomfim, e da sua gerao, com a expectativa democrtica que
revestiu a agitao
republicana dos seus anos de juventude.
A premissa de que os sistemas educacionais moldariam as
sociedades adotada por
Manoel Bomfim certamente no foi livre de conseqncias para sua
compreenso e
explicao da sociedade brasileira. De certo modo, representa a
condio de uma
interpretao de feio mais sociolgica (em contraposio biolgica) da
sociedade, mas,
ao mesmo tempo, tambm o seu prprio limite. Aqui, contudo, coube
apenas sugerir como
ao tomar a premissa de que os sistemas educacionais moldariam as
sociedades, pde
Manoel Bomfim formular as idias de mudana histrica e reforma
social da sociedade
brasileira. E neste percurso, acompanhamos a emergncia das
relaes sociais que se opera
na sua interpretao do Brasil no contexto do debate da questo
racial na passagem do
sculo XIX ao XX.
A recusa de Manoel Bomfim em assimilar a sociedade ao organismo
biolgico, e a
conseqente negao da homologia das suas estruturas, tornaria
possvel, em termos do
processo social mais amplo, a crtica ao status quo amparado at
ento na Monarquia e na
-
24
Escravido; assim como, no limite, do prprio horizonte
liberal-oligrquico da Primeira
Repblica, no qual, ao fundamentar em termos filosficos e
cientficos a ordem competitiva
- a luta contribuindo para o aperfeioamento social - o
naturalismo se inseria. nesse
sentido que Manoel Bomfim retoma a discusso fundamental que
havia sido desautorizada
pelo racismo cientfico e que, malgrado o sinuoso percurso do
processo histrico-
ideolgico, ainda hoje nos diz respeito de modo fundamental: a
questo social no horizonte
do ps-Abolio. Este o sentido da rebeldia de Manoel Bomfim, cujo
esquecimento, como
j sugeria um dos seus primeiros intrpretes deve-se, em grande
medida, ao radicalismo
incmodo das suas idias (Alves Filho, 1979).
Abstract
The paper has as its main objective to show Manoel Bomfims
reflection as well as
to define one of his fundamental lines of development. At the
research of the complex of
his handiwork we tried to explore the elemens which would
configurate the construction of
his problematic, which means the way through which Manoel Bomfim
selected, formulated
and solved the thing that was taken by him as his issue. So, we
present here the issue of
the education as a national redemption, around which it is
organized not only the thought
but also the handiwork and the politic-intelctual act of Manoel
Bomfim at the social context
of the First Republic. The emphasis on education whould have
allowed him to keep away
from the biological paradigm, which was predominant at that
period, and leading him to
the realization of a historical-cultural reflexion, a
breakthrough in therms of the remission
possibilites of the Brazilian delay which would happen through
education, as so as the
countrys insertion at the Modernity progress.
Key-words: education biological paradigm modernity
-
25
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