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EDUARDO VIEIRA
KATHERINE FUNKE
YARA VASKU
LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS A CONVENÇÕES
Análise do jornalismo literário do Correio Repórter
Monografia de conclusão
do curso de pós-graduação
Jornalismo contemporâneo:
desafios nas redações do
século 21, promovido pelas
Faculdades Jorge Amado
ORIENTAÇÃO: LEANDRO COLLING
SALVADOR, FEVEREIRO/ 2008
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EDUARDO VIEIRA
KATHERINE FUNKE
YARA VASKU
LIVRES NAS PAUTAS, ALGEMADOS EM CONVENÇÕES
Análise do jornalismo literário do Correio Repórter
ORIENTAÇÃO: LEANDRO COLLING
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APROVAÇÃO
O presente trabalho foi aprovado pelos examinadores em fevereiro de 2008. Declaro,
portanto, aprovados no curso de pós-graduação Jornalismo contemporâneo os alunos
Eduardo Vieira, Katherine Funke e Yara Vasku.
LEANDRO COLLING
Professor ORIENTADOR
NADJA VLADI CARDOSO GUMES
Professora COORDENADORA
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DEDICATÓRIA
Dedicamos este trabalho a
Leandro Colling,
por ter sido o professor que causou
as mais profundas transformações
em nossa maneira de enfrentar o desafio
de ser jornalista no século 21.
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AGRADECIMENTOS
Eduardo Vieira agradece
à família e aos grandes
amigos pelo apoio de sempre.
Katherine Funke agradece
todo o apoio que recebeu,
especialmente de sua mãe.
Yara Vasku agradece a
oportunidade de estudar e conviver
com pessoas muito especiais. Um
agradecimento especial ao filho,
João Pedro, pelo apoio e compreensão.
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E, no entanto, no começo dos anos 60, uma curiosa idéia nova,
quente o bastante para inflamar o ego, começou a se insinuar nos
estreitos limites da statusfera das reportagens especiais. Tinha
um ar de descoberta. Essa descoberta, de início modesta, na
verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse
possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance.
Como um romance, se é que me entendem. Era a mais sincera
forma de homenagear a O Romance e àqueles grandes, os
romancistas, claro. Nem mesmo os jornalistas pioneiros nessa
direção duvidariam sequer por um momento de que o romancista
era o artista literário dominante, agora e sempre. Tudo o que
pediam era o privilégio de se vestir como ele... Eram
sonhadores, claro, mas uma coisa eles nunca sonharam. Nunca
sonharam com a ironia que vinha vindo. Nunca desconfiaram
nem por um minuto que o trabalho que fariam ao longo dos dez
anos seguintes, como jornalistas, roubariam do romance o lugar
de principal acontecimento da literatura. (Wolfe, Radical Chique
e o Novo Jornalismo, pg 19)
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RESUMO. A partir da observação de doze recursos do jornalismo literário, pertinentes
da produção da pauta à edição do texto, o presente trabalho analisa o grau de presença do
jornalismo literário no caderno dominical “Correio Repórter”, do jornal Correio da
Bahia, de Salvador (BA). Parte-se do pressuposto de que as reportagens da publicação
possuem possibilidades de se enquadrar no gênero por suas condições de produção. A
análise recebe o auxílio de uma ampla revisão teórica que define o conceito de jornalismo
literário e detalha os recursos em questão, baseados na categorização feita por Tom
Wolfe e por Edvaldo Pereira Lima. Como resultado, temos que a publicação apresenta
graus bastante variáveis de aplicação dos recursos observados.
ABSTRACT. From a review of the 12 features of literary journalism relating to text
editing and story brief, the present paper analyses the level of presence of literary
journalism in the Sunday supplement 'Correio Reporter' of the newspaper Correio da
Bahia from Salvador (BA). It is assumed that the articles in this publication can be
classed in this genre given the manner in which they are written. The analysis was aided
by a wide theoretical review of literature which defines the concept of literary journalism
and details the resources involved using Tom Wolfe and Edvaldo Pereira Lima's
classification. The conclusion reached was that this publication demonstrates quite
variable degrees of application of the resources observed.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................10
1. O JORNALISMO LITERÁRIO:
UMA REVISÃO HISTÓRICA E TEÓRICA.............................................................. 14
1.1. No Brasil.................................................................................................................... 17
1.2. Nos Estados Unidos .................................................................................................. 22
1.3. Relevância para o campo do jornalismo ................................................................... 24
1.4. Principais contribuições acadêmicas.......................................................................... 29
1.5. Características intrínsecas do jornalismo literário..................................................... 32
1.5.1. A extensão pela pauta............................................................................................. 33
1.5.2. Captação dos dados................................................................................................ 37
1.5.3. A fruição pelo texto................................................................................................. 43
1.5.4. Construção cena a cena.......................................................................................... 47
1.5.5. Diálogos.................................................................................................................. 47
1.5.6. Variação de pontos de vista................................................................................... 48
1.5.7. Autópsia social.........................................................................................................49
1.6. Críticas e limites do jornalismo literário.....................................................................50
2. HISTÓRICO E ANÁLISES....................................................................................... 54
2.1 O Correio da Bahia .....................................................................................................54
2.2 O caderno Correio Repórter ........................................................................................55
2.3 Análises........................................................................................................................57
2.3.1. Edição 3/6/2007 – “Black in Bahia” ......................................................................57
2.3.2 – Edição 10/06/2007 – “Palácio da arte” ...............................................................60
2.3.3 - Edição 17/06/2007 – “Chá sagrado” ...................................................................62
2.2.4. Edição 24/06/2007 – “Quadrilátero do pretérito” ................................................66
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2.2.5. Edição 01/07/2007 – “Heroína esquecida” ...........................................................71
2.2.6 Edição 08/07/2007 – “Guerreiras anônimas” ........................................................76
2.2.7 Edição 15/07 – “Relíquia franciscana” ..................................................................80
2.2.8. Edição 29/07/2007 – “Estigma cruel” ...................................................................91
CONCLUSÃO..................................................................................................................97
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................106
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INTRODUÇÃO
Essa análise das reportagens do caderno Correio Repórter, publicado
semanalmente aos domingos no jornal Correio da Bahia, em Salvador (BA), tem o
objetivo de identificar o possível uso de técnicas de jornalismo literário nas etapas de
produção das pautas, captação dos dados, escrita e edição da reportagem de capa.
Entendemos por jornalismo literário o tipo de jornalismo que se caracteriza “pelo
uso de técnicas de literatura na captação, redação e edição de textos sobre a vida real”
(LIMA, S/D). Trata-se, portanto, de um modo de fazer jornalismo que não se prende a
técnicas que encerram o real em fórmulas pré-concebidas, como é o caso do lead - o
parágrafo inicial de notícias que deve responder a cinco perguntas básicas: como, onde,
quem, por que e quando -, técnica utilizada como padrão nos textos noticiosos.
O jornalismo literário também é conhecido por Novo Jornalismo, nome do
movimento norte-americano dos anos 60. Segundo Lima (S/D), o jornalista Gay Talese,
um dos expoentes desse New Journalism, atualmente denomina o que faz de “literatura
da realidade”. Lima também aponta que no circuito universitário dos EUA a
denominação em voga é “literatura criativa de não-ficção”1.
Este trabalho vai investigar se o jornalismo praticado no caderno Correio
Repórter foge de fórmulas como o lead e adere à literatura de não-ficção. A escolha desse
produto jornalístico para a análise tem motivos: em Salvador, entre os três jornais de
circulação diária, o Correio da Bahia é o único que mantém um caderno dominical de
“reportagens especiais”, o Correio Repórter. A publicação sempre contém uma
reportagem de capa, com nada menos que cinco páginas de texto, no formato standart,
padrão mais utilizado entre os jornais do Brasil.
Justamente por causa desse caderno de domingo, o Correio da Bahia também é o
único jornal que disponibiliza, regularmente, um jornalista para passar 30 dias dedicando-
se apenas a uma grande reportagem, dando-lhe a oportunidade de ‘mergulhar’ no assunto,
1 Neste trabalho, adotamos as diferentes denominações, porque consideramos para a análise a ser
realizada recursos do New Journalism, ou do jornalismo literário, apontadas por um de seus expoentes,
Tom Wolfe, e ampliadas pelo pesquisador brasileiro Edvaldo Pereira Lima.
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trazendo informações sobre diferentes facetas do tema. Aqui, queremos diagnosticar se
esse mergulho também resulta em uma forma diferenciada de texto.
Para nós, é mais provável que o Correio da Bahia adote um maior número de
técnicas de jornalismo literário do que as duas outras publicações, A Tarde e Tribuna da
Bahia, embora este projeto não exclua, de forma alguma, a possibilidade dos outros dois
periódicos também adotarem o jornalismo literário em suas reportagens.
A história do desenvolvimento das indústrias jornalísticas na Bahia, no Brasil e
em outros lugares do mundo, como Estados Unidos, nos mostra que o mercado tem
passado por uma contínua aceleração do processo de produção e difusão industrial de
notícias, passando pela valorização da notícia, sofrendo os impactos da linguagem visual
da televisão e da Internet nas formas escritas de notícias, com uma gradual diminuição do
número de profissionais nas redações e redução generalizada do investimento em
reportagens investigativas ou de aprofundamento.
Contribui para esse cenário o fato de que, para enfrentar o mercado altamente
competitivo e buscar parcerias no campo tecnológico, as antigas empresas
exclusivamente jornalísticas têm se aliado ou simplesmente tem sido vendidas a grandes
conglomerados. Essas ligações com o poder econômico se refletem no conteúdo e na
abordagem do noticiário. Na Europa, já no início do século 20, os jornais foram
comprados por indústrias siderúrgicas e químicas, o que influenciou o posicionamento da
imprensa sobre o fascismo.
É o que se passa agora nos Estados Unidos, onde a indústria do entretenimento e do
comércio on line têm comprado as empresas jornalísticas. O jornalismo passa a ser
apenas uma porcentagem menor, muito menor, de lucro dentro do grande negócio de
oferecer informação e entretenimento ao público. Se não dá lucro, também não merece
investimentos; além disso, não é interessante para os grandes empresários financiar
reportagens investigativas ou de aprofundamento, que podem esclarecer leitores sobre
suas próprias falcatruas (Kovach e Rosenstiel, 2003).
As conseqüências desses fenômenos da industrialização do processo de produção
de notícias para o aumento da superficialidade do trabalho jornalística do ponto de vista
da contextualização, da abrangência, do tempo dedicado à captação da reportagem e do
cuidado com a escrita do texto já foram analisadas em outros trabalhos por diversos
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pesquisadores do campo. Entre eles, especialmente Cremilda Medina (1988; 2003) tem
pontuado o distanciamento existente entre o jornalismo convencional da complexidade e
a pluralidade de vozes da vida real. Também Edvaldo Pereira Lima (1995) aponta a
incapacidade do jornalismo cotidiano comumente praticado nos jornais diários em
abarcar as demandas da sociedade contemporânea.
Todos esses fatores contribuem para que o jornalismo literário passasse a ser
entendido como gênero2 mais aplicável a livros-reportagem ou a raros cadernos e
reportagens “especiais” dos periódicos impressos. Nesses últimos casos, contam
positivamente projetos editoriais dos próprios jornais, sua estrutura e sua meta em relação
ao tipo de público que desejam alcançar.
Para analisarmos a presença de técnicas de jornalismo literário no texto do
caderno Correio Repórter, esta pesquisa recorrerá especialmente à retomada teórica do
movimento conhecido como New Journalism – o jornalismo literário praticado nos
Estados Unidos dos anos 60 - feita por um de seus mais conhecidos integrantes, Tom
Wolfe, no prefácio ao livro Radical chique e o novo jornalismo (2005), assim como as
contribuições feitas posteriormente pelo pesquisador brasileiro Edvaldo Pereira Lima
(1995), no livro Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e
da literatura3.
A análise levará em consideração doze recursos, categorizados nas etapas de
construção da pauta, captação dos dados, escrita e edição do texto. Quanto à pauta,
analisaremos as três liberdades elencadas por Edvaldo Pereira Lima (temática, temporal e
2 Considerar o jornalismo literário como gênero não é unanimidade entre os pesquisadores. Aqui,
adotamos a classificação de Fernando Resende (2002), que admite a formação de uma nova configuração
discursiva, ou seja, de um novo gênero, a partir do cruzamento entre a literatura e o jornalismo, cada qual
compreendido igualmente como gênero isolado, na perspectiva de Tzvetan Todorov, autor adotado por
Resende. Outros autores, como Raymond Williams, possuem conceitos ainda mais ampliados. Williams
liga os gêneros a condições contextuais sócio-históricas, como os folhetins no final do século XIX e início
do século XX. No Brasil, diferentes visões do jornalismo como gênero e dos gêneros jornalísticos têm
marcado as pesquisas no campo. Enquanto José Marques de Melo considera a existência de três gêneros
jornalísticos – informativo, opinativo e interpretativo -, Luís Beltrão acrescenta ainda a existência do
gênero diversional, ligado à diversão. 3 Lima volta sua preocupação, neste livro, a mostrar quais as técnicas do New Journalism podem
ser aplicadas ao formato de publicação atualmente mais comum para o jornalismo literário: o livro-
reportagem. Compreendemos, entretanto, que o mesmo conjunto de técnicas pode estar presente em outros
formatos, posto que originalmente o movimento de jornalistas norte-americanos era publicado em jornais
impressos. Para Lima, “a questão que se levanta, então, é de potencialidade do jornalismo de prestar um
serviço mais refinado”.
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de angulação). Essas três liberdades também são categorias criadas por Lima para
possibilitar a avaliação de produções de jornalismo literário.
Lima também categorizou tipos de captação de dados possíveis, dentre os quais
estaremos atentos à técnica da observação participante, durante a análise do Correio
Repórter.
Quanto ao texto, serão observadas oito técnicas apontadas por Tom Wolfe e
Edvaldo Pereira Lima. Wolfe categoriza quatro recursos emprestados do romance realista
que caracterizam o texto do jornalismo literário. São eles: construção cena a cena,
diálogos completos, alternância de ponto de vista e autópsia social.
Já Pereira Lima nos apresenta, em termos de edição do texto: lições de cinema
(cortes de tempo e espaço no lugar da maneira tradicional de construção do texto); lições
de abertura (aquecer os momentos iniciais para prender o leitor, através da escolha de
algum elemento da narrativa ou a apresentação do assunto do geral para o particular);
lições de passagem (quebra de ritmo, junção de sequências, conexão de conflitos em
evolução); lições de término e retorno (finalizar com desfecho em forma de obra aberta,
ou seja, deixar algumas perguntas ou possibilidades no ar).
Buscaremos o uso desses recursos em oito edições Correio Repórter, publicadas
nos meses de junho e julho de 2007. A escolha de oito edições consecutivas, nos dois
meses relatados, ocorreu no mês de agosto do mesmo ano, de forma absolutamente
aleatória. Não levou em consideração qualquer indicação dos autores ou editores da
publicação, que tampouco sabiam estar sendo avaliados.
Dessa forma, a seleção assim realizada contribui para que possamos verificar a
presença de recursos do jornalismo literário nas reportagens escritas atualmente pela
equipe do caderno. A análise de oito edições leva como princípio de que é preciso um
conjunto consecutivo e expressivo de publicações para conseguirmos pontuar
características comuns ou contraditórias das reportagens.
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1. O JORNALISMO LITERÁRIO: UMA REVISÃO HISTÓRICA E TEÓRICA
A origem da relação existente entre o jornalismo e a literatura, muitas vezes, é
associada ao surgimento do famoso New Journalism, corrente que passou a ganhar
espaço em jornais e, aos poucos, no meio literário norte-americano no ano de 1962,
quando o romance ainda reinava como gênero maior, sinônimo de prestígio para os
romancistas. Neste período, uma nova corrente de escritores começou a preencher as
redações jornalísticas com o intuito de tornar a narrativa destes periódicos mais viva,
pulsante. A idéia era revolucionar a forma de se escrever, que era julgada como objetiva
ao extremo e sem atrativos para o público leitor, que já estaria cansado da mesmice.
Paralelamente, estes novos escritores também tinham o interesse de retirar o
prestígio exacerbado dos romancistas. Eles queriam reconhecimento para a então nova
forma narrativa. Entre os nomes mais consagrados do período, estão: Tom Wolfe, Jimmy
Breslin, Gay Talese, Truman Capote, entre muitos outros.
Mas o início desse intercâmbio entre jornalismo e literatura remonta de muito
antes e não está diretamente associado ao estabelecimento do New Journalism. Para Ciro
Marcondes Filho, em Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos, como traz o
autor Felipe Pena (2006), em Jornalismo literário, a influência da literatura na imprensa
está presente nos chamados “primeiro e segundo jornalismos”. O primeiro momento diz
respeito à pré-história do jornalismo, entre 1631 e 1789. A fase pode ser classificada
como de economia elementar, produção artesanal, com periódicos semelhantes ao livro.
Já o segundo momento é denominado de primeiro jornalismo, que compreende o período
entre 1789 e 1830. A fase traz conteúdo literário e político para a imprensa. As notícias
surgem mais críticas e são elaboradas, principalmente, por escritores.
Trata-se do século XVIII e XIX, quando escritores com prestígio reconhecido
passaram a chegar às redações. Eles não somente escreviam, como ocupavam os mais
variados cargos dentro dos veículos. Nesse período, o folhetim é um dos elementos mais
importantes, que vai estreitar o diálogo do jornalismo com a literatura. Anteriormente, o
termo era utilizado para denominar os suplementos destinados a temáticas diversas, como
a crítica literária. Mas, posteriormente, ele assumiu a característica do romance realista.
Os mais variados escritores passaram a publicar folhetins nos jornais, aumentando, dessa
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forma, popularidade e rendimentos. Além disso, também ganhava espaço a crônica e os
contos.
Cabe uma explicação sobre os termos ‘folhetim’ e ‘crônica’. No
século XIX, esses dois termos são usados indistintamente para
designar o que hoje classificamos de crônica. José de Alencar
refere-se às crônicas semanais para o Correio Mercantil, que
abordam a vida política e cultural na Corte, como o seu ‘folhetim
da semana’. O termo folhetim designa, também, a seção do
jornal que vem ao pé da página, separado do corpo das matérias,
contendo assuntos diversos, crônicas e folhetins propriamente
ditos – isto é, os romances feitos especificamente para serem
publicados em capítulos. (ARNT, 2001, pgs. 16 e 17)
Os romances publicados por partes faziam sucesso não somente entre os leitores,
mas também com os empresários da comunicação, que viam suas vendas crescerem com
a utilização sistemática do recurso. O folhetim pode ser classificado como herdeiro do
romance realista, apenas com uma nova forma de veiculação. Mas o recurso guardava
algumas características específicas, como aponta Felipe Pena (2006). O folhetim era
dirigido para um grande e bem diversificado público. Diante dessa característica,
precisava de uma linguagem simples e acessível. A ação era sempre interrompida em um
momento de grande importância da narrativa, com o intuito de chamar a atenção do leitor
para a nova edição.
Também era comum a utilização do recurso da repetição, para deixar o público
sempre por dentro de todos os acontecimentos. Ainda nesse contexto, a trama poderia ser
ampliada ou reduzida, dependendo do interesse do leitor. Características bem comuns às
telenovelas, que bebem das estratégias do folhetim. Mas os elementos citados não
significavam, necessariamente, baixa qualidade dos textos. A narrativa costumava ser
muito bem construída, assim como os seus personagens.
A presença dos escritores deixou o jornal, além de informativo, mais atraente. A
atenção destes profissionais estava voltada para problemas do cotidiano e tensões sociais.
Grandes nomes da literatura começaram a ganhar as páginas dos periódicos, como
Charles Dickens, na Inglaterra, Honoré de Balzac, na França, Machado de Assis e José de
Alencar, no Brasil, entre outros, que serão detalhados em tópicos seguintes. Dickens, que
tem como obras emblemáticas Oliver Twist (1838) e David Copperfield (1849), é um dos
atores mais engajados em críticas sociais. A miséria do proletariado inglês é marca em
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suas obras, assim como toda a problemática social inglesa que assolava o país naquele
período.
Os escritores, no afã de retratarem a vida como ela é – pelo
enfoque literário realista –, não procediam assim em nome do
dogmatismo do movimento, mas por serem observadores de uma
realidade social que eles, na condição de jornalistas, tinham por
função registrar – e o que observaram era o lastro de miséria de
um lado e, de outro, a dissolução dos costumes deixados no
rastro do progresso da Revolução Industrial. (ARNT, 2001, p.
13)
Como aponta Héris Arnt, na obra A influência da literatura no jornalismo: o
folhetim e a crônica, a migração desses escritores para jornais possibilitou, também, a
democratização da cultura letrada. Uma grande parcela de leitores não tinha como
comprar livros caros. Eles encontraram, no jornal ou revista, uma forma de ter contato
com a obra desses autores.
É nesse momento histórico que se estreita a relação entre jornalismo e literatura.
Esse fazer jornalístico está relacionado ao desenvolvimento da cultura de massa no século
XIX, com uma sociedade ávida por informação. Assim como foi, também, o surgimento
do próprio jornalismo, que surge da grande necessidade pela informação. Alguns autores,
como Bill Kovach e Tom Rosenstiel, segundo Felipe Pena (2006), classificam os relatos
orais como uma forma de pré-jornalismo. Período este muito relacionado à democracia
grega, quando a oratória reinava.
O fato é que os relatos orais são a primeira grande mídia da
humanidade. O historiador Peter Burke classifica-os como um
meio de comunicação específico e importante, mas que têm
recebido pouca atenção da historiografia oficial, apesar da vasta
literatura sobre a oralidade... Segundo Burke, ‘as possibilidades
do meio oral eram conscientemente exploradas pelos mestres do
que era conhecido no século XVI como a retórica eclesiástica.
(PENA, 2006. Pgs. 26 e 27)
A mudança da cultura oral para a escrita acontece justamente com a invenção dos
tipos impressos, uma das bases do jornalismo moderno. A primeira fase, como já foi
observada, vai aparecer a partir do ano de 1631. Os primeiros jornais, que contavam com
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periodicidade, surgiram na Alemanha, nos Países Baixos e na Inglaterra. Aqueles mais
antigos são datados de 1609, em Augsbourg e Strasbourg.
O jornalismo e a literatura faziam a ponte entre a informação e a opinião. Naquele
período, os escritores introduziram pilares do jornalismo moderno. Estavam presentes nas
páginas de notícia, opinião, divertimento e cultura. No século XIX, a dualidade entre
jornalismo e literatura estava cada vez mais visível.
1.1. No Brasil
A relação entre jornalismo e literatura no Brasil surgiu a partir do ingresso de
escritores como José de Alencar e Machado de Assis nos veículos de comunicação. Mas
o contexto histórico era bastante diferenciado do que acontecia na Europa no mesmo
período. No velho continente, os escritores buscavam mudanças na estrutura social, o que
não acontecia no Brasil. A política de escravidão e dos latifundiários cortou o País até o
século XX, impedindo a industrialização.
José de Alencar aborda os temas da ambição, do amor ao
dinheiro, da ganância semelhante ao escritor francês. Só que, em
Balzac, estes temas são tratados com a veemência de quem vivia
as contradições do sistema capitalista. Alencar não poderia
conceber personagens com a mesma força, vivendo num Rio de
Janeiro onde sequer o dinheiro era moeda corrente. Seus
personagens não poderiam ser considerados fracos, comparados
aos de Balzac; eles retratavam a realidade social em que estavam
inseridos. (ARNT, 2001, p. 48)
José de Alencar iniciou a carreira de jornalista em 1850 como colaborador do
Jornal do Commercio e do Correio Mercantil, quando assinou a famosa coluna Ao correr
da pena, produzindo narrativas sobre o Rio de Janeiro. Quanto ao conteúdo, os folhetins
de José de Alencar se assemelhavam aos textos que atualmente são chamados de
crônicas. Em 1885, assumiu o cargo de editor-chefe no Diário de Notícias, do Rio de
Janeiro. Foi neste veículo que publicou o primeiro romance: Cinco minutos.
Posteriormente, lançou A viuvinha, nos mesmos moldes. Começou a se dedicar à política
e literatura e passou a escrever peças teatrais. O autor também conta com obras ligadas a
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temas indígenas. Entre outros clássicos de Alencar, estão os muito famosos O guarani,
lançado em 1857, Lucíola, em 1862, e Iracema, publicado em 1865.
Um outro marco da dualidade pode ser considerado a publicação, em folhetim, de
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, no Correio
Mercantil. O texto esteve nas páginas do jornal entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho
de 1853. Esta forma de se fazer jornalismo perdurou até o ano de 1907.
Outro escritor de extrema importância para o período foi Machado de Assis. O
autor observava os interesses pessoais e mesquinhos da sociedade brasileira e é apontado
como aquele que levou o gênero a um amadurecimento no país.
Com sua ironia, talvez tenha sido o único brasileiro que
conseguiu examinar a sociedade sem paixões. Seu humor
destacava-se mais nas crônicas do que nos romances, conferindo
um tom grave a acontecimentos leves, às coisas do dia-a-dia,
brincando com as coisas sérias. Colocou seu olhar lúcido e
melancólico em tudo que escreveu. (ARNT, 2001, p. 71)
Machado de Assis, como jornalista, fazia a cobertura do Senado brasileiro, além
de escrever para periódicos. Em 1881, o escritor abandonou o romantismo da primeira
fase de sua obra ao publicar Memórias póstumas de Brás Cubas, considerado o início do
romance realista no Brasil. Entre as muitas obras, se destacam Quincas Borba, em 1892,
Dom Casmurro, em 1900, Esaú e Jacó, em 1904, e Helena, lançado anteriormente, em
1876, entre muitos outros livros.
A evolução do jornalismo literário brasileiro prossegue na virada do século XIX
para o XX, mas já em uma nova era. É nesse período que a narrativa jornalística, na
forma de reportagem, busca um caminho próprio, não demasiadamente ligado à literatura.
A narrativa jornalística vai começar a parar, também, nas páginas dos livros. Um
exemplo característico dessa transformação pode ser encontrado na clássica obra Os
sertões, do autor Euclides da Cunha, que foi lançada em 1902.
Euclides da Cunha esteve situado na linha entre ficção e realidade para compor a
sua obra. Ele bebe de conhecimentos vindos do século anterior, mas já traz no seu texto o
potencial que a reportagem ganharia no formato de livro. A sua narrativa pendia, nesse
momento, mais para a literatura do que para o jornalismo propriamente dito.
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Rara combinação de inteligência aguçada, erudição e capacidade
de coleta de campo, Euclides vai cobrir o confronto de Canudos,
para O Estado de S. Paulo, em agosto de 1897, levando na
bagagem uma qualidade que o diferencia essencialmente dos
demais correspondentes: a habilidade para situar um evento no
contexto que o cerca, demonstrando para o leitor o sentido mais
profundo do que retrata... Mas a ótica do autor alarga-se também
em torno dos espaços e das condições imediatas que cercam o
conflito, revelando um cuidado de documentação que seria típico
aos bons repórteres de profundidade do futuro. (LIMA, 2004.
Pg. 213)
A cobertura de O Estado de S. Paulo foi considerada como grande diferencial em
relação aos outros veículos que também enviaram correspondentes. A intenção era a de
transcender a notícia básica, fugindo dos comunicados oficiais e de tudo o que deixasse o
tema raso. Um encontro visceral com a realidade foi evidenciado nessa cobertura.
Um outro marco é a narrativa de João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto
Coelho Barreto. O texto do autor é caracterizado pela reportagem de campo no espaço
urbano, entre 1900 e 1920. Em uma série de reportagens na Gazeta de Notícias,
evidenciava temas como: o uso do automóvel, a chegada do cinema, o fim da boemia e a
imprensa em seu novo caráter industrial. Mas, como aponta Edvaldo Pereira Lima, a
contribuição do autor não foi suficiente para marcar uma forma jornalística. Ainda assim,
o pioneirismo dele, marcado por uma ampla observação da realidade, é de grande
importância.
Após a década de 20, a evolução da reportagem fica, de certa forma, estagnada
até o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa renovação passa a acontecer no período entre
66 e 68. Anteriormente, na década de 30, a produção ficcional na linha do realismo social
inibiu o surgimento de uma corrente de jornalismo voltada para a profundidade.
Ao contrário dos Estados Unidos dos anos 60, quando a
literatura vacilou em retratar a cirurgia plástica que no plano dos
costumes remodela a face da nação, deixando espaço para uma
ambiciosa geração de jornalistas em busca de ruptura de limites,
aqui, antes da Guerra, a instituição literária coibira qualquer
iniciativa. (LIMA, 2004. Pg. 221)
Um outro fator que é apontado como inibidor da reportagem é a ditadura do
Estado Novo, responsável por censurar os meios de comunicação. Ao mesmo tempo,
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questiona-se o motivo que levou essas obras a não vencer a barreira da censura, como
aconteceu com muitos livros de ficção. Após a queda do Estado Novo, contudo, a
imprensa passou por uma grande revolução. Um dos marcos foi o auge alcançado pela
revista O Cruzeiro, em 1950. Além disso, cresceu, de forma considerável, a quantidade
de repórteres que investiam em livro-reportagem, como David Nasser, Joel Silveira e
Edmar Morel.
Mas foi em 1966 que surgiu um produto que revolucionou o mercado editorial
brasileiro. A revista Realidade, publicação mensal pioneira da Editora Abril, fez muito
sucesso diante de sua cobertura ambiciosa. As temáticas abordadas por Realidade eram
as mais variadas e não ficavam presas aos fatos do cotidiano. Os acontecimentos eram
sempre ultrapassados por linguagens mais universais. Mas os recursos também contavam
com suas limitações e não apareciam de forma tão revolucionária como os responsáveis
pela base do New Journalism.
Realidade primou pelo texto solto que rompia com as fórmulas
tradicionais do jornalismo no Brasil. Não chegou a atingir o grau
de experimentalismo ousado que alcançou o New Journalism,
mas sem dúvida veiculou um texto de ruptura para com o
próprio texto do jornal e da revista. Não encontramos nas
edições até 1968, propostas tão radicais quanto o fluxo de
consciência, por exemplo. Geralmente, também não havia
alternância entre vários pontos de vista numa mesma matéria.
(LIMA, 2004, p. 230)
Uma outra característica que faz Realidade se distanciar de tais características é o
fato de englobar uma gama variada de assuntos em uma mesma edição, fato que dificulta
o aprofundamento das temáticas. Em um livro-reportagem, um determinado assunto vai
contar com um grau de detalhamento muito maior, fazendo com que, dessa forma, ele
rompa ainda mais com o que costumava ser publicado na grande imprensa.
Assim como Realidade chegou com uma proposta inovadora, em 1966, o mercado
editorial brasileiro de hoje conta com publicações especializadas voltadas para o
chamado jornalismo literário, que bebe em muitos dos recursos do New Journalism. No
Brasil, como aponta Felipe Pena (2006), o jornalismo literário pode ser classificado de
diversas maneiras. Alguns autores defendem que essa modalidade de jornalismo refere-
se, simplesmente, ao momento em que escritores assumiram funções dentro das redações.
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Outros autores consideram que pode ser relacionada àqueles profissionais que faziam
críticas literárias nos periódicos. Uma outra corrente defende que o conceito está,
justamente, na modalidade do New Journalism. Existem, ainda, aqueles que creditam o
jornalismo literário aos romances-reportagens e à ficção-jornalística.
O brasileiro Joel Silveira é considerado, por alguns autores, como o pioneiro na
utilização do estilo conhecido como jornalismo literário no país. Como aponta o autor
Felipe Pena (2006), ele defendia a idéia de que a grande reportagem era uma espécie de
porta voz para a ditadura do Estado Novo, que preenche a história nacional de 1937 a
1945.
No mercado brasileiro atual, o jornalismo literário tem espaço definido.
Publicações noticiosas como a revista Piauí e alguns textos publicados na edição
brasileira da Rolling Stone são alguns dos exemplos de publicações que seguem essa
linha. A Rolling Stone completou um ano no mercado no mês de outubro de 2007. Além
de reproduzir textos da versão norte-americana, a revista conta com uma redação fixa no
Brasil. Alguns dos textos apresentados conseguem fugir da lógica padronizada tanto
criticada pelos jornalistas literários. Já a Piauí conta com uma proposta mais ampla, com
uma estrutura ainda mais voltada para a prática e exercício do jornalismo literário.
Antes da existência dessas publicações, contudo, o mercado de livros-reportagem
já apresentava títulos que investiam na temática, como Abusado, de Caco Barcelos,
publicado em 2003. O livro figurou nas listas dos mais vendidos e trazia relatos sobre os
bastidores da formação de uma quadrilha. Outros autores, como Ruy Castro e Fernando
Morais, estreitaram ainda mais a relação jornalismo e literatura ao apresentarem textos
claramente inspirados na área literária. Castro conta com biografias e grandes textos que
se transformaram em livros-reportagem, como Chega de saudade: a história e as
histórias da Bossa Nova (1990), O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues
(1992), Flamengo: vermelho e negro (2004), Carmen: uma biografia (2005), entre
outros. Fernando Morais assinou o famoso Olga (1985), além de Chatô, o rei do Brasil
(1994), Corações sujos (2000), entre outros.
Uma outra evidência do interesse do mercado editorial brasileiro pelo jornalismo
literário está no fato da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do Brasil,
dedicar uma coleção exclusivamente à temática. O selo Jornalismo Literário chegou ao
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mercado para reeditar grandes reportagens do século XX, entre elas: Hiroshima, de John
Hersey, A sangue frio, de Truman Capote, Chico Mendes - crime e castigo, de Zuenir
Ventura, e Radical chique e o novo jornalismo, de Tom Wolfe, que traz um texto
considerado como o manifesto do New Journalism.
Além das publicações específicas, existem aqueles jornalistas que, mesmo com
todas as dificuldades impostas pelas rotinas produtivas, conseguem elaborar textos
diferenciados, com um mergulho maior no tema, em seus personagens, com outras
perspectivas. É o caso da jornalista Eliane Brum, que escreve para a revista semanal
Época. Eliane traz perfis e textos mais elaborados para a publicação, além de ter editado
o livro A vida que ninguém vê, uma narrativa voltada para personagens anônimos para o
grande público.
Uma outra evidência importante no cenário nacional é o surgimento da Academia
Brasileira de Jornalismo Literário, uma iniciativa dos jornalistas-professores Edvaldo
Pereira Lima, Sérgio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi, que também criaram
e coordenam o portal Texto Vivo, Narrativas da Vida Real. Com sede em São Paulo, a
academia ministra cursos de especialização em jornalismo literário, além de trazer textos
e reflexões no portal Texto Vivo. Neste ano, os professores colocaram no mercado o livro
Jornalistas Literários – narrativas da vida real por novos autores brasileiros.
Organizado por Sergio Vilas Boas, a obra conta com 16 narrativas de alunos que
participaram do curso de pós-graduação da academia, entre o final de 2005 e o início de
2007.
1.2 Nos Estados Unidos
Muito do que se relaciona ao jornalismo literário produzido hoje está em sintonia
com os preceitos e com os recursos do New Journalism, modalidade jornalística surgida
em 1962, como aponta Tom Wolfe em Radical chique e o novo jornalismo. O livro, além
de trazer três narrativas do autor, apresenta o chamado manifesto do gênero, escrito em
1973. Wolfe começou a freqüentar a redação do New York Herald Tribune em 1962,
quando os romancistas eram as grandes estrelas dos jornais. A idéia era assegurar para o
novo jornalismo o lugar de destaque ocupado pelo romance.
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Mas a ligação moderna entre jornalismo e literatura, considerada a prévia do New
Journalism, está relacionada com a proximidade da produção literária com o engajamento
político de escritores como Upton Sinclair e Jack London, como aponta Carlos Régis
Ferreira em Literatura e jornalismo, práticas políticas (2003). Estes autores promoviam
palestras para proletários e intelectuais norte-americanos. O termo jornalismo literário,
inclusive, foi utilizado pela primeira vez em 1887 nos Estados Unidos por Matthew
Arnold para descrever o estilo do autor Pall Mall Gazette, considerado como atrevido,
vívido, pessoal e reformista, entre outras características apresentadas (FERREIRA, 2003,
p.289).
Para alguns historiadores, Daniel Defoe pode ser considerado como o primeiro
jornalista literário moderno. Ele escrevia, no começo do século XVIII, ensaios e crônicas
na revista Review e ficou reconhecido, principalmente, pelos romances Robinson Crusoé
(1719) e Moll Flanders, como aponta Felipe Pena (2006).
Mas é com base nas propostas e nas idéias de Tom Wolfe e seus contemporâneos
que a idéia de novo jornalismo ganha força atualmente. A iniciativa que povoou os anos
60 tinha como objetivo fazer jornalismo para ser lido como romance, deixando os textos
menos “beges” e com uma quantidade muito maior de atrativos para o leitor.
O que me interessava não era simplesmente a descoberta da
possibilidade de escrever não-ficção apurada com técnicas em
geral associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era a
descoberta de que é possível na não-ficção, no jornalismo, usar
qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio
ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo
tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto... para
excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.
(WOLFE, 2005, p. 28)
A nova modalidade que surgia contava com grande mudança na rotina dos
profissionais que estavam dispostos a seguir com as propostas. A nova reportagem era
mais detalhista, ambiciosa e, sobretudo, intensa. Não contava com regras “sacerdotais”. O
jornalista passava dias ou meses para apurar um determinado fato. A relação com as
fontes eram amplificadas ao máximo, para que os relatos ficassem com diversos detalhes
e da maneira mais rica possível para o futuro texto. Mas Wolfe considera que o novo
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jornalismo não poderia ser considerado como um movimento, já que não contava com
agremiações e associações.
A partir de 1966, o New Journalism passou a ganhar ainda mais força,
principalmente depois que a vida norte-americana se transformou no período que envolve
o pós-guerra. Segundo ele, os romancistas não deram a devida importância aos
acontecimentos, o que gerou uma lacuna no mercado norte-americano, espaço
ligeiramente preenchido pelo novo jornalismo.
Antes do manifesto de Wolfe, escritores já colaboravam muito com o novo
jornalismo. Em 1946, John Hersey publicou o aclamado Hiroshima, que trazia uma
narrativa com toques de romance para contar a tragédia com a bomba atômica na cidade
japonesa. A idéia do escritor foi a de apresentar a história a partir do relato de seis
sobreviventes. Dezenove anos mais tarde, a estratégia foi repetida com o também célebre
A sangue frio, de Truman Capote. Para o escritor, o livro não era jornalismo, mas um
romance de não-ficção. A sangue frio traz à tona a história de dois bandidos que
assassinaram uma família na cidade de Kansas, nos Estados Unidos.
Para Wolfe, a tática de Truman Capote em classificar a obra como um romance de
não-ficção nada mais era do que dar ao trabalho a chancela do gênero literário que era
dominante no período. Mas o que vai motivar esses novos escritores em suas obras é,
como foi abordado anteriormente, uma insatisfação com as diversas regras de
objetividade que reinavam nas redações. O lead era um dos elementos mais combatidos
por esses autores.
Outro nome muito marcante no período é o de Gay Talese, com obras importantes
como Fama e anonimato, A mulher do próximo e O reino e o poder.
1.3 Relevância para o campo do jornalismo
A adoção de técnicas da literatura pelo jornalismo, com a criação de uma nova
configuração discursiva aqui chamada de jornalismo literário ou literatura de não-ficção,
tem trazido contribuições bastante relevantes para o campo do jornalismo. Tanto em
termos de práticas cotidianas quanto na produção de reflexões e pesquisas sobre a
ampliação do alcance das suas funções sociais, especialmente as de ferramenta para o
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conhecimento do mundo real e de instrumento para a transformação de hábitos humanos
já incompatíveis com o nível de desigualdade de renda e o grau de estafa do meio
ambiente do planeta.
Uma das contribuições mais palpáveis, do ponto de vista do texto concreto, é o
aumento do prazer da leitura, provocado pelo apuro do texto jornalístico desenvolvido
com apoio da arte da literatura. O uso de formatos geralmente utilizados para descrever
situações imaginárias tornam as reportagens mais prazerosas, mais saborosas e, com isso,
e o leitor fica mais “preso” ao texto.
Justamente por identificar esse potencial, Tom Wolfe - um dos principais nomes
do New Journalism - estabeleceu como meta principal, ao modificar sua maneira de
escrever as reportagens, usar técnicas da literatura para “excitar tanto intelectual como
emocionalmente o leitor” (2005, p.28). E, assim, prender leitores, dialogar com eles,
mostrando o quanto a própria realidade pode ser fustigante, incrível e fantástica quando
reportada com o uso de uma linguagem mais próxima da literatura.
Resgatar o prazer da leitura era para Wolfe uma questão de honra quando ele
começou a escrever literatura de não-ficção para a editoria de cidade e para o suplemento
dominical New York do jornal Herald Tribune ou a revista Esquire. Especialmente no
caso do New York, Wolfe sentia necessidade de dar aos leitores algo mais interesse para
ler aos domingos, em lugar de entendiá-los com “caramelos mentais” (2005, p.30), textos
sem qualquer atrativo escritos na mesma época:
Os leitores não sentiam nenhuma culpa em deixá-los de lado,
jogá-los fora ou nem olhar para eles. Nunca hesitei em
experimentar qualquer recurso concebível capaz de reter de
algum modo o leitor por mais alguns segundos. Eu tentava berrar
no ouvido dele: Fique aqui!... (WOLFE, 2005, p.30).
O uso de técnicas da literatura diferenciava o jornalismo de Tom Wolfe e seus
colegas contemporâneos de New Journalism dos demais textos jornalísticos na década de
60 do século passado, que utilizavam uma linguagem resultante do processo de
neutralização, objetivização, apagamento das marcas do autor e enxugamento do texto
iniciado no final do século 19 e início do século 20.
Foi naquela época que a notícia passou a ser um “produto a venda”, como explica
Cremilda Medina (1988). Os jornais impressos consolidavam-se então como negócio
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comercial e não mais tanto como expressão de posicionamentos políticos de seus donos.
No lugar das reportagens, dos folhetins, das crônicas e do jornalismo de opinião, nascia a
notícia como baliza da “informação pura”, a informação apresentada de forma direta e
supostamente objetiva e imparcial.
A invenção do lead pelos jornalistas dos Estados Unidos trouxe impactos
fortíssimos para a forma de escrita de uma notícia. A resposta às seis perguntas básicas (o
que, quem, quando, como, onde e por que) logo no primeiro parágrafo do texto informava
o leitor em poucos segundos sobre o que se tratava a história. A notícia deveria então
seguir em tom neutro e objetivo, onde o autor se apaga como sujeito que compartilha o
mesmo tempo e espaço que os fatos noticiados e se torna mero intermediador de
informações.
Não há, assim, lugar para o jornalista que gosta de contar a realidade com a ajuda
de técnicas da literatura. A conseqüência é a criação de uma “ilusão de autonomia” do
referente, ou seja, do fato reportado, com o ocultamento do “processo social que
possibilitou a notícia” e a geração de um “efeito de objetividade” (SATO, 2002, p.31).
Com o tempo, esse tipo de jornalismo transformou o repórter em difusor de
declarações, acontecimentos e documentos oficiais, isto é, matéria-prima noticiosa que as
estruturas de governo e as grandes empresas oferecem para a imprensa como notícia. A
consolidação das assessorias de imprensa como serviços produtores de press releases faz
parte do mesmo sistema de indústria informativa voltada a difundir o discurso oficial
(MEDINA, 1988).
Somadas à redução do número de profissionais nas redações, ao investimento
cada vez mais raro em reportagem e à própria dinâmica mercadológica do jornalismo
como negócio pouco lucrativo de um pool de empresas conglomeradas, fórmulas como o
lead acabaram substituindo a reportagem de rua pelo jornalismo de redação, em que toda
a etapa de apuração ou captação de dados é realizada dentro do prédio da empresa onde
trabalha.
Assim, a “alma encantadora das ruas”, tão importante para repórteres como João
do Rio (criador da expressão), foi sendo gradualmente substituída por um jornalismo
menos preocupado com reportar a realidade com todos os seus detalhes e contradições. A
valorização da notícia em detrimento da reportagem culmina, no final do século 20 e
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início do século 21, em textos noticiosos escritos sem que o repórter ao menos pise na
rua, bastando usar o telefonema e a Internet para elaborar leads tecnicamente perfeitos
(MEDINA, 2003, p.79).
Com a redução do número de profissionais nas redações e da estrutura disponível
e o crescente domínio do mercado por um número menor de empresas de comunicação
(muitas vezes, ligadas a negócios milionários de outros ramos, como telefonia e
entretenimento, como já ocorre predominantemente nos Estados Unidos), a eficiência tem
sido geralmente medida pela produtividade de notícias, ainda que superficiais e
preliminares, e não tanto pelo aprofundamento de cada fenômeno social.
A capacidade do jornalismo de tornar-se ferramenta para o conhecimento do
mundo, ou de representar a complexidade do real, reduz-se na notícia à resposta às
perguntas mais imediatas do receptor da mensagem. A fragmentação dos fatos em
notícias isoladas e superficiais, corroborada pela compartimentação dos jornais impressos
em editoriais, não ajuda o leitor a compreender o mundo e realizar articulações entre
diferentes temas direta ou indiretamente interligados, como decisões políticas e vida
cotidiana, incentivos à agricultura e a favelização das periferias urbanas etc.
Se esse tipo de jornalismo deixa os repórteres mais sensíveis com os
acontecimentos extra-muros da redação muitas vezes frustrados, como bem registra
Cremilda Medina (2003, p.99), os leitores também já passam a exigir produtos melhores,
ao menos no que tange ao jornalismo impresso, que sofre o impacto do deslocamento das
notícias para veículos como maior capacidade de informá-las em tempo real, como a
Internet, o rádio e a televisão.
Em 1993, a pesquisa Truths to tell - Youth and Newspaper, realizada nos Estados
Unidos pela ASNE Literacy Comitee Report4, mostrou que a pior forma de atrair leitores
é a notícia escrita e organizada de maneira convencional e que os leitores ficam mais
tempo em páginas com notícias escritas com auxílio das técnicas literárias. O estudo
mostrou também que os textos que fazem algum esforço para explicar motivos, contextos
e históricos de um fato têm atraído leitores jovens e menos instruídos.
4 Disponível em http://www.asne.org/index.cfm?id=2476
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Também nos EUA, o Impact Study do Readership Institute5 (2001) deixou claro
que, embora concorrentes da TV, da Internet e do rádio, os jornais impressos estão em
boa posição no mercado e podem ganhar leitores se atenderem as suas expectativas. Para
isso precisam, entre outros fatores, investir no conteúdo e na forma narrativa que o leitor
preferir. No topo da lista dos dez conteúdos que mais interessam ao leitor dos EUA está a
informação local aprofundada, especialmente sobre fatos ordinários da cidade e a vida (e
morte) das pessoas comuns. Neste caso, as matérias escritas com aprofundamento
narrativo são mais lidas do que as escritas da maneira tradicional. A pesquisa comprovou
que esse estilo de narrativa, marcadamente de jornalismo literário, aumenta a satisfação
do leitor e atribui valor à marca do jornal.
Baseado na própria demanda comercial, o jornalismo chamado de literário
ressurge ao final dos anos 90, nos EUA, como método para garantir a subsistência dos
periódicos impressos. O prazer do texto, ao mesmo tempo em que atrai leitores, dá vazão
à ampliação do conhecimento sobre o mundo real, uma necessidade humana cada vez
mais urgente em tempos de efeitos digitais e produções político-midiáticas capazes de
maquiar ou construir realidades.
Assim, o jornalismo literário resgata a função primordial do campo como
produtor de conhecimento e mais, apresenta-o como potencial motor de transformação de
culturas e hábitos cotidianos. Isso ocorre porque, aliada à fruição do texto, a principal
contribuição das técnicas de narrativa literária para o campo do jornalismo é a retomada
da capacidade de reportar a complexidade do real – o abrir os olhos para o mundo como
ele é, não mais como um conjunto de dados estáticos encaixáveis em leads.
A própria função social do repórter se modifica: no jornalismo literário, não vale
nada uma atuação supostamente “neutra” como mero intermediador de informações
oficiais; o que vale é o jornalismo com marcas de autor, em que o conjunto de decisões,
escolhas, apurações, observações, angulações e edições praticados pelo profissional do
texto informativo se torna crucial para que o leitor possa compreender, em profundidade,
o tema em tela.
“O desafio é enxergar além do cotidiano, que tem efeito de catarata, provocado
pela ilusão das certezas. O repórter tem que duvidar de suas certezas. O repórter mais
5 Disponível em http://www.readership.org/reports.asp
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perigoso é o que acha que já viu tudo”, diz Eliane Brum6, documentarista e repórter
especial da revista Época, ganhadora de mais de 30 prêmios nacionais, entre eles um
Esso por uma série de matérias intitulada A vida que ninguém vê, publicada no diário
gaúcho Zero Hora, em 1999.
Para Eliane, enxergar além da ilusão das certezas quer dizer voltar às ruas para
ousar o confronto com o desconhecido, na tentativa de esclarecer questionamentos que a
agenda dominante da mídia procura abafar. Interessante que é ponto comum entre
defensores do jornalismo literário, ou mesmo do dito “bom jornalismo”, que o gênero
tem uma função revolucionária, de modificar hábitos e culturas, especialmente de ampliar
a visão do leitor sobre o mundo.
Encontra-se essa declaração, de formas diferenciadas, em Tom Wolfe, Gabriel
García Márquez, Cremilda Medina, Cláudio Júlio Tognolli, Sérgio Villas Boas e Edvaldo
Pereira Lima, entre outros. Já nos anos 70, quando os ecos do New Journalism no Brasil
faziam da grande reportagem a meta da maioria dos jornalistas, as pesquisas sobre
técnicas de jornalismo literário eram vistas pelo governo como tentativas de “burlar o
sistema”, relata Cremilda Medina (2003, p. 129).
Para além de uma função política ou ideológica, entretanto, o jornalismo literário
também evoca uma mensagem de que é possível acrescentar criatividade, intuição e arte
ao pragmatismo imposto pelas rotinas industriais dos periódicos impressos.
O investimento de mais tempo no processo de captação e a própria imersão nos
fenômenos, práticas exigidas para a melhor concretização da proposta, denotam a
realização de um trabalho quase artesanal na busca de articulação entre dados reais que
possam colaborar para a compreensão do mundo.
1.4. Principais contribuições acadêmicas
As fronteiras entre jornalismo e literatura, as diferenças entre o real e a ficção, as
marcas de autor versus a neutralidade do narrador, a formação literária dos jornalistas, o
6 Declaração colhida por Katherine Funke durante palestra de Eliane Brum no Seminário Brasileiro
de Jornalismo Literário, em São Paulo, em 23 de outubro de 2007.
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prazer do texto com formato literário são algumas das problemáticas que têm marcado a
produção acadêmica sobre o campo do jornalismo literário.
Um dos primeiros estudos que já versava sobre as contribuições da literatura para
as reportagens foi publicado em 1972, de forma artesanal, pelos pesquisadores Cremilda
Medina e Paulo Roberto Leandro, em A arte de tecer o presente. Em 2003, Cremilda
atualiza os dados e lança uma obra homônima onde relata a experiência de ensino e
pesquisa de “tessitura do real”, como ela chama a narrativa do tipo jornalismo literário. A
pesquisadora lança propostas relevantes ao campo por incluir a discussão sobre as marcas
do autor, o que abrange a inclusão da intuição, da criatividade, da cidadania e até da
solidariedade no trabalho pragmático da reportagem.
Simultaneamente e também logo depois de Cremilda Medina, outros
pesquisadores contribuíram para a discussão. Em 1993, Edvaldo Pereira Lima lança
Páginas Ampliadas, resultado de sua tese de doutoramento, uma das obras mais utilizadas
em cursos de graduação em jornalismo como incentivo à grande reportagem, praticada
em formato de livro, com técnicas de jornalismo literário.
Em seu livro, Lima traz a hipótese que “o livro-reportagem (uma das
classificações por ele proposta) estende a função informativa e orientativa do jornalismo
impresso cotidiano uma vez que cobre os vazios deixados pela imprensa, e amplia, para o
leitor, a compreensão da realidade” (LIMA, 1993, p.61).
Para conseguir este objetivo, o livro-reportagem se utiliza das práticas inerentes
do jornalismo, mas estas são ampliadas e até mesmo modificadas. Assim, o livro-
reportagem ganha características específicas e, de acordo com Lima, fica no patamar de
novo gênero. Tom Wolfe, segundo Lima, chegou a reivindicar o nível de “gênero
literário”.
Lima foi um dos fundadores de um grupo de pesquisa chamado Texto Vivo
(www.textovivo.com.br), que desde a virada do milênio oferece, em parceria com
universidades, cursos de pós-graduação em jornalismo literário com turmas de alunos em
São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e Porto Alegre. Assim, a produção de pesquisas sobre
o campo tende a crescer nos próximos anos, ao lado da própria prática do jornalismo
literário.
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Independente do Texto Vivo, contudo, a pesquisa sobre o jornalismo literário tem
sido realizada de forma crescente no Brasil. Por exemplo, o pesquisador Fernando
Resende (2002) aprofunda-se nos limites e contribuições entre literatura e jornalismo na
análise da obra de Tom Wolfe. Ele rediscute características básicas do jornalismo
(atualidade, objetividade e realidade) a partir das luzes lançadas por Wolfe em Radical
Chique para concluir que as técnicas do jornalismo literário melhoram o jornalismo.
Já pesquisadora Cristiane Costa (2005) lança Pena de aluguel, um estudo que
entrelaça os campos do jornalismo e literatura do ponto de vista de quem os pratica no
mercado. Ela pesquisou a fundo as características isoladas e entrelaçadas dos dois
campos (jornalismo e literatura) no início de 1900 e 2000, para comparar o resultado da
enquete realizada por Joao do Rio em 1904.
A enquete de João do Rio buscava saber se o jornalismo era atividade que
atrapalhava ou ajudava no desenvolvimento da literatura. O resultado, um empate entre
considerar o repórter um escritor prostituído e o jornalismo como fonte digna de renda
para escritores, intrigou Cristiane Costa. Entre as conclusões da pesquisa da autora, que é
bastante ampla, está o fato de que a literatura de não-ficção tem conquistado o mercado
literário, especialmente no formato de livros-reportagens.
A discussão já suscitou uma série de outros estudos, como a coletânea de artigos
Jornalismo e literatura – a sedução da palavra, organizada por Gustavo de Castro e Alex
de Galeno, além de publicações específicas sobre o uso de técnicas de literatura na
construção de perfis e biografias, como fez Sérgio Vilas Boas.
O pesquisador Carlos Rogé Ferreira ampliou a discussão com a tese de doutorado,
que resultou no livro Literatura e jornalismo, práticas políticas, onde examina algumas
relações existentes entre contradiscursos (um discurso emancipador de esquerda e
narrativas literário-jornalísticas). Ferreira analisou treze obras escolhidas por serem
modelos com características das relações mencionadas. Entre as obras, o pesquisador
analisou Miami e o cerco de Chicago, de Norman Mailer; Os honrados mafiosos, de Gay
Talese; Lúvio Flávio, o passageiro da agonia, de José Louzeiro; Rota 66, de Caco
Barcellos. Ferreira defende que as produções jornalísticas e literárias sejam entendidas
como lugares importantes de descoberta e afirmação dos indivíduos e das coletividades,
ligadas, entre outras, às questões das práticas transformadoras.
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1.5. Características intrínsecas do jornalismo literário
O estudioso Edvaldo Pereira Lima diz que as técnicas do jornalismo literário
podem ser aplicadas em livros-reportagem, gênero7 mais conhecido no Brasil. Para ele, o
livro-reportagem persegue o objetivo de ampliar a compreensão da realidade pelos
leitores. Para isso, o livro-reportagem maximiza os recursos operativos inerentes à prática
jornalística e ganha características individualizadas.
Através do acompanhamento das etapas de elaboração da reportagem – pauta,
captação e redação (incluindo aqui a edição), Lima sustenta que é possível evidenciar as
limitações da imprensa regular. Para ele essas limitações podem ser ultrapassadas no
livro, no qual a primeira marca característica, muitas vezes, é a liberdade do autor.
Assim, o jornalista pode fugir dos ditames convencionais que restringem sua tarefa de
construtor de mensagens na imprensa cotidiana.
O pesquisador Edvaldo Pereira Lima apresenta três momentos bem definidos da
produção de uma mensagem jornalística: a extensão pela pauta, a complementação pela
captação e a fruição pelo texto. A cada um desses momentos, o autor detalha as
características que diferenciam o jornalismo literário do jornalismo cotidiano,
factualizado e limitado pelo foco nos acontecimentos do dia. Estas características serão
melhor aprofundadas nos próximos itens.
Já o jornalista norte-americano Tom Wolfe apresenta quatro características
fundamentais: construção cena-a-cena, diálogos completos, observação participante e
autópsia social. No momento da escrita do texto, há uma clara aproximação com as
formas narrativas da literatura, como identifica o próprio Tom Wolfe e também Lima e
Resende. Para Wolfe, o objetivo do uso dos recursos literários em textos de não-ficção
era o de excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor.
Porém, Sérgio Vilas Boas, em seu livro O estilo magazine: o texto em revista, diz
que não é a supra-realidade8 que interessa ao jornalismo.
7 Os autores Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, em Técnica de reportagem: notas sobre a
narrativa jornalística colocam o livro-reportagem como gênero. O norte-americano Tom Wolfe também
reivindicou o nível de “gênero literário” para a modalidade. 8 Vilas Boas aqui se refere à diferença entre o redator, para quem a linguagem é puro instrumento
do pensamento, um meio de transmitir realidades, e o escritor que, ao contrário, tem a linguagem como um
lugar dialético que permite a tradução de diferentes matizes do real.
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O que interessa é a precisão, pois tudo que se escreve em
jornalismo dever ser verificável, comprovado na realidade
imediata. A realidade do jornalismo se aproxima, então, de uma
literatura não exatamente ficcional. Mas isto não impede o
contrário: que a literatura de ficção, no conceito clássico, se
utilize da realidade imediata e comprovável. (VILAS BOAS,
1996, p. 59)
E o estudioso Vilas Boas vai além na tentativa de esclarecer a ligação jornalismo e
literatura e diz que a reportagem narrativa é um dos gêneros mais importantes em
jornalismo e, provavelmente, o que mais aproxima o jornalismo da literatura. Para ele, o
jornalismo é uma das categorias da literatura. Em outras palavras, é literatura de massa.
1.5.1. A extensão pela pauta
No primeiro momento, da extensão pela pauta, segundo Edvaldo Pereira Lima,
existem algumas liberdades em relação à imposição da atualidade do jornalismo diário,
como a da presentificação.
Naturalmente que, para o leitor, muitas mensagens não
necessitam ultrapassar o âmbito do efêmero. Mas quando se trata
da reportagem, cujo objetivo é o aprofundamento, a definição da
pauta pelo critério de atualidade pode revelar-se inócua, uma vez
que muitos fenômenos que nos afetam escapam de uma
conformação atual, no sentido restrito, tendo muito mais a ver
com uma concepção um pouco mais dilatada de tempo presente.
(LIMA, 1995, p.64)
A liberdade temporal avança para o relato da contemporaneidade, resgatando no
tempo algo mais distante do atual, mas que segue causando efeitos. Assim, há uma
liberdade de eixo de abordagem, que desobriga o texto a girar em torno do acontecimento
factual, o que cria uma liberdade temática. A reportagem de jornalismo literário fica,
portanto, livre para tratar de assuntos ausentes da agenda dominante da mídia naquele
momento, assim como a liberdade de fontes, já que fontes de diferentes tipos, não apenas
as usuais, podem ser ouvidas para a construção do texto.
Segundo Lima, a periodicidade impõe padrões de rotina ao jornalismo e, ao
mesmo tempo, alia-se a outros dois fatores nocivos para uma comunicação além do
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caráter informativo. São eles: construção da mensagem pela fórmula mais rápida, porém
menos criativa, do texto pasteurizado das características impostas ao jornalismo (o que,
quem, quando, onde, como e – nem sempre – porquê) e a recorrência apenas a fontes
legitimadas, ou seja, institucionalizadas como tais. Assim, o jornalista recorre sempre as
mesmas fontes, que são mais fáceis de localizar do que procurar várias pessoas não
legitimadas ou pouco distantes do assunto. E Lima explica como, de súbito, Dr. X é
guinado à posição de grande especialista em determinado assunto e é sempre procurado
para falar, em detrimento de outros especialistas que também podem falar sobre o
assunto, em respeito à quebra de rotina para o leitor.
A pressão padronizadora e legitimadora favorece uma definição viciada das
realidades sociais selecionadas para o relato jornalístico e deixa escapar muitos fatos que
– por este viés - não apresentam relevância social. Muitos desses fatores não se encaixam
às definições prévias, ou não se ajustam aos prazos de fechamento ou da narrativa
conhecida, e ficam simplesmente de fora. Com isso, as reportagens ficam presas ao
factual e não abordam as questões contundentes que conformam os acontecimentos.
Lima apresenta outro agravante desse procedimento operacional viciado: a
manipulação ideológica ou de comprometimento atrelado a interesses mercadológicos.
Ou seja, estratégias para conquistar, a qualquer preço, o leitor, que perde a chance de
captar o sentido mais profundo da contemporaneidade. “Muito mais ainda quando entra
em campo um certo emocionalismo, típico do latino, distorcendo a leitura do real”
(LIMA, 1995, p.67).
Tudo isso contribui para a má qualidade da reportagem que, conforme colocou
Lima, nasce na pauta, a primeira etapa do processo de produção da mensagem
jornalística.
A pauta é a definição de rumos, o estabelecimento de diretrizes
que, quando mal-administrada, conduz a matéria a terrenos
pouco férteis (…). Caso as coordenadas sejam viciadas,
naturalmente a navegação será pobre, menos eficiente, podendo
hipoteticamente chegar, em condições extremas, a se desviar
totalmente do destino previsto. (LIMA, 1995, p.68)
A estudiosa Cremilda Medina acrescenta que, nas rotinas de redação, as pautas
pecam pela falta de domínio técnico-profissional e, muitas vezes, por falta de
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imaginação, um veículo pauta o outro. Medina também identifica problemas na
angulação da pauta (perspectiva básica sob a qual a reportagem será desenvolvida) que
resolve-se pelas relações entre os níveis grupal, massa e pessoal da comunicação
(MEDINA, 1982, p. 143 e 145).
Para Cremilda, o nível grupal identifica-se com a caracterização da empresa
jornalística onde essa pauta vai ser transmitida. A empresa, uma vez conectada a um
grupo econômico e político, conduz o comportamento da mensagem da captação do real à
sua formulação estilística. Medina acrescenta que este nível é mais evidente nas páginas
editoriais, mas pode ser detectado mais sutilmente em toda a codificação de jornalismo
informativo.
Há também a angulação pelo nível massa como elemento limitador da pauta diária
do jornalismo convencional. Essa angulação seria a preocupação em corresponder a um
‘gosto médio’ ou, dito de outra forma, o uso de técnicas que apresentam a informação
com certos ingredientes de consumo. Por fim, Medina fala do nível pessoal da angulação
que oferece maior grau de autonomia ao autor do texto. A estudiosa, porém, faz a
ressalva que essa autonomia se dilui bastante numa criação cada vez mais anônima nas
redações. Além disso, um profissional prestigiado, por seu toque pessoal de qualidade na
produção de matérias, segue tendências do consumo de massa e não vai contra o nível-
empresa porque senão seria dispensado.
Outro aspecto apresentado por Lima é a busca pela apreensão múltipla de aspectos
da realidade. Para isso, prevê a localização dos conflitos relativos à questão que será tema
da reportagem. Os conflitos, ou embates entre forças e/ou entre personagens, devem ser
compreendidos e transcendidos para permitir a identificação de causas, efeitos e forças
protagonistas da reportagem. Lima diz que esse processo deve ser feito na elaboração da
pauta, uma leitura sistemática do assunto que vai ser trabalhado.
Analisar, decompor, o sistema visado em sua estrutura básica e
encontrar, como ponto de partida, os conflitos resultantes dos
estrangulamentos sistêmicos, o que facilita, num segundo passo,
interpretar causas e consequências. Se queremos produzir um
material sobre a queda do serviço hospitalar público no país, a
abordagem sistêmica com certeza auxilia a encontrar os pontos
nevrálgicos da questão, nos seus aspectos contextuais,
processuais e temporais. (LIMA, 1995, p. 78)
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Feita esta análise da elaboração da pauta, em busca da captação do real, Lima nos
apresenta um conjunto de liberdades disponíveis que privilegiam o livro-reportagem:
liberdade temática, liberdade de angulação, liberdade de fontes, liberdade temporal,
liberdade de eixo de abordagem e liberdade de propósito.
Partindo do pressuposto que o livro-reportagem tem a possibilidade da
diversidade temática, Lima acrescenta que este gênero abraça temas que não foram alvo
de abordagem pela imprensa ou foram de forma superficial ou não tiveram o mesmo
enfoque dado pelo livro.
Esta liberdade temática pode ser ilustrada por uma série de livros-reportagem e
até mesmo de grandes reportagens veiculadas em jornais e revistas, já que, como já foi
dito, Lima escolhe o livro-reportagem para a sua análise, mas as características são de
jornalismo literário e, estas, podem ser aplicadas em outros formatos de produtos
jornalísticos.
Na liberdade de angulação, Lima defende que o livro-reportagem é uma obra do
autor e, assim sendo, é desvinculado, pelo menos em tese, do comprometimento com o
nível grupal, de massa e com o pessoal. “(…) seu único compromisso é com a sua própria
cosmovisão e com o esforço de estabelecer uma ligação estimuladora com seu leitor,
valendo-se, para isso, dos recursos que achar mais convenientes, escapando das fórmulas
institucionalizadas nas redações” (LIMA, 1995, p. 83). Podemos, aqui, dar como
exemplo o livro A sangue frio, de Truman Capote, lançado em 1966 nos Estados Unidos.
No livro, Capote apresenta o caso de uma família rural do Kansas que foi assassinada.
Para fazê-lo, o autor passou cinco anos entrevistando fontes, especialmente os dois
assassinos. Ficou claro na obra-prima de Capote que ele teve plena liberdade de
angulação, pois revelou como autor seu apreço pelos bandidos (alguns até diziam que ele
teria se apaixonado por um deles), o que contraria o consenso geral da época nos EUA,
legitimado pela legislação daquele país, de condenação sumária dos assassinos.
Da mesma forma, não estando atrelado ao ritmo compulsivo de produção das
redações, Lima apresenta a liberdade de fontes, quando o jornalista pode fugir do estreito
círculo de fontes legitimadas e usar um número variado de entrevistados. Um bom
exemplo é Hiroshima, de John Hersey, lançado em 1946. O livro reconstitui o dia da
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explosão da bomba atômica a partir dos depoimentos dos seis sobreviventes e, para
completar o trabalho, Hersey voltou à cidade 40 anos depois.
Lima, para exemplificar outra liberdade, a temporal, cita do exemplo do livro
1968, o ano que não terminou, de Zuenir Ventura. No livro, segundo Lima, Ventura
recupera um importante momento histórico do Brasil, trazendo vários atores que são
personalidades atuantes na atualidade. Esta liberdade possibilita a fuga da presentificação
restrita e “avança para o relato da contemporaneidade, resgatando no tempo mais distante
do de hoje, mas que segue causando efeitos neste” (LIMA, 1995, p.85).
A liberdade do eixo de abordagem também é permitida no livro-reportagem, de
acordo com Lima. Dessa forma, o livro-reportagem não precisa ficar preso na
factualidade, no acontecimento, mas pode vislumbrar um horizonte mais amplo através
do fato e também descortinar questões mais duradouras que compõem as linhas de força
que determinam os acontecimentos. Com esta flexibilidade de mergulho em situações e
questões, o autor pode encontrar, de forma mais satisfatória, o âmago dos conflitos. Foi o
que ocorreu em O teste do ácido do refresco elétrico, onde Tom Wolfe conta a história de
um grupo de precursores do ácido lisérgico, aproveitando os fatos para analisar os efeitos
do uso da droga, associando-os a toda uma série de contextos da época e interesses
humanos universais, e atemporais, pelo que há além da realidade concreta.
Para Lima, estas liberdades já apresentadas possibilitam que o livro-reportagem
tenha propósitos mais elevados que a reportagem comum, já que confunde, mistura
dados. A liberdade de propósito pode ser exemplificada no livro O segredo de Joe Gould,
de Joseph Mitchell, de 1942. O livro nos apresenta um boêmio culto, excêntrico e pobre
que guarda um segredo, mas também nos revela o espírito de Nova Iorque naquela época.
Mitchell ficou famoso por revelar personalidades comuns, gostava sempre de evitar os
famosos. Costumava dizer: “eles são tão grandes quanto você, seja você quem for”.
1.5.2. Captação dos dados
Já o segundo momento categorizado por Lima, o da captação dos dados, mantém,
muitas vezes, as limitações e as inadequações do jornalismo cotidiano. Com uma pauta
bem elaborada, o jornalista tem as diretrizes para a coleta, via pesquisa de material
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registrado – livros, sonoras, documentos, outras matérias etc -, de entrevistas, pesquisas
de tipo sociométrico e observações.
Lima defende que uma reportagem de profundidade exige um bom trabalho de
documentação, ou seja, o estabelecimento de relações entre fatos isolados e situações
globais, de interpretação dos significados da contemporaneidade para o leitor. Para ele,
no entanto, isso está longe de acontecer e diz que os jornalistas sofrem de uma
“cosmovisão desatualizada”, uma atrofia de visão. Em função disso, o jornalista limita-se
à simplificação do real, ao conceito de certo e errado.
Um dos mais importantes instrumentos de captação, a entrevista, começa assim a
receber críticas no meio acadêmico que discute os métodos e novos rumos para sua
eficácia no processo de compreensão do real. Estas críticas, partindo especialmente de
Cremilda Medina, se baseiam no fato de que a compreensão do real, no seu aspecto de
humanização, pressupõe um diálogo interativo entre o entrevistador e o entrevistado, ou
seja, o jornalista e a fonte. Com isso, cria-se uma interação humana entre o receptor e o
personagem dos acontecimentos e das situações, através do jornalista, que é um
representante do público.
Lima acrescenta que o papel do jornalista, quando bem-sucedido, é o de tanto
criar identificação e projeção quanto o de estabelecer um distanciamento crítico
consciente, vívido. A missão do jornalista, nesse caso, é estimular uma conexão entre
entrevistado e receptor. “É auxiliar a compreensão do real, mas também colocar a dose
adequada de emoção, sem a qual nenhum ato comunica na dimensão humana o que o
jornalismo pretende” (1995, p.90). Cremilda vai além.
Enquanto insistirmos na competência do fazer, despojada de
significado humano, pouco se avançará no diálogo possível
numa sociedade em que impera a divisão, a grupalidade, a
solidão. Se os meios são de comunicação, que se encare então o
que é comunicar, interligar. O maior obstáculo é o dirigismo
com que se executam as tarefas de comunicação social. Na
maior parte das circunstâncias, o jornalista imprime o ritmo de
sua pauta e até mesmo preestabelece as respostas; o interlocutor
é conduzido a tais resultados. (…) O que menos interessa é o
modo de ser e o modo de dizer daquela pessoa. O que
efetivamente interessa é cumprir a pauta que a redação de
determinado veículo decidiu. (MEDINA, 1986, p. 07)
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Mesmo com essas críticas, Medina acredita no potencial da entrevista para ser um
diálogo democrático, o que ela denomina de plurálogo. A pesquisadora classifica as
entrevistas em dois grandes grupos: as de espetacularização (caricatura das possibilidades
humanas) e as de compreensão (busca o aprofundamento).
Nas entrevistas de espetacularização, Medina (1986, p. 15) define quarto
subgêneros: o perfil do pitoresco (foco em traços sensacionalistas); o perfil do inusitado
(aspectos exóticos do entrevistado); o perfil da condenação (colocando o entrevistado de
forma simplista na condição de réu ou vilão) e o perfil da ironia (também realiza um
julgamento aprioristicamente condenatório do entrevistado, mas num nível superior de
sutileza).
No segundo grupo da compreensão, Medina aponta cinco subgêneros: a entrevista
conceitual (na qual o repórter versa sobre diferentes temas, com especialistas em cada
área); a entrevista/enquete (em que um único tema é privilegiado pela pauta ou por
questionários básicos aplicados à fontes escolhidas aleatoriamente); a entrevista
investigativa (coleta de informações em off e em on e que ajuda matérias investigativas e
de denúncia); a confrontação-polemização (mesa-redonda, debate, simpósio, painel ou
seminário, quando fontes antagônicas são simultaneamente entrevistadas) e o perfil
humanizado (proposta de compreensão ampla do entrevistado). E acrescenta que:
técnica de obtenção de informações que recorre ao particular, a
entrevista vale-se de fontes individualizadas e lhe dá crédito,
sem preocupações científicas. Isso não invalida o aleatório na
seleção de fontes porque qualquer pessoa procurada no
anonimato tem alguma coisa importante a dizer. (MEDINA,
1986, p. 19)
Saindo do campo da entrevista, Lima apresenta a importância da observação no
momento de captação para a elaboração de um texto (ou matéria jornalística). Introduz a
idéia da observação participante, que é quando o observador estabelece um grau de
interações dentro dos grupos observados de modo a reduzir estranhezas mútuas. E
apresenta técnicas: o da pesquisa participante (técnica de observação participante) e o de
pesquisa-ação (supõe uma participação dos interessados na própria pesquisa organizada
em torno de determinada ação).
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Essa etapa no processo de produção no jornalismo, segundo Lima, também
encontra problemas por conta do esquema regular da imprensa cotidiana. Para ele, a
grande reportagem deve fugir desse esquema e ater-se a observação intensa, demorada.
Tudo isso para recuperar a arte da narração que envolve uma finalidade que ultrapassa o
meramente informar. Medina completa:
ao lidar com o perfil humanizado, consciente ou
inconscientemente, faz-se presente o imaginário, a subjetividade.
Como enquadrar nos limites de um questionário fechado, de uma
cronologia rígida, de uma presentificação radical, uma
personagem que ultrapassa estes ditames? O diálogo possível, se
acontecer, já encontraria esta fórmula. O entrevistado passeia em
atalhos, mergulha e aflora, finge e é, sonha e traduz seu sonho,
avança e recua, perde-se no tempo e no espaço. (MEDINA,
1986, p. 43)
E, aqui, mais uma vez aparece a questão da subjetividade na mensagem
jornalística, especificamente na etapa de captação. Lima defende que não se trata mais de
elementos pouco produtivos de evasão e de fantasias gratuitas e, sim, perceber uma visão
mais completa da realidade. Além disso, propor ao leitor uma leitura abrangente dos
acontecimentos, das situações e dos personagens que estão imersos num universo
complexo em que o real concreto e imaginário interpretem-se, combinam-se.
A captação, além da entrevista e da observação, encontra na documentação
(coleta, exame, classificação e uso de dados disponíveis na sociedade, em seus mais
diversos meios), outra ferramenta indispensável que, de acordo com Lima, alcançou um
nível bom nas grandes empresas produtoras. Este nível é o resultado das criações dos
departamentos de pesquisa que mantém um respeitável volume de informações
diversificadas. Mas, somente isso, não garante um bom uso delas. O aproveitamento de
toda essa informação não garante qualidade na produção jornalística. Segundo Lima,
existe uma grande produção, mas é dada pouca importância à pesquisa e interpretação
dos fatos.
Para isso, é preciso sensibilidade do profissional e condições de trabalho, para que
seja possível a ampliação de cada vez mais realidades das que se justapõem na ordem
hierárquica estabelecida sistemicamente e uma abertura para a incorporação de novas
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lentes (criadas pela ciência, pelas artes) disponíveis pela própria sociedade em busca de
conhecimento próprio e sobre o mundo.
Feita essa análise do campo da captação, Lima apresenta os instrumentos que o
livro-reportagem se utiliza (ou poderia utilizar), uma vez estando de fora das rotinas
aprisionantes e repetitivas do jornalismo cotidiano.
O primeiro instrumento apresentado é o de entrevistas de compreensão. Segundo
Lima, em sua pesquisa, somente encontrou entrevistas de compreensão nos livros-
reportagem. Num mesmo livro, várias entrevistas aparecem e, a depender do momento, é
apresentada dentro de um dos seus subgêneros. Ou mesmo uma grande entrevista que é
apresentada, num momento, dentro de um e depois de outro subgênero. Porém, Lima
sustenta que a entrevista desponta como uma forma de expressão em si, dotada de
individualidade, força, tensão, drama, esclarecimento, emoção, razão, beleza.
Nasce daí o diálogo possível, o crescimento do contato humano
entre entrevistador e entrevistado, que só acontece porque não há
pauta fechada castrando a criatividade. Em muitas ocasiões,
surge o painel de multivozes e o repórter, o autor, é apenas um
sutil maestro que costura os depoimentos, interliga visões de
mundo com tal talento que parece natural tal arranjo, como se
surgisse ali espontaneamente, perfeito. Nessas ocasiões, o
jornalista-escritor atinge uma situação máxima de excelência no
domínio da entrevista: a de tecedor invisível da realidade.
(LIMA, 1995, p. 107)
Histórias de vida também são utilizadas pelo livro-reportagem, seja em forma
clássica de entrevista (reprodução do diálogo) ou como depoimento direto. Acontece
também uma mescla dessas duas modalidades com narrativa em primeira ou terceira
pessoa. Lima ainda apresenta as divisões dessa modalidade apresentada por Dulcídia
Buitoni (em Texto-documentário: espaços e sentidos. Livre-Docência. ECA-USP, 1986):
autobiografia (o ator fala por si só); entrevistas biográficas (o entrevistador serve apenas
como ouvinte ou também interfere na estrutura do relato); fonte complementar de
pesquisa (as histórias de vida como um meio complementar de coleta de dados) e o
suporte de pesquisa (as histórias são o principal suporte elucidador da rede de relações
sociais).
Mas a observação participante talvez seja a contribuição mais forte do New
Journalism às técnicas de captação, pois envolve uma situação quase impossível no
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jornalismo cotidiano: a do repórter que mergulha no universo estudado (às vezes sem se
identificar como repórter ou sem anunciar que escreverá sobre aquilo que vive) de modo
a retratar a realidade com a maior fidelidade possível, tendo acesso aos dados de
maneiras muitas vezes informais, mas autênticas.
Um bom exemplo (entre tantos outros) é o de Hunter Thompson, que fez parte da
turma dos Hell´s Angels por 18 meses para poder escrever o livro Hell´s Angels - medo e
delírio sobre duas rodas. O capítulo final conta o espancamento de Thompson pelo
grupo.
Outra ferramenta de captação é o resgate de memória, a busca de riquezas
psicológicas e sociais. Pela reconstrução é ultrapassado o limite da informação concreta
nua, chegando-se a uma dimensão superior de compreensão tanto dos atores sociais como
da própria realidade maior em que se insere a situação examinada.
Na captação de dados, usa-se também a documentação, que consiste em recolher
dados em fontes reconhecidas para ligá-los a fatos aparentemente isolados. Isso porque o
jornalismo literário foca mais na questão do que no fato, ou seja, a partir do fato pode-se
ampliar a compreensão do universo tratado. Mas, apesar do recurso ser usado pelo
jornalismo cotidiano, é no livro-reportagem que os autores se preocupam com pesquisas
documentais sólidas para a realização do trabalho.
Lima exemplifica com dois livros: Olga, de Fernando Morais, e 1968, o ano que
não terminou, de Zuenir Ventura. O primeiro demandou uma pesquisa documental em
instituições de seis países, além do Brasil, consulta de vários periódicos nacionais e
estrangeiros, coleta de dados em uma vasta bibliografia, além de depoimentos de mais de
vinte fontes vivas, no Brasil e exterior. O segundo exemplo contou com dez meses de
trabalho, através de pesquisas em revistas, jornais, arquivos e livros.
Por fim, Lima apresenta a visão pluridimensional simultânea, em que o jornalismo
literário amplia a visão reduzida do cartesianismo e incorpora óticas modernas
abrangentes. O jornalismo não deixa de abordar o real, não se confunde com ficção.
Segundo o pesquisador, o New Journalism deu um passo na direção do mais abrangente,
ao introduzir monólogos interiores dos personagens de suas matérias e fluxos de
consciência, até então só empregados na literatura de ficção.
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Esta técnica, segundo Wolfe, manifestava-se pelo “ponto de vista autobiográfico
em terceira pessoa”: “(…) a técnica de apresentar cada cena ao leitor através dos olhos de
um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da mente do
personagem e experimentando a realidade emocional da cena tal qual ele a experimenta”
(The New Journalism, 1973, p. 32).
1.5.3. A fruição pelo texto
O pesquisador Edvaldo Pereira Lima vai além da pauta e captação e apresenta
problemas também na linguagem verbal do jornalismo cotidiano: prisão do texto à
informação, perdendo-se o alcance possível de um tratamento mais enriquecedor e que
traga, ao leitor, uma maior gratificação. Aqui, mais uma vez, torna-se necessária a
presença da narração, do uso de tempos verbais, descrição, diálogo etc.
A aproximação com as formas narrativas das artes é feita quando a narração
compreende uma reconstrução do real, em que o emocional-racional e o emocional se
equilibrem, em que o real e o imaginário convivem. Portanto, deve-se investir na
percepção do real/imaginário tal como ele se manifesta no modo de ser e no modo de
dizer de um entrevistado. Esta aproximação necessita de uma renovação da forma de
escrever ou do rejuvenescimento do texto jornalístico.
Para Lima, a narrativa jornalística de melhor qualidade instaura uma ordem em
seguida a uma desordem, permitindo que o leitor constitua um reordenamento possível. E
é esse restabelecimento de um novo ordenamento sistêmico dos dados da realidade que
Lima pontua como o objetivo do jornalismo de profundidade em relação à reação do
leitor.
O autor de um livro-reportagem cria um jogo implícito com o seu leitor,
procurando captar e atrair sua atenção, cativá-lo para abstrair-se desse mundo e
mergulhar no mundo simbólico apresentado. Tudo isso para que a comunicação se dê.
Mas, para isso, é preciso que o autor apresente componentes que façam com que o leitor
sinta-se familiarizado e fique movido a invadir o livro. “Isso quer dizer que o autor, numa
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dimensão mais abstrata, sutil, deve penetrar no universo dos símbolos comuns – comuns
entre ele, a obra e o leitor – que possibilitam o contato e a atração” (LIMA, 1995, p. 144).
Mas, segundo Lima, somente essa conexão do leitor com o conteúdo apresentado
não é suficiente para garantir que ele vai chegar até o final da leitura. Para isso, na
construção do texto, Lima defende ainda a técnica de fluir com naturalidade, ou seja, usar
passagens suaves entre o texto, usando a navegação entre o tempo e espaço.
Com essa fluência, o autor deve conduzir a obra para uma eficiência que, como
apresenta Lima deve ser entendida sob a ótica sistêmica da dinâmica psicológica de três
vértices: tensão, equilíbrio e desequilíbrio. É uma motivação psicológica com que o leitor
se vê atraído à leitura e nasce do desafio que o autor consegue apresentar-lhe: desafio ao
mergulho numa realidade representada desconhecida. Deste estado de tensão, poderá
redundar, no equilíbrio, o desequilíbrio.
Equilíbrio aqui é entendido como a absorção de um conhecimento pouco
aprofundado da contemporaneidade, sem uma real catarse reelaborada do conhecimento.
Por outro lado, defende Lima, é preferível o desequilíbrio, já que este alcança um certo
grau de desajuste entre o leitor e o mundo. Através da leitura, o leitor é estimulado a
observar a realidade por outros ângulos, de forma que tenta reorganizar e aprofundar seus
conhecimentos.
Para se garantir tudo isso, Lima lista as técnicas de tratamento da linguagem: as
técnicas de redação (narração, descrição, exposição e diálogo), as funções de linguagem,
as técnicas de angulação, as técnicas de edição e o ponto de vista.
Lima nos traz elementos essenciais na narração apresentados por outros autores,
como a situação (que deve trazer dados básicos do acontecimento, o que ocorre, quando,
onde, como, quem envolve, porquê), a intensidade (o que emocionamente resulta disso) e
o ambiente (descrição do meio físico e emocional do acontecimento).
A descrição é compreendida como a representação particularizada de seres,
objetos e ambientes. De acordo com Gaudêncio Torquato (1984), existem tipos mais
comuns de descrição: a pictórica (soma de detalhes com o observador imóvel em relação
ao que é observado); a topográfica (mais ênfase a certos aspetos, normalmente massa e
volume); a cinematográfica (destaque para o jogo de luzes ou sombras); a prosopografia
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(descrição física das pessoas) e a cronografia (descrição de épocas ou circunstâncias
temporais).
Segundo Lima, outro aspecto é a exposição que, por via de regra, é empregada
quando o profissional quer discutir uma questão básica e argumentar de modo a tentar
convencer o leitor a comungar sua visão do problema.
Para apresentar as funções de linguagem, Lima se utiliza de Roman Jakobson, que
estabeleceu seis funções: referencial (relato seco, direto); expressiva (emissor apresenta
suas opiniões ou sentimentos); conativa (receptor em primeiro plano); fática (usada
quando o emissor procura saber se o leitor entendeu a mensagem, usa perguntas como
“entendeu?”, “sabe meu irmão, que…” ou frases como “alô”, “oi”); poética e
metalinguística (explica, ao estilo didático, o tema de que trata a reportagem). Segundo
Lima, essas funções pouco aparecem no jornalismo cotidiano. Ao contrário, devido a
maior extensão do livro-reportagem, o autor sente a necessidade de experimentá-las,
alternadamente, no decorrer do texto, como artifício para manter a atenção do leitor.
Os níveis de manifestação da angulação já foram apresentados: grupal, massa e
pessoal, mas Lima mantém a contribuição de Gaudêncio Torquato (1984, p. 117) para
definir e apresentar três conjuntos de recursos técnicos de angulação. “(…) a angulação é
o ato de escolher uma abordagem, uma palavra, uma imagem, cores; angular é saber onde
e como colocar determinado componente no texto, de maneira que a idéia apresentada
seja a mais próxima daquilo que se pretendeu”.
Os três conjuntos de técnicas de angulação são: as imagens, analogias e
comparações; a tipificação de situações e personagens (através da descrição de pessoas,
ambientes e objetos); e a descoberta do aspecto mais original ou interessante da matéria.
Segundo Lima, Torquato também sugere contrabalançar o texto direto (declarações
textuais) com o indireto (a interpretação de quem escreve).
O ponto de vista é a opção na escolha dos olhos (e de quem) que servirão como
extensores da visão do leitor. O leitor transita veloz de uma posição à outra, na
visualização das cenas, os pensamentos são de personagens distintos e o leitor está ali,
aproxima-se para ver e distancia-se para compreender.
A narrativa jornalística é como um aparato ótico que penetra na
contemporaneidade para desnudá-la, mostrá-la ao leitor, como se
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fosse uma extensão dos próprios olhos dele, leitor, naquela
realidade que está sendo desvendada. Para cumprir tal tarefa, a
narrativa tem que selecionar a perspectiva sob a qual será
mostrado o que se pretende. (LIMA, 1995, p. 161)
Assim, Lima introduz a questão do ponto de vista que, de acordo com o
desenvolvimento ocorrido com o passar do tempo, limitou-se a duas formas: a narrativa
em primeira e em terceira pessoa e a narrativa em segunda pessoa.
Lima defende que no jornalismo não se usa toda a variedade de combinações que
esses recursos oferecem, como se faz na literatura, ficando basicamente com o ponto de
vista em terceira pessoa, ou narrador onisciente neutro. Já em primeira pessoa ocorre o
foco do narrador protagonista. O pesquisador vai além ao dizer que, no livro-reportagem,
já aparecem outras formas, como o ponto de vista chamado onisciente intruso (narrador
coloca comentários na narrativa); a onisciência seletiva múltipla (relato evolui por
intermédio de ações e impressões de vários personagens); ponto de vista autobiográfico
em terceira pessoa; monólogo interior (expressa os estados mentais de modo articulado) e
o fluxo de consciência.
Técnicas de edição, de acordo com Lima, são indispensáveis para o tratamento
adequado dos segmentos que formam uma narrativa extensa. Tratamento de montagem,
de estruturação e ordenação do conjunto de ações, ambientes, personagens, discussões,
questões, de modo a haver, no todo, uma unidade organizada com lógica, graça e
harmonia.
Algumas outras técnicas podem ser observadas. São elas: lições de cinema (cortes
de tempo e espaço no lugar da maneira tradicional de construção do texto, em que se
dava de forma cronológica no tempo e linearmente no espaço); lições de abertura
(aquecer os momentos iniciais para prender o leitor, através da escolha de algum
elemento da narrativa ou a apresentação do assunto do geral para o particular); lições de
passagem (quebra de ritmo, junção de seqüências, conexão de conflitos em evolução);
lições de término e retorno (finalizar com desfecho em forma de obra aberta, ou seja,
deixar algumas perguntas ou possibilidades no ar).
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1.5.4. Construção cena a cena
Tom Wolfe (2005) fez um esforço para identificar os recursos da literatura,
especialmente do romance realista, que marcam seus próprios textos de New Journalism.
Suas explicações contribuem muito para o entendimento do estilo. Retomamos aqui as
quatro principais contribuições da literatura identificadas pelo autor, que serão utilizadas
adiante como categorias de análise do caderno Correio Repórter.
A primeira delas é a construção cena a cena. Trata-se da narração das ações
envolvidas no fato, trazendo para o texto o ritmo, os personagens, as falas, as falas, os
elementos e detalhes das cenas, uma a uma, na seqüência que for necessária para que o
leitor compreenda a questão em tela – seja uma consecução de cenas que se sucederam,
seja na aproximação de cenas que ocorreram em tempos e locais diferentes.
Embora Wolfe não amplie muito sua explicação sobre esse ponto, nos é
permitido, a partir da leitura dos textos do jornalista, acrescentar que esse recurso tem por
efeito a aproximação da linguagem jornalística da linguagem cinematográfica, justamente
pelo cuidado com a construção das cenas e do seqüenciamento planejado da apresentação
dessas cenas para o leitor.
Na reportagem Radical chique (2005), por exemplo, o jornalista dá uma mostra
desse poder de construir cenas completas e depois embaralhá-las, às vezes
cronologicamente, às vezes não, ao gosto de Wolfe, que está conduzindo o leitor ao
universo da elite novaiorquina interessada no movimento social radical chamado Panteras
Negras, em plena década de 60.
1.5.5. Diálogos
O segundo recurso da literatura, especialmente do romance realista, adotado pelo
jornalismo de Wolfe (2005) é a transcrição de trechos completos de diálogos para que o
leitor possa ter acesso às formas de comunicação dos personagens, ao tempo das falas
(com suas diferentes velocidades de resposta e de expressão), o que define os
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personagens de maneira muito mais direta e completa do que outros recursos, na opinião
do autor.
1.5.6. Variação de pontos de vista
O terceiro recurso identificado por Wolfe é o que ele chamava de “ponto de vista
da terceira pessoa”. Trata-se de apresentar os fatos sob o ponto de vista de personagens, a
ponto de ser acusado por críticos de “entrar na cabeça das pessoas” (2005, p. 38). Wolfe
explica que seu objetivo era justamente esse: entrar “diretamente na cabeça de um
personagem, experimentando o mundo através do seu sistema nervoso central ao longo
de toda uma determinada cena” (2005, p. 35).
O recurso tinha por objetivo fazer o autor do texto fugir do destino de narrador
ausente, imparcial e neutro – o lugar destino aos jornalistas nos textos baseados na lógica
da objetividade, como já vimos. Para Wolfe, esse era um narrador “bege”, que não
imprimia cor e vida às ações descritas e que, justamente por isso, não conseguia
aproveitar a oportunidade de construir as cenas com a contribuição dos seus próprios
participantes. Então a narrativa passava a ser contada sob variados pontos de vista:
Em vez de chegar como um locutor descrevendo a grande
parada, mudava o mais depressa possível para dentro das órbitas
oculares das pessoas da matéria, por assim dizer. Muitas vezes,
mudava o ponto de vista no meio do parágrafo, até no meio de
uma frase. (2005, p. 33-34)
A mudança de ponto de vista podia transitar entre terceiras pessoas (protagonistas
ou não da reportagem) e mesmo do próprio autor da reportagem. Às vezes, o próprio
Wolfe se colocava como um personagem que passava pela cena ou era apenas um
espectador perplexo – ele se apresentava como White Suit (Terno Branco) e aproveitava a
oportunidade para descrever a cena sob seu próprio olhar, sem contar ao leitor que se
tratava da visão do autor.
Edvaldo Pereira Lima (1995) observa que, com essas múltiplas mudanças de foco
narrativo, o leitor transita veloz de uma posição a outra, na visualização da cena; o leitor
está ali, aproxima-se para ver e distancia-se para compreender, sempre a partir do ponto
de vista de algum personagem ou do narrador.
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1.5.7. Autópsia social
Tom Wolfe também enumera como característica do jornalismo literário a
realização de uma autópsia social, isto é, descrever hábitos, costumes, objetos,
comportamentos, que localizem o status social do personagem.
Consistia no registro dos gestos cotidianos, hábitos, maneiras,
costumes, estilos de móveis, vestuário, decoração, estilos de
viagem, comida, de cuidar da casa, modos de comportamento
para com os filhos, os empregados, os superiores, os inferiores,
os colegas, mais os vários olhares, poses, relances, estilos de
caminhar e outros detalhes simbólicos que pudessem existir
numa cena. Simbólicos de quê? Simbólicos, no geral, do status
de vida das pessoas, entendendo este termo no mais amplo senso
do comportamento e das posses pelas quais as pessoas
expressam sua posição ou o que gostariam que fosse. O registro
de tais detalhes não é mero ornamento em prosa. Está tão perto
do centro do poder do realismo quanto qualquer outro recurso da
literatura. (WOLFE, 2005, p. 26-7)
É uma técnica que remonta ao que o romancista francês Honoré de Balzac
realizou em toda sua Comédia humana e consiste em descrever detalhes do cenário ou do
comportamento das pessoas de uma determinada cena que possam caracterizar as
localizações sociais dos personagens.
Eis o que Balzac fazia sempre e sempre. Antes de apresentar o
leitor a monsieur e madame Marneffe em pessoa (n’A prima
Bette), ele o leva à sala dos dois e realiza uma autópsia social:
‘A mobília coberta de veludo de algodão desbotado, as
estatuetas de gesso fingindo bronzes florentinos, o candelabro
mal entalhado com seus anéis de vidro (...)’. (WOLFE, 2005, p.
55-56)
A autópsia social é a detecção de elementos do universo simbólico do personagem
– simbólicos de seu status social, de sua história de vida e de seu relacionamento com as
outras classes sociais. Ao analisar a obra de Wolfe, Edvaldo Pereira Lima (1995) também
pontua que o jornalista também pode recorrer a elementos do universo simbólico que
sejam comuns entre autor e leitor, ou seja, possam ser reconhecidos e localizados no
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campo das manifestações simbólicas sociais pelo leitor, para que o recurso possa ser
utilizado ao máximo.
Na carona da autópsia balzaquiana adotada por Wolfe, o pesquisador Sérgio Vilas
Boas dá dicas de como o jornalista literário deve agir para atrair o leitor. “Para manter
viva a atenção do leitor na página, você precisa também de detalhes da aparência, modos,
trejeitos, a forma como o personagem fala ou se move. São aqueles pequenos toques
humanos, que até podem não ser fundamentais para impulsionar a narrativa, mas fazem
os personagens parecerem reais” (VILAS BOAS, 1996, p. 47).
1.6. Críticas e limites do jornalismo literário
Quando se fala em jornalismo literário, uma das perguntas recorrentes é: quais são os
limites da interface entre os campos do jornalismo e da literatura? Em outras palavras:
como podemos diferenciar a ficção da não-ficção? E mais: como saber se o repórter
(autor) está retratando a realidade ou lançando mão da ficção para “complementar” o seu
trabalho?
A crítica já atormentava a vida dos autores do New Journalism, como confessa
Tom Wolfe. Aliás, o próprio jornalista admite que, ao ler a primeira reportagem escrita
com contribuições da literatura, na revista Esquire, sua primeira reação foi achar que o
colega estava inventando (2004, p. 22).
Ao praticar o jornalismo literário, Wolfe percebeu que a ilusão da invenção do
real vinha simplesmente do fato de que há muito tempo os romancistas dos EUA não
retratavam mais a realidade, os hábitos e costumes dos seus contemporâneos, e sim
“mergulhados em romances de idéias, romances freudianos, romances surrealistas
(“comédias negras”), romances kafkianos e, mais recentemente, romances catatônicos”
(2005, p.50). Ou seja, não era comum encontrar a realidade retrata de maneira literária,
gostosa de ler - e o espanto vinha justamente dessa novidade.
Para além da avaliação de Wolfe, pode-se compreender as críticas ao uso de
recursos literários no jornalismo como conseqüência da separação cartesiana entre os
campos do fazer e do pensar. Nessa fragmentação da produção humana de conhecimento,
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a literatura está mais situada na arte de inventar e imaginar, e o jornalismo, na tarefa
técnica de contar a realidade. Trata-se de um pacto discurso: a literatura é ficção e o
jornalismo é factual (RESENDE, 2002, p.44).
Essa concepção dualista dos dois gêneros, que exclui qualquer possibilidade de
literatura de não-ficção ou jornalismo ficcional, faz com que se levante a hipótese de que
os jornalistas, ao recorrerem às técnicas literatura, também estariam incorrendo na
invenção de fatos, dizeres, pensamentos ou detalhes de uma história.
O jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez (2006) faz uma
ponderação em relação a esse tipo de crítica, lembrando que os jornalistas estão cientes
de que a imaginação não serve como matéria-prima de qualidade para as reportagens. Por
outro lado, os escritores também sabem que a realidade tem muito a contribuir com seus
romances:
O problema é que em jornalismo um só dado falso desvirtua
irremediavelmente os outros dados verídicos. Em ficção, em
compensação, um só dado real bem usado pode tornar
verossímeis as criaturas mais fantásticas. (MÁRQUEZ, 2006, p.
169)
Especulações também contribuem para que os críticos tenham bala para atirar
contra os jornalistas literários. Truman Capote, por exemplo, teria inventado um trecho
de A sangue frio, como denunciou, depois da morte do jornalista, o colega Gerald Clarke,
segundo Vilas Boas (s/d). Conforme Clarke, Capote inventou toda a cena final do livro, a
que se passa no cemitério. A informação teria sido confessada pelo próprio jornalista em
uma entrevista a Clarke, que depois publicou-a em uma biografia póstuma de Capote.
Nessa discussão, a problemática da objetividade X subjetividade também entra
em cena. O principal paradoxo de um texto de jornalismo literário é o jogo proposto entre
a objetividade científica e a liberdade do romancista. Com relação à objetividade, Booth
(1980, p. 128) destaca que, sem ceder ao relativismo, é possível constatar que interesses e
predisposições individuais diferentes levam as pessoas a tomar aspectos diferentes da
realidade, para fins diferentes. Assim, prossegue Booth, cada “fato literário” está
altamente carregado de significados do autor, por mais que ele queira ser objetivo.
Carlos Rogé Ferreira (2004, p. 51) fala sobre a relação forma-conteúdo que nasce
da imbricação da abordagem do fato noticioso por meio de um discurso literário, com o
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uso da terceira pessoa do singular, que coloca o autor como sujeito dividido. Isso permite
a exploração de diversas ambiguidades, inclusive a auto-reflexão sobre os lugares de
enunciação desse autor e sobre os próprios discursos construídos (inclusive o jogo entre a
objetividade questionada e pretendida, em torno do científico e do subjetivo, a partir do
real).
Para o pesquisador, exemplos dos escritores norte-americanos (como Gay Talese,
em Fama e anonimato) trazem a técnica de apresentar “pelo lado de dentro” as
verdadeiras dimensões humanas de figuras e fenômenos normalmente estereotipados por
uma história oficial ligada a interesses mais ou menos disfarçados ou explícitos. Esse
novo tipo de jornalismo rompe com o discurso usual, que se assenta sobre a objetividade
(reforçada nos moldes “científicos” de isenção), e assume sua própria subjetividade,
capaz de captar a de outras pessoas e suas realidades, propondo, porém, ser tão ou mais
“objetivo-verdadeiro” do que as velhas práticas jornalísticas (FERREIRA, 2004, p. 113).
Ferreira acrescenta que o problema de se discutir esse paradoxo subjetividade X
objetividade é que temos dificuldade em desligar a idéia da existência de uma verdade
final, capaz de ser identificada, recuperada, mesmo que com alguma dificuldade, em seu
estado de pureza intocada, dependendo de os procedimentos estarem marcados pela
“honestidade” dos agentes. Ao contrário disso, devemos lembrar da seletividade da
memória, o posicionamento social, emocional, político, intelectual que (re)constrói não
apenas a memória de um acontecimento, mas a própria observação e entendimento do
mesmo.
Outra contribuição que nos ajuda a entender a crítica à possível relação da
invenção com o jornalismo literário é que “não se pode trabalhar com a noção de uma
única realidade, pois há mais de uma realidade” (RESENDE, 2002, p.72). Como assim,
mais de uma realidade? Trata-se aqui de considerar que a realidade possui diferentes
aspectos que podem ser percebidos e reapresentados pelos jornalistas.
É o que ocorre quando Tom Wolfe tenta captar o real sob diferentes pontos de
vista, por exemplo. A matéria prima do jornalismo continua a ser a mesma, mas o ângulo
de observação faz com que esses diferentes aspectos possam se complementar para
formar a “realidade” reportada pela reportagem.
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Fernando Resende (2002, p. 84) faz uma analogia dessa técnica de Wolfe com o
cubismo, pois o recurso faz a realidade ser apresentada de forma fragmentada, sob
diferentes ângulos e olhares. O interesse do autor não é descrever a “verdade objetiva” de
fatos isolados, mas tentar reconstruir o contexto e as relações entre as pessoas, e entre
elas e os fatos, a partir de múltiplas visões superpostas e simultâneas.
Assim, entendemos que, afora os casos comprovados de invenção, as críticas ao
jornalismo que utiliza recursos da literatura precisam levar em consideração que essa
nova configuração discursiva pode, ao contrário de tornar o real ficcional, dar ao
jornalismo ainda mais capacidade de captar a complexidade do real em seus diferentes
aspectos. Em comparação com a notícia formulada nos termos do lead, a reportagem
literária se mostra como uma estratégia jornalística mais eficaz na tarefa de reportar o
real.
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2. HISTÓRICO E ANÁLISES
2.1 O Correio da Bahia
O caderno Correio Repórter faz parte da edição dominical do jornal Correio da
Bahia, que circula diariamente em Salvador. A publicação é a segunda em vendagem e
circulação no Estado e pertence à Rede Bahia, que também conta com emissora de
televisão, afiliada da Rede Globo (TV Bahia), além de rádios e portais eletrônicos. As
empresas são ligadas diretamente à família de Antônio Carlos Magalhães, ex-senador
falecido em 2007, desde as suas respectivas fundações. A rede pertence ao filho, Antônio
Carlos Magalhães Júnior.
O Correio da Bahia começou a circular em 1979, justamente no momento em que
a família Magalhães entrou no setor das comunicações, como traz Maria Érica de
Oliveira Lima no texto Jornalismo Oligárquico: o Perfil do Correio da Bahia,
apresentado no congresso da Intercom, em setembro de 2002. No final da década de 70, o
mercado jornalístico era competitivo, diferente do que acontece hoje em Salvador, que
conta com apenas três jornais. Além do Correio, circulam atualmente A Tarde e Tribuna
da Bahia. Mas, em 1979, o leitor podia escolher entre A Tarde, Diário de Notícias,
Jornal da Bahia, Tribuna da Bahia e Correio da Bahia. O Estado de S. Paulo e o Jornal
do Brasil mantinham sucursais na capital. Hoje, o Estadão e a Folha de São Paulo
contam com correspondentes na capital baiana.
O Correio da Bahia foi às bancas pela primeira vez no dia 15 de janeiro de 1979.
Um dos motivos para a sua fundação foi o fato de Antônio Carlos Magalhães não contar
com grande espaço nos jornais locais naquele período, como aponta Maria Érica de
Oliveira Lima. Diante da limitação, o então político decidiu fundar a própria publicação.
A família Magalhães ainda tentou comprar o Jornal da Bahia, mas não obteve sucesso
nas negociações e abrir uma nova empresa foi a solução encontrada.
Com o início da transmissão da programação da Rede Globo pela TV Bahia, em
1987, o Correio perde, de certa forma, a posição de principal espaço para desenvolver as
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idéias do grupo, que passou a ver na TV Bahia a possibilidade de abranger um público
muito maior, através de uma mídia massiva.
O Correio da Bahia passa, atualmente, por um grande período de reestruturação.
Nos próximos meses, não somente o projeto gráfico do jornal vai ser modificado, como
também a sua linha editorial, segundo afirmou seu diretor de redação dos últimos 17
anos, Demóstenes Teixeira, para o site especializado em jornalismo Comunique-se, em
08/01/2008:
Teixeira fala abertamente dos interesses aos quais o Correio da
Bahia serviu ao longo dos últimos 29 anos. "Durante muito
tempo esse jornal serviu de fato como porta-voz político. Hoje
não há mais razão para isso. ACM morreu. Temos que tratar
isso aqui como um veículo e fazer de fato jornalismo". Sobre a
influência direta de ACM, ele contou que ela se dava através
das conversas entre os dois sobre o conteúdo do Correio.
(ABREU, 2008)
O Correio Repórter deve fazer parte desta transformação. A idéia é tentar
dissociar da forte imagem de cobertura política tendenciosa e deixar o jornal mais
competitivo no cenário do jornalismo baiano, além de mais moderno nos quesitos forma e
conteúdo. O processo vai ser liderado pela empresa de consultoria espanhola Innovation.
Entre os clientes da empresa estão os periódicos La Nación, Libération e O Globo.
2.2 O caderno Correio Repórter
O Correio Repórter começou a circular em maio de 2000, com o tema
Quilombolas. Desde a primeira edição, ele traz como característica marcante a base
histórica, que vai caracterizar muitas de suas edições. Segundo a idealizadora e atual
chefe de reportagem, Linda Bezerra, ele nasceu com o intuito de abrigar grandes
reportagens. A busca era principalmente pelo jornalismo histórico, com a intenção de
“mostrar a história da Bahia que não foi contada. Buscamos algo que não existia no
Jornalismo até então”, como contou Linda Bezerra em entrevista destinada à elaboração
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deste trabalho monográfico. Segundo ela, o ideal era contar sempre com uma linguagem
literária, mas nem todos os repórteres envolvidos com a elaboração do semanal
conseguem aproveitar bem as técnicas oferecidas pelo jornalismo literário. “São poucos
os que têm essa capacidade, até porque esse caráter literário já vem, muitas vezes, com a
própria pessoa. O jornalismo literário foge do padrão diário, é mais livre, mais
romanceado”, acrescenta Bezerra.
O caderno sempre apresenta edições temáticas. Sua capa chama exclusivamente
para a grande reportagem interna, que se desdobra nas páginas 3 a 7. O Correio Repórter
também dá espaço a escritores da cidade, com duas crônicas na página 2. Na contracapa
(página 8), jornalistas escrevem perfis de personagens anônimos (que não tem ligação
com a reportagem principal). Ali também são publicadas cartas de leitores, que
geralmente comentam a edição passada.
Em sua equipe, a chefe de reportagem conta com uma média de cinco repórteres.
Destes, três são fixos. Os jornalistas Pablo Reis, Adriana Jacob e Flávio Novaes integram
a equipe e são deslocados somente para eventuais coberturas especiais, além das escalas
de fim de semana.
A publicação conta também com “repórteres volantes” vindos, na grande maioria,
da editoria diária Aqui Salvador, responsável pela cobertura dos diversos fatos que
acontecem todos os dias na capital baiana. “O ideal é que não tenhamos uma equipe fixa.
Mas o grande problema que enfrentamos é, muitas vezes, a falta de experiência destes
profissionais. Muitos foram contratados pelo A Tarde”. Além dos repórteres e da chefe de
reportagem, o caderno conta com um editor e um diagramador.
Para fechar uma edição, como as reportagens necessitam de pesquisas
aprofundadas e de um outro tempo para a confecção do texto, o jornalista conta com uma
média de 30 dias disponíveis. Nesse período, ele, inclusive, não precisa comparecer à
redação do jornal. O profissional administra o seu tempo da forma que preferir e se
compromete em entregar o conteúdo no prazo. Com as matérias em mãos, a equipe
necessita de dois dias para editar todo o material.
Algumas reportagens do Correio Repórter foram publicadas em livros. Duas
obras chegaram ao mercado com uma seleção de textos do caderno, nos anos de 2004 e
2005, com o título Memórias da Bahia. Existe uma terceira edição finalizada, mas está
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engavetada por falta de verbas que possibilitem o lançamento de um novo livro no
mercado, segundo Linda.
Mesmo diante da forte carga política que o Correio da Bahia traz em sua história,
Linda Bezerra não aponta nenhum tipo de censura sofrida pela publicação. Ela, porém,
ressalta que o jornal é uma empresa e, como tal, visa o lucro e tem os seus interesses
particulares. “Mas nunca foi preciso derrubar uma edição. Tenho um orgulho enorme de
fazer esse caderno”. Segundo Bezerra, apenas uma edição, com a temática vinhos, deixou
de ser realizada após a constatação que a Bahia não teria tanta tradição no uso da bebida,
fato que desmereceria um caderno voltado exclusivamente ao tema.
Entre algumas capas de destaque do Correio Repórter, a chefe de reportagem
lembra de “Retratos do Nordeste” (7/2000), “Anísio Teixeira” (07/2000), “Boca do
Inferno” (08/2000), “Doce Utopia” (01/2002), “Espírito Barroco” (06/2003), “Otávio
Mangabeira” (09/2004), “Ufanista do Samba” (12/2004), “Subterrâneos da Discórdia”
(07/2005), entre outros.
Com relação à diagramação, pode-se afirmar que ela segue uma linha tradicional.
Como o caderno é temático, é comum a presença de fotos abertas (ocupando toda a
largura da página). Mas a disposição, ângulo e recorte das fotografias, nas edições
analisadas, bem como a disposição dos títulos, chamados e do texto, seguem idéias de
desenhos de páginas conservadoras, no estilo praticado na década de 80 no Brasil -
conseqüência da falta de modernização do projeto gráfico do jornal Correio da Bahia.
2.3 Análises
2.3.1. Edição 3/6/2007 – “Black in Bahia”
A reportagem de capa da edição do dia 03/06/2007 se intitula “Black in Bahia” e
trata da presença do movimento americano do black power e do funk soul em Salvador.
Essa presença recrudesceu no começo dos anos 80 e, desde o fim dos anos 90, retorna
com outra roupagem, a do hip hop. Podemos dizer que o tema certamente foi escolhido
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por estar novamente em voga o “black” na Bahia, o que compromete de liberdade
temporal.
A liberdade temática, no entanto, se mantém, pois o tema do movimento negro
raramente é abordado do ponto de vista histórico e cultural no jornalismo cotidiano de
Salvador, sendo muito mais vezes as lideranças negras apresentas como lideranças de
protestos contra o racismo e a violência urbana, ou simplesmente como lideranças
religiosas do candomblé ou organizadores de blocos de Carnaval, como se fossem
pessoas atemporais e imbuídas de uma capa contra as influências globalizadas que
marcam as manifestações culturais na pós-modernidade.
Como o repórter fornece uma outra angulação para o movimento negro, trazendo
já no nome da matéria um termo americano para se referir às raízes do atual modelo de
ser negro na Bahia, sem se deixar tolher por possíveis censuras institucionais ou racistas e
mesmo de angulações do nível-massa (posto que, certamente, seria mais vendável um
caderno que tratasse apenas do atual mercado fonográfico do hip hop), percebemos ao
longo do texto liberdade de angulação.
A captação do repórter não é do tipo observação participante, posto que
Alexandre Lyrio reporta fatos passados ou mesmo distantes, ocorridos no Rio ou em
Nova Iorque. Quando trata da cena atual do hip hop, não se coloca na pele de um MC ou
de um DJ, apenas se limita a reportar o movimento.
Todas as matérias da reportagem iniciam com o mesmo tipo de abertura. O
repórter Alexandre Lyrio repetiu a lição de abertura de aquecer a narrativa com um fato,
uma cena, um acontecimento particular que apresenta e sintetiza todo o propósito do
texto:
“Um homem movido a nitroglicerina abre crateras de subversão em palcos
americanos, traduzidno em versos o levante negro contra o racismo:
- Say it loud, I’m Black and I’m proud – Diga isso alto, sou negro e tenho orgulho!
Com microfone em punho, James Brown, o Mister Dynamite ou “Senhor Dinamite”,
detona melodia agressiva e discurso hostil para romper com qualquer forma de música e
intolerância. É a trilha sonora de um movimento ainda mais abrangente (...)” (p. 3)
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“O cano de uma beretta niquelada, calibre 9mm, mira o corpo de qualquer ser
humano de pele branca e indumentária policial. A cidade de Oakland, na Califórnia, vive
dias de confronto violento entre os Black Panters, os Pantera Negras, e as autoridades
locais. O braço armado do movimento black power patrulha ruas e guetos em defesa da
própria comunidade, perseguida pela polícia racista.” (p. 4)
“O metrô de Nova York atravessa a área suburbana de Manhattan com lotação
completa. No Harlem, considerado maior centro cultural afro-americano, desembarca
imensa leva de negros, reunidos à porta da casa de espetáculos Apolo Theather – Teatro
Apolo, meca da música soul mundial. Longe dali, com alguns anos de atraso, nota-se
movimento semelhante na periferia de Salvador.” (p.5)
“Ladeira de São Bento abaixo, trecho final da Avenida Sete de Setembro, pouco
mais de duas dezenas de tamboras enfrentam a desconfiança e o receio de uma Praça
Castro Alves inteira.
- Que bloco é esse?
O questionamento seria desnecessário. Toda a África, com a plenitude que
congrega os diversos mundos e etnias de sua diáspora, utiliza versos de Paulinho
Camafeu para responde em coro:
- Esse é o mundo negro, que viemos mostrar pra você.” (p.6)
“À base de comprimidos de ropinol, John Travolta esquece-se de sua vida
tediosa. De segunda a sexta, imerge no lamaçal de problemas e discussões familiares.
Em dançantes noites de sábado, com punhado de amigos e psicotrópicos, faz o mundo
curvar-se ao bamboleio do seu quadril” (pg. 7)
Dessas aberturas pode-se perceber também o uso da técnica da construção cena-a-
cena, difundida por Tom Wolfe. Também há um esforço para a realização de uma
autópsia social que permita ao leitor localizar quem eram os integrantes do Black Power
na Bahia:
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“Nossos panteras negras não empunham armas de fogo. Estão mais preocupados
em ostentar o respeitável ‘cabelo casa de cupim’, símbolo máximo das transformações
estéticas a que se submetem. (...) Batizados com alcunha particular, em clara referência
ao maior ídolo daquela geração, os browns ou “braus”, assumem postura de exaltação
da própria beleza. Nas ruas, adotam espécie de narcisismo declarado. (...) Portam-se à
maneira de Michael Jackson e seus quatro irmãos (...). Queixo suspenso, andar
pretensioso, o sapato Adams ‘cavalo de aço’ com plataforma descomunal e chapa de
metal no bico coloca-os acima da medida dos brancos. Blusa de manga comprida,
colada ao peito, de material flexível para aderir aos contornos do corpo. (...) Saem às
ruas em bandos, comboios de 10 ou mais, sempre a divulgar a batida de James Brown.
Penetram em aniversários, casamentos, batizados e até carurus de São Cosme e Damião.
(...) Aceitos ou não, os blacks dominam os recintos e seduzem pela postura. Sempre
impecáveis, mexem com a imaginação feminina. (...) Conquistam olhares logo na
primeira girada de corpo, sempre seguida pelo toque da ponta de um dos pés no chão, a
senha para o início da disputa. Abre-se a roda, o mais provocador dá corrupio até o solo
e desliza movimento desafiador bem no meio do salão. (...)” (p. 4)
O uso da autópsia social e da construção cena a cena está presente em toda a
reportagem, sempre entremeado com declarações de personagens que viveram a época.
No entanto, não há o uso da técnica da alternância de ponto de vista, nem a transcrição de
diálogos completos. O uso de lições de cinema confunde-se com a das construções cena a
cena, mas as quebras são proporcionadas apenas pelos intertítulos do texto. Não há lições
de passagem nem de término.
2.3.2 – Edição 10/06/2007 – “Palácio da arte”
A reportagem especial “Palácio da arte” foi publicada no Correio Repórter na
edição de 10 de junho de 2007. Assinada pela repórter Adriana Jacob, o texto explora o
cotidiano e características da nova burguesia que começou a emergir em Salvador no
início do século XX. Naquele período, o palacete denominado de Villa Catharino,
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construído pelo comendador Bernardo Martins Catharino, virou símbolo de modernidade
e, também, daquela classe emergente.
O palácio é o assunto central da reportagem, que descreve-o, na época da
construção, com riqueza de detalhes, além de trazer algumas curiosidades, como o fato de
ter sido um dos primeiros a contar com banheiro em Salvador. O texto também traz um
pouco da história da família do comendador. O palacete, que foi tombado como
patrimônio histórico, chegou a ser cogitado como local para a primeira sede do Museu
Rodin fora da França, mas a idéia foi abortada em 2007.
O caderno é centrado no chamado jornalismo histórico, apontado pela chefe de
reportagem Linda Bezerra como uma das principais características da publicação. São
muito poucas as características do jornalismo literário presentes no texto. A questão
histórica se sobrepõe às demais.
Com relação às técnicas apontadas por Wolfe, não se encontram nas reportagens
observação participante, mudança de ponto de vista e diálogos completos. Mas existe
autópsia social, como na passagem que abre a matéria da página 3.
“A planta do italiano Rossi era um luxo. Não só porque nos três pavimentos
havia sala de música, salão de bilhar, biblioteca, barbearia, mas principalmente porque,
em meio aos dez quartos reservados à família, havia uma sala de banho (...)”
O caderno possui tentativas de construção cena a cena, que não chegam muito
próximos ao modelo wolfeano porque contam apenas uma cena de cada vez. De qualquer
forma, o esforço é feito, como nos trechos:
“Ao acordar, antes de ir ao trabalho, ele não descia para tomar o café da manhã.
Sentava-se numa salinha localizada ao lado do quarto e pedia que trouxessem sua
bisneta Alice Maria, de apenas três meses de idade. A menina era colocada então num
pequeno colchão sobre a mesa diante da louça com o desjejum. Como numa conversa
sem palavras, apenas com troca de olhares, Bernardo sorria, satisfeito.” (p.6)
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“Quando José Pereira era menino, ganhou uma bicicleta de presente do pai. Um
dia, quando pedalava nas ruas do Barbalho, viu um carro parar ao seu lado e escutou a
voz do padrinho:
- Pára o carro, Honório, e bota a bicicleta no carro. Vamos almoçar lá em casa.”
(p.6)
As técnicas apontadas por Edvaldo Pereira Lima, e escolhidas para análise nesse
trabalho, também não ganham destaque na edição. Pode-se apontar uma lição de abertura
na matéria da página 4.
“Mal havia chegado a Feira de Santana, vindo de Portugal, Bernardo foi logo
cuidar dos pesados serviços gerais da firma Joaquim José da Costa & Irmão. Dedicado
e inteligente, o desempenho do menino logo chamou a atenção do proprietário (...)”
Existe lição de encerramento na matéria da página 5.
“Era lá que, durante muitos anos, o comendador tomava o café da manhã. O
homem de negócios, ar empreendedor, só começava a refeição quando chegava à salinha
um de seus mais preciosos bens.”
Não se encontra lições de passagem e cinema. No que diz respeito à pauta, pode-
se dizer que existe liberdade temática, mas não temporal, já que o assunto estava em
discussão devido à vinda para a Bahia da primeira filial do Museu Rodin. A reportagem
também não teve liberdade de angulação, pois a repórter não aproveitou a oportunidade
de produzir uma obra autoral, limitando-se a contar a história do casarão que abrigaria o
Museu, de forma basicamente convencional.
2.3.3 - Edição 17/06/2007 – “Chá sagrado”
A reportagem “Chá Sagrado” foi escrita pela jornalista Mariana Rios e publicada
na edição de 17 de junho de 2007. O tema central em questão é a ayahuasca, bebida
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preparada com a mistura de dois ingredientes naturais (cipó Banisteriopsis caapi e o
arbusto Psychotria viridis), e que é utilizada em rituais religiosos com o intuito de
ampliar a consciência e aproximar o usuário com a figura do divino. Segundo a matéria,
estima-se que duas mil pessoas façam uso do chá na Bahia. O composto tem gosto muito
amargo e conta com difícil aceitação pelo organismo devido aos efeitos colaterais.
Os adeptos das diferentes comunidades religiosas que fazem uso da ayahuasca
não encaram o produto como alucinógeno, apesar de psiquiatras afirmarem que é. Entre
as comunidades que fazem uso, as mais famosas são União do Vegetal e o Santo Daime,
mas existem os dissidentes e, também, aquelas que tentam não aproximar tanto o chá das
cerimônias religiosas.
A reportagem não apresentou muitas técnicas do jornalismo literário, mas
podemos observar alguns elementos ao longo do texto. O texto de Mariana Rios traz, em
determinados momentos, a construção cena a cena, apontada por Tom Wolfe no prefácio
do livro Radical Chique como um dos elementos do new journalism. O recurso pode ser
observado na abertura da matéria da página 7.
“Todos estão sentados, e a frase “flamejai chama violeta” é repetida no aparelho
de CD. Em seguida, cantos gregorianos compõem a trilha sonora. De repente, após
alguns arrotos e profundas inspirações, o homem sentado ao lado, joga-se ao chão.
Levanta-se e põe-se a dançar em volta da fogueira (...)”
Com relação à pauta, pode-se dizer que ela é atemporal. A temática não está
presente na grande mídia com freqüência, o que ajuda com que a prática ainda seja
desconhecida por uma boa parte da sociedade brasileira. Os rituais são restritos a
pequenos grupos e, quando se tornam públicos, ainda sofrem preconceitos. Da mesma
forma, há liberdade temporal, por não haver nenhuma data comemorativa ou noticiosa
atrelada à reportagem.
Observa-se a presença de liberdade de angulação. Mariana Rios aproveitou a
oportunidade para posicionar-se favoravelmente ao uso religioso do ayahuasca de forma
autoral, ao mesmo contando sua própria experiência com o chá e ouvindo,
predominantemente, fontes que o defendem. Dessa forma, Rios atua de forma
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independente do nível massa, já que as reportagens sobre substâncias psicotrópicas
costumam condenar o uso ou causar alarmes sobre possíveis vícios. A repórter também
atua com liberdade quanto ao nível institucional, o que pode ser compreendido pelo fato
do uso religioso do chá não interferir em interesses da Rede Bahia ou do Correio da
Bahia.
A observação participante, também citada por Wolfe, pode ser encontrada ao
longo do texto. A rica descrição do efeito e sensações causados pela ayahuasca leva a crer
que a repórter não somente participou de rituais, como fez uso do chá. Na abertura da
matéria da página 3, da edição em análise do Correio Repórter, o recurso já pode ser
observado pelo leitor.
“Do coração da Amazônia brotam as insígnias e da mente dos homens, as
alegorias. Ao ser apresentado ao chá ayahuasca, se prepare para ser auto-apresentado.
Cipó ou corda das almas é uma das traduções possíveis para a bebida que, ao agir sobre
a mente, provoca ampliações de consciência e aos homens de fé, uma comunhão com o
sagrado (...)”
O recurso prossegue ao longo do texto:
"Ao virar na boca, e com apenas um gole, forçar a sua descida ao corpo, o rosto
contrai. A boca não acredita naquele gosto, que parece testar até onde suportamos sua
adstringência. O retorno para a cadeira – a depender da sensação ou seita, pode-se
permanecer em pé, bailar e cantar - é aceitação, uma renúncia ao gosto prazeroso (...)”
E na página 04:
“A lua ia alta e de olhos fechados, miravam. Eram centenas de olhos - pontos
estrelados. Piscado e a olhar, íris cristalinas negras, azuis, vermelhas, verdes, castanhas,
azuis amarelas. A sensação era incômoda – como se cada parte do corpo, observada e
esmiuçada, estivesse deslocada e desordenada (...)”
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E na página 6
“Vinte minutos após a ingestão do chá, começam as reações. Algumas pessoas
conservam os chicletes nas bocas, para amenizar a aspereza do chá. A respiração
profunda antecipa a purgação. O mestre executa as chamadas de abertura – espécies de
cânticos cuja função é chamar a força na sessão da União do Vegetal e controlar a
borracheira (força estranha), chamando ou despedindo diferentes energias. Concentrar-
se nas chamadas é considerado importante – mesmo com o fluxo permanente de
pensamentos e “as voltas que parecem ocorrer no abdômen.”
A autópsia social quase não aparece nesse texto, exceto no trecho:
“Os signos são diversos. Cristal, cruzeiro, espiral, altar, uma moldura com a
imagem de Saint German, e aos fundos da casa, o congá – local para trabalhos de
Umbanda (...)” (p. 7)
Nos textos não foram encontrados os recursos de diálogos completos, autópsia
social e mudança de ponto de vista. Já com relação às técnicas apontadas por Edvaldo
Pereira Lima, na obra Páginas Ampliadas, pode-se observar lições de abertura, que
prendem a atenção do leitor logo na matéria da página 3.
“Do coração da Amazônia brotam as insígnias e da mente dos homens, as
alegorias. Ao ser apresentado ao chá ayahuasca se prepare para ser auto-apresentado.
Cipó ou corda das almas é uma das traduções possíveis para a bebida que, ao agir sobre
a mente, provoca ampliações da consciência e aos homens de fé, uma comunhão com o
sagrado. Fruto da união harmônica de duas espécies vegetais, o líquido marrom escuro
permite ao corpo humano alcançar o inatingível. Aprendizado e autoconhecimento
ofertado pela natureza.”
Mas as reportagens não contam com lições de término e retorno, já que o material
não é finalizado com sugestões de perguntas para o leitor. Mas apresenta lições de
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cinema, passando do momento atual para o passado, de maneira brusca, como na matéria
presente na página 6.
“Mestre Nonato recebeu a estrela que o designa apto a comandar as sessões da
União do Vegetal do fundador da religião: o baiano mestre Gabriel. Nascido em
Coração de Maria, em 1922, José Gabriel da Costa teve uma vivência espiritual intensa,
em busca da realidade (...)”
No texto, não foram encontradas as lições de passagens abordadas por Lima.
2.2.4. Edição 24/06/2007 – “Quadrilátero do pretérito”
A reportagem em análise “Quadrilátero do pretérito” é assinada por Pablo Reis e
foi publicada em 24 de junho de 2007. Vem, como as demais, com um texto de chamada
na capa e ainda ocupa as páginas 3, 4, 5, 6 e 7 para falar sobre as lojas de antiguidades
localizadas no centro de Salvador que já tiveram seus dias de glória e, hoje, amargam um
período de franca decadência.
O texto traz as três liberdades de pauta. Como se trata de um assunto pouco
tratado na mídia, já que o segmento está em decadência, a pauta possibilitou ao repórter
imprimir a sua marca, sem a presença do nível grupal ou de massa, utilizando a liberdade
de angulação. Também tem liberdade temática, pois traz à tona um assunto que passa
despercebido até mesmo pelas pessoas que transitam naquela região. E a liberdade
temporal, já que a pauta não encontra nenhuma conexão com o momento atual, ou seja,
não há nenhum link para que o assunto fosse levantado.
O jornalista também se utiliza, em todas as páginas, da lição de abertura, muitas
vezes mesclada com construção cena a cena. Vejamos os exemplos, página a página, na
ordem de aparição:
“Gildo dorme em divã de madeira. São quase 17h nas proximidades da prefeitura
de Salvador e das repartições públicas que deixam as ruas transversais do centro antigo
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da cidade apinhadas de carros. Há movimento nas redondezas, mas não há serviço para
Gildo, alheio a tudo isso no sono vespertino de seu assento em jacarandá.”
“A coleção de santos do século XIX está lá por todas as prateleiras, mas não tem
audiência sacra e nem profana para eles. São imagens graves da religião que já
adornaram oratórios, nichos e estantes dos grandes fazendeiros do inteiro do estado, e
hoje podem ser compradas a partir de R$50.”
“Ele vem novamente com suas duas sacolas de plástico estufadas de promessas
de lucros e já imagina que vai ser recebido pelo arrocho de uma crise. O mulato idoso
procura por negócios, tem excelentes oportunidades para um comerciante esperto. É o
mascate das antiguidades (...)”
“O cheiro de guardado perfuma de ócio os antiquários mais tradicionais do
centro de Salvador. As peças amontoadas continuam em seus lugares por até anos,
porque dependem da aparição de clientes em um fluxo bissexto. A entrada de uma pessoa
na loja é motivo insuficiente para dar esperanças a qualquer vendedor, que sobrevive de
salário, mas principalmente de comissão.”
“No ponto privilegiado da Ladeira da Praça, a Casa Moreira, desde 1925,
tornou-se referência em relíquias ornamentais, preciosidades de quaisquer eras,
tamanhos e preços. Mais que uma loja, é um marco do prestígio e da fidelidade aos
clientes, recomendada por Jorge Amado, no livro “Bahia de Todos os Santos – guia de
ruas e mistérios.”
Nos textos da reportagem em análise, pudemos observar o uso da técnica de lições
de cinema, principalmente na página 03. Nela, o jornalista, praticamente a cada dois
parágrafos corta a narrativa que vem desenvolvendo com o personagem X para apresentar
o personagem Y e o Z, com suas atitudes e novos cenários. A cada nova quebra de
espaço, quando vai apresentar novo personagem, o repórter inicia com “Menos de 100m
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adiante, ergue-se sem pressa dona Nicier Aguiar...”, ou “A 40 passos de distância, outra
vendedora, Eliana dos Santos Primo...”.
Esse recurso também é visível na página 06, quando o repórter aproveita para
descrever uma cena:
“Quase ao mesmo tempo, na Casa Moreira, um senhor atarrancado, usando
pochete e com jeito de quem está sempre com pressa, mostra a José Luís, no balcão, o
próprio relógio (...)”
Além desse tipo de quebra na narrativa, o jornalista também traz elementos da
técnica de lições de passagem, pois quebra o ritmo com novos conflitos. Na mesma
página 03, o texto vem apresentando os vendedores para, num determinado momento,
começar a falar dos problemas da região. Mais adiante, depois de apresentados os
problemas de estacionamento, policiamento etc, o repórter volta à cena para os
vendedores, utilizando mais uma vez de construção cena a cena:
“Gildo levanta da sua cadeira de sesta com aquele jeito sem muito ânimo de
quem ainda esfrega os olhos, como criança que acorda de manhã e não quer ir para a
aula, não exatamente com má vontade, mas apenas uma reação orgânica ao susto de
despertar.”
A técnica de construção cena a cena é usada praticamente em todos os três
primeiros parágrafos da página 05, quando o repórter fecha a aspas de um vendedor com:
“(...), lamenta, limpando o suor espesso da testa larga protegida por um boné
surrado de campanha política.”
A construção cena a cena é utilizada de forma mais interessante na página 06,
quando o jornalista descreve o momento em que uma suposta compradora entra em uma
das lojas:
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“Eliana Primo acaba de receber uma senhora com aparência de ex-hippie,
cabelos propositadamente deixados grisalhos, que procura determinado tipo de mesa de
uma madeira específica. Eliana ainda tenta argumentar que há alternativas para aquele
móvel no acervo. A cliente desconversa, só queria saber de determinada mesa, ainda
passeia pelo ambiente, pergunta sobre esse ou aquele item e vai embora sem se
despedir.”
E, na página 05, não de forma ampla, mas sucinta:
“É no número 73, da Rua Ruy Barbosa, que ele mantém a oficina para remediar
os estragos do tempo. Mesa, cadeira, guarda-roupa, composições feitas com tábuas
escuras e pesadas passam pelas mãos calejadas dos seus 75 anos de idade, quase seis
décadas do único ofício que aprendeu na vida.”
De forma também tímida, o jornalista experimenta, em alguns momentos, a
técnica de alternância de pontos de vista. Vejamos esse exemplo da página 03 quando o
repórter apresenta uma vendedora e, em seguida, se coloca como se fosse ela a observar o
movimento da rua:
“Enquanto isso, assiste a uma escalada de violência no camarote de seu próprio
trabalho. O trânsito dos excluídos, o balé sinistro dos chamados sacizeiros que saem das
tocas no crepúsculo para dominar aquele quadrilátero dos antiquários.”
Na página 07, o repórter tenta entrar no fluxo de consciência dos vendedores
quando descreve o atendimento a uma jovem cliente:
“Diante da escassez de clientes, receber a jovem numa tarde ociosa é até um
estímulo para desenvolver explicações sobre a origem de algumas peças.”
As técnicas de lições de término ou retorno também são utilizadas por Pablo. Na
página 03, por exemplo, o leitor termina o texto com várias perguntas na cabeça ou com
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vontade de saber mais sobre o assunto. O repórter conclui com uma venda bem sucedida
em um dos antiquários: “É um raro dia de alegria no quadrilátero dos antiquários de
Salvador.”
Técnica rara nos textos analisados, a autópsia social é experimentada por Pablo na
página 03:
“Nos dois pavimentos da Casa San Martin, a disposição disciplinada dos objetos,
a luminosidade e o aspecto de uma recente demão de tinta dão a impressão de um
empório de decoração. Só que o ambiente em tons pastéis apenas disfarça uma rejeição
indistinta dos clientes por aquele comércio.”
E com construção de uma cena na página 06:
“Na frente da loja, uma placa avisa sobre compra e venda de antiguidades:
louças, prataria, jóias antigas, brilhantes, relógios, móveis, quadros, cristais, biscuit e
lustres. Só que desde o Carnaval, não há nem compra e nem venda no estabelecimento. A
caixa registradora, de tão obsoleta, corre risco de virar artigo de exposição também.”
Ainda na página 06, o jornalista se utiliza dessa técnica, dando já o gancho para o
final do texto, com lições de término e retorno:
“O teto em madeira arruinada, carcomida e com mofo, contrasta com o veículo
que ele estaciona dentro do estabelecimento, perto de penteadeiras e cristaleiras (...)”
O mesmo ocorre na página 07, quando descreve uma boneca de louça e a utiliza
para brincar com o texto:
“Na San Martin, uma boneca do tamanho de uma criança de 3 anos, com a face
alva de porcelana, sentada numa cadeira, parece fitar os poucos clientes com os olhos
gulosos de uma órfã que pede para ser levada para casa. Só que o preço não é
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brincadeira: R$ 2 mil. E termina assim a fábula de melancolia e desolação no
quadrilátero dos antiquários em Salvador: com uma boneca desamparada à espera de
um dono que não vai chegar e vendedores solitários recolhidos ao passado de fausto,
porque o presente é só reclamação.”
Nessa reportagem em análise, apenas uma vez o repórter se utiliza da técnica de
diálogos completos. Vejamos o exemplo na página 06:
“- Sessenta e nove reais, em promoção, responde.
- Mas, como? Eu comprei esse meu por 89..., indigna-se.
- É. Esses preços variam de loja pra loja...
- Mas eu comprei aqui mesmo.
- Como eu já disse, a gente não tem mais o relógio e ele estava em promoção.”
Pablo Reis não utilizou a técnica da observação participante. Embora se perceba
que o repórter é bastante observador, a ponto de transcrever diálogos completos, não
chega a participar dos acontecimentos.
2.2.5. Edição 01/07/2007 – “Heroína esquecida”
A reportagem em análise “Heroína esquecida” foi escrita pelo repórter Flavio
Novaes e fala sobre a cidade de Maragogipe, que foi cenário importante para a
independência da Bahia, mas atualmente, não faz parte das comemorações do 2 de Julho.
Um dos fatos de comprovação dessa tese foi que a cidade recebeu o prisioneiro general
Labatut, em 1822, um dos nomes mais conhecidos dessa parte da história.
A reportagem está dividida em capa e páginas 3, 4, 5, 6 e 7, sendo que está última
foge do tema central. Na página 7, o repórter apresenta um aspecto econômico e social
dos moradores de Maragogipe. O texto mostra a importância da pesca para a vida dos
moradores (a principal fonte de renda) e o perigo da pesca com bomba que é realidade na
região. No final, traz dados sobre a suposta volta da Companhia Bahiana de Navegação a
Vapor.
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A reportagem foi publicada no dia 1 de julho de 2007, portanto, um dia antes da
histórica data de 2 de Julho, quando se comemora a Independência da Bahia. Esse detalhe
chama a atenção para a liberdade de angulação que aqui não está presente, pois a
abordagem realizada pela repórter atende às exigências do nível-massa, ao explicar para
os leitores as motivações históricas da importância do município. Essa limitação também
é complementada pela ausência de liberdade temporal, já que o caderno circulou um dia
antes da comemoração do 2 de Julho.
Por outro lado, a reportagem apresenta a liberdade temática porque todo ano se
fala na Independência da Bahia, mas sempre (ou na grande maioria das vezes) da mesma
forma, pouco se acrescentando à história. Dessa forma, a reportagem traz um tema que
não é alvo comum: a participação de Maragogipe na luta pela independência da Bahia.
Na abertura da reportagem em análise, logo na capa, o jornalista usa da técnica
destacada por Lima, a lições de abertura e de forma quase poética, faz um resumo do que
o leitor pode esperar naquele caderno.
“Maragogipe não esquece, foi ali que ficou preso o general Pierre Labatut. As
celas úmidas do primeiro andar da Casa da Câmara e Cadeia do município, que hoje
servem de depósito, foram testemunhas da luta pelo poder. Foi ali, por mais de 60 dias,
onde permaneceu um dos heróis da independência (...). Maragogipe não é mais a mesma,
mas ainda há tempo de fazê-la colher os louros das comemorações do 2 de Julho (...)”
Nas páginas internas, o jornalista utilizou algumas das técnicas de jornalismo
literário, mas sempre de modo tímido. Uma das técnicas utilizadas foi a lições de
abertura, que está presente em quase todas as páginas, a exemplo da página 03:
“Todo ano é o mesmo discurso, é o mesmo enfoque, é a mesma visão distorcida
do evento que mudou a história do Brasil. Salvador, Santo Amaro da Purificação,
Cachoeira e até Itaparica levam os louros de uma história que envolveu muito mais do
que a capital do estado, a do recôncavo, a jóia do Paraguaçu e a maior ilha da Baía de
Todos os Santos (...)”
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Nas demais páginas, o jornalista se vale da técnica de lições de abertura,
utilizando para isso o recurso wolfeano de construção cena a cena, como aparece de
forma tímida na abertura do texto da página 04:
“A Casa da Cultura cumpre o seu papel. Adolescente e crianças, dezenas delas,
estão rodando por ali, íntimos do lugar. E entre conversas, gargalhadas e às vezes
olhares de quem está saindo da puberdade, sentam-se para pesquisar (...)”
Essa técnica também foi utilizada na abertura do texto da página 06:
“Tudo aconteceu muito rápido, a região vivia dias agitados, tensos, de grande
preocupação. Momentos que alternavam tristeza e euforia. Por isso aquela agonia,
deveria ser exatamente naquele instante, o patriota Manoel Maurício Pereira Rebouças
deveria partir à toda à vizinha Maragogipe e comunicar a boa nova.”
E ainda na abertura da página 07:
“É final da manhã e os homens, sobre as pequenas embarcações, se aproximam.
Alguns sentados, remando. Outros de pé, com os paus, enterrando-os na lama do
mangue, até a aproximação no ancoradouro da cidade. Saíram cedo, nas primeiras
horas da manhã. E agora retornam com xangôs, robalos (...)”
A técnica de variação de observação participante também é pouco (ou
timidamente) utilizada. Está presente, por exemplo, na página 04, quando o repórter se
coloca no texto:
“Dali à outra casa, a que abriga a sede dos poderes Executivo e Legislativo do
município, bastam alguns passos. Logo estamos, sempre acompanhados do fiel Roque
Cruz, em frente (...)”
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Como exemplo da técnica de alteração de ponto e de vista, na página 05, o
repórter descreve o ponto de vista de um pescador de Maragogipe, contando um detalhe
do seu dia de labuta, para depois apresentá-lo, pelo ponto de vista do jornalista, como
solução para o transporte até o local onde a reportagem terá continuidade.
Na página 06, o jornalista se coloca dentro no momento histórico, quando escreve
“Estamos nos primeiros minutos do dia 26 e apenas uma hora antes havia acabado de
terminar o embate (...)” ou “Mas voltemos àquela madrugada do dia 26 em que todos
pareciam extasiados (...)”.
Já na página 07, o jornalista narra com o ponto de vista de um dos pescadores do
local preocupado com a questão ambiental.
“Mas, fica a dúvida: será aquele farto pescado que se apresenta no cais um
presente espontâneo de Iara, a rainha das águas? Ou um butim? Que, daqui a algumas
horas, envolverá mais cúmplices no crime consumado, os consumidores da feira ali
adiante, inocentes ou não? Afinal, nem tudo é festa. ‘As pessoas ainda pescam muito com
bomba por aqui. Eu mesmo fazia isso direto, mas parei’.”
Como exemplo das lições de passagem, na página 04, encontramos o trecho no
qual o repórter está falando sobre o general Labatut em Maragogipe e passa a falar sobre
a lembrança dele em Salvador, onde ele é nome de rua e as pessoas, no dia das
comemorações ao 2 de Julho, discutem a pronúncia certa de seu sobrenome, para depois
voltar para o local, em Maragogipe, onde ele ficou detido.
Também de forma tímida, o texto da página 04 traz a técnica wolfeana da autópsia
social:
“É a sua residência, dentro do prédio, na antiga masmorra. Seu apartamento está
montado, com direito a alguns passarinhos presos em gaiolas e outros utensílios
domésticos para distrair a prole (...). O outro portão, imediatamente contíguo à casa,
está aberto (...). Guardam-se, sim, dezenas de garrafas Pet, cadeira, roupa velha,
bananas, laranjas para o consumo e restos da antiga modernidade, como uma antena de
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TV. O antigo depósito é mesmo rico, da antiga masmorra, continuam apenas as antigas
grades (...)”
Outro exemplo dessa técnica aparece logo na abertura da página 05:
“Os músculos dorsais e plantares são extremamente desenvolvidos. Fruto de anos
e anos arrastando redes, jogando tarrafas, empurrando a areia da pequena praia da
Ponta do Souza, nos mangues de Maragogipe, seja em Coqueiros ou em Najé, ou ainda
nas pequenas e belas enseadas da baía de Iguape.”
E logo mais adiante:
“Quem nos recepciona, todo sorrisos, sandália de dedo com a tira frouxa e
remendada, camisa rasgada de político (...)”
Cortes de tempo e espaço, das lições de cinema, também estão presentes no texto,
como na página 04, quando o jornalista descreve a antiga masmorra, através da condução
do momento presente (situação atual) e volta para a parte histórica para lembrar dos
porquês da prisão de Labatut.
Outra técnica pouco utilizada, mas presente é a de diálogos completos. O
jornalista faz uso uma vez ou outra, mas contentando-se em pequenas troca de frases,
como pode ser observado na página 05:
“Que apelido é esse? ‘Sei não, se porque é não’. E cai na gargalhada seu
Bartolomeu Souza Santos, ‘dos diabos ninguém quer ser, né meu filho?’.”
E ainda:
“‘Lembro que o vapor que fazia a linha apitava quando aparecia lá embaixo
(...)’, recorda ele. Isso faz quanto tempo? ‘Não lembro, não, só sei que estou rezando 87
anos’, revela a idade.”
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Na página 07:
“‘É bomba de dinamite mesmo, do Exército’. E onde encontraram isso? ‘Ô, você
sabe que essas coisas têm em todo lugar, né não?’.”
A técnica de lições de término ou retorno também é pouco utilizada, mas temos
como exemplo o trecho da página 05, quando o repórter diz que é realizada uma
importante regata e se utiliza da figura de um dos personagens apresentados no texto e do
Forte de Salaminha que está em decadência:
“Em agosto, mês do evento, é mais uma boa oportunidade para conhecer um
pouco mais da história da Bahia. E seu Cobrinha estará lá, firme e vigilante, junto ao
seu Salamina, vendo os barcos da paz subirem o rio.”
2.2.6 Edição 08/07/2007 – “Guerreiras anônimas”
A reportagem em análise, “Guerreiras anônimas”, foi publicada em 08 de julho de
2007 e foi feita pela jornalista Perla Ribeiro. Trata, sob diferentes abordagens, como uma
grande autopsia social, a profissão da lavadeira em Salvador, do surgimento na época das
mucamas até os dias de hoje. A reportagem vem com uma chamada na capa e ocupa as
páginas 3, 4, 5, 6 e 7.
Quanto à questão da pauta, a reportagem em análise pode ser encaixar tanto na
liberdade de angulação, quanto temática e temporal. Liberdade temática porque se trata
de uma categoria profissional que nunca teve o reconhecimento público ou das esferas do
governo, portanto, pouco se escreveu sobre as lavadeiras no jornalismo cotidiano. Ou,
quando apareceram, sempre foram de forma superficial ou com algum enfoque que faz
parte de um todo. Nunca como sua rotina e importância como foco principal.
Há liberdade temporal porque a reportagem não faz referência a nenhum
momento atual, ou seja, não é factual. A liberdade de angulação se justifica porque não
houve interferências de interesses de nível grupal ou de massa.
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No geral, a reportagem em análise não apresentou muitas técnicas do jornalismo
literário. É um texto rico e bem escrito, mas que detém basicamente as técnicas
convencionais do jornalismo.
A repórter, no entanto, em todos os textos optou por utilizar das lições de abertura
que Lima tão bem caracterizou. Em alguns casos, esta opção ficou mesclada com a
técnica de construção cena a cena, apontada por Wolfe. Vejamos os exemplos (pela
ordem das páginas):
“Ao nascer, elas foram batizadas de Maria, Antônia, Joana e outros tantos
prenomes, mas, ao longo da vida, acostumaram-se a ser chamadas da mesma maneira.
Incontáveis vezes, enquanto essas mulheres subiam ladeiras ou caminhavam pelas ruas
equilibrando enormes trouxas de pano em suas cabeças, ouviam o vocativo: “Lavadeira!
(...)”
“Era um daqueles dias em que o céu estava bem azul e o sol tinindo. De
passagem pela Bahia, o príncipe Maximiliano de Habsburgo foi ao Dique do Tororó
conferir a riqueza da sua flora e fauna. Ali não se conteve diante das lavadeiras. Parou
atrás de uma árvore e pôs-se a observar (...)”
“Naquela manhã de uma data esquecida no tempo, as lavadeiras perceberam
uma movimentação diferente na Lagoa do Abaeté. O sol ainda lançava os primeiros
raios e, curiosamente, além delas, já existia um estranho visitante no local (...)”
“A trouxa podia ter 30 ou 60 peças, não importava quantas eram camisas ou
colchas, o valor cobrado era sempre o mesmo. Enquanto as lavadeiras se dirigiam à
casa das patroas, iam rezando para que as senhoras tivessem compaixão e maneirassem
um pouco na quantidade de roupas (...)”
“É tarde do terceiro domingo de junho, repetindo um ritual que já dura quase
duas décadas, um grupo com cerca de dez mulheres se reúne no Colégio Assunção, nos
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Barris. Conversam animadamente, dão risada, cantam e até sambam. Em comum, todas
as letras das músicas se referem ao trabalho e á luta das lavadeiras (...)”
A técnica de construção cena a cena também pode ser observada na página 05:
“Por décadas, diariamente saía de casa cedo para se juntar às dezenas de
mulheres que, como ela, ganhavam a vida lavando roupa. Chegavam à lagoa vestidas
com roupas leves, chapéu de palha grande ou um pano amarrado à cabeça para
proteger do sol forte, arriavam as trouxas e danavam a lavar (...)”
Ou na página 06:
“Enquanto as lavadeiras iam contando o número de peças e anotando em uma
folha de papel, sob o olhar atento da patroa, as espalhavam sobre um lençol, faziam um
monte e davam um nó com as pontas (...)”
O recurso de alteração do ponto de vista também é ensaiado pela repórter na
página 03 quando ela descreve o trabalho do cronista visual do Brasil do século XIX, o
francês Jean Baptiste Debret, sobre as lavadeiras.
“Munido com papel e pena, ele observou por horas a fio, às margens de um
riacho, o vaivém das mãos acariciando bruscamente os tecidos, insistindo para que a
sujeira os abandonasse. Na inexistência de escovão, esfregavam com o bagaço da palha
de licuri ou a folha de São Caetano (...)”
Muito sutilmente e pouco utilizada, a técnica de alternância de pontos de vista
pode ser observada na página 04 quando a jornalista se coloca no lugar do príncipe
Maximiliano de Habsburgo:
“Tinha ido ali para observar as belezas naturais, mas o aspecto humano não
podia escapar à sua observação. Impressionava a força que aquelas mulheres
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imprimiam nos braços para retirar a sujeira dos tecidos. (...) Por mais que a atividade
fosse braçal, encantava o desempenho com tanta destreza.”
E ainda quando se coloca no lugar de uma das lavadeiras:
“Dava gosto de ver os lençóis alvos brilhantes e exalando um perfume suave.”
A mesma técnica aparece na página 05 quando a repórter apresenta o ponto de
vista das lavadeiras que estranham a presença de um homem e três crianças, tão cedo do
dia, na Lagoa do Abaeté:
“De tão habituadas ao labor, como num gesto mecânico, as mãos já sabiam o
caminho a percorrer. Enquanto molhavam, ensaboavam e esfregavam incansavelmente,
desviavam o olhar para observar o intruso.”
E na página 06, ainda o ponto de vista das lavadeiras, sobre as patroas:
“Por mais que conhecessem de cor e salteado as recomendações, como um disco
arranhado, as patroas as repetiam incansavelmente. Diziam que queriam as roupas bem
lavadas, pediam para terem mais cuidado com as peças finas (...)”
Como foi dito na abertura dessa análise, a reportagem é toda estruturada como
uma grande autópsia social, mas podemos ainda dar exemplos mais claros, como o da
página 04:
“Carregando a penca de filhos e a trouxa na cabeça, elas acordavam com o sol e
junto com ele seguiam para mais um dia de trabalho, só retornando ao final da tarde.
Quem circula pelo Dique do Tororó ou mesmo pára às suas margens para admirar as
estátuas de orixás, dificilmente consegue imaginar que no passado o verde da água era
tomado pelo branco das espumas de sabão (...)”
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80
Ou ainda:
“Hoje o corpo cansado se limita a se deslocar vagarosamente pela casa, mas a
maior parte do tempo ela passa sentada no sofá, onde consegue ver a movimentação da
rua e a filha, que também é lavadeira, manusear o tanquinho.”
O texto também traz de forma sutil as lições de passagem quando a repórter conta
como era na época das primeiras lavadeiras, depois traz uma contextualização mundial
para a profissão e retorna para a rotina, mas com dados de lavadeiras da atualidade.
A técnica de lições de cinema também é usada, mas sempre de forma sutil. Na
página 06, por exemplo, o texto apresenta a rotina das lavadeiras, quando é cortado para
falar sobre a luta da classe e as suas reivindicações.
A técnica de lições de término ou retorno está presente na página 03, quando o
texto deixa em aberto a questão da extinção da profissão da lavadeira. Também na página
04 quando o texto não esclarece o que mudou no universo das lavadeiras, de antigamente
para os dias de hoje.
Nessa reportagem não foram utilizadas as técnicas de diálogos completos e
observação participante.
2.2.7 Edição 15/07/2007 – “Relíquia franciscana”
A reportagem de capa da edição de 15 de julho de 2007, intitulada “Relíquia
fransciscana”, foi escrita pelo repórter Flávio Novaes. O assunto é a história do Convento
de Santo Antônio de Paraguaçu, erguido em 1686, próximo à cidade de Cachoeira.
Nota-se que a liberdade temática e temporal são relativas aqui, posto que o
assunto da origem do Convento veio à tona com uma denúncia, difundida dois meses
antes, de que em torno da construção teria se constituído uma falsa comunidade
remanescente de quilombo, formada por escravos que teriam erguido o Convento, assim
como trabalhado em engenhos de cana-de-açúcar da região.
O tema da reportagem em análise é objeto de polêmica desde que a matéria do
repórter José Raimundo, da TV Bahia – que integra a Rede Bahia, mesmo grupo
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81
empresarial do Correio da Bahia - foi ao ar, em 14 de maio de 2007, no Jornal
Nacional9. A notícia televisiva suscitou muitas reações
10 em defesa dos direitos dos
quilombolas, posto que classificou as pessoas que moram no vilarejo como ladrões de
terra, interessados em roubar o território do ex-prefeito de Cachoeira, Edson Ivo de
Santana. O repórter Flávio Novaes, sem citar o nome completo do político, adota o
carimbo “Ivo Santana”, com o qual ex-prefeito é mais conhecido entre seus antigos
eleitores.
A denúncia foi alvo de sindicância pela Fundação Palmares, órgão do governo
federal responsável pelo reconhecimento desse tipo de comunidade. A sindicância
confirmou11
que, historicamente, pode-se considerar a comunidade remanescente de
quilombo, o que gerou reações dos fazendeiros de Cachoeira – incluindo o médico e ex-
prefeito Ivo Santana, cuja família se responsabilizou por preservar a memória e a
edificação do Convento. Assim, uma série de reportagens e notícias sobre as
controvérsias da origem da comunidade localizada próxima ao Convento passou a ser
publicada no final do primeiro semestre de 2007.
Ivo Santana e seus filhos são personagens da reportagem em análise. Aparecem
em três das cinco páginas, sempre entre elogios. Santana é apresentado ao leitor, pelo
repórter Flávio Novaes, como o patriarca e verdadeiro guardião do Convento, na página
5. “É a pessoa física diretamente responsável pela manutenção do grande imóvel, por
ele ainda estar de pé”.
O repórter se posiciona diversas vezes diante da família Santana como admirador
da paixão pela história franciscana por parte de seus personagens. Descreve assim Ivo
Santana: “81 anos, ex-prefeito de Cachoeira, dono de parte daquelas terras, amante,
eterno apaixonado pelo lugar”. Seus filhos também são pessoas muito respeitáveis e
cuidadosas: o filho Chico “possui muito mais que uma admiração pela obra grandiosa”,
9 A reportagem pode ser assistida na Internet por meio do endereço da Rede Globo:
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM676535-7823-
SUSPEITAS+DE+FRAUDE+EM+AREA+QUE+VAI+SER+RECONHECIDA+COMO+QUILOMBOLA
,00.html 10
Algumas das reações podem ser lidas em:
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/05/382190.shtml ,
http://www.ciranda.net/spip/article1094.html , http://refletindomuito.blogspot.com/2007/05/so-francisco-
do-paraguau-territrio.html ,
http://www.cedefes.org.br/new/index.php?conteudo=materias/index&secao=3&tema=31&materia=3735 11
Conforme http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/09/24/materia.2007-09-24.8721146942/view
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se tornou arquiteto por causa do Convento e fez “fino projeto para a recuperação de
toda a antiga área ocupada pelos franciscanos” (p.7); concede poder à família Santana,
pois coloca-a no status de possuir Zé de Gringa como “fiel escudeiro” (p.7).
Se Ivo Santana e família têm direito a declarações, elogios e presença intensa na
reportagem em análise, por outro lado os supostos quilombolas sequer são ouvidos pelo
repórter do Correio da Bahia. Mesmo sem cumprir a premissa jornalística de ouvir os
dois lados da história, Novaes conclui, ao final da página 3:
“Mas uma luta pela posse e propriedade de terras domina as rodas de conversa
enquanto o hotel de luxo não vem. É o que o jornalista José Raimundo denunciou no
Jornal Nacional e os pretensos descendentes de escravos estão vigilantes. Cercam como
quem não quer nada, estão desconfiados com a revelação da farsa dos quilombolas, o
carro da reportagem que está por ali. É mais um triste capítulo da história do Brasil.
Seja pela preservação do seu passado, seja pelos interesses obscuros que podem
atrapalhar ainda mais a busca à nossa verdadeira história.”
Pela presença maciça dos personagens da família Santana em posição de destaque,
pelo posicionamento do repórter e pela ausência do “outro lado da história”, podemos
afirmar que a reportagem é conduzida no sentido de comprovar a versão da família
Santana da história. Novaes ainda termina dessa forma, na página 7, com um
posicionamento bastante claro do repórter – e do Correio da Bahia – sobre a questão:
“Fundação Palmares, Incra, família Santana, Jornal Nacional, Poder Judiciário.
Invasões de terras, reintegrações de posse. Instituições e ações, uma legais, outras não,
hoje dominam e tiram a tranqüilidade da vila. As terras transferidas o patriarca Ivo
Santana para os filhos estão sendo constantemente invadidas por integrantes que
desejam ocupar a terra reconhecida como área remanescente de quilombola. ‘Quando
foi feita doação para os frades, já havia uma povoação de pescadores no local, não há
registro de quilombo’, registra Ivo Santana, evocando o historiador frei Joboatão, que
escreveu sobre a trajetória dos franciscanos. ‘No Iguape, dentro da bacia, é que existiam
escravos porque ali tinha muitos engenhos’, completa.”
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Estes são indícios de que a angulação da pauta da reportagem em análise
obedeceu ao nível institucional, por considerar verdadeira a versão reportada pela TV
Bahia, em vez de trazer a controvérsia – que seria a versão dos supostos remanescentes
de quilombolas, que dizem que seus antepassados, escravos, ajudaram a construir o
Convento. O jornal A Tarde esteve no local e trouxe essa versão12
cumprindo uma
angulação do nível-massa, ou seja, buscando trazer à maior parte dos leitores interessados
mais condições de obter dados em linguagem acessível sobre o conflito.
Podemos nos perguntar: e o que faz o Correio da Bahia publicar apenas uma
versão da história, assim como a TV Bahia? Se olharmos para a história da Rede Bahia,
verificamos que foi graças ao então ministro das Comunicações Antonio Carlos
Magalhães (mais conhecido por ACM) que a Rede Bahia pôde ser construída.
Filiado ao partido dos Democratas (DEM), antigo Partido da Frente Liberal (PFL)
ACM, um político de grande prestígio e poder na Bahia e no Congresso Nacional,
distribuiu nos anos 80 concessões de canais de televisão e rádio para aliados e familiares.
Dessa forma, pôde controlar a imagem divulgada a respeito de si mesmo e de seus
aliados13
. Ivo Santana, por sua vez, pertencia ao grupo carlista quando político atuante.
Falecido no dia 20 de julho 2007, ACM ou seus assessores podem ter tido alguma
influência sobre a angulação da pauta da reportagem em análise. É algo que essa pesquisa
não pode comprovar, mas existem indícios suficientes para inferirmos essa possibilidade.
Assim, podemos afirmar que, do ponto de vista das técnicas de jornalismo literário, a
reportagem teve suas liberdades temática, temporal e de angulação limitadas pelo
contexto institucional da publicação.
Outras técnicas de jornalismo literário, contudo, puderam ser bastante exploradas
pelo repórter Flávio Novaes. Sua narrativa começa na página 3 (“Memória sepultada”)
com o uso da técnica wolfeana da construção cena a cena. O repórter começa com a
descrição do pôr-do-sol em um dia de espetáculo dos golfinhos ao mar, visto a partir dos
degraus da Igreja de Santo Antonio; dois parágrafos depois, a idílica cena inicial é
12
A TARDE, 13/10/2007. 13
Para uma análise mais completa, verificar a tese “Política e mídia na Bahia : com ênfase na trajetória de
Antônio Carlos Magalhães”, de Gilberto Wildeberger de Almeida (Universidade Federal da Bahia, 1999).
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interrompida por um retorno à história da fundação do Convento. Logo depois, a
narrativa retorna para o movimento do final da tarde aos pés da igreja.
O texto segue com um retorno aos séculos anteriores, para dar uma visão geral da
história da construção religiosa; passa pela apresentação de dois personagens atuais que
trabalham no local, com a construção da cena da aparição deles; e termina com o
cruzamento da história com um fato atual, a polêmica em torno de um suposto
remanescente de quilombo na região que se constituiria apenas uma farsa da comunidade
local, segundo denúncia de um repórter da Rede Bahia, José Raimundo, citado por Flávio
Novaes.
Essas cenas são seqüenciadas como num filme que alterna o tempo cronológico
dos fatos, o que demonstra domínio da técnica batizada por Edvaldo Pereira Lima de
“lições de cinema”. Essas quebras no tempo e no espaço - esse vai-e-vem de conflitos em
evolução que lembram filmes formados por cenas aparentemente isoladas e que, com o
tempo, acabam sendo entrelaçadas pela lógica da narrativa - marcam toda a reportagem
em análise.
O texto da página 3 possui também as “lições de passagem”, com quebra de ritmo,
junção de seqüências e conexão de conflitos em evolução. Por exemplo, inícios de frase
com conectivos, como: “Enquanto o futuro não chega (...)”, “Além da luta para manter o
que resta (...)”.
O repórter usa uma tímida alternância de ponto de vista ao falar a partir do olhar
de um admirador do patrimônio histórico, que cuida do convento, ao dizer: “Mas
desgraça pouca é bobagem e não há mais espaço para chorar a perda quase total do
patrimônio tombado pelo Iphan” (p.3).
O primeiro parágrafo da segunda página da reportagem, a página 4 (“Templo de
fé”), recorre à técnica do ponto de vista da terceira pessoa (no caso, dos franciscanos),
mas é tímido, porque ele não o autor deixa de dar referência do dono do olhar já na quarta
frase. Assim, o ponto de vista foi uma forma de Novaes aquecer a introdução, usando o
que Pereira Lima chama de lições de abertura:
“Mares e rios eram as principais referências. E saindo da velha cidade-fortaleza,
golfão adentro, se encontrava a barra de um rio. A curiosidade só fazia aumentar. E por
uma, duas, três, tantas ilhas se navegou até encontrar um grande lago de águas tranqüilas,
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‘por onde entrava o salgado’, como afirmava o grande colono-jornalista Gabriel Soares
de Souza em seu Tratado descritivo do Brasil em 1587, se define o lugar ideal.”
Sem manter o tom do ponto de vista da terceira pessoa, voltando ao tom do
narrador-bege, Flávio Novaes tenta conduzir o leitor por uma viagem pela história linear
da construção do Convento, como se o leitor fosse um franciscano chegando ao local do
templo. Para isso, o repórter realiza a construção cena a cena a partir do momento em que
diz que o “candidato a navegador de hoje” – o leitor – pode também fazer o mesmo
trajeto dos franciscanos, navegando rumo ao Convento, partindo do porto de Cachoeira
“em motor de popa e com capacidade para oito pessoas”.
Durante o segundo e o terceiro parágrafo da matéria, o leitor passa a conhecer o
lugar, como se estivesse chegando de navio. E então descobre que “os fransciscanos não
seguiram esse caminho” ao quarto parágrafo. A construção das cenas continua, com
destaque para uma cena crucial para o entendimento do fato histórico, a do incêndio do
Convento de Olinda, que originou a necessidade por outro Convento para os franciscanos
do Nordeste brasileiro. O repórter relaciona o incêndio à construção do Convento de
Santo Antonio de Paraguaçu e passa a descrever os demais fatos ligados à edificação da
casa religiosa dos franciscanos, até chegar à atualidade, quando a igreja perdeu toda a
riqueza do passado.
“Mas, da pedra fundamental, do quatro de fevereiro de 1658, à chegada
tranqüila na diminuta prainha próxima ao convento, no maio de 2007, a riqueza se foi. A
igreja está praticamente oca.”
Como um navegador da atualidade que chegou à edificação oca, Novaes começa a
descrever o que ainda resta de história no prédio, justificando o que ainda pode ser visto
no presente com a história da degradação do patrimônio. Mesmo assim, o repórter
mantém a linearidade cronológica, e aproveita a oportunidade para fechar o texto com
uma lição de término que deixa no ar a pergunta: o que explica, afinal, tanta fé? Vejamos:
“E não importa que não existam mais bancos, imagens sacras, crucifixo na
capela-mor, tampouco altares. É do lado de fora mesmo, no singular adro em uma das
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mais belas vistas da baía e da Bahia, que os romeiros, sempre em outubro, chegam de
Nagé, Coqueiros, São Roque e Candeias para agradecer, pedir, rezar e festejar o Santo
Antônio do Paraguaçu.”
Na página seguinte (“Patrimônio lesado”), Novaes usa lições de cinema e de
passagem, com a junção de cenas acontecidas no presente e no passado, em diferentes
espaços. O texto passa - nessa ordem – por uma cena de um filme de 2004 (Cid Teixeira
– a enciclopédia da Bahia), pela biblioteca do convento do passado, pela degradação do
convento atual, pelo perfil do cuidador atual do patrimônio, novamente pelo convento
antigo, novamente pelo cuidador atual, por fatos e documentos antigos, pelo Rio de
Janeiro, pela Rua da Poeira em Salvador, pela sede do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) em Salvador e, enfim, de volta ao convento atual.
Mesmo com tantas quebras de tempo e espaço, os fragmentos do texto conseguem
constituir uma peça única, graças ao uso das lições de passagem, com junções de
seqüências feitas com naturalidade, conduzindo o leitor, como em “E 107 anos depois,
em um sábado de sol (...)” ou simplesmente “Retornamos.”
Há a uma lição de abertura no começo, partindo de uma cena particular de um
filme para a do mundo real.
O autor do texto busca a construção cena a cena, com maior detalhe para
fragmentos que envolvem ações – e não apenas apresentação de fatos históricos - ,
especialmente ao apresentar o perfil do cuidador do templo, Zé de Gringa, e o filho de
Ivo Santana, Chico. Com esse último, Novaes consegue transpor o local da entrevista
para o local do Convento, com menção ao Convento do passado, gerando um efeito
cinematográfico:
“A conversa com Chico se desenrola no salão da sede do Iphan em Salvador, no
antigo Colégio São Salvador, na Barroquinha. Mas parece que estamos saindo do “salão
do mar”, grande espaço no primeiro andar do convento onde estava a biblioteca e as
celas dos padres e noviços. Depois, seguimos para o salão da terra, passamos pela sala
de refeições e vamos até à frente do convento, beijado pelas águas do mar nas marés
cheias (...)”
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Além disso, ao falar de Zé de Gringa pela segunda vez, o repórter conta uma cena
em que estudantes aparecem para visitar o local e explica como eles se comportam –
usando superficialmente o que Tom Wolfe poderia chamar de construção cena a cena,
com a diferença de que, em vez de simplesmente se ater a descrever os símbolos que
marcam o status dos estudantes em relação ao Convento, o repórter se posiciona,
condenando-os:
“A pequena escuna foi alugada em Coqueiros, distrito de Maragogipe, e o álcool
os acompanha desde a saída. O professor não está muito interessado no que pode vir a
acontecer com os meninos e as meninas invadindo o espaço sagrado com copos plásticos
bem servidos, até a boca, mas ali não é lugar de cerveja nem de vodca misturada com
coca-cola. Está diante de apenas mais uma ação depredatória do patrimônio (...). Zé de
Gringa se livra da excursão que partiu de volta para Maragogipe e retorna feliz para
mostrar o que resta do convento.”
O final contém tensão, o que demonstra o uso de lição de término. Ao explicar
que Ivo Santana entregou a responsabilidade do convento para a igreja Católica, o
repórter deixa no ar a pergunta: será que a comunidade católica vai conseguir cuidar do
templo tão bem como fez Ivo Santana e família? Ou será que vai mandar demolir o que
restou do terreno, como o fez dom Jerônimo Thomé de Silva no início do século passado?
Eis o início e o fim do último parágrafo do texto:
“Teme-se, agora, uma volta ao futuro. (...) Será a Paróquia de São Tiago do
Iguape quem terá a incumbência de não repetir os erros cometidos no longínquo 1915.”
O texto da página 6 (“Santo resgate”) é menos rico em usos de técnicas de
jornalismo literário. Aqui, o repórter entrega a função de contar história para frei Hugo
Fragoso, o que poderia tornar o texto uma simples reportagem declaratória, daquelas
presentes no jornalismo cotidiano convencional. Mas duas pequenas fugas ao mero
jornalismo declaratório pincelam doses tímidas de jornalismo literário sobre o texto, em
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intensidade insuficiente para podermos inferir que o repórter adotou as técnicas aqui
descritas.
A primeira fuga é o uso de descrição da sala de onde fala frei Hugo, assim como
das marcas de sotaque do franciscano. Assim, o repórter não apenas transcreve o que
Hugo falou e escreveu em livro, mas também leva o leitor para local da entrevista. Se
tivessem sido mantidos durante todo o texto, essas descrições do local da entrevista e do
próprio entrevistado poderiam ser classificadas autópsia social. No entanto, esses detalhes
de descrição são concentrados em apenas parte dos dois parágrafos iniciais e no último,
não chegando a ser uma autópsia social, porque não proporcionam ao leitor a capacidade
de verificar por completo o status do frade. O repórter tentou localizar o status de Hugo
com o uso de um adjetivo – “humilde” – para classificar a sala onde se deu a entrevista,
ao invés de descrever provas concretas dessa humildade ao longo do texto. Uma sala
humilde não quer dizer uma vida completamente desprovida de certos confortos da vida
moderna, ou mesmo religiosa; algo que só um perfil mais apurado poderia averigüar.
A segunda fuga também poderia ter aberto o texto para o jornalismo literário, mas
não o fez: a do uso da técnica do ponto de vista da terceira pessoa. Como que se
colocando na pele de Hugo, que de repente parece se dar conta do assunto em questão
depois de falar sobre diversos aspectos da história baiana, o narrador do texto termina a
fase de preâmbulo (dois primeiros parágrafos) para entrar no tema da reportagem dessa
forma – da maneira como um frade faria, ao falar de sua Ordem com ares de professor:
“Mas sim, os franciscanos. Eles são o alvo. Os reais pioneiros da Terra de Santa
Cruz. Oito deles acompanhavam Pedro Álvares Cabral. Frei Henrique de Coimbra, não
esqueça, celebrou a primeira missa em Porto Seguro, está lá nas edições dos livros
escolares da oitava série (...)”
Essas poderiam ser frases de frei Hugo? Não sabemos, mas temos impressão que
sim, e que o repórter assume o tom do entrevistado para fugir da fórmula do jornalismo
declaratório. Mas Novaes não consegue sustentar essa forma de contar a história a partir
do ponto de vista de frei Hugo em toda a reportagem. Ele traz para si, já no mesmo
parágrafo em que abria o texto para a alternância dos pontos de vista, a neutralidade do
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“narrador bege”– ignorando a possibilidade aberta frases antes. Durante todo o texto,
embora seja econômico com citações da fala ou da escrita do entrevistado, ainda recorre a
elas, utilizando aspas e os verbos declaratórios, como “completa”, “transcreveu” e
“explica”, e não volta mais a usar o ponto de vista de frei Hugo.
Outra técnica presente no texto, mas de forma muito leve, é a observação
participante. O repórter relata que a entrevista com frei Hugo teve de ser interrompida
para que ele pudesse assistir ao espetáculo sobre a história da Ordem dos Franciscanos na
Bahia:
“A conversa está ótima, se deixar não vai parar mais, porém é chegada a hora.
Vai ter início o espetáculo de luz e som no templo revestido de talha dourada, parece
ouro de verdade. Sete reais. Não são permitidas máquinas fotográficas, vídeos.”
A última página da reportagem (“Trajetória singular”), na página 7 da edição em
análise, é a única que contém um intertítulo, que divide o texto em dois. Isso ocorre
porque não há conexão entre a primeira e a segunda partes. A reportagem se destina a
contar como vivem algumas pessoas da região e culmina com o posicionamento do
repórter a respeito do conflito entre Ivo Santana e supostos descendentes de escravo da
região, pois a pauta recebeu angulação do nível institucional, como já exposto no início
dessa análise.
Novaes usa lições de cinema ao misturar cenas, ocorridas em diferentes espaços e
tempos e apresentadas entre cortes, para costurar falas e ações de sete personagens: dona
Dina, Jéferson Conceição, dona Mariinha, Zé da Gringa, Aída Sanchez de Abreu, Ivo
Santana e dois de seus filhos. A maior parte dos personagens novos, que não apareceram
em textos anteriores, recebe pequenos “perfis”, isto é, parágrafos em que se descrevem
quem são e como vivem, com ênfase na relação que possuem com a crença católica.
Pode-se verificar que dessa forma o repórter tentou construir uma autópsia social
da vila de Santo Antonio de Paraguaçu, em que o status social dá lugar a um status
religioso, ou seja, o que importa é ressaltar qual a localização do personagem em relação
ao tema central da reportagem. É o que se percebe em trechos como:
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“De hábito cinza, gasto, transita pela igreja íntima do lugar, aguarda a
conclusão da visita do jornalista para bater um papo, quer contar a sua história. ‘Muita
gente não acredita, mas me formei na Congregação de Nossa Senhora de Guadalupe, no
Peru’(...)”
“De nada importam os dez filhos, os 36 netos e os 15 bisnetos. O fato é que a
irmã Maria José é hoje a segurança personificada de parte dos bens móveis que ainda
resistem na Vila de São Francisco.”
“’Pode entrar, meu filho. Vá lá fora ver a obra’, diz. Lá no quintal, ainda está
conservado o conjunto do aqueduto que abastecia o convento, em formidável engenho.”
Além da autópsia social voltada para a localização da dedicação religiosa de cada
personagem, Novaes usa uma pequena dose de alternância de ponto de vista. É o que
ocorre no trecho “Procura-se desesperadamente quem possa puxar as orações na novena
na capelinha quase-ermida de Nossa Senhora da Glória para a novena do mês de Maria”.
Essa frase externa um ponto de vista dos moradores religiosos da vila, que estão sem
rezador entre seus dois mil habitantes, mas não é atribuída a ninguém. Assim, esse ponto
da narrativa é contado a partir do ponto de vista dos personagens, por apenas uma frase.
Já a técnica da observação participante é utilizada pelo repórter, que se coloca
como personagem em visita à vila, recebido com almoço especial:
“Façamos esse enorme sacrifício para o almoço de sábado no céu claro.”
Para chegar a esse ponto do texto, que no meio do primeiro parágrafo o repórter
primeiro faz uma abertura com a descrição do potencial de animais marinhos da região,
como que para dar água na boca do leitor, usando lições de cinema e de passagem, com o
corte bem alinhavado entre o tratado do historiador Gabriel Soares e a cena seguinte:
“E dona Edinalva cumpriu a profecia. Aguarda-nos de sorriso largo e braços
abertos com a carta improvisada em uma forma tosca, mas cujo conteúdo é único.”
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Pela escolha feita pelo repórter, pode-se dizer que o prazer da leitura prevaleceu
neste texto, em relação ao jornalismo convencional. Isso porque um dado relevante do
texto, que não se repete em nenhuma outra parte da reportagem, nem mesmo na chamada
de capa, é relegado ao segundo plano: aparece apenas no parágrafo que antecede o
penúltimo. É a informação de que o Convento foi incluído, em setembro de 2006, na lista
dos cem maiores empreendimentos do mundo com risco de desaparecer, pela entidade
americana World Monuments Watch. Esse seria um dado importante numa reportagem
sobre o Convento, mas o repórter preferiu dar destaque, na abertura, para o almoço
recebido, o que proporcionou ao texto um tom mais cinematográfico que noticioso;
optando, portanto, pelo jornalismo literário.
Nessa reportagem não há nenhum exemplo, nem mesmo tentativa, de transcrever
diálogos completos.
2.2.8. Edição 29/07/2007 – “Estigma cruel”
No domingo seguinte à da reportagem sobre o convento de Paraguaçu, o Correio
Repórter não circulou. Dois dias antes, havia falecido o senador ACM, o que ocasionou
uma edição especial do jornal no domingo, 22 de julho, sem o Correio Repórter.
Saindo na semana seguinte, a edição do dia 29 de julho de 2007, intitulada
“Estigma cruel”, trata das emoções vividas pelos pacientes de câncer. A data da
publicação não se relaciona de forma alguma com qualquer data referente à doença, o que
nos proporciona dizer que foi uma pauta escolhida com liberdade temporal, assim como
temática.
Tampouco o Correio da Bahia incorreu no risco de fazer uma matéria científica
demais, com detalhamentos que poderiam impedir o entendimento dos leitores. Ao
contrário, o que está em pauta são as emoções dos pacientes, justamente a questão mais
popular do câncer. A própria repórter esclarece: “Que turbilhão de emoções é esse que
envolve os portadores do câncer? É isso que se pretende mostrar nessa reportagem.”
Essa escolha, que vai demonstrar por cinco páginas o medo, o peso e a dor de
passar pelo câncer, remete a uma seleção feita pelo critério do que mais chama a atenção
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da maioria das pessoas – não só da que passaram pela doença, mas das que a temem. A
angulação da pauta foi feito, portanto, pelo nível-massa. Outro fator que confirma essa
angulação é que predomina no texto o jornalismo convencional, muito baseado na
transcrição de declarações das fontes.
Contudo, a repórter Perla Ribeiro consegue imprimir uma angulação de nível-
individual ao utilizar a técnica de alternância de pontos de vista. Esse uso é tímido e está
disperso em todas as páginas, aparecendo apenas em um ou dois trechos de texto por
página.
Na página 3 (“O valor das pequenas coisas”), a primeira aparição desse recurso
ocorre logo no primeiro parágrafo do texto:
“Se falar causa temores, confrontar-se com o diagnóstico é como carregar o peso
de uma sentença que mutila corpo e a alma.”
Perla escreve como se fosse a personagem Ruth falando, sem aspas. Assume o
ponto de vista da entrevistada, ou seja, coloca-se no papel de uma pessoa que teve, terá
ou tem câncer – papel que assumirá durante toda a reportagem. A clareza de que se trata
da expressão do sentimento da entrevista se dá pela brusca transição na forma de narrar.
Na primeira frase do trecho, a repórter ainda é narradora. Na segunda e terceira, se coloca
na pele de Ruth:
“Ruth extraiu um grande ensinamento. Vencer um câncer é como viver de novo.
É aprender a olhar a vida de uma forma ampla e, acima de tudo, saber dar valor a
pequenas coisas.”
Nas páginas seguintes, a repórter sequer faz referência anterior a quem estaria
falando. Já vai direto ao papel da pessoa temerosa ao câncer e depois retorna ao papel de
narradora isenta. Na página 4 (“Sinais quase silenciosos”), o que antecede ao trecho é a
opinião de especialistas; o que vem depois é um depoimento de uma médica anestesista:
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“Proporcional à dor física provocada pelo câncer no seu estado avançado é
ouvir seu diagnóstico. É algo tão devastador que pode ser descrito como uma faca no
peito, que entra como um furacão, rasgando e dilacerando tudo por dentro. Aí vem a fase
de negação, parece que o cérebro não aceita processar aquela informação.” (p. 4)
Na página 5 (“Dores da alma”), há três trechos com essa característica – em que a
repórter define-se autora de sensações de vítimas do câncer -, sempre no cruzamento
entre depoimentos de pacientes ou ex-pacientes de câncer e informações sobre
procedimentos de cirurgia de extração de órgãos ou tecidos atacados por tumores:
“Até lá, a sensação inicial é de um vazio no peito, tanto no sentido literal quanto
metafórico.” (p.5)
“Em uma sociedade machista, é uma situação difícil olhar para a região genital e
perceber que o pênis ou testículo não ocupa mais seu lugar.” (p.5)
“Independentemente das vontades e do querer, por mais racional que se queira
ser, difícil é ter controle nessa hora sobre os sentimentos.” (p.5)
A página 6 (“Bálsamo poderoso”) também possui três pequenos trechos em que a
repórter se coloca no papel de vítima do câncer:
“É um peso praticamente impossível de carregar sozinho. Mas, quando há um
ombro amigo para apoiar, pode ser mais fácil conseguir manter-se firme na
caminhada.” (p.6)
“É como se a angústia tivesse o poder de minar toda e qualquer resistência do
organismo. Só que o mínimo de controle nessa hora parece pedir muito em um momento
em que todas as forças parecem conspirar contra a vida.” (p.6)
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“Na contramão das emoções, é preciso buscar forças de um gigante para saber
controlar o turbilhão de sentimentos e aprender a conviver harmoniosamente com a
doença.” (p.6)
Já na página 7 (“A um passo da vitória”), ocorre uma alternância de ponto de
vista de outro tipo: a repórter assume o olhar de médica especialista sobre o paciente:
“Por mais que as armas apresentadas pela medicina sejam potentes, muitas
vezes, o paciente tem a sensação de que não terá forças o suficiente para chegar ao fim.
É como se sentisse impotente diante de um inimigo que mata sete milhões de pessoas por
ano no mundo.” (p.7)
Depois a repórter volta ao posto de vítima do câncer para finalizar o texto com um
clamor pela fé, colocando-se na posição de um paciente com câncer desesperado:
“Diante do medo de morrer, o pensamento é um só, se bem não fizer, mal também
não fará. Na luta pela vida, recorre-se a cirurgia espiritual e até negociação [sic] com
Deus, o que não pode é desacreditar.” (p.7).
Como uso das lições de abertura, percebemos que em quatro das cinco matérias a
repórter repetiu a mesma fórmula – a de que partir do geral para o particular, deixando no
ar um certo suspense sobre o que está falando – o câncer – sempre buscando um
substantivo generalizante para substituir a palavra câncer e levando o leitor a desvendar o
“grande mistério”, a “palavra impronunciável” por trás da fórmula:
“É uma palavra quase proibida. Pronunciá-la é trazer para perto uma aura de
maldição. Por isso, a ela se referem como “a doença”, “o tumor” ou “CA”. É como se
os sinônimos tivessem o poder de reduzir o peso do estigma ainda hoje impregnado no
imaginário coletivo. Mas se é inevitável proferi-la, o fazem com respeito, sussurrando.
Em seguida, cospem ou batem na madeira como uma forma de manter o mal distante. Se
falar causa temores, confrontar-se com o diagnóstico é como carregar o peso de uma
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sentença que mutila corpo e a alma. A ciência avançou nos tratamentos, aumentaram os
casos de cura, ainda assim, o pesadelo do câncer insiste em permanecer vivo para uma
sociedade que o tem como metáfora da morte.” (p.3)
“Ele chega silencioso, como se entrasse na ponta dos pés, sem fazer barulho, e só
quando está bem acomodado emite os primeiros sinais. Muitas vezes, só é notado quando
já se espalhou por diversas partes, causando estragos. A dor, principal manifestação de
que algo não vai bem no organismo, nem sempre costuma dar o toque de alerta. Par aos
desatentos, sua presença só é percebida quando já não resta muito a fazer. Por isso os
especialistas não cansam de repetir que é preciso estar atento aos sinais. Pequenas
alterações no funcionamento do organismo são o principal indício de que alguma coisa
não vai bem. Proporcional à dor física provocada pelo câncer no seu estado avançado é
ouvir o diagnóstico.” (p.4)
“É um peso praticamente impossível de carregar sozinho. Mas, quando há um
ombro amigo para apoiar, pode ser mais fácil conseguir manter-se firme na caminhada.
Os efeitos das drogas são inegáveis, entretanto, os especialistas são unânimes ao
advertir: se o emocional não colabora, o câncer pode ser letal.” (p. 6)
“O inimigo existe e está ali, forte, ostentando aura de imbatível. Sua presença
ainda é tão temível que alguns sequer aceitam lutar. Preferem sucumbir à morte. É como
se sentissem sem forças para encampar essa batalha. Há séculos que inúmeros papas da
ciência se debruçam em busca da solução e acabam abandonando o front sem encontrar
uma arma tão poderosa que consiga dizimar o inimigo. A guerra continua e,
provavelmente, hoje, uma das principais ambições da medicina é conseguir derrotar o
câncer.” (p.7)
Não identificamos nessa reportagem o uso de lições de cinema ou de término,
nem as técnicas wolfeanas da autópsia social e da transcrição de diálogos completos.
Tampouco houve captação do tipo observação participante, o que poderia ter havido caso
a repórter se colocando na observação do comportamento de um paciente com câncer em
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sua casa ou família, por exemplo. As lições de passagem são utilizadas de forma
convencional, sem grandes contribuições da literatura.
Há apenas uma tentativa de construção cena a cena, que se limitou a construção
de uma cena, no terceiro parágrafo da página 3, quando trata da sala de espera do Cican.
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CONCLUSÃO
Após a análise de oito edições do caderno Correio Repórter, publicado aos
domingos no jornal Correio da Bahia, pudemos verificar características que marcam o
uso das técnicas de jornalismo literário nesse caderno: o nível, a freqüência, a
propriedade e a possível mixagem do jornalismo literário com técnicas do jornalismo
convencional, entre outras questões.
Lembramos que esta busca levou em consideração doze recursos, categorizados
nas etapas de construção da pauta, captação dos dados, escrita e edição do texto. Como
explicamos ao longo do trabalho, existem outras técnicas do jornalismo literário que, pela
necessidade temporal de delimitação do objeto de pesquisa, ficaram de fora nesta
avaliação, como, por exemplo, a liberdade de propósito, apontada por Edvaldo Pereira
Lima, ou a influência direta de determinados estilos de autores do romance realista, como
Honoré de Balzac, que encantava Tom Wolfe (2005), um dos pais do new journalism.
Incluímos como possibilidades para ampliar essa investigação um estudo sobre o
direcionamento dado pelas intenções dos autores das reportagens em relação ao próprio
trabalho, bem como suas bagagens literárias e culturais. Tom Wolfe, por exemplo,
confessa que tinha a intenção de ser, um dia, um grande romancista (2005). É possível
que essa vontade tenha determinado seus usos dos recursos literários, mas seria
necessário um estudo mais abrangente para descobrir qual o grau de influência das
ambições literárias de um jornalista em sua prática de reportagem.
Tendo em vista que não analisamos essas questões, o resultado deste trabalho não
poderá chegar a conclusões sobre a presença de contribuições da literatura em todos os
âmbitos do jornalismo praticado no Correio Repórter. Para isso, seriam necessárias
pesquisas complementares.
Outra limitação do método desse trabalho é a utilização de apenas oito edições
consecutivas, localizadas todas no ano de 2007, o que impede uma análise comparativa
da evolução da publicação no que tange à adoção de técnicas de jornalismo literário.
Sugerimos que esta pesquisa com uma abrangência temporal seja realizada, para que seja
possível compreender questões como a relação entre seleção de pautas e períodos
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históricos e políticos do governo de Salvador e da Bahia, posto que se trata de um jornal
ligado ao forte grupo político do falecido senador Antonio Carlos Magalhães, líder do
Partido Democrata, antigo Partido da Frente Liberal (PFL).
Mesmo diante dessas limitações, as análises realizadas neste trabalho possibilitam
que afirmemos qual o grau de uso das técnicas consideradas, desde a produção da pauta
até a edição do texto. Como vemos, há uma grande heterogeneidade de modos de usar, de
seleções de técnicas e mesmo de freqüências de recursos.
Quanto à produção da pauta, verificamos que a liberdade temática está presente
em seis das oito reportagens. A presença maciça de liberdade temática pode ser
justificada pela periodicidade do caderno (uma vez por semana, o que proporciona 52
temas diferentes por ano), assim como pelo fato da produção das reportagens ser iniciada
com um mês de antecedência (o que desvincula da factualidade).
Nota-se que essa liberdade não é atendida nos casos de cadernos vinculados a
datas cívicas comemorativas. A presença de reportagens ligadas a essas datas é
justificada pelo perfil editorial do caderno, voltado ao jornalismo histórico. Foi o caso da
edição de 01/07/2007 (“Heroína esquecida”), que tratava da importância da cidade de
Maragogipe para a Independência da Bahia, comemorada anualmente em 2 de Julho.
Outro caso de comprometimento da liberdade temática foi a reportagem “Relíquia
franciscana”, de 15/07/2007. O tema havia sido abordado pela TV Globo dois meses antes
e ainda estava em discussão na mídia, inclusive na Internet, como demonstrado neste
trabalho, quando a reportagem foi produzida e publicada.
Quanto à liberdade temporal da pauta, percebe-se que tiveram claro
comprometimento as reportagens sobre Maragogipe, já citada, e a sobre a Villa
Catharino, de 10/06/2007. Em ambas, havia uma notícia factual envolvida – no primeiro
caso, as comemorações pela Independência da Bahia e, no segundo, o anúncio da
instalação do Museu Rodin nas edificações da Villa.
Houve outros dois comprometimentos relativos. Um deles, a reportagem “Black
in Bahia”, de 03/06/2007, que aproveitou a moda atual do hip hop para tratar das raízes
do movimento negro baiano. O outro, a reportagem “Relíquia Franciscana”, de
15/07/2007, que tratou de assunto em foco em outras mídias.
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Cinco reportagens possuem liberdade de angulação. Mesmo que não cheguem a
constituírem obras autorais de jornalismo literário, elas fogem das limitações impostas
pelos interesses do grupo ou exigências atribuídas geralmente ao público receptor. Três
edições se dobraram a essas limitações, em dois casos pelo fato da abordagem atender ao
nível-massa (“Palácio da Arte” e “Heroína esquecida”) e, em outro, pelo direcionamento
institucional (“Relíquia Franciscana”), como vimos no capítulo dois.
Enquanto na etapa da pauta a maioria das reportagens teve as liberdades exigidas
para a realização potencial de um jornalismo literário, a captação dos dados do tipo
observação participante, bastante característica do gênero, foi utilizada em apenas três
edições: “Chá sagrado”, “Heroína esquecida” e “Relíquia Franciscana”.
Em nenhuma das três, houve o uso do recurso de forma plena. Em “Chá Sagrado”,
por exemplo, nota-se um aproveitamento bastante subjetivo da técnica. Ao descrever
sensações internas, psíquicas, físicas, emocionais, a repórter Mariana Rios dá a entender
que participou dos rituais. Mas a captação limitou-se a uma auto-indagação: “O que estou
sentindo? Como meu corpo está reagindo?”.
Assim, a repórter deixou de fazer uma observação do mundo exterior (como, por
exemplo, relatar o que pôde ver da relação entre o mestre e os membros da União do
Vegetal, a forma como se comportam os daimistas quando dançam e cantam ou mesmo a
interação entre a repórter e os demais integrantes dos rituais, quando sob o efeito do chá).
O leitor tampouco recebeu informações sobre a participação da repórter nos
rituais: a que horas ela chegou, como chegou, se foi apresentada como repórter antes ou
depois de beber o chá, se havia feito a limpeza exigida para receber o líquido, quantos
copos bebeu, quanto os outros da mesma roda beberam. Seriam detalhes sobre o
envolvimento do repórter com o tema abordado, que jornalistas como Tom Wolfe, Hunter
Thompson e Joseph Mitchell, respectivamente, não deixam de contar em seus livros O
teste do ácido do refresco elétrico, Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas e O
segredo de Joe Gould.
Nas outras duas edições onde encontramos observação participante, o uso ocorreu
da mesma forma: tímida, em trechos dispersos no texto, onde o repórter narra ações que
acontecem durante a captação, como deslocamentos, chegadas e recepções. Isso acontece
de uma forma mais incisiva em “Relíquia Franciscana”, em que o repórter inclusive conta
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que fará o “sacrifício” de comer uma moqueca de siri catado preparada por uma das
melhores cozinheiras da região onde ele fazia a reportagem.
É importante ressaltar que os autores das reportagens “Black in Bahia”,
“Guerreiras Anônimas”, “Quadrilátero do Pretérito” e “Estigma Cruel” tiveram
oportunidade, mas deixaram de utilizar a observação participante como técnica de
captação.
No conjunto das reportagens de “Black in Bahia”, nota-se que o repórter teve mais
interesse pelo passado do movimento negro baiano e que perdeu o ritmo ao descrever o
cenário atual do hip hop. Mesmo dispondo apenas de uma página, a última da
reportagem, para descrever o momento presente do movimento black em Salvador, o
repórter Alexandre Lyrio poderia ter se inserido no meio hip hop para compreender a
manifestação atual de uma das facetas da cultura negra de protesto pós-moderna, o que
exigiria o esforço mínimo de ir a um show de rap na periferia soteropolitana. Mas, ao
tratar do presente, o repórter abriu mão de reconstruir a complexidade do real, como
realizado nas quatro páginas anteriores da reportagem, a partir de outros recursos. Lyrio
se comportou, no final da reportagem, como jornalista convencional, ouvindo fontes,
colhendo declarações e relatando-as entre aspas.
Em “Quadrilátero do pretérito”, nota-se que o jornalista Pablo Reis esteve nos
locais que são cenários da reportagem, teve contatos diretos com os personagens e
observou suas rotinas, mas não chegou ao ponto de mergulhar no universo retratado e
vivenciar experiências comuns aos personagens, a ponto de fazer parte delas. O mesmo
ocorre em “Guerreiras Anônimas”: percebe-se que a repórter Perla Ribeiro teve contato
próximo com a realidade em questão, mas não a ponto de participar ativamente da vida
de uma das lavadeiras entrevistadas.
Já no caso da reportagem “Estigma cruel”, a repórter poderia ter, por exemplo,
convivido com uma família de uma vítima do câncer durante suas rotinas diárias para
compreender suas angústias, necessidades, reações corriqueiras e características da
interação entre doentes e seus parentes. Em vez disso, Perla Ribeiro optou por visitar
hospitais, clínicas e, a partir das declarações das fontes, reconstruir uma parte dessas
angústias por meio da técnica da alternância do ponto de vista.
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Se a presença rara da observação participante não denota uma preocupação
especial do Correio Repórter com jornalismo literário, já um recurso integrante da etapa
da escrita do texto, a técnica de alternância de ponto de vista, pode ser encontrada em
cinco das oito edições analisadas: “Quadrilátero do Pretérito”, “Heroína Esquecida”,
“Guerreiras Anônimas”, “Relíquia Franciscana” e “Estigma Cruel”. Contudo, assim
como as outras técnicas ligadas ao texto, a alternância do ponto de vista aparece de forma
tímida, com relação à quantidade e a forma que é utilizada.
As exceções ficam por conta de “Estigma Cruel” e “Guerreiras Anônimas”,
assinadas pela mesma repórter, Perla Ribeiro. A profissional faz um esforço para
construir os textos de acordo com os pontos de vista de seus personagens. A repórter faz
apuração de forma convencional, mas em vez de abrir aspas com as declarações dos
entrevistados (como seria mais comum em um jornalismo não-literário), narra os fatos de
forma multifocal, o que contribui para que o leitor compreenda a realidade a partir de
diferentes ângulos.
Ainda sobre as contribuições da literatura para a escrita do texto, observamos que
em todas as edições o recurso da construção cena a cena é utilizado, mas também de
forma pouco incisiva. Em metade das reportagens analisadas, apenas uma cena é narrada,
ou seja, não há uma construção dos desdobramentos das ações. Nesses casos, a técnica
serviu para iniciar um parágrafo, quebrar um ritmo, mas não para dar forma à
reportagem, como ocorre no texto Radical Chique, de Tom Wolfe (2005). A reportagem
mais se aproxima do modelo wolfeano é “Quadrilátero do Pretérito”, especialmente em
sua página 3.
Assim, embora apareça em metade das edições, a construção cena a cena recebeu
um uso de grau mínimo. Em grau ainda menor, tanto pela freqüência quanto pela forma
de usar, verificamos que o recurso da transcrição de diálogos completos foi usado em
apenas duas reportagens: “Heroína Esquecida” e “Quadrilátero do pretérito”, sendo que
no primeiro caso os diálogos encontrados são realizados entre o repórter e a fonte. Isso
nos faz afirmar, mais uma vez, que “Quadrilátero” é o único exemplo fiel ao recurso -
que propõe a transcrição de diálogos entre pessoas que não sejam o repórter.
Já a técnica da autópsia social, em que o autor descreve elementos da cena que
auxiliam o leitor a localizar o status social dos personagens, foi aproveitada em sete das
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oito edições analisadas, com exceção da reportagem “Estigma Cruel”. Contudo, não há
um padrão para o uso da técnica: ela pode ser a técnica predominante da reportagem
(como no caso das “Guerreiras Anônimas”) ou apenas mera coadjuvante (“Heroína
esquecida”), ou ainda servir para uso pontual (“Relíquia franciscana” e “Chá sagrado”).
A este ponto, podemos concluir que as liberdades de tema, de tempo e de
angulação, presentes de forma maciça na produção das pautas do caderno em análise, não
resultaram em um trabalho de reportagem especialmente literário, com captação do tipo
observação participante e os quatro recursos de escrita do texto elencados por Tom
Wolfe. Vejamos agora como os repórteres e editores do Correio Repórter utilizam as
técnicas de edição de texto, categorizadas por Edvaldo Pereira Lima.
A lição de abertura é a técnica de edição mais utilizada pelos repórteres: está em
todas as oito edições. O uso freqüente do recurso, contudo, está bastante ligado ao fato de
que o aquecimento da abertura é utilizado pelo menos desde meados da década de 90
pelo jornalismo convencional. Como vimos, já em 1993 uma pesquisa de recepção
realizada nos Estados Unidos alertou os jornais impressos de todo o mundo de que o
texto escrito de forma convencional afasta leitores.
Assim, já se tornou comum que reportagens fujam da abertura clássica do lead e
recorram a descrições de personagens ou construções de cenas. Entretanto, pode-se
perceber falta de criatividade no uso desse recurso no Correio Repórter, pois não houve
variedade de fórmulas de abertura, sendo a construção de uma cena a técnica de
aquecimento mais usada. Além disso, duas reportagens repetiram a mesma fórmula em
todas as páginas (“Black in Bahia” e “Estigma Cruel”).
Com relação às lições de passagem, o recurso só não foi encontrado nas
reportagens: “Palácio da Arte”, “Chá Sagrado”. Já as lições de cinema deixaram de ser
usadas apenas pelos autores de “Black in Bahia”, “Palácio da Arte” e “Estigma Cruel”. A
presença maciça de ambas as lições pode ser compreendida quando percebemos a
extensão dos textos, que ocupam cinco páginas de jornal: elas possuem a função de
conectar diferentes partes dos textos. Enquanto as lições de passagens dão coerência ao
texto, as lições de cinema proporcionam uma visão dinâmica da realidade, aproximando
fatos que ocorrem ao mesmo tempo em locais diferentes ou no mesmo local em tempos
diferentes, por exemplo.
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Também a lição de término é encontrada na maioria das edições (em “Palácio da
Arte”, “Quadrilátero do Pretérito”, “Heroína Esquecida”, “Guerreiras Anônimas” e
“Relíquia Franciscana”). O uso difundido também pode ser justificado pela divisão
editorial da reportagem em cinco páginas, o que gera uma demanda pela continuidade da
leitura na página seguinte.
Percebemos, portanto, que na etapa da edição as lições ligadas ao jornalismo
literário são utilizadas com mais freqüência do que na escrita do texto e na captação dos
dados, mas isto tanto pode ser provocado pela convenção adotada no jornalismo
cotidiano de aquecer aberturas quanto pelo tamanho da reportagem, distribuída ao longo
de cinco páginas. Devido à falta de criatividade nas aberturas e também pela ausência de
técnicas de edição em algumas das reportagens, concluímos que, também nesta etapa, os
autores do Correio Repórter não privilegiaram de forma especial o jornalismo literário.
Assim, verificamos que, embora seis das oito reportagens analisadas nesta
pesquisa tenham tido liberdade temática, que todas utilizem lições de abertura e que
apenas duas sofram algum comprometimento na liberdade de angulação, nenhuma delas
possui, integralmente, todas as doze técnicas de jornalismo literário em observação.
Das técnicas observadas neste trabalho, as menos utilizadas são: transcrição de
diálogos completos e mudanças de ponto de vista, na etapa da escrita do texto, e
observação participante, na etapa da captação dos dados. As mais utilizadas são liberdade
temática, ainda na etapa da pauta, e lições de abertura, na etapa de edição do texto, além
de autópsia social e menções, nem sempre desdobradas em mais de uma cena, à técnica
da construção cena a cena, na etapa da escrita do texto.
Concluímos que as reportagens do Correio Repórter nascem livres em suas
pautas, mas são desdobradas sem o apoio maciço do jornalismo literário e editadas de
maneira convencional. Contudo, não há um padrão médio que possa ser aplicado a todos,
com edições de características predominantes bastante díspares no que diz respeito ao
jornalismo literário. Duas reportagens se destacam pelo uso cruzado das técnicas
analisadas: “Quadrilátero do Pretérito”, sobre a decadência dos antiquários, que só deixou
de usar a captação do tipo observação participante, dentre as técnicas analisadas. Em
segundo lugar nesse quesito está “Guerreiras Anônimas”, onde apenas não foram
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encontrados os recursos da observação participante e da transcrição de diálogos
completos.
Além de possuir maior quantidade de técnicas, a reportagem de Reis
(“Quadrilátero do pretérito”) é das que melhor utiliza as potencialidades da contribuição
do jornalismo literário para seu trabalho, com cruzamentos de técnicas e criatividade – ao
contrário de reportagens que repetem as mesmas fórmulas de abertura, como a da mesma
Perla Ribeiro sobre o câncer ou a de Alexandre Lyrio sobre o movimento negro na Bahia.
Reis também é o único repórter a transcrever diálogos completos no formato do romance,
como idealizado por Tom Wolfe.
O resultado não nos surpreende tendo em vista que o trabalho de Pablo Reis tem
sido reconhecido e premiado. Até o início de 2008, Reis havia recebido cinco prêmios e
uma menção honrosa por reportagens publicadas no Correio da Bahia, oferecidos por
instituições como Associação Bahiana de Imprensa (ABI), Caixa Econômica Federal,
OAB-B, Banco do Brasil. Foi ainda finalista do Prêmio Imprensa Embratel em 2004, na
categoria Esportes (nacional), com a reportagem “Leopardo Negro”.
Mas, enquanto “Quadrilátero do Pretérito” chega próximo a modelos wolfeanos
de reportagem, “Palácio da Arte” pode ser classificada como predominantemente
convencional e a maioria das demais reportagens mescla ambas as formas de fazer
jornalismo, literária e convencional, produzindo um texto com perfil mestiço.
Essa falta de padrão confirma a impressão da coordenadora editorial do caderno,
Linda Bezerra, de que a presença do jornalismo literário no Correio Repórter está
vinculada à capacidade do repórter explorar as potencialidades proporcionadas pelo
tempo de apuração (um mês) e o espaço de publicação disponível (cinco páginas). Além
disso, como foi colocado no início dessa conclusão, o resultado de uma reportagem
também deve levar em conta as intenções dos autores em relação ao próprio trabalho,
bem como suas bagagens literárias e culturais.
Não se trata, portanto, de uma característica intrínseca ao projeto editorial do
caderno. Usar ou não o jornalismo literário fica a critério do repórter. E a sensibilidade do
repórter para essa nova configuração discursiva, de acordo com Lima (1995) e Medina
(2003), é de fato um fator importante para busca de um jornalismo capaz de cumprir sua
tarefa, avesso às algemas das convenções, como a do jornalismo declaratório.
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Como apontou Ferreira (2003), o repórter que usa o jornalismo literário não quer
descrever a verdade objetiva de fatos isolados, mas tentar reconstruir o contexto e as
relações entre as pessoas, e entre elas e os fatos, entre elas e suas próprias histórias de
vida. O jornalista literário quer mais do que noticiar um fato, ele quer construir um
conhecimento sobre o fato: quer que seu leitor entenda o mundo a partir de seu texto. É
por isso, e não por uma imposição tecnicista, que ele pode ser transformar em um
observador participante ou transcrever diálogos completos.
Com esse trabalho, esperamos ter contribuído para o desenvolvimento de
pesquisas que se debrucem sobre o reconhecimento e valorização do jornalismo literário.
Ao analisarmos a presença de algumas técnicas, esperamos também ter contribuído para a
pontuação das vantagens da literatura do real em relação ao jornalismo cotidiano
comumente praticado nos periódicos impressos. Partimos do princípio teórico de que o
uso das técnicas do jornalismo literário ajuda a tornar o texto mais prazeroso para o leitor
– e prazer da leitura, em jornalismo, é o que poderá garantir a sobrevida dos impressos.
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