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EDUARDO VIEIRA
KATHERINE FUNKE
YARA VASKU
LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS A CONVENES
Anlise do jornalismo literrio do Correio Reprter
Monografia de concluso
do curso de ps-graduao
Jornalismo contemporneo:
desafios nas redaes do
sculo 21, promovido pelas
Faculdades Jorge Amado
ORIENTAO: LEANDRO COLLING
SALVADOR, FEVEREIRO/ 2008
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EDUARDO VIEIRA
KATHERINE FUNKE
YARA VASKU
LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS EM CONVENES
Anlise do jornalismo literrio do Correio Reprter
ORIENTAO: LEANDRO COLLING
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APROVAO
O presente trabalho foi aprovado pelos examinadores em fevereiro
de 2008. Declaro,
portanto, aprovados no curso de ps-graduao Jornalismo
contemporneo os alunos
Eduardo Vieira, Katherine Funke e Yara Vasku.
LEANDRO COLLING
Professor ORIENTADOR
NADJA VLADI CARDOSO GUMES
Professora COORDENADORA
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DEDICATRIA
Dedicamos este trabalho a
Leandro Colling,
por ter sido o professor que causou
as mais profundas transformaes
em nossa maneira de enfrentar o desafio
de ser jornalista no sculo 21.
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AGRADECIMENTOS
Eduardo Vieira agradece
famlia e aos grandes
amigos pelo apoio de sempre.
Katherine Funke agradece
todo o apoio que recebeu,
especialmente de sua me.
Yara Vasku agradece a
oportunidade de estudar e conviver
com pessoas muito especiais. Um
agradecimento especial ao filho,
Joo Pedro, pelo apoio e compreenso.
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E, no entanto, no comeo dos anos 60, uma curiosa idia nova,
quente o bastante para inflamar o ego, comeou a se insinuar
nos
estreitos limites da statusfera das reportagens especiais.
Tinha
um ar de descoberta. Essa descoberta, de incio modesta, na
verdade, reverencial, poderamos dizer, era que talvez fosse
possvel escrever jornalismo para ser... lido como um
romance.
Como um romance, se que me entendem. Era a mais sincera
forma de homenagear a O Romance e queles grandes, os
romancistas, claro. Nem mesmo os jornalistas pioneiros nessa
direo duvidariam sequer por um momento de que o romancista
era o artista literrio dominante, agora e sempre. Tudo o que
pediam era o privilgio de se vestir como ele... Eram
sonhadores, claro, mas uma coisa eles nunca sonharam. Nunca
sonharam com a ironia que vinha vindo. Nunca desconfiaram
nem por um minuto que o trabalho que fariam ao longo dos dez
anos seguintes, como jornalistas, roubariam do romance o
lugar
de principal acontecimento da literatura. (Wolfe, Radical
Chique
e o Novo Jornalismo, pg 19)
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7
RESUMO. A partir da observao de doze recursos do jornalismo
literrio, pertinentes
da produo da pauta edio do texto, o presente trabalho analisa o
grau de presena do
jornalismo literrio no caderno dominical Correio Reprter, do
jornal Correio da Bahia, de Salvador (BA). Parte-se do pressuposto
de que as reportagens da publicao
possuem possibilidades de se enquadrar no gnero por suas condies
de produo. A
anlise recebe o auxlio de uma ampla reviso terica que define o
conceito de jornalismo
literrio e detalha os recursos em questo, baseados na
categorizao feita por Tom
Wolfe e por Edvaldo Pereira Lima. Como resultado, temos que a
publicao apresenta
graus bastante variveis de aplicao dos recursos observados.
ABSTRACT. From a review of the 12 features of literary
journalism relating to text
editing and story brief, the present paper analyses the level of
presence of literary
journalism in the Sunday supplement 'Correio Reporter' of the
newspaper Correio da
Bahia from Salvador (BA). It is assumed that the articles in
this publication can be
classed in this genre given the manner in which they are
written. The analysis was aided
by a wide theoretical review of literature which defines the
concept of literary journalism
and details the resources involved using Tom Wolfe and Edvaldo
Pereira Lima's
classification. The conclusion reached was that this publication
demonstrates quite
variable degrees of application of the resources observed.
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8
SUMRIO
INTRODUO.................................................................................................................10
1. O JORNALISMO LITERRIO:
UMA REVISO HISTRICA E
TERICA..............................................................
14
1.1. No
Brasil....................................................................................................................
17
1.2. Nos Estados Unidos
..................................................................................................
22
1.3. Relevncia para o campo do jornalismo
...................................................................
24
1.4. Principais contribuies
acadmicas..........................................................................
29
1.5. Caractersticas intrnsecas do jornalismo
literrio.....................................................
32
1.5.1. A extenso pela
pauta.............................................................................................
33
1.5.2. Captao dos
dados................................................................................................
37
1.5.3. A fruio pelo
texto.................................................................................................
43
1.5.4. Construo cena a
cena..........................................................................................
47
1.5.5.
Dilogos..................................................................................................................
47
1.5.6. Variao de pontos de
vista...................................................................................
48
1.5.7. Autpsia
social.........................................................................................................49
1.6. Crticas e limites do jornalismo
literrio.....................................................................50
2. HISTRICO E
ANLISES.......................................................................................
54
2.1 O Correio da Bahia
.....................................................................................................54
2.2 O caderno Correio Reprter
........................................................................................55
2.3
Anlises........................................................................................................................57
2.3.1. Edio 3/6/2007 Black in Bahia
......................................................................57
2.3.2 Edio 10/06/2007 Palcio da arte
...............................................................60
2.3.3 - Edio 17/06/2007 Ch sagrado
...................................................................62
2.2.4. Edio 24/06/2007 Quadriltero do pretrito
................................................66
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9
2.2.5. Edio 01/07/2007 Herona esquecida
...........................................................71
2.2.6 Edio 08/07/2007 Guerreiras annimas
........................................................76
2.2.7 Edio 15/07 Relquia franciscana
..................................................................80
2.2.8. Edio 29/07/2007 Estigma cruel
...................................................................91
CONCLUSO..................................................................................................................97
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................106
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10
INTRODUO
Essa anlise das reportagens do caderno Correio Reprter,
publicado
semanalmente aos domingos no jornal Correio da Bahia, em
Salvador (BA), tem o
objetivo de identificar o possvel uso de tcnicas de jornalismo
literrio nas etapas de
produo das pautas, captao dos dados, escrita e edio da
reportagem de capa.
Entendemos por jornalismo literrio o tipo de jornalismo que se
caracteriza pelo
uso de tcnicas de literatura na captao, redao e edio de textos
sobre a vida real
(LIMA, S/D). Trata-se, portanto, de um modo de fazer jornalismo
que no se prende a
tcnicas que encerram o real em frmulas pr-concebidas, como o
caso do lead - o
pargrafo inicial de notcias que deve responder a cinco perguntas
bsicas: como, onde,
quem, por que e quando -, tcnica utilizada como padro nos textos
noticiosos.
O jornalismo literrio tambm conhecido por Novo Jornalismo, nome
do
movimento norte-americano dos anos 60. Segundo Lima (S/D), o
jornalista Gay Talese,
um dos expoentes desse New Journalism, atualmente denomina o que
faz de literatura
da realidade. Lima tambm aponta que no circuito universitrio dos
EUA a
denominao em voga literatura criativa de no-fico1.
Este trabalho vai investigar se o jornalismo praticado no
caderno Correio
Reprter foge de frmulas como o lead e adere literatura de
no-fico. A escolha desse
produto jornalstico para a anlise tem motivos: em Salvador,
entre os trs jornais de
circulao diria, o Correio da Bahia o nico que mantm um caderno
dominical de
reportagens especiais, o Correio Reprter. A publicao sempre
contm uma
reportagem de capa, com nada menos que cinco pginas de texto, no
formato standart,
padro mais utilizado entre os jornais do Brasil.
Justamente por causa desse caderno de domingo, o Correio da
Bahia tambm o
nico jornal que disponibiliza, regularmente, um jornalista para
passar 30 dias dedicando-
se apenas a uma grande reportagem, dando-lhe a oportunidade de
mergulhar no assunto,
1 Neste trabalho, adotamos as diferentes denominaes, porque
consideramos para a anlise a ser
realizada recursos do New Journalism, ou do jornalismo literrio,
apontadas por um de seus expoentes,
Tom Wolfe, e ampliadas pelo pesquisador brasileiro Edvaldo
Pereira Lima.
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11
trazendo informaes sobre diferentes facetas do tema. Aqui,
queremos diagnosticar se
esse mergulho tambm resulta em uma forma diferenciada de
texto.
Para ns, mais provvel que o Correio da Bahia adote um maior
nmero de
tcnicas de jornalismo literrio do que as duas outras publicaes,
A Tarde e Tribuna da
Bahia, embora este projeto no exclua, de forma alguma, a
possibilidade dos outros dois
peridicos tambm adotarem o jornalismo literrio em suas
reportagens.
A histria do desenvolvimento das indstrias jornalsticas na
Bahia, no Brasil e
em outros lugares do mundo, como Estados Unidos, nos mostra que
o mercado tem
passado por uma contnua acelerao do processo de produo e difuso
industrial de
notcias, passando pela valorizao da notcia, sofrendo os impactos
da linguagem visual
da televiso e da Internet nas formas escritas de notcias, com
uma gradual diminuio do
nmero de profissionais nas redaes e reduo generalizada do
investimento em
reportagens investigativas ou de aprofundamento.
Contribui para esse cenrio o fato de que, para enfrentar o
mercado altamente
competitivo e buscar parcerias no campo tecnolgico, as antigas
empresas
exclusivamente jornalsticas tm se aliado ou simplesmente tem
sido vendidas a grandes
conglomerados. Essas ligaes com o poder econmico se refletem no
contedo e na
abordagem do noticirio. Na Europa, j no incio do sculo 20, os
jornais foram
comprados por indstrias siderrgicas e qumicas, o que influenciou
o posicionamento da
imprensa sobre o fascismo.
o que se passa agora nos Estados Unidos, onde a indstria do
entretenimento e do
comrcio on line tm comprado as empresas jornalsticas. O
jornalismo passa a ser
apenas uma porcentagem menor, muito menor, de lucro dentro do
grande negcio de
oferecer informao e entretenimento ao pblico. Se no d lucro,
tambm no merece
investimentos; alm disso, no interessante para os grandes
empresrios financiar
reportagens investigativas ou de aprofundamento, que podem
esclarecer leitores sobre
suas prprias falcatruas (Kovach e Rosenstiel, 2003).
As conseqncias desses fenmenos da industrializao do processo de
produo
de notcias para o aumento da superficialidade do trabalho
jornalstica do ponto de vista
da contextualizao, da abrangncia, do tempo dedicado captao da
reportagem e do
cuidado com a escrita do texto j foram analisadas em outros
trabalhos por diversos
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12
pesquisadores do campo. Entre eles, especialmente Cremilda
Medina (1988; 2003) tem
pontuado o distanciamento existente entre o jornalismo
convencional da complexidade e
a pluralidade de vozes da vida real. Tambm Edvaldo Pereira Lima
(1995) aponta a
incapacidade do jornalismo cotidiano comumente praticado nos
jornais dirios em
abarcar as demandas da sociedade contempornea.
Todos esses fatores contribuem para que o jornalismo literrio
passasse a ser
entendido como gnero2 mais aplicvel a livros-reportagem ou a
raros cadernos e
reportagens especiais dos peridicos impressos. Nesses ltimos
casos, contam
positivamente projetos editoriais dos prprios jornais, sua
estrutura e sua meta em relao
ao tipo de pblico que desejam alcanar.
Para analisarmos a presena de tcnicas de jornalismo literrio no
texto do
caderno Correio Reprter, esta pesquisa recorrer especialmente
retomada terica do
movimento conhecido como New Journalism o jornalismo literrio
praticado nos
Estados Unidos dos anos 60 - feita por um de seus mais
conhecidos integrantes, Tom
Wolfe, no prefcio ao livro Radical chique e o novo jornalismo
(2005), assim como as
contribuies feitas posteriormente pelo pesquisador brasileiro
Edvaldo Pereira Lima
(1995), no livro Pginas ampliadas: o livro-reportagem como
extenso do jornalismo e
da literatura3.
A anlise levar em considerao doze recursos, categorizados nas
etapas de
construo da pauta, captao dos dados, escrita e edio do texto.
Quanto pauta,
analisaremos as trs liberdades elencadas por Edvaldo Pereira
Lima (temtica, temporal e
2 Considerar o jornalismo literrio como gnero no unanimidade
entre os pesquisadores. Aqui,
adotamos a classificao de Fernando Resende (2002), que admite a
formao de uma nova configurao
discursiva, ou seja, de um novo gnero, a partir do cruzamento
entre a literatura e o jornalismo, cada qual
compreendido igualmente como gnero isolado, na perspectiva de
Tzvetan Todorov, autor adotado por
Resende. Outros autores, como Raymond Williams, possuem
conceitos ainda mais ampliados. Williams
liga os gneros a condies contextuais scio-histricas, como os
folhetins no final do sculo XIX e incio
do sculo XX. No Brasil, diferentes vises do jornalismo como
gnero e dos gneros jornalsticos tm
marcado as pesquisas no campo. Enquanto Jos Marques de Melo
considera a existncia de trs gneros
jornalsticos informativo, opinativo e interpretativo -, Lus
Beltro acrescenta ainda a existncia do gnero diversional, ligado
diverso. 3 Lima volta sua preocupao, neste livro, a mostrar quais
as tcnicas do New Journalism podem
ser aplicadas ao formato de publicao atualmente mais comum para
o jornalismo literrio: o livro-
reportagem. Compreendemos, entretanto, que o mesmo conjunto de
tcnicas pode estar presente em outros
formatos, posto que originalmente o movimento de jornalistas
norte-americanos era publicado em jornais
impressos. Para Lima, a questo que se levanta, ento, de
potencialidade do jornalismo de prestar um servio mais
refinado.
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13
de angulao). Essas trs liberdades tambm so categorias criadas
por Lima para
possibilitar a avaliao de produes de jornalismo literrio.
Lima tambm categorizou tipos de captao de dados possveis, dentre
os quais
estaremos atentos tcnica da observao participante, durante a
anlise do Correio
Reprter.
Quanto ao texto, sero observadas oito tcnicas apontadas por Tom
Wolfe e
Edvaldo Pereira Lima. Wolfe categoriza quatro recursos
emprestados do romance realista
que caracterizam o texto do jornalismo literrio. So eles:
construo cena a cena,
dilogos completos, alternncia de ponto de vista e autpsia
social.
J Pereira Lima nos apresenta, em termos de edio do texto: lies
de cinema
(cortes de tempo e espao no lugar da maneira tradicional de
construo do texto); lies
de abertura (aquecer os momentos iniciais para prender o leitor,
atravs da escolha de
algum elemento da narrativa ou a apresentao do assunto do geral
para o particular);
lies de passagem (quebra de ritmo, juno de sequncias, conexo de
conflitos em
evoluo); lies de trmino e retorno (finalizar com desfecho em
forma de obra aberta,
ou seja, deixar algumas perguntas ou possibilidades no ar).
Buscaremos o uso desses recursos em oito edies Correio Reprter,
publicadas
nos meses de junho e julho de 2007. A escolha de oito edies
consecutivas, nos dois
meses relatados, ocorreu no ms de agosto do mesmo ano, de forma
absolutamente
aleatria. No levou em considerao qualquer indicao dos autores ou
editores da
publicao, que tampouco sabiam estar sendo avaliados.
Dessa forma, a seleo assim realizada contribui para que possamos
verificar a
presena de recursos do jornalismo literrio nas reportagens
escritas atualmente pela
equipe do caderno. A anlise de oito edies leva como princpio de
que preciso um
conjunto consecutivo e expressivo de publicaes para conseguirmos
pontuar
caractersticas comuns ou contraditrias das reportagens.
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14
1. O JORNALISMO LITERRIO: UMA REVISO HISTRICA E TERICA
A origem da relao existente entre o jornalismo e a literatura,
muitas vezes,
associada ao surgimento do famoso New Journalism, corrente que
passou a ganhar
espao em jornais e, aos poucos, no meio literrio norte-americano
no ano de 1962,
quando o romance ainda reinava como gnero maior, sinnimo de
prestgio para os
romancistas. Neste perodo, uma nova corrente de escritores
comeou a preencher as
redaes jornalsticas com o intuito de tornar a narrativa destes
peridicos mais viva,
pulsante. A idia era revolucionar a forma de se escrever, que
era julgada como objetiva
ao extremo e sem atrativos para o pblico leitor, que j estaria
cansado da mesmice.
Paralelamente, estes novos escritores tambm tinham o interesse
de retirar o
prestgio exacerbado dos romancistas. Eles queriam reconhecimento
para a ento nova
forma narrativa. Entre os nomes mais consagrados do perodo,
esto: Tom Wolfe, Jimmy
Breslin, Gay Talese, Truman Capote, entre muitos outros.
Mas o incio desse intercmbio entre jornalismo e literatura
remonta de muito
antes e no est diretamente associado ao estabelecimento do New
Journalism. Para Ciro
Marcondes Filho, em Comunicao e jornalismo: a saga dos ces
perdidos, como traz o
autor Felipe Pena (2006), em Jornalismo literrio, a influncia da
literatura na imprensa
est presente nos chamados primeiro e segundo jornalismos. O
primeiro momento diz
respeito pr-histria do jornalismo, entre 1631 e 1789. A fase
pode ser classificada
como de economia elementar, produo artesanal, com peridicos
semelhantes ao livro.
J o segundo momento denominado de primeiro jornalismo, que
compreende o perodo
entre 1789 e 1830. A fase traz contedo literrio e poltico para a
imprensa. As notcias
surgem mais crticas e so elaboradas, principalmente, por
escritores.
Trata-se do sculo XVIII e XIX, quando escritores com prestgio
reconhecido
passaram a chegar s redaes. Eles no somente escreviam, como
ocupavam os mais
variados cargos dentro dos veculos. Nesse perodo, o folhetim um
dos elementos mais
importantes, que vai estreitar o dilogo do jornalismo com a
literatura. Anteriormente, o
termo era utilizado para denominar os suplementos destinados a
temticas diversas, como
a crtica literria. Mas, posteriormente, ele assumiu a
caracterstica do romance realista.
Os mais variados escritores passaram a publicar folhetins nos
jornais, aumentando, dessa
-
15
forma, popularidade e rendimentos. Alm disso, tambm ganhava
espao a crnica e os
contos.
Cabe uma explicao sobre os termos folhetim e crnica. No sculo
XIX, esses dois termos so usados indistintamente para
designar o que hoje classificamos de crnica. Jos de Alencar
refere-se s crnicas semanais para o Correio Mercantil, que
abordam a vida poltica e cultural na Corte, como o seu folhetim
da semana. O termo folhetim designa, tambm, a seo do jornal que vem
ao p da pgina, separado do corpo das matrias,
contendo assuntos diversos, crnicas e folhetins propriamente
ditos isto , os romances feitos especificamente para serem
publicados em captulos. (ARNT, 2001, pgs. 16 e 17)
Os romances publicados por partes faziam sucesso no somente
entre os leitores,
mas tambm com os empresrios da comunicao, que viam suas vendas
crescerem com
a utilizao sistemtica do recurso. O folhetim pode ser
classificado como herdeiro do
romance realista, apenas com uma nova forma de veiculao. Mas o
recurso guardava
algumas caractersticas especficas, como aponta Felipe Pena
(2006). O folhetim era
dirigido para um grande e bem diversificado pblico. Diante dessa
caracterstica,
precisava de uma linguagem simples e acessvel. A ao era sempre
interrompida em um
momento de grande importncia da narrativa, com o intuito de
chamar a ateno do leitor
para a nova edio.
Tambm era comum a utilizao do recurso da repetio, para deixar o
pblico
sempre por dentro de todos os acontecimentos. Ainda nesse
contexto, a trama poderia ser
ampliada ou reduzida, dependendo do interesse do leitor.
Caractersticas bem comuns s
telenovelas, que bebem das estratgias do folhetim. Mas os
elementos citados no
significavam, necessariamente, baixa qualidade dos textos. A
narrativa costumava ser
muito bem construda, assim como os seus personagens.
A presena dos escritores deixou o jornal, alm de informativo,
mais atraente. A
ateno destes profissionais estava voltada para problemas do
cotidiano e tenses sociais.
Grandes nomes da literatura comearam a ganhar as pginas dos
peridicos, como
Charles Dickens, na Inglaterra, Honor de Balzac, na Frana,
Machado de Assis e Jos de
Alencar, no Brasil, entre outros, que sero detalhados em tpicos
seguintes. Dickens, que
tem como obras emblemticas Oliver Twist (1838) e David
Copperfield (1849), um dos
atores mais engajados em crticas sociais. A misria do
proletariado ingls marca em
-
16
suas obras, assim como toda a problemtica social inglesa que
assolava o pas naquele
perodo.
Os escritores, no af de retratarem a vida como ela pelo enfoque
literrio realista , no procediam assim em nome do dogmatismo do
movimento, mas por serem observadores de uma
realidade social que eles, na condio de jornalistas, tinham
por
funo registrar e o que observaram era o lastro de misria de um
lado e, de outro, a dissoluo dos costumes deixados no
rastro do progresso da Revoluo Industrial. (ARNT, 2001, p.
13)
Como aponta Hris Arnt, na obra A influncia da literatura no
jornalismo: o
folhetim e a crnica, a migrao desses escritores para jornais
possibilitou, tambm, a
democratizao da cultura letrada. Uma grande parcela de leitores
no tinha como
comprar livros caros. Eles encontraram, no jornal ou revista,
uma forma de ter contato
com a obra desses autores.
nesse momento histrico que se estreita a relao entre jornalismo
e literatura.
Esse fazer jornalstico est relacionado ao desenvolvimento da
cultura de massa no sculo
XIX, com uma sociedade vida por informao. Assim como foi, tambm,
o surgimento
do prprio jornalismo, que surge da grande necessidade pela
informao. Alguns autores,
como Bill Kovach e Tom Rosenstiel, segundo Felipe Pena (2006),
classificam os relatos
orais como uma forma de pr-jornalismo. Perodo este muito
relacionado democracia
grega, quando a oratria reinava.
O fato que os relatos orais so a primeira grande mdia da
humanidade. O historiador Peter Burke classifica-os como um
meio de comunicao especfico e importante, mas que tm
recebido pouca ateno da historiografia oficial, apesar da
vasta
literatura sobre a oralidade... Segundo Burke, as possibilidades
do meio oral eram conscientemente exploradas pelos mestres do
que era conhecido no sculo XVI como a retrica eclesistica.
(PENA, 2006. Pgs. 26 e 27)
A mudana da cultura oral para a escrita acontece justamente com
a inveno dos
tipos impressos, uma das bases do jornalismo moderno. A primeira
fase, como j foi
observada, vai aparecer a partir do ano de 1631. Os primeiros
jornais, que contavam com
-
17
periodicidade, surgiram na Alemanha, nos Pases Baixos e na
Inglaterra. Aqueles mais
antigos so datados de 1609, em Augsbourg e Strasbourg.
O jornalismo e a literatura faziam a ponte entre a informao e a
opinio. Naquele
perodo, os escritores introduziram pilares do jornalismo
moderno. Estavam presentes nas
pginas de notcia, opinio, divertimento e cultura. No sculo XIX,
a dualidade entre
jornalismo e literatura estava cada vez mais visvel.
1.1. No Brasil
A relao entre jornalismo e literatura no Brasil surgiu a partir
do ingresso de
escritores como Jos de Alencar e Machado de Assis nos veculos de
comunicao. Mas
o contexto histrico era bastante diferenciado do que acontecia
na Europa no mesmo
perodo. No velho continente, os escritores buscavam mudanas na
estrutura social, o que
no acontecia no Brasil. A poltica de escravido e dos
latifundirios cortou o Pas at o
sculo XX, impedindo a industrializao.
Jos de Alencar aborda os temas da ambio, do amor ao
dinheiro, da ganncia semelhante ao escritor francs. S que,
em
Balzac, estes temas so tratados com a veemncia de quem vivia
as contradies do sistema capitalista. Alencar no poderia
conceber personagens com a mesma fora, vivendo num Rio de
Janeiro onde sequer o dinheiro era moeda corrente. Seus
personagens no poderiam ser considerados fracos, comparados
aos de Balzac; eles retratavam a realidade social em que
estavam
inseridos. (ARNT, 2001, p. 48)
Jos de Alencar iniciou a carreira de jornalista em 1850 como
colaborador do
Jornal do Commercio e do Correio Mercantil, quando assinou a
famosa coluna Ao correr
da pena, produzindo narrativas sobre o Rio de Janeiro. Quanto ao
contedo, os folhetins
de Jos de Alencar se assemelhavam aos textos que atualmente so
chamados de
crnicas. Em 1885, assumiu o cargo de editor-chefe no Dirio de
Notcias, do Rio de
Janeiro. Foi neste veculo que publicou o primeiro romance: Cinco
minutos.
Posteriormente, lanou A viuvinha, nos mesmos moldes. Comeou a se
dedicar poltica
e literatura e passou a escrever peas teatrais. O autor tambm
conta com obras ligadas a
-
18
temas indgenas. Entre outros clssicos de Alencar, esto os muito
famosos O guarani,
lanado em 1857, Lucola, em 1862, e Iracema, publicado em
1865.
Um outro marco da dualidade pode ser considerado a publicao, em
folhetim, de
Memrias de um sargento de milcias, de Manuel Antnio de Almeida,
no Correio
Mercantil. O texto esteve nas pginas do jornal entre 27 de junho
de 1852 e 31 de julho
de 1853. Esta forma de se fazer jornalismo perdurou at o ano de
1907.
Outro escritor de extrema importncia para o perodo foi Machado
de Assis. O
autor observava os interesses pessoais e mesquinhos da sociedade
brasileira e apontado
como aquele que levou o gnero a um amadurecimento no pas.
Com sua ironia, talvez tenha sido o nico brasileiro que
conseguiu examinar a sociedade sem paixes. Seu humor
destacava-se mais nas crnicas do que nos romances,
conferindo
um tom grave a acontecimentos leves, s coisas do dia-a-dia,
brincando com as coisas srias. Colocou seu olhar lcido e
melanclico em tudo que escreveu. (ARNT, 2001, p. 71)
Machado de Assis, como jornalista, fazia a cobertura do Senado
brasileiro, alm
de escrever para peridicos. Em 1881, o escritor abandonou o
romantismo da primeira
fase de sua obra ao publicar Memrias pstumas de Brs Cubas,
considerado o incio do
romance realista no Brasil. Entre as muitas obras, se destacam
Quincas Borba, em 1892,
Dom Casmurro, em 1900, Esa e Jac, em 1904, e Helena, lanado
anteriormente, em
1876, entre muitos outros livros.
A evoluo do jornalismo literrio brasileiro prossegue na virada
do sculo XIX
para o XX, mas j em uma nova era. nesse perodo que a narrativa
jornalstica, na
forma de reportagem, busca um caminho prprio, no demasiadamente
ligado literatura.
A narrativa jornalstica vai comear a parar, tambm, nas pginas
dos livros. Um
exemplo caracterstico dessa transformao pode ser encontrado na
clssica obra Os
sertes, do autor Euclides da Cunha, que foi lanada em 1902.
Euclides da Cunha esteve situado na linha entre fico e realidade
para compor a
sua obra. Ele bebe de conhecimentos vindos do sculo anterior,
mas j traz no seu texto o
potencial que a reportagem ganharia no formato de livro. A sua
narrativa pendia, nesse
momento, mais para a literatura do que para o jornalismo
propriamente dito.
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19
Rara combinao de inteligncia aguada, erudio e capacidade
de coleta de campo, Euclides vai cobrir o confronto de
Canudos,
para O Estado de S. Paulo, em agosto de 1897, levando na
bagagem uma qualidade que o diferencia essencialmente dos
demais correspondentes: a habilidade para situar um evento
no
contexto que o cerca, demonstrando para o leitor o sentido
mais
profundo do que retrata... Mas a tica do autor alarga-se
tambm
em torno dos espaos e das condies imediatas que cercam o
conflito, revelando um cuidado de documentao que seria tpico
aos bons reprteres de profundidade do futuro. (LIMA, 2004.
Pg. 213)
A cobertura de O Estado de S. Paulo foi considerada como grande
diferencial em
relao aos outros veculos que tambm enviaram correspondentes. A
inteno era a de
transcender a notcia bsica, fugindo dos comunicados oficiais e
de tudo o que deixasse o
tema raso. Um encontro visceral com a realidade foi evidenciado
nessa cobertura.
Um outro marco a narrativa de Joo do Rio, pseudnimo de Joo Paulo
Alberto
Coelho Barreto. O texto do autor caracterizado pela reportagem
de campo no espao
urbano, entre 1900 e 1920. Em uma srie de reportagens na Gazeta
de Notcias,
evidenciava temas como: o uso do automvel, a chegada do cinema,
o fim da boemia e a
imprensa em seu novo carter industrial. Mas, como aponta Edvaldo
Pereira Lima, a
contribuio do autor no foi suficiente para marcar uma forma
jornalstica. Ainda assim,
o pioneirismo dele, marcado por uma ampla observao da realidade,
de grande
importncia.
Aps a dcada de 20, a evoluo da reportagem fica, de certa forma,
estagnada
at o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa renovao passa a
acontecer no perodo entre
66 e 68. Anteriormente, na dcada de 30, a produo ficcional na
linha do realismo social
inibiu o surgimento de uma corrente de jornalismo voltada para a
profundidade.
Ao contrrio dos Estados Unidos dos anos 60, quando a
literatura vacilou em retratar a cirurgia plstica que no plano
dos
costumes remodela a face da nao, deixando espao para uma
ambiciosa gerao de jornalistas em busca de ruptura de
limites,
aqui, antes da Guerra, a instituio literria coibira qualquer
iniciativa. (LIMA, 2004. Pg. 221)
Um outro fator que apontado como inibidor da reportagem a
ditadura do
Estado Novo, responsvel por censurar os meios de comunicao. Ao
mesmo tempo,
-
20
questiona-se o motivo que levou essas obras a no vencer a
barreira da censura, como
aconteceu com muitos livros de fico. Aps a queda do Estado Novo,
contudo, a
imprensa passou por uma grande revoluo. Um dos marcos foi o auge
alcanado pela
revista O Cruzeiro, em 1950. Alm disso, cresceu, de forma
considervel, a quantidade
de reprteres que investiam em livro-reportagem, como David
Nasser, Joel Silveira e
Edmar Morel.
Mas foi em 1966 que surgiu um produto que revolucionou o mercado
editorial
brasileiro. A revista Realidade, publicao mensal pioneira da
Editora Abril, fez muito
sucesso diante de sua cobertura ambiciosa. As temticas abordadas
por Realidade eram
as mais variadas e no ficavam presas aos fatos do cotidiano. Os
acontecimentos eram
sempre ultrapassados por linguagens mais universais. Mas os
recursos tambm contavam
com suas limitaes e no apareciam de forma to revolucionria como
os responsveis
pela base do New Journalism.
Realidade primou pelo texto solto que rompia com as frmulas
tradicionais do jornalismo no Brasil. No chegou a atingir o
grau
de experimentalismo ousado que alcanou o New Journalism,
mas sem dvida veiculou um texto de ruptura para com o
prprio texto do jornal e da revista. No encontramos nas
edies at 1968, propostas to radicais quanto o fluxo de
conscincia, por exemplo. Geralmente, tambm no havia
alternncia entre vrios pontos de vista numa mesma matria.
(LIMA, 2004, p. 230)
Uma outra caracterstica que faz Realidade se distanciar de tais
caractersticas o
fato de englobar uma gama variada de assuntos em uma mesma edio,
fato que dificulta
o aprofundamento das temticas. Em um livro-reportagem, um
determinado assunto vai
contar com um grau de detalhamento muito maior, fazendo com que,
dessa forma, ele
rompa ainda mais com o que costumava ser publicado na grande
imprensa.
Assim como Realidade chegou com uma proposta inovadora, em 1966,
o mercado
editorial brasileiro de hoje conta com publicaes especializadas
voltadas para o
chamado jornalismo literrio, que bebe em muitos dos recursos do
New Journalism. No
Brasil, como aponta Felipe Pena (2006), o jornalismo literrio
pode ser classificado de
diversas maneiras. Alguns autores defendem que essa modalidade
de jornalismo refere-
se, simplesmente, ao momento em que escritores assumiram funes
dentro das redaes.
-
21
Outros autores consideram que pode ser relacionada queles
profissionais que faziam
crticas literrias nos peridicos. Uma outra corrente defende que
o conceito est,
justamente, na modalidade do New Journalism. Existem, ainda,
aqueles que creditam o
jornalismo literrio aos romances-reportagens e
fico-jornalstica.
O brasileiro Joel Silveira considerado, por alguns autores, como
o pioneiro na
utilizao do estilo conhecido como jornalismo literrio no pas.
Como aponta o autor
Felipe Pena (2006), ele defendia a idia de que a grande
reportagem era uma espcie de
porta voz para a ditadura do Estado Novo, que preenche a histria
nacional de 1937 a
1945.
No mercado brasileiro atual, o jornalismo literrio tem espao
definido.
Publicaes noticiosas como a revista Piau e alguns textos
publicados na edio
brasileira da Rolling Stone so alguns dos exemplos de publicaes
que seguem essa
linha. A Rolling Stone completou um ano no mercado no ms de
outubro de 2007. Alm
de reproduzir textos da verso norte-americana, a revista conta
com uma redao fixa no
Brasil. Alguns dos textos apresentados conseguem fugir da lgica
padronizada tanto
criticada pelos jornalistas literrios. J a Piau conta com uma
proposta mais ampla, com
uma estrutura ainda mais voltada para a prtica e exerccio do
jornalismo literrio.
Antes da existncia dessas publicaes, contudo, o mercado de
livros-reportagem
j apresentava ttulos que investiam na temtica, como Abusado, de
Caco Barcelos,
publicado em 2003. O livro figurou nas listas dos mais vendidos
e trazia relatos sobre os
bastidores da formao de uma quadrilha. Outros autores, como Ruy
Castro e Fernando
Morais, estreitaram ainda mais a relao jornalismo e literatura
ao apresentarem textos
claramente inspirados na rea literria. Castro conta com
biografias e grandes textos que
se transformaram em livros-reportagem, como Chega de saudade: a
histria e as
histrias da Bossa Nova (1990), O anjo pornogrfico: a vida de
Nelson Rodrigues
(1992), Flamengo: vermelho e negro (2004), Carmen: uma biografia
(2005), entre
outros. Fernando Morais assinou o famoso Olga (1985), alm de
Chat, o rei do Brasil
(1994), Coraes sujos (2000), entre outros.
Uma outra evidncia do interesse do mercado editorial brasileiro
pelo jornalismo
literrio est no fato da Companhia das Letras, uma das maiores
editoras do Brasil,
dedicar uma coleo exclusivamente temtica. O selo Jornalismo
Literrio chegou ao
-
22
mercado para reeditar grandes reportagens do sculo XX, entre
elas: Hiroshima, de John
Hersey, A sangue frio, de Truman Capote, Chico Mendes - crime e
castigo, de Zuenir
Ventura, e Radical chique e o novo jornalismo, de Tom Wolfe, que
traz um texto
considerado como o manifesto do New Journalism.
Alm das publicaes especficas, existem aqueles jornalistas que,
mesmo com
todas as dificuldades impostas pelas rotinas produtivas,
conseguem elaborar textos
diferenciados, com um mergulho maior no tema, em seus
personagens, com outras
perspectivas. o caso da jornalista Eliane Brum, que escreve para
a revista semanal
poca. Eliane traz perfis e textos mais elaborados para a
publicao, alm de ter editado
o livro A vida que ningum v, uma narrativa voltada para
personagens annimos para o
grande pblico.
Uma outra evidncia importante no cenrio nacional o surgimento da
Academia
Brasileira de Jornalismo Literrio, uma iniciativa dos
jornalistas-professores Edvaldo
Pereira Lima, Srgio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo
Stucchi, que tambm criaram
e coordenam o portal Texto Vivo, Narrativas da Vida Real. Com
sede em So Paulo, a
academia ministra cursos de especializao em jornalismo literrio,
alm de trazer textos
e reflexes no portal Texto Vivo. Neste ano, os professores
colocaram no mercado o livro
Jornalistas Literrios narrativas da vida real por novos autores
brasileiros.
Organizado por Sergio Vilas Boas, a obra conta com 16 narrativas
de alunos que
participaram do curso de ps-graduao da academia, entre o final
de 2005 e o incio de
2007.
1.2 Nos Estados Unidos
Muito do que se relaciona ao jornalismo literrio produzido hoje
est em sintonia
com os preceitos e com os recursos do New Journalism, modalidade
jornalstica surgida
em 1962, como aponta Tom Wolfe em Radical chique e o novo
jornalismo. O livro, alm
de trazer trs narrativas do autor, apresenta o chamado manifesto
do gnero, escrito em
1973. Wolfe comeou a freqentar a redao do New York Herald
Tribune em 1962,
quando os romancistas eram as grandes estrelas dos jornais. A
idia era assegurar para o
novo jornalismo o lugar de destaque ocupado pelo romance.
-
23
Mas a ligao moderna entre jornalismo e literatura, considerada a
prvia do New
Journalism, est relacionada com a proximidade da produo literria
com o engajamento
poltico de escritores como Upton Sinclair e Jack London, como
aponta Carlos Rgis
Ferreira em Literatura e jornalismo, prticas polticas (2003).
Estes autores promoviam
palestras para proletrios e intelectuais norte-americanos. O
termo jornalismo literrio,
inclusive, foi utilizado pela primeira vez em 1887 nos Estados
Unidos por Matthew
Arnold para descrever o estilo do autor Pall Mall Gazette,
considerado como atrevido,
vvido, pessoal e reformista, entre outras caractersticas
apresentadas (FERREIRA, 2003,
p.289).
Para alguns historiadores, Daniel Defoe pode ser considerado
como o primeiro
jornalista literrio moderno. Ele escrevia, no comeo do sculo
XVIII, ensaios e crnicas
na revista Review e ficou reconhecido, principalmente, pelos
romances Robinson Cruso
(1719) e Moll Flanders, como aponta Felipe Pena (2006).
Mas com base nas propostas e nas idias de Tom Wolfe e seus
contemporneos
que a idia de novo jornalismo ganha fora atualmente. A
iniciativa que povoou os anos
60 tinha como objetivo fazer jornalismo para ser lido como
romance, deixando os textos
menos beges e com uma quantidade muito maior de atrativos para o
leitor.
O que me interessava no era simplesmente a descoberta da
possibilidade de escrever no-fico apurada com tcnicas em
geral associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era
a
descoberta de que possvel na no-fico, no jornalismo, usar
qualquer recurso literrio, dos dialogismos tradicionais do
ensaio
ao fluxo de conscincia, e usar muitos tipos diferentes ao
mesmo
tempo, ou dentro de um espao relativamente curto... para
excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.
(WOLFE, 2005, p. 28)
A nova modalidade que surgia contava com grande mudana na rotina
dos
profissionais que estavam dispostos a seguir com as propostas. A
nova reportagem era
mais detalhista, ambiciosa e, sobretudo, intensa. No contava com
regras sacerdotais. O
jornalista passava dias ou meses para apurar um determinado
fato. A relao com as
fontes eram amplificadas ao mximo, para que os relatos ficassem
com diversos detalhes
e da maneira mais rica possvel para o futuro texto. Mas Wolfe
considera que o novo
-
24
jornalismo no poderia ser considerado como um movimento, j que
no contava com
agremiaes e associaes.
A partir de 1966, o New Journalism passou a ganhar ainda mais
fora,
principalmente depois que a vida norte-americana se transformou
no perodo que envolve
o ps-guerra. Segundo ele, os romancistas no deram a devida
importncia aos
acontecimentos, o que gerou uma lacuna no mercado
norte-americano, espao
ligeiramente preenchido pelo novo jornalismo.
Antes do manifesto de Wolfe, escritores j colaboravam muito com
o novo
jornalismo. Em 1946, John Hersey publicou o aclamado Hiroshima,
que trazia uma
narrativa com toques de romance para contar a tragdia com a
bomba atmica na cidade
japonesa. A idia do escritor foi a de apresentar a histria a
partir do relato de seis
sobreviventes. Dezenove anos mais tarde, a estratgia foi
repetida com o tambm clebre
A sangue frio, de Truman Capote. Para o escritor, o livro no era
jornalismo, mas um
romance de no-fico. A sangue frio traz tona a histria de dois
bandidos que
assassinaram uma famlia na cidade de Kansas, nos Estados
Unidos.
Para Wolfe, a ttica de Truman Capote em classificar a obra como
um romance de
no-fico nada mais era do que dar ao trabalho a chancela do gnero
literrio que era
dominante no perodo. Mas o que vai motivar esses novos
escritores em suas obras ,
como foi abordado anteriormente, uma insatisfao com as diversas
regras de
objetividade que reinavam nas redaes. O lead era um dos
elementos mais combatidos
por esses autores.
Outro nome muito marcante no perodo o de Gay Talese, com obras
importantes
como Fama e anonimato, A mulher do prximo e O reino e o
poder.
1.3 Relevncia para o campo do jornalismo
A adoo de tcnicas da literatura pelo jornalismo, com a criao de
uma nova
configurao discursiva aqui chamada de jornalismo literrio ou
literatura de no-fico,
tem trazido contribuies bastante relevantes para o campo do
jornalismo. Tanto em
termos de prticas cotidianas quanto na produo de reflexes e
pesquisas sobre a
ampliao do alcance das suas funes sociais, especialmente as de
ferramenta para o
-
25
conhecimento do mundo real e de instrumento para a transformao
de hbitos humanos
j incompatveis com o nvel de desigualdade de renda e o grau de
estafa do meio
ambiente do planeta.
Uma das contribuies mais palpveis, do ponto de vista do texto
concreto, o
aumento do prazer da leitura, provocado pelo apuro do texto
jornalstico desenvolvido
com apoio da arte da literatura. O uso de formatos geralmente
utilizados para descrever
situaes imaginrias tornam as reportagens mais prazerosas, mais
saborosas e, com isso,
e o leitor fica mais preso ao texto.
Justamente por identificar esse potencial, Tom Wolfe - um dos
principais nomes
do New Journalism - estabeleceu como meta principal, ao
modificar sua maneira de
escrever as reportagens, usar tcnicas da literatura para excitar
tanto intelectual como
emocionalmente o leitor (2005, p.28). E, assim, prender
leitores, dialogar com eles,
mostrando o quanto a prpria realidade pode ser fustigante,
incrvel e fantstica quando
reportada com o uso de uma linguagem mais prxima da
literatura.
Resgatar o prazer da leitura era para Wolfe uma questo de honra
quando ele
comeou a escrever literatura de no-fico para a editoria de
cidade e para o suplemento
dominical New York do jornal Herald Tribune ou a revista
Esquire. Especialmente no
caso do New York, Wolfe sentia necessidade de dar aos leitores
algo mais interesse para
ler aos domingos, em lugar de entendi-los com caramelos mentais
(2005, p.30), textos
sem qualquer atrativo escritos na mesma poca:
Os leitores no sentiam nenhuma culpa em deix-los de lado,
jog-los fora ou nem olhar para eles. Nunca hesitei em
experimentar qualquer recurso concebvel capaz de reter de
algum modo o leitor por mais alguns segundos. Eu tentava
berrar
no ouvido dele: Fique aqui!... (WOLFE, 2005, p.30).
O uso de tcnicas da literatura diferenciava o jornalismo de Tom
Wolfe e seus
colegas contemporneos de New Journalism dos demais textos
jornalsticos na dcada de
60 do sculo passado, que utilizavam uma linguagem resultante do
processo de
neutralizao, objetivizao, apagamento das marcas do autor e
enxugamento do texto
iniciado no final do sculo 19 e incio do sculo 20.
Foi naquela poca que a notcia passou a ser um produto a venda,
como explica
Cremilda Medina (1988). Os jornais impressos consolidavam-se
ento como negcio
-
26
comercial e no mais tanto como expresso de posicionamentos
polticos de seus donos.
No lugar das reportagens, dos folhetins, das crnicas e do
jornalismo de opinio, nascia a
notcia como baliza da informao pura, a informao apresentada de
forma direta e
supostamente objetiva e imparcial.
A inveno do lead pelos jornalistas dos Estados Unidos trouxe
impactos
fortssimos para a forma de escrita de uma notcia. A resposta s
seis perguntas bsicas (o
que, quem, quando, como, onde e por que) logo no primeiro
pargrafo do texto informava
o leitor em poucos segundos sobre o que se tratava a histria. A
notcia deveria ento
seguir em tom neutro e objetivo, onde o autor se apaga como
sujeito que compartilha o
mesmo tempo e espao que os fatos noticiados e se torna mero
intermediador de
informaes.
No h, assim, lugar para o jornalista que gosta de contar a
realidade com a ajuda
de tcnicas da literatura. A conseqncia a criao de uma iluso de
autonomia do
referente, ou seja, do fato reportado, com o ocultamento do
processo social que
possibilitou a notcia e a gerao de um efeito de objetividade
(SATO, 2002, p.31).
Com o tempo, esse tipo de jornalismo transformou o reprter em
difusor de
declaraes, acontecimentos e documentos oficiais, isto ,
matria-prima noticiosa que as
estruturas de governo e as grandes empresas oferecem para a
imprensa como notcia. A
consolidao das assessorias de imprensa como servios produtores
de press releases faz
parte do mesmo sistema de indstria informativa voltada a
difundir o discurso oficial
(MEDINA, 1988).
Somadas reduo do nmero de profissionais nas redaes, ao
investimento
cada vez mais raro em reportagem e prpria dinmica mercadolgica
do jornalismo
como negcio pouco lucrativo de um pool de empresas
conglomeradas, frmulas como o
lead acabaram substituindo a reportagem de rua pelo jornalismo
de redao, em que toda
a etapa de apurao ou captao de dados realizada dentro do prdio
da empresa onde
trabalha.
Assim, a alma encantadora das ruas, to importante para reprteres
como Joo
do Rio (criador da expresso), foi sendo gradualmente substituda
por um jornalismo
menos preocupado com reportar a realidade com todos os seus
detalhes e contradies. A
valorizao da notcia em detrimento da reportagem culmina, no
final do sculo 20 e
-
27
incio do sculo 21, em textos noticiosos escritos sem que o
reprter ao menos pise na
rua, bastando usar o telefonema e a Internet para elaborar leads
tecnicamente perfeitos
(MEDINA, 2003, p.79).
Com a reduo do nmero de profissionais nas redaes e da estrutura
disponvel
e o crescente domnio do mercado por um nmero menor de empresas
de comunicao
(muitas vezes, ligadas a negcios milionrios de outros ramos,
como telefonia e
entretenimento, como j ocorre predominantemente nos Estados
Unidos), a eficincia tem
sido geralmente medida pela produtividade de notcias, ainda que
superficiais e
preliminares, e no tanto pelo aprofundamento de cada fenmeno
social.
A capacidade do jornalismo de tornar-se ferramenta para o
conhecimento do
mundo, ou de representar a complexidade do real, reduz-se na
notcia resposta s
perguntas mais imediatas do receptor da mensagem. A fragmentao
dos fatos em
notcias isoladas e superficiais, corroborada pela compartimentao
dos jornais impressos
em editoriais, no ajuda o leitor a compreender o mundo e
realizar articulaes entre
diferentes temas direta ou indiretamente interligados, como
decises polticas e vida
cotidiana, incentivos agricultura e a favelizao das periferias
urbanas etc.
Se esse tipo de jornalismo deixa os reprteres mais sensveis com
os
acontecimentos extra-muros da redao muitas vezes frustrados,
como bem registra
Cremilda Medina (2003, p.99), os leitores tambm j passam a
exigir produtos melhores,
ao menos no que tange ao jornalismo impresso, que sofre o
impacto do deslocamento das
notcias para veculos como maior capacidade de inform-las em
tempo real, como a
Internet, o rdio e a televiso.
Em 1993, a pesquisa Truths to tell - Youth and Newspaper,
realizada nos Estados
Unidos pela ASNE Literacy Comitee Report4, mostrou que a pior
forma de atrair leitores
a notcia escrita e organizada de maneira convencional e que os
leitores ficam mais
tempo em pginas com notcias escritas com auxlio das tcnicas
literrias. O estudo
mostrou tambm que os textos que fazem algum esforo para explicar
motivos, contextos
e histricos de um fato tm atrado leitores jovens e menos
instrudos.
4 Disponvel em http://www.asne.org/index.cfm?id=2476
-
28
Tambm nos EUA, o Impact Study do Readership Institute5 (2001)
deixou claro
que, embora concorrentes da TV, da Internet e do rdio, os
jornais impressos esto em
boa posio no mercado e podem ganhar leitores se atenderem as
suas expectativas. Para
isso precisam, entre outros fatores, investir no contedo e na
forma narrativa que o leitor
preferir. No topo da lista dos dez contedos que mais interessam
ao leitor dos EUA est a
informao local aprofundada, especialmente sobre fatos ordinrios
da cidade e a vida (e
morte) das pessoas comuns. Neste caso, as matrias escritas com
aprofundamento
narrativo so mais lidas do que as escritas da maneira
tradicional. A pesquisa comprovou
que esse estilo de narrativa, marcadamente de jornalismo
literrio, aumenta a satisfao
do leitor e atribui valor marca do jornal.
Baseado na prpria demanda comercial, o jornalismo chamado de
literrio
ressurge ao final dos anos 90, nos EUA, como mtodo para garantir
a subsistncia dos
peridicos impressos. O prazer do texto, ao mesmo tempo em que
atrai leitores, d vazo
ampliao do conhecimento sobre o mundo real, uma necessidade
humana cada vez
mais urgente em tempos de efeitos digitais e produes
poltico-miditicas capazes de
maquiar ou construir realidades.
Assim, o jornalismo literrio resgata a funo primordial do campo
como
produtor de conhecimento e mais, apresenta-o como potencial
motor de transformao de
culturas e hbitos cotidianos. Isso ocorre porque, aliada fruio
do texto, a principal
contribuio das tcnicas de narrativa literria para o campo do
jornalismo a retomada
da capacidade de reportar a complexidade do real o abrir os
olhos para o mundo como
ele , no mais como um conjunto de dados estticos encaixveis em
leads.
A prpria funo social do reprter se modifica: no jornalismo
literrio, no vale
nada uma atuao supostamente neutra como mero intermediador de
informaes
oficiais; o que vale o jornalismo com marcas de autor, em que o
conjunto de decises,
escolhas, apuraes, observaes, angulaes e edies praticados pelo
profissional do
texto informativo se torna crucial para que o leitor possa
compreender, em profundidade,
o tema em tela.
O desafio enxergar alm do cotidiano, que tem efeito de catarata,
provocado
pela iluso das certezas. O reprter tem que duvidar de suas
certezas. O reprter mais
5 Disponvel em http://www.readership.org/reports.asp
-
29
perigoso o que acha que j viu tudo, diz Eliane Brum6,
documentarista e reprter
especial da revista poca, ganhadora de mais de 30 prmios
nacionais, entre eles um
Esso por uma srie de matrias intitulada A vida que ningum v,
publicada no dirio
gacho Zero Hora, em 1999.
Para Eliane, enxergar alm da iluso das certezas quer dizer
voltar s ruas para
ousar o confronto com o desconhecido, na tentativa de esclarecer
questionamentos que a
agenda dominante da mdia procura abafar. Interessante que ponto
comum entre
defensores do jornalismo literrio, ou mesmo do dito bom
jornalismo, que o gnero
tem uma funo revolucionria, de modificar hbitos e culturas,
especialmente de ampliar
a viso do leitor sobre o mundo.
Encontra-se essa declarao, de formas diferenciadas, em Tom
Wolfe, Gabriel
Garca Mrquez, Cremilda Medina, Cludio Jlio Tognolli, Srgio
Villas Boas e Edvaldo
Pereira Lima, entre outros. J nos anos 70, quando os ecos do New
Journalism no Brasil
faziam da grande reportagem a meta da maioria dos jornalistas,
as pesquisas sobre
tcnicas de jornalismo literrio eram vistas pelo governo como
tentativas de burlar o
sistema, relata Cremilda Medina (2003, p. 129).
Para alm de uma funo poltica ou ideolgica, entretanto, o
jornalismo literrio
tambm evoca uma mensagem de que possvel acrescentar
criatividade, intuio e arte
ao pragmatismo imposto pelas rotinas industriais dos peridicos
impressos.
O investimento de mais tempo no processo de captao e a prpria
imerso nos
fenmenos, prticas exigidas para a melhor concretizao da
proposta, denotam a
realizao de um trabalho quase artesanal na busca de articulao
entre dados reais que
possam colaborar para a compreenso do mundo.
1.4. Principais contribuies acadmicas
As fronteiras entre jornalismo e literatura, as diferenas entre
o real e a fico, as
marcas de autor versus a neutralidade do narrador, a formao
literria dos jornalistas, o
6 Declarao colhida por Katherine Funke durante palestra de
Eliane Brum no Seminrio Brasileiro
de Jornalismo Literrio, em So Paulo, em 23 de outubro de
2007.
-
30
prazer do texto com formato literrio so algumas das problemticas
que tm marcado a
produo acadmica sobre o campo do jornalismo literrio.
Um dos primeiros estudos que j versava sobre as contribuies da
literatura para
as reportagens foi publicado em 1972, de forma artesanal, pelos
pesquisadores Cremilda
Medina e Paulo Roberto Leandro, em A arte de tecer o presente.
Em 2003, Cremilda
atualiza os dados e lana uma obra homnima onde relata a
experincia de ensino e
pesquisa de tessitura do real, como ela chama a narrativa do
tipo jornalismo literrio. A
pesquisadora lana propostas relevantes ao campo por incluir a
discusso sobre as marcas
do autor, o que abrange a incluso da intuio, da criatividade, da
cidadania e at da
solidariedade no trabalho pragmtico da reportagem.
Simultaneamente e tambm logo depois de Cremilda Medina,
outros
pesquisadores contriburam para a discusso. Em 1993, Edvaldo
Pereira Lima lana
Pginas Ampliadas, resultado de sua tese de doutoramento, uma das
obras mais utilizadas
em cursos de graduao em jornalismo como incentivo grande
reportagem, praticada
em formato de livro, com tcnicas de jornalismo literrio.
Em seu livro, Lima traz a hiptese que o livro-reportagem (uma
das
classificaes por ele proposta) estende a funo informativa e
orientativa do jornalismo
impresso cotidiano uma vez que cobre os vazios deixados pela
imprensa, e amplia, para o
leitor, a compreenso da realidade (LIMA, 1993, p.61).
Para conseguir este objetivo, o livro-reportagem se utiliza das
prticas inerentes
do jornalismo, mas estas so ampliadas e at mesmo modificadas.
Assim, o livro-
reportagem ganha caractersticas especficas e, de acordo com
Lima, fica no patamar de
novo gnero. Tom Wolfe, segundo Lima, chegou a reivindicar o nvel
de gnero
literrio.
Lima foi um dos fundadores de um grupo de pesquisa chamado Texto
Vivo
(www.textovivo.com.br), que desde a virada do milnio oferece, em
parceria com
universidades, cursos de ps-graduao em jornalismo literrio com
turmas de alunos em
So Paulo, Rio de Janeiro, Goinia e Porto Alegre. Assim, a produo
de pesquisas sobre
o campo tende a crescer nos prximos anos, ao lado da prpria
prtica do jornalismo
literrio.
-
31
Independente do Texto Vivo, contudo, a pesquisa sobre o
jornalismo literrio tem
sido realizada de forma crescente no Brasil. Por exemplo, o
pesquisador Fernando
Resende (2002) aprofunda-se nos limites e contribuies entre
literatura e jornalismo na
anlise da obra de Tom Wolfe. Ele rediscute caractersticas bsicas
do jornalismo
(atualidade, objetividade e realidade) a partir das luzes
lanadas por Wolfe em Radical
Chique para concluir que as tcnicas do jornalismo literrio
melhoram o jornalismo.
J pesquisadora Cristiane Costa (2005) lana Pena de aluguel, um
estudo que
entrelaa os campos do jornalismo e literatura do ponto de vista
de quem os pratica no
mercado. Ela pesquisou a fundo as caractersticas isoladas e
entrelaadas dos dois
campos (jornalismo e literatura) no incio de 1900 e 2000, para
comparar o resultado da
enquete realizada por Joao do Rio em 1904.
A enquete de Joo do Rio buscava saber se o jornalismo era
atividade que
atrapalhava ou ajudava no desenvolvimento da literatura. O
resultado, um empate entre
considerar o reprter um escritor prostitudo e o jornalismo como
fonte digna de renda
para escritores, intrigou Cristiane Costa. Entre as concluses da
pesquisa da autora, que
bastante ampla, est o fato de que a literatura de no-fico tem
conquistado o mercado
literrio, especialmente no formato de livros-reportagens.
A discusso j suscitou uma srie de outros estudos, como a
coletnea de artigos
Jornalismo e literatura a seduo da palavra, organizada por
Gustavo de Castro e Alex
de Galeno, alm de publicaes especficas sobre o uso de tcnicas de
literatura na
construo de perfis e biografias, como fez Srgio Vilas Boas.
O pesquisador Carlos Rog Ferreira ampliou a discusso com a tese
de doutorado,
que resultou no livro Literatura e jornalismo, prticas polticas,
onde examina algumas
relaes existentes entre contradiscursos (um discurso emancipador
de esquerda e
narrativas literrio-jornalsticas). Ferreira analisou treze obras
escolhidas por serem
modelos com caractersticas das relaes mencionadas. Entre as
obras, o pesquisador
analisou Miami e o cerco de Chicago, de Norman Mailer; Os
honrados mafiosos, de Gay
Talese; Lvio Flvio, o passageiro da agonia, de Jos Louzeiro;
Rota 66, de Caco
Barcellos. Ferreira defende que as produes jornalsticas e
literrias sejam entendidas
como lugares importantes de descoberta e afirmao dos indivduos e
das coletividades,
ligadas, entre outras, s questes das prticas
transformadoras.
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1.5. Caractersticas intrnsecas do jornalismo literrio
O estudioso Edvaldo Pereira Lima diz que as tcnicas do
jornalismo literrio
podem ser aplicadas em livros-reportagem, gnero7 mais conhecido
no Brasil. Para ele, o
livro-reportagem persegue o objetivo de ampliar a compreenso da
realidade pelos
leitores. Para isso, o livro-reportagem maximiza os recursos
operativos inerentes prtica
jornalstica e ganha caractersticas individualizadas.
Atravs do acompanhamento das etapas de elaborao da reportagem
pauta,
captao e redao (incluindo aqui a edio), Lima sustenta que
possvel evidenciar as
limitaes da imprensa regular. Para ele essas limitaes podem ser
ultrapassadas no
livro, no qual a primeira marca caracterstica, muitas vezes, a
liberdade do autor.
Assim, o jornalista pode fugir dos ditames convencionais que
restringem sua tarefa de
construtor de mensagens na imprensa cotidiana.
O pesquisador Edvaldo Pereira Lima apresenta trs momentos bem
definidos da
produo de uma mensagem jornalstica: a extenso pela pauta, a
complementao pela
captao e a fruio pelo texto. A cada um desses momentos, o autor
detalha as
caractersticas que diferenciam o jornalismo literrio do
jornalismo cotidiano,
factualizado e limitado pelo foco nos acontecimentos do dia.
Estas caractersticas sero
melhor aprofundadas nos prximos itens.
J o jornalista norte-americano Tom Wolfe apresenta quatro
caractersticas
fundamentais: construo cena-a-cena, dilogos completos, observao
participante e
autpsia social. No momento da escrita do texto, h uma clara
aproximao com as
formas narrativas da literatura, como identifica o prprio Tom
Wolfe e tambm Lima e
Resende. Para Wolfe, o objetivo do uso dos recursos literrios em
textos de no-fico
era o de excitar tanto intelectual como emocionalmente o
leitor.
Porm, Srgio Vilas Boas, em seu livro O estilo magazine: o texto
em revista, diz
que no a supra-realidade8 que interessa ao jornalismo.
7 Os autores Muniz Sodr e Maria Helena Ferrari, em Tcnica de
reportagem: notas sobre a
narrativa jornalstica colocam o livro-reportagem como gnero. O
norte-americano Tom Wolfe tambm
reivindicou o nvel de gnero literrio para a modalidade. 8 Vilas
Boas aqui se refere diferena entre o redator, para quem a linguagem
puro instrumento
do pensamento, um meio de transmitir realidades, e o escritor
que, ao contrrio, tem a linguagem como um
lugar dialtico que permite a traduo de diferentes matizes do
real.
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O que interessa a preciso, pois tudo que se escreve em
jornalismo dever ser verificvel, comprovado na realidade
imediata. A realidade do jornalismo se aproxima, ento, de
uma
literatura no exatamente ficcional. Mas isto no impede o
contrrio: que a literatura de fico, no conceito clssico, se
utilize da realidade imediata e comprovvel. (VILAS BOAS,
1996, p. 59)
E o estudioso Vilas Boas vai alm na tentativa de esclarecer a
ligao jornalismo e
literatura e diz que a reportagem narrativa um dos gneros mais
importantes em
jornalismo e, provavelmente, o que mais aproxima o jornalismo da
literatura. Para ele, o
jornalismo uma das categorias da literatura. Em outras palavras,
literatura de massa.
1.5.1. A extenso pela pauta
No primeiro momento, da extenso pela pauta, segundo Edvaldo
Pereira Lima,
existem algumas liberdades em relao imposio da atualidade do
jornalismo dirio,
como a da presentificao.
Naturalmente que, para o leitor, muitas mensagens no
necessitam ultrapassar o mbito do efmero. Mas quando se
trata
da reportagem, cujo objetivo o aprofundamento, a definio da
pauta pelo critrio de atualidade pode revelar-se incua, uma
vez
que muitos fenmenos que nos afetam escapam de uma
conformao atual, no sentido restrito, tendo muito mais a ver
com uma concepo um pouco mais dilatada de tempo presente.
(LIMA, 1995, p.64)
A liberdade temporal avana para o relato da contemporaneidade,
resgatando no
tempo algo mais distante do atual, mas que segue causando
efeitos. Assim, h uma
liberdade de eixo de abordagem, que desobriga o texto a girar em
torno do acontecimento
factual, o que cria uma liberdade temtica. A reportagem de
jornalismo literrio fica,
portanto, livre para tratar de assuntos ausentes da agenda
dominante da mdia naquele
momento, assim como a liberdade de fontes, j que fontes de
diferentes tipos, no apenas
as usuais, podem ser ouvidas para a construo do texto.
Segundo Lima, a periodicidade impe padres de rotina ao
jornalismo e, ao
mesmo tempo, alia-se a outros dois fatores nocivos para uma
comunicao alm do
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carter informativo. So eles: construo da mensagem pela frmula
mais rpida, porm
menos criativa, do texto pasteurizado das caractersticas
impostas ao jornalismo (o que,
quem, quando, onde, como e nem sempre porqu) e a recorrncia
apenas a fontes
legitimadas, ou seja, institucionalizadas como tais. Assim, o
jornalista recorre sempre as
mesmas fontes, que so mais fceis de localizar do que procurar
vrias pessoas no
legitimadas ou pouco distantes do assunto. E Lima explica como,
de sbito, Dr. X
guinado posio de grande especialista em determinado assunto e
sempre procurado
para falar, em detrimento de outros especialistas que tambm
podem falar sobre o
assunto, em respeito quebra de rotina para o leitor.
A presso padronizadora e legitimadora favorece uma definio
viciada das
realidades sociais selecionadas para o relato jornalstico e
deixa escapar muitos fatos que
por este vis - no apresentam relevncia social. Muitos desses
fatores no se encaixam
s definies prvias, ou no se ajustam aos prazos de fechamento ou
da narrativa
conhecida, e ficam simplesmente de fora. Com isso, as
reportagens ficam presas ao
factual e no abordam as questes contundentes que conformam os
acontecimentos.
Lima apresenta outro agravante desse procedimento operacional
viciado: a
manipulao ideolgica ou de comprometimento atrelado a interesses
mercadolgicos.
Ou seja, estratgias para conquistar, a qualquer preo, o leitor,
que perde a chance de
captar o sentido mais profundo da contemporaneidade. Muito mais
ainda quando entra
em campo um certo emocionalismo, tpico do latino, distorcendo a
leitura do real
(LIMA, 1995, p.67).
Tudo isso contribui para a m qualidade da reportagem que,
conforme colocou
Lima, nasce na pauta, a primeira etapa do processo de produo da
mensagem
jornalstica.
A pauta a definio de rumos, o estabelecimento de diretrizes
que, quando mal-administrada, conduz a matria a terrenos
pouco frteis (). Caso as coordenadas sejam viciadas,
naturalmente a navegao ser pobre, menos eficiente, podendo
hipoteticamente chegar, em condies extremas, a se desviar
totalmente do destino previsto. (LIMA, 1995, p.68)
A estudiosa Cremilda Medina acrescenta que, nas rotinas de
redao, as pautas
pecam pela falta de domnio tcnico-profissional e, muitas vezes,
por falta de
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imaginao, um veculo pauta o outro. Medina tambm identifica
problemas na
angulao da pauta (perspectiva bsica sob a qual a reportagem ser
desenvolvida) que
resolve-se pelas relaes entre os nveis grupal, massa e pessoal
da comunicao
(MEDINA, 1982, p. 143 e 145).
Para Cremilda, o nvel grupal identifica-se com a caracterizao da
empresa
jornalstica onde essa pauta vai ser transmitida. A empresa, uma
vez conectada a um
grupo econmico e poltico, conduz o comportamento da mensagem da
captao do real
sua formulao estilstica. Medina acrescenta que este nvel mais
evidente nas pginas
editoriais, mas pode ser detectado mais sutilmente em toda a
codificao de jornalismo
informativo.
H tambm a angulao pelo nvel massa como elemento limitador da
pauta diria
do jornalismo convencional. Essa angulao seria a preocupao em
corresponder a um
gosto mdio ou, dito de outra forma, o uso de tcnicas que
apresentam a informao
com certos ingredientes de consumo. Por fim, Medina fala do nvel
pessoal da angulao
que oferece maior grau de autonomia ao autor do texto. A
estudiosa, porm, faz a
ressalva que essa autonomia se dilui bastante numa criao cada
vez mais annima nas
redaes. Alm disso, um profissional prestigiado, por seu toque
pessoal de qualidade na
produo de matrias, segue tendncias do consumo de massa e no vai
contra o nvel-
empresa porque seno seria dispensado.
Outro aspecto apresentado por Lima a busca pela apreenso mltipla
de aspectos
da realidade. Para isso, prev a localizao dos conflitos
relativos questo que ser tema
da reportagem. Os conflitos, ou embates entre foras e/ou entre
personagens, devem ser
compreendidos e transcendidos para permitir a identificao de
causas, efeitos e foras
protagonistas da reportagem. Lima diz que esse processo deve ser
feito na elaborao da
pauta, uma leitura sistemtica do assunto que vai ser
trabalhado.
Analisar, decompor, o sistema visado em sua estrutura bsica
e
encontrar, como ponto de partida, os conflitos resultantes
dos
estrangulamentos sistmicos, o que facilita, num segundo
passo,
interpretar causas e consequncias. Se queremos produzir um
material sobre a queda do servio hospitalar pblico no pas, a
abordagem sistmica com certeza auxilia a encontrar os pontos
nevrlgicos da questo, nos seus aspectos contextuais,
processuais e temporais. (LIMA, 1995, p. 78)
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Feita esta anlise da elaborao da pauta, em busca da captao do
real, Lima nos
apresenta um conjunto de liberdades disponveis que privilegiam o
livro-reportagem:
liberdade temtica, liberdade de angulao, liberdade de fontes,
liberdade temporal,
liberdade de eixo de abordagem e liberdade de propsito.
Partindo do pressuposto que o livro-reportagem tem a
possibilidade da
diversidade temtica, Lima acrescenta que este gnero abraa temas
que no foram alvo
de abordagem pela imprensa ou foram de forma superficial ou no
tiveram o mesmo
enfoque dado pelo livro.
Esta liberdade temtica pode ser ilustrada por uma srie de
livros-reportagem e
at mesmo de grandes reportagens veiculadas em jornais e
revistas, j que, como j foi
dito, Lima escolhe o livro-reportagem para a sua anlise, mas as
caractersticas so de
jornalismo literrio e, estas, podem ser aplicadas em outros
formatos de produtos
jornalsticos.
Na liberdade de angulao, Lima defende que o livro-reportagem uma
obra do
autor e, assim sendo, desvinculado, pelo menos em tese, do
comprometimento com o
nvel grupal, de massa e com o pessoal. () seu nico compromisso
com a sua prpria
cosmoviso e com o esforo de estabelecer uma ligao estimuladora
com seu leitor,
valendo-se, para isso, dos recursos que achar mais convenientes,
escapando das frmulas
institucionalizadas nas redaes (LIMA, 1995, p. 83). Podemos,
aqui, dar como
exemplo o livro A sangue frio, de Truman Capote, lanado em 1966
nos Estados Unidos.
No livro, Capote apresenta o caso de uma famlia rural do Kansas
que foi assassinada.
Para faz-lo, o autor passou cinco anos entrevistando fontes,
especialmente os dois
assassinos. Ficou claro na obra-prima de Capote que ele teve
plena liberdade de
angulao, pois revelou como autor seu apreo pelos bandidos
(alguns at diziam que ele
teria se apaixonado por um deles), o que contraria o consenso
geral da poca nos EUA,
legitimado pela legislao daquele pas, de condenao sumria dos
assassinos.
Da mesma forma, no estando atrelado ao ritmo compulsivo de
produo das
redaes, Lima apresenta a liberdade de fontes, quando o
jornalista pode fugir do estreito
crculo de fontes legitimadas e usar um nmero variado de
entrevistados. Um bom
exemplo Hiroshima, de John Hersey, lanado em 1946. O livro
reconstitui o dia da
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exploso da bomba atmica a partir dos depoimentos dos seis
sobreviventes e, para
completar o trabalho, Hersey voltou cidade 40 anos depois.
Lima, para exemplificar outra liberdade, a temporal, cita do
exemplo do livro
1968, o ano que no terminou, de Zuenir Ventura. No livro,
segundo Lima, Ventura
recupera um importante momento histrico do Brasil, trazendo
vrios atores que so
personalidades atuantes na atualidade. Esta liberdade
possibilita a fuga da presentificao
restrita e avana para o relato da contemporaneidade, resgatando
no tempo mais distante
do de hoje, mas que segue causando efeitos neste (LIMA, 1995,
p.85).
A liberdade do eixo de abordagem tambm permitida no
livro-reportagem, de
acordo com Lima. Dessa forma, o livro-reportagem no precisa
ficar preso na
factualidade, no acontecimento, mas pode vislumbrar um horizonte
mais amplo atravs
do fato e tambm descortinar questes mais duradouras que compem
as linhas de fora
que determinam os acontecimentos. Com esta flexibilidade de
mergulho em situaes e
questes, o autor pode encontrar, de forma mais satisfatria, o
mago dos conflitos. Foi o
que ocorreu em O teste do cido do refresco eltrico, onde Tom
Wolfe conta a histria de
um grupo de precursores do cido lisrgico, aproveitando os fatos
para analisar os efeitos
do uso da droga, associando-os a toda uma srie de contextos da
poca e interesses
humanos universais, e atemporais, pelo que h alm da realidade
concreta.
Para Lima, estas liberdades j apresentadas possibilitam que o
livro-reportagem
tenha propsitos mais elevados que a reportagem comum, j que
confunde, mistura
dados. A liberdade de propsito pode ser exemplificada no livro O
segredo de Joe Gould,
de Joseph Mitchell, de 1942. O livro nos apresenta um bomio
culto, excntrico e pobre
que guarda um segredo, mas tambm nos revela o esprito de Nova
Iorque naquela poca.
Mitchell ficou famoso por revelar personalidades comuns, gostava
sempre de evitar os
famosos. Costumava dizer: eles so to grandes quanto voc, seja
voc quem for.
1.5.2. Captao dos dados
J o segundo momento categorizado por Lima, o da captao dos
dados, mantm,
muitas vezes, as limitaes e as inadequaes do jornalismo
cotidiano. Com uma pauta
bem elaborada, o jornalista tem as diretrizes para a coleta, via
pesquisa de material
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registrado livros, sonoras, documentos, outras matrias etc -, de
entrevistas, pesquisas
de tipo sociomtrico e observaes.
Lima defende que uma reportagem de profundidade exige um bom
trabalho de
documentao, ou seja, o estabelecimento de relaes entre fatos
isolados e situaes
globais, de interpretao dos significados da contemporaneidade
para o leitor. Para ele,
no entanto, isso est longe de acontecer e diz que os jornalistas
sofrem de uma
cosmoviso desatualizada, uma atrofia de viso. Em funo disso, o
jornalista limita-se
simplificao do real, ao conceito de certo e errado.
Um dos mais importantes instrumentos de captao, a entrevista,
comea assim a
receber crticas no meio acadmico que discute os mtodos e novos
rumos para sua
eficcia no processo de compreenso do real. Estas crticas,
partindo especialmente de
Cremilda Medina, se baseiam no fato de que a compreenso do real,
no seu aspecto de
humanizao, pressupe um dilogo interativo entre o entrevistador e
o entrevistado, ou
seja, o jornalista e a fonte. Com isso, cria-se uma interao
humana entre o receptor e o
personagem dos acontecimentos e das situaes, atravs do
jornalista, que um
representante do pblico.
Lima acrescenta que o papel do jornalista, quando bem-sucedido,
o de tanto
criar identificao e projeo quanto o de estabelecer um
distanciamento crtico
consciente, vvido. A misso do jornalista, nesse caso, estimular
uma conexo entre
entrevistado e receptor. auxiliar a compreenso do real, mas
tambm colocar a dose
adequada de emoo, sem a qual nenhum ato comunica na dimenso
humana o que o
jornalismo pretende (1995, p.90). Cremilda vai alm.
Enquanto insistirmos na competncia do fazer, despojada de
significado humano, pouco se avanar no dilogo possvel
numa sociedade em que impera a diviso, a grupalidade, a
solido. Se os meios so de comunicao, que se encare ento o
que comunicar, interligar. O maior obstculo o dirigismo
com que se executam as tarefas de comunicao social. Na
maior parte das circunstncias, o jornalista imprime o ritmo
de
sua pauta e at mesmo preestabelece as respostas; o
interlocutor
conduzido a tais resultados. () O que menos interessa o modo de
ser e o modo de dizer daquela pessoa. O que
efetivamente interessa cumprir a pauta que a redao de
determinado veculo decidiu. (MEDINA, 1986, p. 07)
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Mesmo com essas crticas, Medina acredita no potencial da
entrevista para ser um
dilogo democrtico, o que ela denomina de plurlogo. A
pesquisadora classifica as
entrevistas em dois grandes grupos: as de espetacularizao
(caricatura das possibilidades
humanas) e as de compreenso (busca o aprofundamento).
Nas entrevistas de espetacularizao, Medina (1986, p. 15) define
quarto
subgneros: o perfil do pitoresco (foco em traos
sensacionalistas); o perfil do inusitado
(aspectos exticos do entrevistado); o perfil da condenao
(colocando o entrevistado de
forma simplista na condio de ru ou vilo) e o perfil da ironia
(tambm realiza um
julgamento aprioristicamente condenatrio do entrevistado, mas
num nvel superior de
sutileza).
No segundo grupo da compreenso, Medina aponta cinco subgneros: a
entrevista
conceitual (na qual o reprter versa sobre diferentes temas, com
especialistas em cada
rea); a entrevista/enquete (em que um nico tema privilegiado
pela pauta ou por
questionrios bsicos aplicados fontes escolhidas aleatoriamente);
a entrevista
investigativa (coleta de informaes em off e em on e que ajuda
matrias investigativas e
de denncia); a confrontao-polemizao (mesa-redonda, debate,
simpsio, painel ou
seminrio, quando fontes antagnicas so simultaneamente
entrevistadas) e o perfil
humanizado (proposta de compreenso ampla do entrevistado). E
acrescenta que:
tcnica de obteno de informaes que recorre ao particular, a
entrevista vale-se de fontes individualizadas e lhe d
crdito,
sem preocupaes cientficas. Isso no invalida o aleatrio na
seleo de fontes porque qualquer pessoa procurada no
anonimato tem alguma coisa importante a dizer. (MEDINA,
1986, p. 19)
Saindo do campo da entrevista, Lima apresenta a importncia da
observao no
momento de captao para a elaborao de um texto (ou matria
jornalstica). Introduz a
idia da observao participante, que quando o observador
estabelece um grau de
interaes dentro dos grupos observados de modo a reduzir
estranhezas mtuas. E
apresenta tcnicas: o da pesquisa participante (tcnica de
observao participante) e o de
pesquisa-ao (supe uma participao dos interessados na prpria
pesquisa organizada
em torno de determinada ao).
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Essa etapa no processo de produo no jornalismo, segundo Lima,
tambm
encontra problemas por conta do esquema regular da imprensa
cotidiana. Para ele, a
grande reportagem deve fugir desse esquema e ater-se a observao
intensa, demorada.
Tudo isso para recuperar a arte da narrao que envolve uma
finalidade que ultrapassa o
meramente informar. Medina completa:
ao lidar com o perfil humanizado, consciente ou
inconscientemente, faz-se presente o imaginrio, a
subjetividade.
Como enquadrar nos limites de um questionrio fechado, de uma
cronologia rgida, de uma presentificao radical, uma
personagem que ultrapassa estes ditames? O dilogo possvel,
se
acontecer, j encontraria esta frmula. O entrevistado passeia
em
atalhos, mergulha e aflora, finge e , sonha e traduz seu
sonho,
avana e recua, perde-se no tempo e no espao. (MEDINA,
1986, p. 43)
E, aqui, mais uma vez aparece a questo da subjetividade na
mensagem
jornalstica, especificamente na etapa de captao. Lima defende
que no se trata mais de
elementos pouco produtivos de evaso e de fantasias gratuitas e,
sim, perceber uma viso
mais completa da realidade. Alm disso, propor ao leitor uma
leitura abrangente dos
acontecimentos, das situaes e dos personagens que esto imersos
num universo
complexo em que o real concreto e imaginrio interpretem-se,
combinam-se.
A captao, alm da entrevista e da observao, encontra na
documentao
(coleta, exame, classificao e uso de dados disponveis na
sociedade, em seus mais
diversos meios), outra ferramenta indispensvel que, de acordo
com Lima, alcanou um
nvel bom nas grandes empresas produtoras. Este nvel o resultado
das criaes dos
departamentos de pesquisa que mantm um respeitvel volume de
informaes
diversificadas. Mas, somente isso, no garante um bom uso delas.
O aproveitamento de
toda essa informao no garante qualidade na produo jornalstica.
Segundo Lima,
existe uma grande produo, mas dada pouca importncia pesquisa e
interpretao
dos fatos.
Para isso, preciso sensibilidade do profissional e condies de
trabalho, para que
seja possvel a ampliao de cada vez mais realidades das que se
justapem na ordem
hierrquica estabelecida sistemicamente e uma abertura para a
incorporao de novas
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lentes (criadas pela cincia, pelas artes) disponveis pela prpria
sociedade em busca de
conhecimento prprio e sobre o mundo.
Feita essa anlise do campo da captao, Lima apresenta os
instrumentos que o
livro-reportagem se utiliza (ou poderia utilizar), uma vez
estando de fora das rotinas
aprisionantes e repetitivas do jornalismo cotidiano.
O primeiro instrumento apresentado o de entrevistas de
compreenso. Segundo
Lima, em sua pesquisa, somente encontrou entrevistas de
compreenso nos livros-
reportagem. Num mesmo livro, vrias entrevistas aparecem e, a
depender do momento,
apresentada dentro de um dos seus subgneros. Ou mesmo uma grande
entrevista que
apresentada, num momento, dentro de um e depois de outro
subgnero. Porm, Lima
sustenta que a entrevista desponta como uma forma de expresso em
si, dotada de
individualidade, fora, tenso, drama, esclarecimento, emoo, razo,
beleza.
Nasce da o dilogo possvel, o crescimento do contato humano
entre entrevistador e entrevistado, que s acontece porque no
h
pauta fechada castrando a criatividade. Em muitas ocasies,
surge o painel de multivozes e o reprter, o autor, apenas um
sutil maestro que costura os depoimentos, interliga vises de
mundo com tal talento que parece natural tal arranjo, como
se
surgisse ali espontaneamente, perfeito. Nessas ocasies, o
jornalista-escritor atinge uma situao mxima de excelncia no
domnio da entrevista: a de tecedor invisvel da realidade.
(LIMA, 1995, p. 107)
Histrias de vida tambm so utilizadas pelo livro-reportagem, seja
em forma
clssica de entrevista (reproduo do dilogo) ou como depoimento
direto. Acontece
tambm uma mescla dessas duas modalidades com narrativa em
primeira ou terceira
pessoa. Lima ainda apresenta as divises dessa modalidade
apresentada por Dulcdia
Buitoni (em Texto-documentrio: espaos e sentidos. Livre-Docncia.
ECA-USP, 1986):
autobiografia (o ator fala por si s); entrevistas biogrficas (o
entrevistador serve apenas
como ouvinte ou tambm interfere na estrutura do relato); fonte
complementar de
pesquisa (as histrias de vida como um meio complementar de
coleta de dados) e o
suporte de pesquisa (as histrias so o principal suporte
elucidador da rede de relaes
sociais).
Mas a observao participante talvez seja a contribuio mais forte
do New
Journalism s tcnicas de captao, pois envolve uma situao quase
impossvel no
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jornalismo cotidiano: a do reprter que mergulha no universo
estudado (s vezes sem se
identificar como reprter ou sem anunciar que escrever sobre
aquilo que vive) de modo
a retratar a realidade com a maior fidelidade possvel, tendo
acesso aos dados de
maneiras muitas vezes informais, mas autnticas.
Um bom exemplo (entre tantos outros) o de Hunter Thompson, que
fez parte da
turma dos Hells Angels por 18 meses para poder escrever o livro
Hells Angels - medo e
delrio sobre duas rodas. O captulo final conta o espancamento de
Thompson pelo
grupo.
Outra ferramenta de captao o resgate de memria, a busca de
riquezas
psicolgicas e sociais. Pela reconstruo ultrapassado o limite da
informao concreta
nua, chegando-se a uma dimenso superior de compreenso tanto dos
atores sociais como
da prpria realidade maior em que se insere a situao
examinada.
Na captao de dados, usa-se tambm a documentao, que consiste em
recolher
dados em fontes reconhecidas para lig-los a fatos aparentemente
isolados. Isso porque o
jornalismo literrio foca mais na questo do que no fato, ou seja,
a partir do fato pode-se
ampliar a compreenso do universo tratado. Mas, apesar do recurso
ser usado pelo
jornalismo cotidiano, no livro-reportagem que os autores se
preocupam com pesquisas
docum