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LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO UMA LEITURA FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA Janette Friedrich 2011
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LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Jan 30, 2023

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Page 1: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO,

APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

UMA LEITURA FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA

Janette Friedrich

2011

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LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO,

APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

UMA LEITURA FILOSÓFICA E EPISTEMOLÓGICA

ÍNDICE

Introdução

O programa e o método

Notas bibliográficas

A psicologia é possível como ciência?

A análise da crise em psicologia

O projeto de uma psicologia geral

Por um realismo científico

O termômetro da psicologia

Métodos diretos e indiretos

O conceito de psiquismo

A ideia de instrumento psicológico

O funcionamento do instrumento psicológico

Natural/artificial versus natural/cultural

A astúcia da razão ou o conceito de atividade mediatizante

Duas observações conclusivas

A formação dos conceitos na criança

Crítica dos métodos da definição e da abstração

Dois estudos experimentais: os dispositivos de Ach e de Sakharov/Vigotski

Os estágios de formação dos conceitos

O objeto de uma psicologia do desenvolvimento

O aporte específico da escola

A distinção entre conceitos cotidianos e conceitos científicos

As duas neoformações adquiridas na escola

A relação entre aprendizagem e desenvolvimento

Conclusão

Referências bibliográficas

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INTRODUÇÃO

O programa e o método

O começo do século XX foi um momento decisivo para a constituição das ciências do

homem. A psicologia, as ciências da educação, assim como a linguística e a sociologia

ganham autonomia em relação à filosofia e criam suas próprias infraestruturas:

laboratórios, postos universitários, revistas científicas específicas de cada disciplina

começam a aparecer. Esse período foi também o dos fundadores. Wilhelm Wundt

(1832-1920) cria o primeiro laboratório de psicologia em Leipzig e trabalha na

psicologia experimental. Na França, Alfred Binet (1857-1911) desenvolve uma das

primeiras grandes pesquisas sobre o desenvolvimento intelectual da criança. E, em

Genebra, Édouard Claparède, em 1912, funda o Instituto Jean-Jacques Rousseau, a

chamada escola das ciências da educação. Um grande número de correntes que até hoje

dominam o pensamento teórico e os métodos empíricos nas ciências do homem se

constituíram nesse período. Entretanto, embora essa diversificação das teorias e das

pesquisas tenha sido uma das características fortes dessa época, uma delas, atualmente,

às vezes, parece ter sido esquecida ou deixada de lado. Essa geração dos fundadores das

ciências humanas produzia um saber sobre o homem ainda não esfacelado em um saber

puramente disciplinar. Isso se explica pelo fato de que a maioria era formada nas

faculdades de filosofia e que, mais tarde, nelas ensinavam psicologia, pedagogia ou

linguística. Além disso, a filosofia detinha ainda seu papel de «ciência das ciências »,

pelo menos no plano epistemológico. Assim, encontramos nas obras desses fundadores

não só resultados novos e aplicáveis pelos profissionais e métodos que vão fazer escola,

mas também reflexões epistemológicas e filosóficas que focalizavam, sobretudo, a

capacidade das ciências humanas de produzirem um conhecimento do homem que

pudesse, de direito, ser chamada de científica. Essa imbricação entre um pensamento

filosófico para as ciências do homem e um saber especificamente disciplinar faz com

que a leitura de seus textos frequentemente seja difícil. Ao mesmo tempo, essa situação

dá ao leitor atual a possibilidade de descobrir ideias que não foram retomadas por seus

sucessores ou teses que nem sempre encontraram acolhida nas correntes que, desde

então, continuam a se desenvolver em uma especialização cada vez maior.

Essa volta ao fundamento das ciências humanas, tal como é proposto neste livro, visa,

portanto, a duas coisas. De um lado, tem o objetivo de fazer conhecer a história dos

pensadores e das ideias com base nas quais construíram e ainda constroem nossas

concepções sobre o funcionamento do homem, como as que, por exemplo, tratam da

educação. Portanto, trata-se de estabelecer o estado da arte das fontes, dos germes, dos

esboços de inúmeras ideias que hoje fazem parte dos conhecimentos confirmados e

institucionalizados no quadro das ciências do homem. De outro lado, essa volta busca

encontrar alguma coisa de novo, ainda não explorada em toda sua riqueza. Esse olhar

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sobre a história visa, de fato, ao potencial criativo das obras fundadoras, utilizando um

método bem específico para detectá-lo e trabalhá-lo. Hannah Arendt (1906-1975), uma

das raras mulheres filósofas do século XX, discorre sobre o método ensinado por seu

professor, Martin Heidegger, em seus cursos de filosofia nos anos 20 em Heidelberg:

Decisivo quanto ao método era que, por exemplo, não se falasse sobre

Platão e que não se expusesse sua doutrina das ideias, mas que um diálogo

fosse desenvolvido e sustentado durante o semestre inteiro, até que ele não

fosse mais uma doutrina milenar, mas sim, apenas uma problemática

fortemente presente (Arendt, 1974, p. 310).

É esse método que tentaremos aplicar na apresentação de um dos fundadores

incontestáveis das ciências do homem, a quem é dedicado este livro, um psicólogo e

pesquisador no domínio do ensino e da escola. Trata-se do pensador russo e soviético

Lev Sémionovitch Vigotski (1896-1934), que, desde os anos 80, é considerado como o

pai da corrente histórico-cultural em psicologia e em ciências da educação1. Vamos

discutir algumas partes de sua obra, tentando não « falar sobre ele ». O objetivo não é o

de reproduzir suas ideias, de apresentá-las na forma de uma doutrina, de uma teoria bem

definida e fechada, mas, como Arendt sugere, o de pensar no interior de sua obra. Será

desenvolvido um diálogo, que tem por objetivo mostrar, no pensamento de Vigotski,

determinados problemas e determinadas questões que ainda não chegamos a formular,

mas que, entretanto, atualmente nos assaltam. Questões que parecem ser importantes de

colocar, aqui e agora, para podermos pensar, para podermos tratar da realidade que nos

interessa enquanto pesquisadores, professores ou formadores e que nos permitem no

que nos aproximemos dessa « problemática fortemente presente » em sua obra.

Esse objetivo só pode ser atingido por meio de leituras e releituras dos textos de

Vigotski. É a única maneira de proceder, a fim de evitarmos falar exclusivamente sobre

o autor. Mostrar o que ele faz, o que ele diz, quando ele o diz ; pensar o que ele pensa,

quando o lemos – este livro não propõe mais que isso. Para aproveitar plenamente desse

empreendimento, o leitor deve nos acompanhar com suas próprias leituras, a fim de

atingir o objetivo principal: poder pensar no interior desta obra.

Nota biográfica2

Lev Sémionovitch Vigotski nasceu em Orcha, em 1896, em uma família judia culta.

Um ano após seu nascimento, a família se instala em Gomel (Bielorússia), onde

Vigotski passa sua infância e sua adolescência. Nessa época, Gomel era uma cidade

reconhecida como ilustrada, com seus liceus, suas bibliotecas, seus teatros, com seu

1 Essa leitura de Vigotski foi iniciada nos Estados Unidos (Wertsch (1985) e Bruner (1990, 1996). 2 Essas notas biográficas baseiam-se, sobretudo, na biografia muito rica e bem documentada da filha de Vigotski, Gita L. Vygodskaja e de Tamara M. Lifanova (2000) ; ver também Rochex (1997).

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museu de Belas Artes. Muito cedo Vigotski participa dos círculos de amigos que se

constituem como círculos de discussão sobre temas muito variados, como a história dos

judeus, a história da filosofia, a dialética hegeliana, a arte poética. Em 1913, termina

seus estudos secundários, deixa Gomel e vai para Moscou, onde começa estudos de

medicina na Universidade imperial, estudos que abandona depois de um mês, para

continuar no domínio do direito. Sua escolha é determinada pela situação bem

específica dos judeus na Rússia dos tzares. De um lado, havia um numerus clausus para

os estudantes de origem judia; de outro, era proibido por lei que se empregasse judeus

como funcionários de Estado. Vigotski, portanto, teve de renunciar a seus estudos

prediletos, isto é, à filosofia e à literatura, decidindo-se por uma profissão independente.

Paralelamente a seus estudos de direito, Vigotski se inscreve na Universidade popular

de Chaniavski, na qual ele pode enfim seguir os cursos de história e de filosofia. A

Universidade de Chaniavski, uma instituição pública de Moscou, aceitava estudantes

independentemente do gênero, da nacionalidade, da religião e das convicções políticas.

Depois dos protestos dos estudantes em 1911 na Universidade Imperial de Moscou, que

terminaram com a intervenção policial do Estado, com uma violação aberta de sua

autonomia, muitos de seus melhores professores a deixaram para exprimir sua profunda

discordância. Muitos deles foram ensinar na Universidade de Chaniavski. Vigotski

aproveitou-se dessa situação, que fez dessa Universidade um dos melhores

estabelecimentos universitários da Rússia. Nela, ele seguiu os cursos e os seminários de

Gustav G. Chpet3 (1879-1940), discípulo de Edmund Husserl (1859-1938), um dos

maiores filósofos alemães do século XX e fundador do movimento fenomenológico.

Nesse período, seus cursos foram consagrados ao problema da consciência, que Chpet,

muito bom conhecedor da filosofia moderna, discutia em relação a seu projeto de uma

filosofia científica. É provável que esses seminários tenham reforçado a atração de

Vigostski pela psicologia, fazendo com que ele decidisse fazer dela a sua profissão.

Durante seus estudos, seu interesse pela literatura e pela arte, já despertada em

Gomel, não para de crescer. Acompanhado de sua irmã, visita os teatros e museus da

capital russa, publica resenhas e escreve, entre 1915 e 1916, um trabalho final de curso,

com o título « A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca de W. Shakespeare ». Dez

anos mais tarde, em 1925, Vigotski utiliza alguns capítulos desse texto para defender

sua tese de doutorado, intitulada « A psicologia da arte » (Vigotski, 2005), que tem por

objeto a análise das reações e dos mecanismos psicológicos desencadeados pelas obras

de arte. Entretanto, o livro só foi publicado pela primeira vez em 1965. Esse interesse

pela arte e principalmente pela literatura nunca foi desmentido e grande parte de seus

projetos dão a plena medida desse interesse. Dentre eles, mencionamos um projeto de

colaboração com o célebre cineasta russo Serguéï M. Eisenstein (1898-1948), que não

pôde ser realizado pela falta de tempo que restava a Vigotski.

Tendo acabado seus estudos em 1917, Vigotski volta a Gomel. O momento é

propício, dado que o governo oriundo da revolução de outubro tinha abolido todas as

3 Sobre Chpet (2007), ver o prefácio de Maryse Dennes na tradução francesa do texto « La forme interne du mot ».

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medidas de discriminação antissemitas e, a partir de 1919, Vigotski começa suas

atividades pedagógicas. Ensina em várias instituições em sua cidade natal: em escolas

públicas, em escolas profissionais, em instituições de trabalhadores ou populares e no

instituto de formação de professores. Ensina língua e literatura russa, lógica, psicologia,

história, ética e filosofia. A experiência adquirida nesses anos foi resumida e analisada

pelo autor em sua primeira grande obra A psicologia pedagógica, que surge em 1926.

Na escola de formação dos professores, ele abre um laboratório de psicologia, no qual

se desenvolvem seus primeiros trabalhos experimentais sobre o processo de ensino e

sobre as capacidades das crianças com deficiência mental. Dois domínios que ficam, no

transcorrer de toda a sua vida, no centro de suas preocupações científicas.

Em 1924, Vigotski participa do II Congresso Panrusso de Psico-neurologia em

Petrogrado, com três exposições sobre os resultados de suas pesquisas. Suas

intervenções não passaram despercebidas e desencadearam mudanças em seu destino.

Konstantin N. Kornilov (1879-1957), nomeado recentemente como diretor do

prestigiado Instituto da Psicologia de Moscou, que ele visa a reorganizar, elaborando

uma nova psicologia orientada por princípios marxistas, convida Vigotski para nele ir

trabalhar. Essa proposta se explica, em grande parte, pelo projeto que Vigotski defendia

em sua exposição intitulada « Os métodos de pesquisa em reflexeologia4 e em

pesquisa ». Nela, Vigotski critica a influente corrente da psicologia russa aprensentada

por Vladimir Bekhterev (1857-1927) e Ivan P. Pavlov (1849-1936) e que excluía o

estudo objetivo da consciência do campo da psicologia. Vigotski, usando a terminologia

da reflexologia, esforça-se em mostrar como uma reintrodução do conceito de

consciência se torna possível, sem ter que deixar o quadro de uma psicologia objetiva.

A proposta de tomar «uma terceira via » é expressa em um segundo texto, que Vigotski

escreve em 1925 sobre « A consciência como problema da psicologia do

comportamento », parecendo corresponder ao que Kornilov e muitos jovens

pesquisadores do Instituto de Moscou buscavam desenvolver. Vigotski aceita o convite

de Kornilov e se instala com sua futura mulher R.N. Smechova em Moscou, em um

pequeno apartamento do Instituto, até se mudar para um apartamento maior, na rua

Serpuchovskaja, onde moraram com suas duas filhas, Gita (1925) e Asja (1930). Em

Moscou, começa um período de trabalho extremamente intenso, que tem seu fim em

1934, quando Vigotski perde seu combate contra a tuberculose, doença que desde

Gomel rondava seus dias e o obrigava, durante toda a sua vida, a inúmeras

hospitalizações.

No Instituto, ele conhecerá seus dois mais próximos colaboradores: Alexandre R.

Luria (1902-1977) et Alexis N. Léontiev (1903-1979). Os três constituem o núcleo

(chamado de a troika) de uma equipe de pesquisa que reúne um grande número de

jovens pesquisadores cujo mestre, agora, é Vigotski. Os trabalhos realizados por

Vigotski durante esses anos em Moscou são inúmeros e é impossível enumerá-los.

4 A reflexeologia é a tentativa de conhecer e de inferir o conteúdo dos fenômenos psíquicos só a partir dos

fenômenos fisiológicos e principalmente dos reflexos. Essa corrente pretendia desenvolver um estudo puramente objetivo em psicologia.

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Podemos classificá-los em quatro domínios: 1) problemas epistemológicos e filosóficos

da psicologia, 2) trabalhos sobre o desenvolvimento e sobre a educação das crianças

com deficiência, 3) textos teóricos, pesquisas empíricas, aulas sobre quase todos os

domínios cobertos pela psicologia e pelas ciências da educação, 4) promoção e iniciação

de traduções de autores ocidentais mais influentes da época (Sigmund Freud, Jean

Piaget, William Stern) e a apresentação deles em prefácios e resenhas. Seus trabalhos

em defectologia (Vigotski, 1994) permitiram que fizesse sua única viagem ao exterior,

passando por Berlim, Amsterdam e Paris, ele participa em 1925, em Londres, do 25o

Congresso Internacional sobre a educação dos surdos-mudos.

No final dos anos 20, Vigotski e sua equipe veem suas condições de trabalho se

degradarem. São cada vez mais confrontados a acusações políticas mascaradas em

princípios científicos postos como progressistas. Seus trabalhos são oficialmente

acusados de grande abertura para as ciências ocidentais e falta de aderência aos

princípios de uma psicologia marxista. Esse clima de « limpeza ideológica » pesa

duramente sobre a equipe de Vigotski5. Léontiev

6 deixa Moscou para trabalhar na

Academia de Psiconeurologia da Ucrânia, em Charkow. Luria viaja entre essas duas

cidades e Vigotski também planeja sua mudança para 1934. Nesse período, continua

seus trabalhos de pesquisa e ensino em várias instituições moscovitas, vai a Leningrado

para dar aulas de pedologia e termina seu livro principal Pensamento e linguagem, que

será publicado alguns meses depois de sua morte, em 1934.

Em 1936, é editado o decreto do Partido Comunista da União Soviética, chamado

Decreto da pedologia, que trouxe a destruição de uma grande parte dos resultados das

atividades intelectuais tão ricas e criativas dos anos 20. A obra de Vigotski é colocada

no índex, seus trabalhos são retirados de circulação, seus artigos são minuciosamente

cortados das revistas e das obras nas bibliotecas públicas. Só em 1956 é que Léontiev e

Luria reeditam Pensamento e Linguagem, que será traduzido para o inglês em 1962. A

partir dos anos 70, a recepção de Vigotski como fundador da escola histórico-cultural

em psicologia encontrar-se-á em plena emergência no mundo ocidental. Em 1990, saem

os seis volumes de Obras completas (Vigotski, 1982-1984) em russo. Um projeto

semelhante é desenvolvido por R. Rieder e seus colaboradores desde 1987 nos Estados

Unidos. Vertentes e escolas se constituem e se distinguem com leituras e pesquisas

específicas, muitas vezes fortemente ancoradas em debates que ocorrem em culturas

científicas nacionais. Apesar de um grande esforço editorial que, na França, desde 1985,

deu acesso aos textos mais importantes de nosso autor, com traduções de grande

qualidade, é preciso ressaltar que um número grande de seus escritos ainda não foram

editados, até mesmo na Rússia, onde novos projetos editoriais começam a ser

desenvolvidos (Vigotski, 2001)

5 Encontamos nas cartas de Vigotski (2008) alusões que mostram que ele teve consciência plena da gravidade da situação. 6 Essa separação geográfica dos membros da troïka significa também o começo de uma divergência entre suas posições teóricas que os escritos de Leontiev mostram, quando este começa, a partir dos anos 30, a esboçar sua teoria da atividade (Friedrich, 1993, 1997).

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CAPÍTULO 1

A PSICOLOGIA

É POSSÍVEL COMO CIÊNCIA?

Em 1927, Vigotski escreve seu livro A significação histórica da crise em psicologia7,

obra que exprime o que se chama em filosofia de prolegomenos. Estes desempenharam,

durante séculos, um papel iconstestavelmente importante, pois são longas introduções

ou obras de caráter introdutório que colocavam as bases e elaboravam os conceitos-

chave de um domínio ou de uma disciplina inteira. Os prolegômenos mais célebres são

os de Emmanuel Kant (1724-1804): Prolegômenos a toda metafísica futura que terá o

direito de se apresentar como ciência (1783), cujo título expressa muito bem a sua

função. A comparação da obra de Vigostski com determinados prolegômenos não é vã,

pois o psicólogo propunha um projeto semelhante: ele tentava desenvolver as bases e as

premissas necessárias para uma psicologia que pudesse ser uma ciência por inteiro. Essa

é a razão pela qual podemos atribuir a esse texto um lugar primordial em sua obra. Com

suas reflexões epistemológicas, ele reage e participa de um debate que se desenvolveu

nessa época, no quadro da psicologia ocidental. Vigotski não é o único a utilizar o termo

« crise » para descrever a situação dessa disciplina. Principalmente no mundo

germanofone, encontramos inúmeros artigos e livros que propõem uma análise crítica

da psicologia dessa época (Friedrich, 1999). Os diagnósticos de crise são tão diversos

quanto os autores que os desenvolvem. Mas há uma crítica que se encontra reiterada

pela maioria dos autores, a falta de unidade. É a coexistência, frequentemente não

articulada, de vários sistemas ou concepções, no quadro da psicologia, que é

denunciada. Cada uma das correntes existentes na época desenvolvia seus próprios

conceitos e métodos, frequentemente em oposição aos outros, o que teve como

consequência a descoberta de dados muito heterogêneos e de leis extremamente

divergentes.

Essa situação de uma psicologia esfacelada pode ser criticada dentro do quadro da

psicologia, chamando a atenção sobre o fato de que a falta de coesão afetaria,

necessariamente, as trocas e o compartilhamento do trabalho, indispensáveis a uma

disciplina científica. Entretanto, a crítica que Vigotski formula não toma esse argumento

tão frequentemente repetido posteriormente, o que, aliás, faz-nos pensar que a situação

atual no quadro da psicologia, de fato, não mudou. 8

7 Todas as citações de Vigotski nos capítulos 1 e 2 foram tiradas dessa obra. 8 O que é, por exemplo, confirmado por Bruner, em 1990 : « Eu o escrevi, no momento em que a psicologia [...] está esfacelada como nunca tinha estado em sua história. Ela não tem mais centro de gravidade e se encontra ameaçada de perder a coesão... » (1999, p.11).

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Vigotski cita os que trabalham na prática, os psicólogos praticantes, os professores, os

formadores, que se apressam em utilizar as pesquisas realizadas em psicologia e que se

encontram, frequentemente, desamparados diante de uma massa de dados muito

heterogêneos. Como escolher, como se posicionar em relação aos resultados propostos

pelos cientistas, como decidir o que tomar como referência, se mesmo no interior da

psicologia falta um debate sobre essa diversidade? São essas questões que levam

Vigotski, por seu lado, a reagir à demanda de unificar a psicologia e a decidir responder

a ela em duas etapas: 1) traçando um estado da arte da psicologia de seu tempo, e 2)

esboçando os princípios fundamentais de uma psicologia que se quer científica.

A análise da crise em psicologia

A análise feita por Vigotski sobre as correntes existentes no quadro da psicologia de

seu tempo se baseia em um princípio bem preciso. Ele propõe considerar os sistemas

psicológicos como « realidades científicas existentes » ou, em outros termos,

« acontecimentos históricos vivos ». Essa comparação das concepções psicológicas com

seres vivos, uma comparação relacionada ao domínio da biologia, é utilizada para

denunciar uma ideia muito difundida nas ciências, a de uma naturalização dos fatos que

constituem seu objeto. Assim, ocorre, frequentemente, que os fatos estudados nas

ciências sejam tomados como fenômenos preexistentes à pesquisa, como objetos

atestáveis tais como o são na realidade. Vigotski se opõe a essa ilusão, dado que não é a

psiquê nem a educação tal como são analisadas, mas a psiquê e a educação em um grau

determinado de seu conhecimento, que é, por sua vez, determinado pela história das

ciências. Portanto, os objetos da ciência são categorias puramente históricas, não no

sentido de que a educação é diferente em função da sociedade sempre historicamente

determinada, em que ocorre, mas em função do grau de conhecimento anteriormente

produzido sobre ela pelas ciências que a tomam como objeto. Portanto, o que aparece

como uma propriedade natural do objeto não o é, dado que seu conhecimento é sempre

um conhecimento historicamente determinado, dependente do modo cada vez bem

específico de produção de conhecimento. Vejamos como Vigotski resume esse

princípio :

[...] a cada estágio do desenvolvimento da ciência, pode-se detectar, diferenciar,

abstrair as exigências que decorrem da própria natureza dos fenômenos estudados

em um determinado grau de seu conhecimento, grau esse que é seguramente

determinado, não pela natureza dos fenômenos, mas pela história do homem. É

exatamente porque as propriedades naturais dos fenômenos psíquicos, em um

determinado grau de conhecimento, são uma categoria puramente histórica – pois

essas propriedades se modificam no decorrer do processo de elaboração dos

conhecimentos.

[...], que é permitido considerá-los como a causa, ou uma das causas do

desenvolvimento histórico da ciência. (p. 100)

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Essa decisão por um princípio histórico em detrimento de um princípio naturalizante

não é só uma escolha a se operar no quadro da teoria das ciências, mas ela tem

consequências para a análise dos próprios sistemas científicos. Tratando as correntes

psicológicas de seu tempo, como seres vivos, Vigotski vai mostrar em qual direção as

diferentes concepções se desenvolvem, a que elas aspiram, quais são seus confltos, qual

é o problema central que se detecta em seu movimento. A análise do caminho das

diferentes correntes de sua época constitui a originalidade do trabalho de Vigotski, que

baseia seu diagnóstico da crise na análise e não na ideia do que a psicologia deve ser9.

Ele começa sua análise das correntes psicológicas com uma segunda observação

preliminar que reforça sua argumentação a favor de um procedimento histórico. Em um

determinado momento de seu desenvolvimento, cada ciência define seu objeto com a

ajuda de uma abstração primária, afirma ele. Isso significa que, em cada ciência, vai-se

reencontrar um ou vários conceitos gerais que determinam seu conteúdo. Os que são

qualificados pelas diferentes disciplinas científicas como seus parecem ser os traços

fossilizados desse gesto. Trata-se dos conceitos que determinam o que, em um

fenômeno real, deve ser analisado e que, portanto, constitui o objeto do conhecimento

científico. Exemplifiquemos essa proposição com a ajuda de um exemplo que o próprio

Vigotski cita. Qual é a diferença entre a observação de um eclipse solar feita por um

astrônomo e por um leigo? O astrônomo utiliza conceitos, métodos, formas de fazer que

transformam esse fenômeno natural em um fato de astronomia, em um objeto do

conhecimento astronômico. No eclipse solar, o astrônomo vê mais, ou melhor, vê além

do que um simples curioso, não porque ele utiliza instrumentos sofisticados que não

temos à nossa disposição, mas porque tem um aparelho conceitual que transforma o

eclipse em um objeto de conhecimento científico.

.

Vigotski insiste no fato de que cada fenômeno do mundo é inesgotável e infinito em

seus traços e que essa diversidade faz com que o mundo real tal qual é não possa nunca

ser o objeto de uma pesquisa científica. Portanto, qualquer ciência precisa dessas

abstrações primárias que traçam e delimitam seu campo e que permitem converter um

fato qualquer em um fato científico. Tomemos um exemplo,o que é analisado em uma

pesquisa em ciência da vida depende do modo como a vida é conceitualizada. Se a

abstração primária é « a vida como acomodação e ajustamento ao meio », os fatos

analisados no mundo dos seres vivos vão ser diferentes dos que são os privilegiados em

uma pesquisa que trabalhe com o conceito de « vida como direcionalidade ou

intencionalidade » 10

.

Voltemos agora ao diagnóstico de crise, que vemos elaborado no texto que

discutimos. De acordo com Vigotski, o problema com o qual a psicologia dos anos 20

encontra-se confrontada não é a falta de abstrações primárias, mas sim, o fato de que se

pode encontrar pelo menos três delas que servem, cada uma delas, de base para uma

9 Uma concepção normativa da psicologia acompanhada por um desenvolvimento dos critérios de cientificidade

encontra-se elaborada na obra Elementos da psicologia fisiológica de Wilhelm Wundt (1874/1886). 10 Esse exemplo se refere a uma discussão que teve lugar nos anos 20 e 30. Ver Gurwitsch, 1940.

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corrente psicológica determinada. Vigostki distingue primeiramente a psicologia do

homem normal, frequentemente chamada de psicologia instrospectiva ou ciência da

consciência. Ela vê a especificidade dos fenômenos psíquicos em seu caráter não

espacial, que os tornam acessíveis exclusivamente ao sujeito que tem a experiência

desses fenômenos. O método proposto por essa corrente é a reflexão ou a « percepção

interior », que é, como diz John Locke, « observação aplicada [...] às operações

internas do espírito (1709/2001, p. 164). Por meio dessa forma de percepção direta, o

homem seria capaz de produzir um conhecimento sobre seus próprios estados mentais.

Todos nós sabemos algo sobre o que faz ter frio, sobre ter um sentimento de

preocupação, de sentir alegria, de pensar apoiando-nos sobre essa experiência específica

que é a reflexão11

. Na psicologia do homem normal, essa capacidade foi transformada

em método, chamado de introspecção, e aplicado nas pesquisas para se conhecerem os

estados psíquicos e os conteúdos conscientes dos indivíduos.

A segunda corrente defende uma tese oposta, propondo desenvolver a psicologia

como ciência do comportamento. Vigotski coloca aqui a reflexeologia, cujos

representantes célebres são Pavlov e Bekhterev, que tem seu equivalente no

behaviorismo americano de James Watson (1878-1958). A consideração dos fatos

psíquicos como os comportamentos implica pelo menos duas coisas. Por um lado, eles

são identificados a atos de resposta do organismo a estímulos externos, a reflexos. Por

outro, uma tese bem surpreendente e sustentada. Nega-se a existência de uma causa

mental do comportamento ou, dito de outro modo, é inconcebível para os representantes

dessa corrente admitir a existência dos fenômenos psíquicos sob outra forma que não

seja a do comportamento exterior ou interior (funcionamento dos sistemas fisiológicos

ou neuronais). Esses dois tipos de comportamentos são os únicos dados analisados por

essa corrente, pois preenchem a condição de serem diretamente observáveis. Entretanto,

Vigotski insiste em ressaltar que há um traço comum que aproxima essas duas correntes

psicológicas : trata-se da utilização de um método direto em suas pesquisas. Enquanto a

psicologia do homem normal pretende que, com a ajuda da percepção interior, os

sujeitos podem acessar de imediato as operações psíquicas realizadas por eles, o

reflexólogo, por sua vez, observa diretamente as reações, os movimentos e os atos

comportamentais exteriores.

Resta-nos abordar a terceira corrente que Vigotski distingue pela abstração primária

do inconsciente. Essa abstração exige conceber a especificidade dos fenômenos

psíquicos no fato de que são determinados por uma realidade psíquica inacessível ao

sujeito, sem que se recorra a um trabalho suplementar, que seria o da psicanálise.

Tentemos expor uma primeira conclusão que nos guiará na sequência de nossa

leitura. Saindo das três abstrações primárias, as da consciência, do comportamento e do

insconsciente, temos três grupos de fatos científicos diferentes. Portanto, parece que o

11 Uma retomada dessa discussão se encontra em Nagel (1974/1987), que recolocou essa capacidade da consciência, essa experiência consciente, como ele a designa, no centro dos debates em filosofia do espírito e em ciências cognitivas.

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diagnóstico de crise proposto por Vigotski denuncia, antes de mais nada, essa

multiplicação do objeto da psicologia, que tem, como consequência, que cada corrente

busca elaborar seu próprio princípio de explicação. Tal princípio é necessário, dado que

cada corrente é obrigada a trazer a prova de que é por meio de sua abstração primária

que o ser do psíquico, a realidade do psíquico pode ser apreendida. Entretanto, parece

possível resumir os resultados das análises vigotskianas sobre a crise de algum modo e é

preciso, logo a seguir, assinalar que a solução que ele propõe não consiste na pesquisa

de uma abstração primária comum e aceitável por todas as correntes. Bem ao contrário,

ele vai iluminar e questionar a filosofia do conhecimento que sustenta as três correntes

de sua época e que constitui, ainda hoje, o sustentáculo de inúmeras concepções da

psicologia e das ciências da educação. A segunda parte desse capítulo, dedicada à

análise que Vigotski faz da crise, contém, consequentemente, sua própria concepção

epistemológica e, mais diretamente, sua resposta à questão de saber como se pode

produzir um conhecimento científico no quadro da psicologia. Essa resposta

compreende dois elementos essenciais: 1) o projeto de uma psicologia geral e 2) a

proposta de métodos indiretos em psicologia (ver cap. 3).

O projeto de uma psicologia geral

Atualmente, não temos mais o hábito de falar de uma psicologia geral, o termo

desapareceu de nossos debates e são, frequentemente, os que fizeram seus estudos nos

anos 50 e 60 que se lembram dos inúmeros manuais que traziam esse título. Trata-se

então de uma psicologia que se mostrou pouco fecunda? Para compreender o que

Vigotski visa com esse projeto, é preciso lembrar qual função teve e que tem até hoje,

em determinadas disciplinas, a distinção entre ciências gerais e ciências particulares.

Vigotski utiliza essa distinção para seus próprios objetivos, referindo-se frequentemente

à botânica ou, mais ainda, à biologia, que mostram um bom exemplo dessa distinção.

Assim, fala-se das botânicas particulares, no sentido de que cada um de seus ramos é

especializado em relação a um subconjunto de vegetais (rosas, cactos, árvores, etc.). Do

mesmo modo, na biologia, o organismo vivo é analisado em subespécies, como os

peixes, os mamíferos, etc. Ao contrário, a botânica geral trabalha os conceitos utilizados

por todas essas ciências particulares, como por exemplo, o conceito de planta, de

fotossíntese, etc. Quanto à biologia geral, são os conceitos de vida, de seleção natural,

etc, que são analisados. Assim, uma ciência geral estuda os conceitos (gerais) utilizados

nas ciências particulares, detectando ou confirmando o que é comum a todos os objetos

da ciência em questão. Atribuir à ciência geral a tarefa de desenvolver um aparelho

conceitual que garantiria a unidade e a coerência de toda uma disciplina científica

apresenta-se como uma proposta bem sedutora, mas ela pode ser realizada de dois

modos diferentes. É o que Vigotski trabalha para mostrar, criticando a psicologia geral

desenvolvida no quadro da lógica, opondo a ela sua própria concepção. Como exemplo

de uma psicologia geral, Vigotski discute a obra de Ludwig Binswanger (1881-1966),

intitulada Introdução aos problemas de uma psicologia geral (1922). Essa obra é, para

ele, ao mesmo tempo, um recurso interessante para seu projeto e o objeto de sua crítica

apurada e convincente, que pode ser resumida na seguinte citação:

Page 13: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

É certo que a ciência geral é o estudo dos fundamentos centrais, dos princípios

gerais e dos problemas de um determinado domínio do saber, e que,

consequentemente, seu objeto, sua metodologia de pesquisa, seus critérios e suas

tarefas são diferentes das disciplinas particulares. Mas é incorreto não a considerar

como uma parte da lógica, como uma disciplina lógica, [...], como se a psicologia

geral deixasse de ser uma psicologia para se tornar uma lógica (p. 109)

Para Binswanger, a psicologia geral toma como objeto os conceitos científicos

utilizados nas pesquisas psicológicas, examina o conteúdo desses conceitos e a relação

entre eles. Como ela realiza essa tarefa independendemente dos objetos que as ciências

particulares estudam, os conceitos são tratados como puras formas do conhecimento, de

onde a comparação que Vigotski faz entre a psicologia geral de Binswanger e a lógica.

Em lógica, é costume verificar a estrutura de um raciocínio independentemente do

conteúdo da proposição, ou ainda, estudar o conteúdo de um conceito e de sua relação

com outros conceitos, independentemente do que é conhecido por meio desse conceito.

Os critérios que guiam esse tipo de estudo não são os dos objetos reais, mas os da

lógica, dentre os quais encontramos, por exemplo, as regras de coerência e de não

contradição. Aliás, é um dos objetivos da lógica querer abstrair as formas de

conhecimento dos suportes concretos em que elas se exemplificam, a fim de poder

detectar sua estrutura e sua forma pura. Um exemplo que permite ilustrar esse

procedimento é a reprodução da língua natural por meio de sua forma lógica:

Se chove eu não saio. Ora, eu saio. Portanto, não chove.

Se e somente se A, não B. Ora, B. Portanto, não A.

A forma lógica do raciocínio nos permite verificar se as condições de verdade estão

respeitadas. Para decidir se o raciocínio está correto, não precisamos olhar o que se

passa na realidade. Isso também se mostra no fato de que a forma lógica seguinte seria

imediatemente refutada até mesmo por um não amador da lógica: Se e somente se A,

não B. Ora, A. Portanto, B. Sem sermos obrigados a verificar na realidade sobre o que

fala esse raciocínio, podemos decidir se ele diz a verdade com a ajuda do critério de não

contradição12

. Essa « força » da lógica, ou, como diz Vigotski, o fato de que

« Binswanger está disposto a admitir que o método do conhecimento determina a

realidade, como em Kant a razão ditava suas leis à natureza » (p. 124), encontra uma

viva rejeição de sua parte. O que Vigotski critica na psicologia geral de Binswanger é o

fato de que ela trata os conceitos utilizados como separáveis dos objetos que visa a

conhecer. Assim, essa psicologia se propõe a não estudar os mesmos objetos das

ciências particulares, estudando exclusivamente os conceitos e as abstrações. Esse

12 Em filosofia, o conhecimento que é produzido pelo raciocínio lógico é chamado de analítico. Assim, um enunciado é analítico, quando é verdadeiro em virtude das significações dos termos, ou dito de outro modo, quando sua correspondência com a realidade não precisa ser constatada nem verificada pela experiência, como é o caso do enunciado « um retângulo é um quadrado ».

Page 14: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

procedimento tem como consequência que « os conceitos e os objetos reais são

separados por um abismo instransponível » (p. 124). Mesmo que seja verdade que a

ciência geral em biologia e em botânica não trate de objetos vivos e concretos como as

plantas e os animais, mas de abstrações como organismo, a evolução das espécies, a

seleção natural, a vida, entretanto, no fim das contas, a partir dessas abstrações, ela

estuda a mesma realidade que a zoologia ou a botânica. Seria um erro afirmar que

estuda os conceitos e não a realidade que neles se encontra refletida [...] (p. 109,

sublinhada pela autora).

Portanto, a conclusão de Vigotski pode ser resumida como segue: por meio dos

conceitos, a psicologia geral estuda a mesma realidade que as ciências particulares. A

realidade que é analisada pelas ciências particulares como um mundo imediatamente

perceptível por palavras e conceitos utilizados pelo cientista, essa mesma realidade é

também o objeto da ciência geral. Ela estuda a realidade, analisando os conceitos nas

ciências particulares; em resumo, trabalha sobre o conteúdo real dos conceitos, com a

finalidade de produzir um conhecimento verdadeiro sobre a realidade. Essa afirmação

de que o conhecimento científico não se produz apenas por meio das experiências, das

percepções, das observações e de sua denominação, mas também e em grande parte por

meio de um trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos, eis aí o que está na base do

projeto vigotskiano de uma psicologia geral.

Finalmente, se os conceitos, como instrumentos, estivessem predestinados a fatos

determinados da experiência, qualquer ciência seria supérflua, milhares de funcionários-

registradores ou estatísticos-contadores poderiam então, transcrever o universo inteiro

em mapas, colonias, rubricas. O conhecimento científico se distingue do registro do fato

pelo ato de escolha do conceito requerido, isto é, pela análise do fato e do conteúdo (p.

117, sublinhado pela autora).

Por um realismo científico

Resta uma questão a ser estudada. Ela decorre imediatamente dessa tomada de

posição de Vigotski contra a compreensão que a psicologia geral recebe na obra de

Binswanger: o que é esse famoso « conteúdo real de um conceito » de que Vigotski

fala? Como se pode conhecer a realidade por meio dos conceitos? Vigotski esboça uma

resposta, com a ajuda de muitos exemplos, frequentemente emprestados das ciências da

natureza. Ele nos lembra de que é por meio dos conceitos de luz, de rotação e de

movimento que conhecemos o fato de que a terra gira em torno do sol. Com a ajuda

desses conceitos, enfim foi establecido o fato real do movimento da terra, apesar do fato

observável por cada criança de que o sol gira todos os dias em torno da terra.

Outro caso é citado por Vigotski no domínio da biologia. Como sabemos que as

formigas veem os raios químicos que são invisíveis para nós? É de novo por meio dos

conceitos, dessa vez por meio do conceito da luz, que esse conhecimento foi produzido

Page 15: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

(ver p. 114).

Além disso, o psicólogo russo traz também exemplos oriundos das ciências do

homem como o célebre experimento de Pavlov sobre o reflexo condicionado.

Lembremos a definição de reflexo: ele é caracterizado por uma excitação periférica de

um nervo sensível que determina um movimento de resposta. Assim, a salivação do

cachorro começa imediatamente à visão do alimento que se põe diante dele. Esse

mesmo conceito de reflexo é utilizado por Pavlov para resumir uma situação mais

complexa em relação à primeira. No momento mesmo em que o alimento é trazido, o

pesquisador acende uma lâmpada na cela do cachorro. Depois de algumas repetições

dessa situação, só a lâmpada vai ser acesa, enquanto o alimento não é trazido e constata-

se o resultado que nos é bem conhecido: a salivação do cachorro é produzida, mesmo

com a falta do alimento.

Pavlov decide explicar esse fato, por meio do conceito de reflexo e, mais

particularmente, com o conceito de reflexo condicionado. Para bem compreender por

que Vigotski cita esse exemplo, parece-nos importante ressaltar o fato de que a escolha

desse conceito é uma decisão que determina fortemente o conhecimento desse

fenômeno. Enfim, tomando essa decisão conceitual, Pavlov realiza duas coisas.

Primeiro, ele expande o conceito de reflexo, mostrando que não há apenas uma

dimensão inata e que, portanto, ele não é apenas um produto da filogênese, mas que

também contém uma dimensão artificial. O reflexo pode aparecer como resultado de um

adestramento, de um condicionamento. Em segundo lugar, Pavlov afirma, com esse

conceito, que não se trata de um comportamento inteligente ou controlado que se

observa no cachorro de seu experimento. Ressaltemos que ele poderia ter utilizado, para

discutir seus resultados, um outro conceito, por exemplo, o de intelecto prereflexivo,.

Mas o conceito de intelecto prereflexivo fala de uma coisa diferente do que fala o

conceito de reflexo condicionado. Esse conceito teria explicado o que foi observado

como o resultado de uma aprendizagem, a qual permitiu que o cachorro descobrisse e

memorizasse a relação entre duas coisas e que tomasse esse saber de um modo não

reflexivo, desde que a situação o exigisse. Com o conceito de intelecto prereflexivo,

outro conhecimento do que foi descoberto no experimento de Pavlov teria sido

produzido. Poder-se-ia contra- argumentar à nossa ilustração desse exemplo, citado por

Vigotski, que nos parece ser bem claro, que se tratava de um reflexo, mas a situação

empírica não o « diz ». Trata-se de um gesto teórico do pesquisador, que decide utilizar

o conceito de reflexo condicionado e não utilizar o de intelecto prereflexivo para

conhecer o que acaba de constatar pela observação13

. Portanto, isso confirma a

necessidade e o interesse de trabalhar com o conteúdo dos conceitos e com a escolha

dos conceitos para podermos produzir um conhecimento sobre o mundo; um trabalho

que teve e que sempre terá lugar nas ciências, mesmo que não seja sempre explicitado.

13 Aliás, é esse mesmo trabalho sobre os conceitos, esse trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos que fez que conhecêssemos os comportamentos dos macacos observados por Wolfgang Köhler (1887-1967) nos célebres experimentos em Tenerife como comportamentos inteligentes (ver Köhler, 1921 – 1927).

Page 16: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Entretanto, essa conclusão, coloca uma outra questão. Podemos, com o trabalho

sobre o conteúdo real dos conceitos, produzir, efetivamente, um conhecimento

verdadeiro sobre os fenômenos do mundo? Vigotski responde pelo positivo e adota uma

posição realista plenamente assumida. Poderíamos resumir essa posição do seguinte

modo. De acordo com Vigotski, o objeto do conhecimento científico existe sempre, ao

mesmo tempo, sob a forma do fato real e sob a forma de seu pensamento com a ajuda

dos conceitos. Dito de outro modo: há uma realidade que correponde às leis descritas

pela física, aos conceitos utilizados nas ciências, mesmo que essa realidade seja

diferente e que, frequentemente, não pareça corresponder às nossas visões ordinárias do

real. Como é o caso em relação ao movimento do sol, cuja descrição científica é

considerada como verdadeira não corresponde ao que vemos realmente. De fato, essa

realidade que conhecemos nas ciências através dos conceitos, não é, frequentemente,

relativa à nossas medidas e à nossas observações, mas trata-se, entretanto, de um

conhecimento verdadeiro da realidade produzida graças a conceitos que correspondem a

ela. O realismo em ciência significa que se reconhece que ele existe independentemente

de nosso pensamento sobre uma realidade que pode ser conhecida e que a confirmação

de uma teoria científica permite afirmar que a realidade é como a teoria que a descreve,

mesmo que pareça estar em contradição com nossas observações ou que essa realidade

conhecida pela ciência não seja ou que não venha a ser nunca observável14

. O filósofo

americano Charles Peirce (1839-1914) exprimiu a concepção realista em um slogan

bem claro: « Mas, de fato, um realista é simplesmente o que não reconhece nenhuma

realidade mais abstrusa do que a que é representada por uma verdadeira representação »

(1868/1987, p. 100).

Isso implica também que o realismo científico defende a tese de que um enunciado

científico é verdadeiro justamente em virtude de sua correspondência com a realidade.

Entretanto, há, no quadro da corrente realista alguns autores que preferem ressaltar que

essa correspondência entre conhecimento e realidade deve ser sempre considerada como

uma finalidade e que não se pode concluir daí que ela seja o único critério da verdade.

Essa nuance cética no quadro do realismo científico é frequentemente resumida do

seguinte modo: « A verdade de nossas teorias não transcende o conhecimento que temos

dela, apesar de que essas teorias incidam sobre um mundo objetivo » (Tiercelin, 2004,

p. 805)15

. Esse modo de formular o problema impede imputar aos realistas uma

concepção ingênua no que se refere ao caráter histórico das pesquisas científicas que

também têm tanto os instrumentos científicos quanto os aparellhos conceituais

utilizados. Lembremos as reflexões de Vigotski expostas na primeira parte desse

capítulo que ressalta justamente esse fato e que nos levam a situar a psicologia russa

nessa corrente de realismo « moderado ».

Entretanto, quanto ao fato de que ele é um defensor de uma posição realista, não

14

Como isso foi, durante muito tempo, o caso de determinados planetas, cuja existência foi provada exclusivamente

por cálculos matemáticos. 15 Tiercelin relata aqui a posição do filósofo americano Hilary Putnam (1926-) que não para de procurar um realismo que leve realmente em conta que as ciências não descrevem “uma realidade independente dos conceitos, independente de toda perspectiva” (Putnam, 1909/1994, p. 328).

Page 17: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

deixa dúvida. Vejamos como ele próprio exprime explicitamente essa posição. Para

isso, refere-se à obra de Friedrich Engels16

(1820-1895), A dialética da natureza

(1883/1975), citando principalmente as passagens em que este reinterpreta uma ideia

central do grande filósofo alemão Georg W.F. Hegel (1770-1831):

O que em Hegel aparece como um desenvolvimento do julgamento como

categoria do pensamento como tal, aparece-nos agora como o desenvolvimento de

nossos conhecimentos teóricos sobre a natureza do movimento em geral,

conhecimentos que se baseiam em uma base empírica. Consequentemente, isso

mostra que as leis do pensamento e as leis da natureza se encontram

necessariamente de acordo entre si por pouco que sejam conhecidas de um modo

exato. (Engels, 1975, p. 227, citado por Vigotski, p. 126)

Vigotski comenta essas reflexões de Engels, formulando o que nos parece uma

conclusão pertinente para esse capítulo:

Essas palavras (de Engels) contêm a chave da psicologia geral como parte da

dialética:17

essa correspondência entre o pensamento e o ser em ciências é, ao mesmo

tempo, o objeto, o critério último e mesmo o método, isto é, o princípio geral da

psicologia geral (p. 126).

Poderíamos avançar dizendo que, para Vigotski, a resposta à questão de saber se a

psicologia como ciência é possível, é uma resposta positiva. Com a condição de que

isso não seja a realidade tal como considerada como o objeto da pesquisa, mas a

correspondência entre o fato real e o pensamento conceitual desse fato. Para Vigotski, é

incontestável que essa correspondência é o produto das práticas científicas

desenvolvidas em um determinado momento da história das ciências, das práticas que,

muito moventes, sempre visam, entretanto, a um conhecimento verdadeiro.

16 Friedrich Engels desenvolveu com Karl Marx uma teoria social e revolucionária da economia e da sociedade, chamada desde então, de marxismo. Essa teoria foi um ponto de referência central nos debates intelectuais na União Soviética nos anos 20. 17 A dialética é aqui compreendida no sentido de Hegel, como o estudo do automovimento do espírito, que, através de um procedimento do conhecimento bem determinado chega à correspondência entre seu ser e seu conhecimento. É o curso do espírito em seu autoconhecimento. Reencontramos aí a ideia da correspondência cara ao realismo.

Page 18: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

CAPÍTULO 2

O TERMÔMETRO DA PSICOLOGIA

Métodos diretos e indiretos

Esse capítulo dedica-se à discussão do método que, como Vigotski assinala, tem o

objetivo de produzir a correspondência entre o conhecimento e a realidade, que

acabamos de discutir no capítulo anterior. Na Significação histórica da crise em

psicologia, Vigotski distingue dois grupos de métodos. O primeiro, o método direto,

dominou a psicologia de sua época e, principalmente a psicologia do homem normal

e o behaviorismo. O segundo grupo de métodos, o método indireto, é discutido por

Vigotski, de um lado, a partir das ciências da natureza e, de outro, das ciências

históricas.

O termo método direto recobre todos os procedimentos que afirmam que só é

possível estudar o que nos é dado pela experiência imediata. Esse método pode ser

desenvolvido por meio de observações externas, como é o caso para o

behaviorismo, ou sob a forma de observações internas, utilizando-se o método da

instrospecção atestável na psicologia do homem normal. No capítulo anterior, vimos

que, para os defensores dessas duas correntes, a experiência é considerada como a

única fonte e o limite natural do saber científico. Então, para eles, é necessário

sustentar que a única mediação entre o mundo e os pesquisadores são os órgãos dos

sentidos ou as suas extensões que um determinado tipo de instrumentos propicia,

como o microscópio, o telescópio ou o telefone. Esses últimos não nos liberam da

percepção, mas tornam acessíveis à percepção e à observação o que é invisível a

olho nu, como é o caso, por exemplo, de determinadas estrelas de nossa galáxia, que

só se tornaram observáveis depois da invenção do telescópio.

Vigotski submete essas posições a uma crítica radical, segundo as quais o método

direto seria o único método possível da psicologia. Em sua argumentação se

distinguem dois tipos de argumentos. O primeiro sustenta o fato de que

determinados domínios da psicologia não podem ser investigados com o método

direto. Vigotski cita a psicologia da criança, que, necessariamente, se torna « um

paraíso perdido para sempre ». Como queremos analisar o pensamento da criança,

seu modo de construir conceitos com um método que exige confiar na auto-

observação, na percepção interior e na fala da criança? Isso seria uma empreitada

extremamente trabalhosa, na visão de Vigotski, principalmente se considerarmos o

seu desenvolvimento cognitivo. Outro exemplo dado pelo autor é a filogênese do

psiquismo. A questão posta assemelha-se à anterior e recai de novo sobre a

acessibilidade do objeto de pesquisa: como se pode analisar diretamente o

nascimento dos fenômenos psíquicos na evolução da espécie humana? Assim, diante

dessas dificuldades, qualquer análise de caráter histórico deveria ser excluída da

psicologia. Uma última prova da fraqueza do método direto é dada pela abstração

Page 19: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

primária da terceira corrente em psicologia, a saber, o conceito de inconsciente.

Vigotski pergunta como se poderia acessar ao insconsciente, que é justamente

considerado como estando « fora da consciência » (ou « recalcado »), ou ainda que

não é dado imediatamente ao sujeito e que, portanto, exigiria um trabalho

suplementar dirigido por um terceiro para detectá-lo.

Outro grupo de argumentos que Vigotski desenvolve contra o método direto aponta

para um caráter positivo. Ele propõe que nos voltemos para o psíquico e para as

ciências da natureza, a fim de apreender como nela se desenvolve uma liberação em

relação às percepções sensoriais. Assim, ele mostra que o conceito de força, tal

como é definida pela física newtoniana, é liberada de qualquer relação com as

sensações musculares e encontra sua « expressão » nas fórmulas matemáticas, que

permitem determinar a força necessária para se colocar um corpo em movimento,

sem que essa força seja necessariamente percebida ou mensurada18

. A maioria dos

conceitos em física apresenta a mesma característica. Para Vigotski, a conclusão que

decorre desse fato é incontestável: se o conhecimento científico e a observação

imediata não coincidem, isso significa, para as pesquisas em psicologia, que « a

distinção entre o conceito psicológico de base e a percepção sensorial específica

constitui a próxima tarefa ». (p. 163).

Mas como tal distinção pode ser feita? É a questão que ocupa nosso autor no

capítulo 8 do texto A significação histórica da crise em psicologia e que o leva a

reexaminar os métodos que têm um caráter indireto, como no caso dos métodos

interpretativos e reconstrutivos utilizados nas ciências históricas. Como um

historiador, um geólogo e um filólogo estudam o passado da humanidade e da terra

ou ainda das línguas antigas? De um modo indireto, frequentemente com o auxílio

dos traços que são os documentos transmitidos, os vestígios, as deformações das

pedras nas montanhas, os grãos encontrados em uma determinada profundidade da

terra, etc. É com a ajuda desses traços que o pesquisador formula um conhecimento

sobre o passado. Ele interpreta e reconstrói, a partir deles, o objeto que antes existiu.

Ele o faz de um modo indireto, como o engenheiro que, ao estudar o plano da

máquina, já estuda a máquina e não mais o seu plano.

passado (inacessível) traços

interpretação / reconstrução

Mesmo que, no decorrer dos séculos, a partir de documentos verídicos, os

historiadores tenham feito mais de uma interpretação errônea, isso não significa,

18 A segunda lei de Newton é enunciada da seguinte maneira: « Seja um corpo de massa m (constante): a aceleração

sofrida por um corpo em um referencial galileliano é proporcional à resultante das forças que ele sofre, e inversamente proporcional à sua massa m ». Trasformando com essa lei a força em uma variável desconhecida, ela se

torna o resultado de um cálculo: .

Page 20: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

para Vigotski, que a aplicação do método indireto nos afaste da verdade, mas sim,

muito ao contrário, que ele nos aproxima dela19

.

Os instrumentos com caráter específico, como o termômetro, servem para

exemplificar de maneira muito interessante o método indireto, que Vigotski

descreve da seguinte maneira:

No termômetro, lemos a temperatura; [esse instrumento] não reforça nem prolonga a

sensação de calor, como o microscópio aumenta a capacidade do olho, mas ele nos

emancipa totalmente da sensação, quando estudamos o calor [...]. O termômetro é o

modelo perfeito do método indireto; de fato, não estudamos o que vemos (como

com o microscópio) – a subida do mercúrio ou a dilatação do álcool -, mas sim, o

calor e suas modificações, tal como indicados pelo mercúrio ou pelo álcool.

Interpretamos as indicações do termômetro; reconstruímos o fenômento estudado a

partir de seus traços e de sua influência sobre a dilatação de um corpo (p. 164).

O que frequentemente esquecemos, quando utilizamos esse tipo de instrumentos na

vida cotidiana e na vida científica, é o fato de que eles se baseiam na interpretação

dos traços que se torna possível pela expressão do fato sob uma forma que nos libera

de sua percepção imediata. Em vez de sentir o calor, vemos a mudança da posição

do mercúrio na escala inscrita no termômetro; em suma, vemos os traços do calor. É

só então que, com o conhecimento das regularidades e das leis de dilatação dos

corpos sob o efeito do calor é que o termômetro pode ser concebido e construído.

« Consequentemente », conclui nosso autor, « interpretar significa recriar o

fenômeno a partir de seus traços e de suas influências, com base nas regularidades

anteriormente estabelecidas » (p.164). O exemplo do termômetro mostra claramente

um traço da interpretação muitas vezes passado em silêncio. Uma interpretação ou

uma reconstrução de um fato se realiza sempre por intermédio de um conhecimento

já existente (por exemplo, pelas leis da física) que mediatiza, seja diretamente,

enquanto conhecimento, seja sob a forma de um construto, graças a ele, a produção

do conhecimento do fato em questão.

Vigotski prossegue suas reflexões em torno do termômetro, colocando em questão

uma ideia que, desde o começo do século XX, animava os debates epistemológicos

em filosofia. Trata-se da distinção entre as ciências da natureza e as ciências do

espírito, entre as ciências que favorecem a explicação e as que se voltam para a

compreensão (Schurmans, 2006). Apesar da tendência bem difundida de se oporem

dois tipos de ciências, a discussão dos métodos indiretos que Vigotski propõe apaga

de certa maneira essa distinção, pois, segundo o autor:

[...] não há nenhuma diferença de princípio entre a utilização do termômetro e a

19 As características essenciais do método interpretativo são postas à luz nas contribuições de uma obra que propõe o

método indiciário como método central para as ciências do homem. (ver Thouard, 2007).

Page 21: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

interpretação em história, em psicologia e etc. A mesma coisa é verdadeira para

todas as ciências: elas não são dependentes da percepção sensível (p. 164). (trad.

nossa)

Mas, para Vigotski, a psicologia ainda não tinha desenvolvido sua metodologia de

procedimentos e se baseava, muito frequentemente, em métodos diretos. Nessa

perspectiva, o autor formula a tarefa futura da psicologia, que deveria ser a de

conceber e construir « o termômetro » que « não controlaria ou reforçaria a

instrospeção, mas que nos liberaria dela [...] » (p. 165).

O conceito de psiquismo

Essa discussão sobre os métodos diretos e indiretos permitiu a Vigotski mostrar que um

método que não se baseia na percepção sensorial é concebível e, além disso, necessário

para a psicologia. Ele propõe, assim, voltar ao conceito psicológico de base (à abstração

primária) para substituir tanto o conceito de consciência (intimamente ligado ao método

da introspecção), privilegiado pela psicologia do homem normal, quanto o conceito de

comportamento (ligado à observação exterior), valorizado pelo behaviorismo, por um

outro que corresponde ao método indireto. No que se segue, demonstrarei por que

Vigotski propõe como conceito psicológico de base o de psiquismo, às vezes substituido

pelo de consciência. Em sua obra, o uso distinto desses dois conceitos não está

estabilizado, o que pode ser explicado pelo fato de que Vigotski tentava defender o

conceito de consciência contra o behaviorismo, distinguindo-se ao mesmo tempo da

psicologia introspeccionista.

Vigotski compara o psiquismo a um instrumento que isola, separa, abstrai, faz

escolhas dos fatos da realidade. O autor postula que, mesmo que nossos sentidos nos

deem acesso ao mundo prioritariamente na forma de segmentos, eles nos fazem ver, de

modo mais preciso, prioritariamente, as partes da realidade que são importantes para

nós. Não vemos tudo, não sentimos tudo, nossa consciência não se dá conta de tudo.

Além disso, o resultado de tal exaustividade seria fatal e Vigotski nos adverte, pois

« um olho que visse tudo, não veria nada » (p. 167). Do mesmo modo, para a

consciência, que, se tomássemos consciência de tudo o que nos diz respeito (as opiniões

dos colegas, as próprias fraquezas, a finitude de ser) provavelmente acabaria por nos

separar do mundo.

É como se a consciência seguisse a natureza por saltos, como omissões e lacunas. O

psiquismo seleciona elementos estáveis de realidade no seio do movimento

universal. Ele constitui ilhotas de segurança no fluxo de Heráclito. Ele é o órgão

que escolhe o filtro que filtra o mundo e o transforma de um modo que seja possível

agir (p. 167). (Trad. nossa)

É interessante salientar as comparações que Vigotski utiliza para caracterizar o

funcionamento do psiquismo. Ele fala de órgão de seleção, de filtro, mas também

Page 22: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

de um funil que se estreita. Todos esses « instrumentos » têm uma função em

comum, a saber, a de « escolher », de selecionar, de deixar passar determinados

elementos da realidade e de reter outros. É por essa razão que Vigotski considera o

psiquismo como a forma superior de escolha e atribui a essa característica um valor

exlusivamente positivo. Um reservatório de água reflete tudo, uma pedra também,

suas reações são normalmente iguais aos estímulos; ao contrário, o psiquismo nunca

reflete a realidade, seu papel positivo consiste justamente no fato de que « distorce

subjetivamente a realidade em favor do organismo » (p.167). Portanto, se a função

primeira do psiquismo é a de constituir ilhotas de segurança, de transformar nossa

percepção do mundo de modo que seja possível continuar a agir e viver, estamos

confrontados com a ideia de uma distância entre o psiquismo e o mundo. O

psiquismo não representa o mundo, mas, metaforicamente falando, ele « trabalha o

mundo ».

Tal definição do conceito psicológico de base coloca o psicólogo diante de uma

situação bem particular, pois o que acabamos de expor significa que o pesquisador

tem acesso a seu objeto, o psiquismo, exclusivamente sob a forma de fragmentos.

Vigotski salienta o fato de que a série psíquica20

, de natureza infinita, nunca é

infinita nem sem lacunas para o pesquisador, pois, como a relação do sujeito com o

mundo é mediatizada pelo psiquismo, a percepção e o conhecimento do mundo são

sempre trabalhados e o que se apresenta imediatamente ao pesquisador é apenas essa

parte selecionada, parte finita da série psíquica. Com outras palavras: para analisar

um « instrumento » que funciona como filtro, não é suficiente conhecer os

resultados da filtragem, o que « sai », depois da seleção; também é preciso saber o

que foi filtrado; portanto, o que não passou, o que foi posto de lado, o que não foi

selecionado. Para provar que o psiquismo trabalhou, é preciso mostrar que houve

seleção; consequentemente, é preciso completar os saltos da série que conhecemos

por meio de uma reconstrução do que não passou no filtro, do que se encontrava na

entrada do filtro e que aí ficou. Em suma, a tarefa do psicólogo, para Vigotski,

consiste na transformação da série psíquica, sempre dada como finita, em uma série

infinita. Portanto, o psiquismo, tal como definido pelo autor, só pode ser definido

por meio de métodos indiretos, de construção de hipóteses, de reconstrução e de

interpretação dos traços da filtragem. Desse modo, ele desenvolve um conceito de

psiquismo visivelmente separado da percepção sensorial, o que confirma a

prioridade que o autor atribui aos métodos indiretos em psicologia.

Encontramos aplicações do conceito vigotskiano do psiquismo em diferentes

domínios. Assim, no quadro da psicologia do trabalho, uma distinção interessante

para a análise das atividades profissionais foi introduzida por Yves Clot, distinção

essa que se inspira nessas ideias de Vigotski. Clot (1999, p. 119-120) diferencia em

cada atividade uma parte que ele chama de ação realizada e outra, que ele nomeia

20 Na psicologia clássica, foi costume falar da série psíquica. Esse conceito se refere à distinção kantiana entre tempo

e espaço. Kant utiliza esse conceito de série para caracterizar o tempo; portanto, o fato de que os antecedentes são a condição das consequências presentes e assim em diante. Lembremos de que o conceito de tempo serve, habitualmente, para especificar os fenômenos psíquicos.

Page 23: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

de ação real ou o real da atividade. O real da atividade contém tudo o que não foi

feito, mas que poderia ter sido para a realização da atividade. Pode ser o que

tentamos fazer e não conseguimos, o que sonhamos poder fazer, o que não se pode

fazer, o que saiu de nosso campo de atenção em um determinado momento e etc.

Clot propõe levar em consideração essas atividades suspensas, contrariadas,

impedidas, retidas, ocultas, que ocorrem no decorrer da ação, pois são elas que

« explicam » a ação realizada. Frequentemente essa parte de nossas ações é muito

mais extensa que a parte que « chega a passar pelo filtro », isto é, a ação realizada,

dado que esta é apenas um « sistema de reações que venceram », como diz Clot (p.

119), com as palavras de Vigotski (1925/2003, p. 74). Portanto, se voltarmos a este

autor, é pertinente concluir que, para apreender o real da ação, o pesquisador só tem

um meio à sua disposição: uma reconstrução hipotética do real da ação. Tanto o real

da ação quanto o funcionamento do psiquismo são inacessíveis, tanto para o ator

quanto para o pesquisador, se eles estiverem armados apenas com o método direto.

O objetivo, portanto, é conhecer o que não aparece nem na ação realizada nem na

percepção da realidade pelo sujeito, mas que faz justamente com que elas existam na

forma atestada.

Essas reflexões nos levam a uma conclusão radical: a psicologia, assim como outras

ciências que tomam o homem como seu objeto, não podem se fiar só na observação,

na análise do que nos é diretamente dado, quer seja por meio de nossos sentidos

(pela perceção, pela sensação), mesmo que elas sejam auxiliadas por instrumentos,

ou seja por meio do discurso dos sujeitos que relatam imediatamente suas

experiências e suas ações. Tanto o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos

assinalado por Vigotski à psicologia geral quanto o trabalho da interpretação e da

reconstrução da série psíquica mostram, de fato, que, para o autor, a psicologia

como ciência behaviorista ou instrospectiva é, por princípio, impossível. Ao

contrário, a psicologia que produz de um modo indireto, portanto, mediatizado pelos

conceitos ou pelos instrumentos do método indireto, um saber sobre o

funcionamento do psiquismo detém, de acordo com o autor, o nome de ciência com

toda a justiça. É só de um modo mediatizado, por meio de conceitos, das

reconstruções e dos instrumentos comparáveis ao termômetro, que uma produção de

conhecimento científico é possível no quadro da psicologia. Essa ideia de uma

mediação está no centro de suas reflexões epistemológicas e é ela a base de seu

conceito de psiquismo. Essa mesma ideia pode ser atestada em seus trabalhos

puramente psicológicos. Ela vai ser desenvolvida no próximo capítulo, com o

conceito de instrumento psicológico, que mostra que a psicologia vigotskiana não

tem apenas o objetivo só de conhecer, mas também o de intervir.

Page 24: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Capítulo 3

A IDEIA DE INSTRUMENTO PSICOLÓGICO

O conceito de instrumento psicológico foi desenvolvido por Vigotski em forma de

teses no pequeno texto O método instrumental em psicologia (1930) e nos dois

primeiros capítulos da obra A história do desenvolvimento das funções psíquicas

superiores (1931), cuja tradução para o francês está sendo feita. Para a compreensão

dessa ideia, outro texto póstumo é muito interessante. Trata-se de A psicologia concreta

do homem, que apresenta « um rascunho de pensamento », que tem por objetivo abordar

esse tópico a partir de ângulos de vista múltiplos.

O funcionamento do instrumento psicológico

A tese central desenvolvida por Vigotski nesses textos pode ser assim resumida: todas

as funções psíquicas superiores, como por exemplo, a atenção voluntária ou a memória

lógica, surgem com o auxílio dos instrumentos psicológicos e, consequentemente, se

constituem como fenômenos psíquicos mediatizados. Isso significa claramente que, em

relação às concepções reflexológicas e behavioristas, opera-se uma modificação da

unidade de análise dos fenômenos psíquicos. Nessas duas concepções, os processos

psíquicos são apresentados como sendo compostos por dois elementos: o estímulo (por

exemplo: A = a tarefa de memorizar uma determinada informação) e a reação (B = a

memorização efetiva dessa informação):

A B

Consequentemente, para os defensores dessas correntes, a memorização consiste na

instauração de um vínculo associativo e direto entre A e B, que, de acordo com

Vigotski, é característica da memória natural. Entretanto, há outro tipo de memória, a

memória artificial, que é classificada por Vigotski como uma das funções psíquicas

superiores. Tomemos um dos exemplos que o autor desenvolve sobre essa questão para

apreender a especificidade da memória artifical (Vigotski, 1931/1983, p.109-111). A

Page 25: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

uma criança de dois anos e meio damos a tarefa de levantar a mão direita, quando lhe

mostramos um lápis e a de levantar a mão esquerda quando se tratar de um relógio. Em

uma primeira série de tentativas, o pesquisador faz a criança apenas repetir a tarefa

durante muito tempo e ela não chega a memorizar o vínculo entre a mão direita e o

lápis, e entre a mão esquerda e o relógio; em uma segunda série são introduzidos

determinados « instrumentos ». Perto da mão direita da criança, o pesquisador põe uma

folha de papel que a criança pode relacionar com o lápis e, perto da mão esquerda, ela

encontra um termômetro que faz com que ela se lembre do relógio. Depois da

introdução desses « instrumentos », a maioria das tentativas se desenvolve sem erro,

pois a criança se refere aos « instrumentos » que facilitam a memorização demandada.

Vigotski fala do método da dupla estimulação, pois em vez de um vínculo direto entre

A e B, dois novos vínculos são criados:

A B

Estímulo Reação

tarefa realização da tarefa

(a memorizar) (memorizar)

I

instrumento

psicológico

A tarefa de memorização se realiza com o auxílio de um instrumento, que Vigotski

chama de instrumento psicológico, que transforma o vínculo entre A e B em um vínculo

indireto ou mediatizado. Daí se chega à seguinte conclusão, cuja importância Vigotski

sempre ressalta: os processos psíquicos superiores são, sempre e necessariamente,

compostos de três elementos: a tarefa (A), o instrumento (I) e o processo psíquico

necessário (B) para resolver a tarefa (Vigotski 1930/1985, p. 40). Entretanto, esse

esquema não evidencia um traço principal do instrumento psicológico, o que se explica

pelo fato de que Vigotski busque aqui, como muitas vezes em seus escritos, apresentar

uma nova ideia, mas usando a terminologia das correntes dominantes, ao mesmo tempo

que aplica um deslocamento importante dos conceitos utilizados. Assim, ele ressalta

que o processo de memorização artifical leva ao mesmo resultado que é obtido pela

memória natural, com a diferença de que « [...] a novidade tem a ver com a direção

artifical que é imposta, pelo instrumento, ao processo natural » (ibid., p. 41). Essa

observação é muito importante, pois dá conta do fato de que o instrumento psicológico é

orientado para os processos psíquicos do sujeito, espontaneamente mobilizados, em um

primeiro momento, para resolver a tarefa. São esses processos (naturais) que são

atingidos pela introdução do instrumento psicológico e são eles que se tornam objeto de

Page 26: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

controle e de domínio por parte do homem. De fato, o instrumento psicológico utilizado

tem por função fazer com que os fenômenos psíquicos necessários para se realizar a

tarefa se desenvolvam de uma forma melhor. O esquema abaixo pemite dar conta dessa

função do instrumento psicológico.

sujeito realização da tarefa

processo psíquico

natural

= transformação em processo psíquico artificial

instrumento

influenciar e controlar

É na forma como Vigotski argumenta sobre a diferença entre um instrumento

psicológico e um instrumento ou ferramenta de trabalho que essa diretividade bem

específica do instrumento psicológico é mais uma vez ressaltada. Os dois tipos de

instrumentos funcionam como elementos intermediários, intercalados entre a atividade

do homem e seu objeto. A diferença está no fato de que, com a ferramenta de trabalho,

as transformações no mundo dos objetos são produzidas e, consequentemente, ela deve

ser concebida em função das intervenções preconizadas. Assim, com um martelo,

busca-se fazer buracos ou endireitar o metal. Para chegar a esse objetivo com sucesso, o

martelo deve ter uma determinada forma e ser feito com um determinado material. Ele é

portador de uma finalidade que está incorporada em sua forma material. Ao contrário, o

objeto do instrumento psicológico não está no mundo exterior, mas na atividade

psíquica do sujeito, sendo esse instrumento um meio de influência do sujeito sobre si

mesmo, um meio de autorregulação e de autocontrole.

O que é um bom instrumento psicológico ou, em outras palavras, o que pode

desempenhar essa função parece ser menos predeterminado que no caso da ferramenta

de trabalho. Qualquer objeto pode tornar-se um meio mnemotécnico, tendo como único

critério o fato de que deve permitir que nos lembremos de um modo melhor de alguma

coisa. É no texto O método instrumental em psicologia que Vigotski dá exemplos de

instrumentos psicológicos e nos dá uma primeira enumeração deles:

« Eis alguns exemplos de instrumentos psicológicos e de seus sistemas complexos:

a linguagem, as diversas formas de contar e de cálculo, os meios mnemotécnicos,

os símbolos algébricos, as obras de arte, a escrita, os esquemas, os diagramas, os

mapas, os planos, todos os signos possíveis etc. » (ibid., p. 39).

Lendo essa citação, somos levados a pensar que Vigotski situa os instrumentos

psicológicos só no domínio dos signos. Mas essa conclusão deve levar em consideração

o fato de que ele fala de « todos os signos possíveis », o que implica que qualquer

Page 27: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

objeto da realidade pode se tornar um signo. Vimos no experimento relatado acima duas

ferramentas de mensuração, um relógio e um termômetro, funcionando como

instrumentos mnemotécnicos. Esse exemplo prova que Vigotski amplia o conceito de

signo de tal modo que faz com que ele perca sua força distintiva, sua capacidade de

marcar um tipo bem específico de objetos do mundo21

. De fato, não é o conceito de

signo que permite identificar o que é um instrumento psicológico, mas três outras

características que podem ser inferidas das reflexões de Vigotski e que os signos

também podem ter. Um instrumento psicológico: 1) é uma adaptação artifical; 2) tem

uma natureza não orgânica, ou, em outras palavras, tem uma natureza social e 3) é

destinado ao controle dos próprios comportamentos psíquicos e dos outros. Como diz

Vigotski:

« No comportamento do homem, voltamos a encontrar toda uma série de

adaptações artificiais que visam a controlar os processos psíquicos. » (ibid., p. 39)

Natural/artificial versus natural/cultural

É importante observar que Vigotski resume essa especificidade do instrumento

psicológico com a ajuda do par de conceitos natural e artifical e não, como se poderia

esperar, do par de conceitos natural e cultural. Quais são os argumentos que

encontramos em Vigotski para compreender essa escolha conceitual? Em primeiro

lugar, ele insiste no seguinte fato, aparentemente banal: os processos psíquicos que são

dominados, regulados e controlados por meio dos instrumentos psicológicos sempre são

processos naturais:

Por outro lado, podemos abordá-lo [o comportamento psíquico] sob o ângulo do

uso que o homem faz de seus próprios processos naturais e dos métodos que adota

para esse fim e estudar o modo como o homem se serve das propriedades naturais

de seu tecido cerebral e como controla os processos que aí se produzem (ibid., p.

41).

O objetivo da utilização dos instrumentos psicológicos consiste então em « um uso

ativo que se faz das propriedades naturais do tecido cerebral » (ibid.). Em vez de falar

de uma transformação dos processos naturais em processos de caráter social e cultural,

Vigotski tematiza a função dos instrumentos psicológicos, sua intervenção artificial

sobre os fenômenos psíquicos, que são caracterizados pelo termo natural. Essa

conceitualização tem uma vantagem, pois, de alguma forma, torna caducas as oposições

bem estabelecidas, como a oposição entre o psíquico e o fisiológico, segundo a qual o

fisiológico é o objeto das ciências da natureza, enquanto o psíquico é alguma coisa

outra, diferente dos fatos puramente naturais que são os fenômenos fisiológicos ou

21 É a relação de representação que faz a especificidade dos signos e que assinala na famosa fórmula aliquid stat pro

aliquo (alguma coisa que está no lugar de outra coisa), avançada pelos escolásticos para falar das entidades semióticas. Os signos que são o objeto da semiótica e da linguística são caracterizados por sua capacidade de ser um objeto (som, imagem acústica, etc.) que significa, indica, representa outro objeto (uma representação mental, uma informação, um simples processo natural etc.).

Page 28: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

físicos. Aliás, essa oposição é a fonte de debates incessantes sobre o lugar da psicologia

no sistema das ciências. Desde o fim do século XIX, alguns autores a colocam nas

ciências da natureza, outros lhe reservam um lugar no domínio das ciências sociais e

culturais e, mais frequentemente, é considerada como « estando entre as duas ».

Portanto, parece que com o par dos conceitos natural/artifical, Vigotski busca evitar

não só uma oposição entre ciências da natureza e ciências da cultura, mas também tanto

um reducionismo naturalista quanto um reducionismo histórico-cultural, uma vez que os

dois não chegam a ultrapassar uma concepção dualista do espírito e do corpo. O fato de

que as concepções dualistas em psicologia tenham sido um dos alvos permanentes da

crítica de Vigotski (ver Bronckart, 1999) sustenta essa interpretação. Antes de ver por

que a conceitualização de Vigotski permite ultrapassar esses dois tipos de reducionismo,

analisemos o que é a tese dualista que os acompanha.

Um dos pressupostos das posições dualistas é a afirmação de um paralelismo entre o

psíquico e o físico, que se baseia na ideia de uma assimetria entre os dois grupos de

fenômenos. Geralmente, nelas se admite uma oposição do espírito ao mundo dos

objetos, que é justificada pelo estatuto ontológico específico do espírito e o modo de

conhecimento tão original que apresenta a percepção interior. A relação psicofísica, o

mind-body problem, como é hoje chamada pelos anglosaxões, é, desde Descartes, um

objeto de debates calorosos 22

. Uma das resoluções desse problema elaborada no

domínio da psicologia consiste na explicação dos fenômenos psíquicos pelos fenômenos

físicos, como diria Vigotski, por meio de uma análise do funcionamento do tecido

cerebral (interpretação por redução). Outra solução, um pouco mais reconciliatória,

privilegia uma interpretação por equivalência. Estipulando que tal estado neuronal vai

corresponder a um certo estado cognitivo, a tarefa do pesquisador é clara: ou ele precisa

encontrar, para aquilo que está descrito em termos psicológicos, o equivalente

fisiológico ou neurofisiológico, ou terá a tarefa de apreender o fenômeno psíquico

indicado pelo estado neuronal. Ora, essas duas soluções só podem ser pensadas

admitindo-se a dualidade entre o espírito e o mundo dos objetos físicos postulada; do

contrário, o problema psicofísico não existiria.

A contribuição original de Vigotski para esse debate consiste no questionamento da

lógica da especificidade. Os defensores dessa lógica atribuem ao espírito um lugar e um

ser bem específico no mundo e atribuem à ciência a tarefa de explicá-los. Ao contrário,

de acordo com Vigotski, não é a especificidade do espírito que deveria ser analisada,

mas os instrumentos, os meios que têm como objetivo controlar e desenvolver os

processos psíquicos. Estes continuam sendo, a despeito de sua mediação por

instrumentos, processos naturais ou orgânicos, com a diferença de que seus

desenvolvimentos espontâneos sofrem uma intervenção e tornam-se, nesse sentido,

« artificiais ». Portanto, o que deveria interessar ao psicólogo não é nem a explicação

por equivalência nem a explicação por redução, mas o uso que o homem faz de seus

22 A relação entre os debates atuais em torno da relação psicofísica no quadro das ciências cognitivas e da filosofia do espírito, de um lado, e a história da psicologia, de outro, encontra-se bem esclarecida em Fisette & Poirier (2000).

Page 29: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

próprios processos naturais e os meios que utiliza e cria para atingir esse objetivo. É

essa lógica de intervenção que caracteriza a psicologia de Vigotski e determina suas

questões de pesquisa: de que modo, com quais meios, o homem se serve das

propriedades de seu tecido cerebral e controla os processos psíquicos que ele produz?

Nessa perspectiva, é a natureza social dos instrumentos psicológicos que se torna um

dos objetos privilegiados da psicologia, pois se busca compreender quais são os objetos

que adquirem essa função, em qual época e de que modo.

Se agora compreendemos claramente porque Vigotski se opôs a qualquer

reducionismo naturalista, resta ainda mostrar em que sentido ele também recusa

qualquer reducionismo sócio-histórico. De fato, a lógica de intervenção por ele

defendida não pode se basear na oposição natural-cultural, pois ela também coloca em

questão a ideia simplista segundo a qual a especificidade do psiquismo humano está em

sua natureza sócio-histórica. Essa afirmação não é falsa, mas é tão geral que ela

sucumbe diante do perigo de reproduzir o velho dualismo cartesiano, dado que ela

também insiste sobre a especificidade do espírito e que, sobretudo, tem por objetivo,

acentuar o « especificamente humano » no desenvolvimento mental. Se o psiquismo,

segundo a lógica de intervenção, é considerado como um processo natural cujo uso

artifical é possível, o fato de que a artificialidade desse uso seja condicionada por

fatores culturais e sociais não é um argumento nem a favor da tese segundo a qual a

natureza do psiquismo é exclusivamente histórico-cultural nem contra ela. Em resumo,

defendemos a ideia de que, nas reflexões vigotskianas sobre o instrumento psicológico,

simplesmente não há espaço para essa tese.

Portanto, convém levarmos a sério a utilização do par dos conceitos natural/artificial

que Vigotski propõe. É o controle artificial dos fenômenos psíquicos-naturais

produzido e desenvolvido pelo homem com o auxílio dos instrumentos psicológicos que

se encontra no centro de suas preocupações e é também esse controle que constitui,

segundo o autor, a essência do processo de desenvolvimento (ver cap. 5).

A astúcia da razão ou o conceito de atividade mediatizante

Para uma compreensão completa do que é, para Vigotski, um instrumento psicológico,

resta-nos trazer um último elemento. Trata-se da distinção entre a atividade mediatizada

e a atividade mediatizante, que o psicólogo desenvolve no capítulo 2 da obra A história

do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. O ponto de partida de sua

reflexão é a questão: o que há em comum entre um instrumento de trabalho e um

instrumento psicológico? Podemos fazer uma analogia entre esses dois tipos de

instrumentos ou ainda, podemos, de fato, chamar o instrumento psicológico de

instrumento? Para Vigotski, « uma analogia se mostra adequada se encontramos na

comparação dos dois conceitos a característica principal e essencial » (1930/1985, p.

39). O autor a encontra no fato de que os instrumentos de trabalho e os instrumentos

psicológicos estão subordinados a um conceito mais geral, o da atividade mediatizante.

Referindo-se à célebre discussão sobre a « astúcia da razão », do filósofo alemão Georg

Page 30: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

W. F. Hegel, ele busca apreender a particularidade dessa atividade. De acordo com

Hegel, a razão é toda poderosa porque é capaz de se servir da astúcia. A astúcia da razão

aparece no fato de que o homem deixa os objetos do mundo trabalharem uns sobre os

outros, em função de sua natureza, visando a um objetivo determinado, que é atingido

por meio dessa atividade, à qual ele não tem necessidade de se misturar. Causando uma

atividade bem determinada entre os objetos do mundo, o homem se mantém no exterior

dessa atividade, mas realizando, por meio dela, os seus objetivos.

A razão é tão astuciosa quanto poderosa. A astúcia consiste, em geral, na atividade

mediatizante que, deixando os objetos, conforme sua própria natureza, agirem uns

sobre os outros e se usarem no contato de uns com os outros, sem se imiscuir

imediatamente nesse processo, não faz nada mais, entretanto, que realizar seu

objetivo. (Hegel, 1830/1970, p. 614)

Essa descrição hegeliana da astúcia da razão foi retomada por Karl Marx (1818-1883),

que a detecta nas transformações profundas do trabalho humano características da época

da industrialização, cujos inícios são conceitualizados em O Capital. Desse texto,

Vigotski faz a seguinte descrição, que ilustra de novo o poder da razão pela qual Hegel

era tão atraído.

O meio de trabalho é uma coisa ou um conjunto de coisas que o homem interpõe

entre si e o objeto de seu trabalho como condutores de sua ação. Ele se serve das

propriedades mecânicas, físicas, químicas de determinadas coisas para fazê-las agir

como forças sobre outras coisas, de acordo com seu objetivo. (Marx, 1867/1957, p.

181-182)

Outros exemplos podem ser dados, todos eles nos dando provas dessa astúcia: damos

uma determinada direção a uma goteira de modo que a água que corre do teto caia

diretamente sobre uma pedra de calcário e produza, em um lugar preciso, o buraco

previsto. Ou ainda, pomos pedras pesadas em um rio para, desse modo, diminuir seu

leito, o que dá como resultado uma aceleração da corrente, que levará os troncos de

madeira a alguns quilômetros mais distantes da serralheria. Vemos bem, nessa atividade

mediatizante, que o sujeito não age fisicamente sobre a natureza, que não utiliza um

instrumento para ele mesmo mudar a natureza, como é o caso, quando pegamos uma

furadeira para fazer um buraco na madeira. Essa última atividade, na qual o sujeito

intervém com um instrumento diretamente sobre a natureza é chamada por Hegel como

atividade mediatizada. Ao contrário, na atividade mediatizante, o homem deixa a

natureza agir sobre a natureza. As transformações desejadas são produzidas por meio de

uma determinada constelação, na qual os objetos da natureza são postos pelo homem;

uma constelação que faz com que os objetos, trabalhando uns sobre os outros, produzam

o que foi projetado, sem que o homem intervenha nessa atividade.

Page 31: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

O O

= realização do objetivo

S

Resta provar que a atividade realizada pelo homem com o instrumento psicológico é

portadora das mesmas características que as da atividade mediatizante. Retomemos o

esquema desenvolvido no parágrafo anterior, que mostra essa similaridade, com a

diferença de que o instrumento psicológico sempre produz um desdobramento do

sujeito em S (1) e S (2).

Instrumento psicológico S (2)

= realização da tarefa

psicológica

S (1)

O sujeito que utiliza um instrumento psicológico se transforma, ao mesmo tempo, em

um « objeto » (S2), sobre o qual o instrumento age. O fato de que o sujeito se desdobra

quer dizer que, sendo ele, de um lado, o sujeito da ação, de outro, a ação desencadeada

pelo sujeito transforma o sujeito em « objeto » de sua própria ação. Voltamos a

encontrar aqui a ideia da atividade mediatizante. Utilizando os instrumentos

psicológicos, o homem controla e influencia seu comportamento psíquico, sem que se

misture nesse processo, já que ele não faz nada mais do que intercalar entre ele e seus

processos psíquicos determinados meios que agem diretamente sobre seu próprio

comportamento psíquico, a fim de produzir o resultado desejado. O sujeito se

transforma, pela utilização do instrumento, em objeto visado por esse último. Com a

ajuda dos instrumentos psicológicos, o sujeito faz com que se produza em si mesmo

determinados efeitos desejados, do qual é o objeto. Poder-se-ia dizer também que o

sujeito é, ao mesmo tempo, ativo e passivo, o que justamente constitui a especificidade

da atividade mediatizante no plano psicológico.

Tentemos aprofundar essa especificidade dos instrumentos psicológicos com alguns

exemplos. O primeiro não provém dos escritos de Vigotski. Trata-se da descrição de um

caso clínico, que, a nosso ver, apresenta um bom exemplo da atividade mediatizante

sobre a qual fala nosso autor. Isso significa também que defendemos a hipótese de que a

ideia dos instrumentos psicológicos também aparece em outras teorias psicológicas e

filosóficas frequentemente associadas a outras correntes de pensamento, nas quais até

mesmo o conceito não é utilizado. O exemplo é emprestado de um contemporâneo de

Page 32: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Vigotski, o psicopatologista alemão Kurt Goldstein (1878-1965). Com Adhémar Gelb

(1887-1936), seu coloborador próximo no Instituto de pesquisa neurológica de

Frankfurt a Main, Goldstein desenvolveu um grande número de pesquisas sobre a

afasia23. Em um texto publicado em 1933, no Journal de la psychologie, ele se interessa

pelas estratégias, ou como ele mesmo o diz, pelos détours [desvios] que os doentes

desenvolvem para resolver tarefas cotidianas que não podem executar normalmente por

causa da doença. O autor analisa detalhadamente os meios que o paciente mobiliza para

obter o resultado desejado, apesar da afasia. O tipo de afasia que sobretudo lhe interessa

é a afasia amnésica, cujo traço clínico central é a falta de palavras, que se manifesta, por

exemplo, nas frases encurtadas, pronunciadas em lugar da palavra. Os doentes não são

capazes de evocar as palavras que querem pronunciar de acordo com suas intenções

e/ou de acordo com os objetos aos quais se encontram confrontados. Por meio de

exemplos extremamente significativos, Goldstein busca apreender o que o doente faz

para achar essas palavras. Vejamos abaixo casos descritos e discutidos por Goldstein.

Um doente, por exemplo, não pode achar a palavra « miosótis » ou a palava

« azul », mas o objeto desperta nele a lembrança de um refrão: „Blau blüht ein

Blümelein, es heisst Vergissmeinnicht‟ (é uma florzinha azul que se chama

miosótis), e, logo ele diz « miosótis » e « azul ». Essas palavras, ele não as

empregou do modo significativo usual, elas se apresentaram a ele como um saber

verbal exterior [...]. (Goldstein, 1933, p. 325-326)

No caso citado, o doente achou um meio para que a palavra que não encontrava

mais, apesar de todos os seus esforços voluntários, se apresentasse a ele. Lembra-se

de um refrão bem conhecido e aprendido na escola e então, refere-se a seu saber

verbal memorizado e, pronunciando o refrão, a palavra « vem inteiramente

sozinha ». Ela se apresenta ao paciente que pode apreendê-la24. Poderíamos dizer

também que ele fez vir a palavra que lhe faltava por meio dessa astúcia bem útil

que é o refrão. Se seguirmos Vigotski, deveremos dizer que o refrão preenche a

função de instrumento psicológico e transforma a atividade realizada pelo doente

em uma atividade mediatizante. O emprego desse mesmo instrumento psicológico

também pode ser observado nos casos normais. Um locutor não francófono não

consegue achar a palavra « capacho», mas, de repente, pensa em uma expressão

frequentemente ouvida e depositada em sua memória verbal: « é preciso evitar

prender os pés no capacho » e a palavra « volta a ele ». A formulação linguageira

que acabamos de utilizar « a palavra volta a ele » exprime adequadamente o

desdobramento do sujeito em sujeito e objeto, assinalado por Vigotski. O sujeito

recorre a um refrão (no papel de sujeito) e essa operação lhe permite lembrar a

palavra (ele se torna objeto de sua própria ação). Tanto o doente da afasia de

Goldstein quanto nosso locutor não francófono « fazem agir » um instrumento (o

23 Ver também o esquema que Vigotski propõe em “A psicologia concreta do homem” (La psychologie concrète de l’homme », 1929/2004, p. 239-240). 24 A afasia é um transtorno da linguagem oral e/ou escrita ligada a uma lesão cerebral. Esses transtornos podem acontecer no nível da produção da linguagem (afasia motora), da compreensão da linguagem (afasia sensorial) etc.

Page 33: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

refrão) sobre si mesmos, para se lembrarem, ou mais precisamente, para que a

palavra volte a eles, para que a palavra surja25

.

O exemplo de Goldstein se articula bem com outro exemplo discutido por Vigotski

em « A psicologia concreta do homem ». Trata-se do « sonho do Cafre26

», relatado por

Lévy-Bruhl. O chefe de uma tribo sul-africana responde a um missionário que o

aconselhava a por seu filho na escola: « Verei o que meus sonhos me dirão a fazer »

(Vigotski, 2004, p. 242, note 15). Essa resposta bem incomum para nós é utilizada por

Vigotski com um objetivo preciso. Contrariamente a Lévy-Bruhl (1857-1939), ele não

se interessa pela especificidade do pensamento primitivo. Essa oposição tão típica na

época, para as pesquisas etnológicas entre um pensamento primitivo ou pré-moderno, e

um pensamento moderno não tem nenhum interesse para nosso autor. É a descoberta de

um instrumento psicológico bem específico, no caso o sonho, que capta Vigotski. A

atividade de que o chefe da tribo fala apresenta tanto uma dimensão ativa quanto uma

dimensão passiva « Eu vou me fazer sonhar a resposta ». De fato, todos os exemplos

relatados colocam a mesma questão de saber se podemos ainda falar aqui de um eu

como controlador de suas próprias funções psíquisas. Portanto, não é de se espantar que,

depois de ter discutido o sonho do Cafre, Vigotski tenha se questionado sobre esse

problema: «Como falar de processos psíquícos? Precisamos falar deles sob uma forma

impessoal ou sob uma forma pessoal? Não é a mesma coisa dizer „parece-me‟ e dizer

„eu penso‟. O problema do „eu‟: como precisamos formulá-lo? » (ibid., p. 242)

Duas observações conclusivas

Raros são os trechos em que Vigotski discute explicitamente os problemas do eu em

psicologia e neles não encontraremos resposta direta às questões postas. Mas talvez seja

possível compreender essas questões como contendo as respostas em si mesmas.

Vigotski mostrou que, quando o homem (o eu) utiliza um instrumento psicológico, ele

transforma seus processos psíquicos em uma atividade mediatizante e também é tanto

sujeito quanto objeto dessa atividade, ou, como diz Vigotski, « há um me e um eu em

cada função »:

Um Cafre poderia dizer: Eu sonharei sobre isso, dado que ele sonha ativamente,

dizemos: ele ´me´sonha. Portanto: há um me e um eu em cada função, em um caso trata-

se de uma reação primitiva (forma passiva e pessoal) e, no outro, trata-se da reação da

personalidade (forma ativa e pessoal). (ibid., p. 244)

Propomos resumir essa questão sobre o eu por meio de outro conceito, o de medium,

que ressalta claramente o desdobramento em um me (forma passiva) e em um eu (forma

ativa), constatado por Vigotski, e que busca atenuar a aparente contradição que tal

25 Outro exemplo muito pertinente encontra-se em Merleau-Ponty (1945/2002, p. 191), que dá uma descrição magnífica dos meios empregados para « fazer o sono vir ». 26O termo Cafre designa os negros da Cafreia, parte da Áfria austral (conjunto de territórios situados ao sul da floresta equatorial africana). A etnografia clássica utiliza esse termo para designar as culturas autóctenes da África do Sul.

Page 34: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

conceito do sujeito necessariamente esconde. Se tomarmos o conceito de medium em

sua conotação espiritual, ele designa um sujeito que, com o auxílio de determinados

meios (bater na mesa, formar um círculo ininterrupto entre os participantes) torna

presente para os outros e para si mesmo um mundo que se encontra além de nosso

mundo imediatamente acessível. Ele faz vir, faz sentir, faz ouvir um mundo povoado

por defuntos, transformando a si mesmo e aos autros em espectadores passivos de um

espetáculo provocado por ele. Ousamos, portanto, postular que se trata do mesmo tipo

de poder, que as crianças adquirem no decorrer da ontogênese, aprendendo a utilizar os

instrumentos psicológicos, e que os adultos desenvolvem cotidianamente, servindo-se

de e criando esses instrumentos. Resta-nos agora mostrar como Vigotski se coloca para

analisar esse poder, o que nos leva à minha segunda observação conclusiva.

Essa observação enfoca a natureza sócio-histórica dos instrumentos psicológicos. De

acordo com Vigotski, há uma relação de forte intimidade entre o modo como o sujeito

utiliza o instrumento psicológico e a sua proveniência. Como exemplo, ele lembra o fato

de que outrora, nas tribos do Cafre, a função de decisão pertencia aos feiticeiros ou aos

chefes da vila; era uma função social atribuída a um membro da comunidade,

frequentemente considerado como alguém que tinha « poderes » particulares. A decisão

que o sonho ditava ao feiticeiro tinha a força de uma lei para a tribo e não podia ser

constestada pelos outros membros sem correrem o risco de uma sanção. Esse exemplo

mostra uma característica comum dos instrumentos psicológicos: em primeiro lugar,

eles são utilizados como instrumentos de regulação social e, depois, se transformam em

meios de influência sobre si mesmo.

Outro exemplo que Vigotski não se cansa de citar é o « poder da palavra ». A função

mais importante das palavras em nossas sociedades foi e é ainda, a de ser utilizada como

meio de comando, como meio de dominação de um indivíduo sobre o outro. É

necessário observar que a palavra tem esse mesmo poder na regulação psíquica. Todos

nós conhecemos essa frase « mágica »: « calma, calma », que cada um de nós já dirigiu

a si mesmo em voz alta ou em silêncio em situações estressantes, com efeitos mais ou

menos satisfatórios.

Essa origem dos instrumentos psicológicos é resumida por Vigotski na lei geral do

desenvolvimento cultural das funções psíquicas:

Cada função psíquica superior aparece duas vezes no curso do desenvolvimento da

criança: primeiro, como atividade coletiva, social e, portanto, como função

interpsíquica, depois, na segunda vez, como atividade individual, como propriedade

interior do pensamento da criança, como função intrapsíquica. (Vigotski,

1935/1985, p. 111).

Vigotski acentua o resultado desse processo, enfatizando que se trata aqui de uma

transferência das relações sociais para o mundo do psíquico. Na discussão dessa lei do

desenvolvimento cultural, a ênfase é frequentemente posta no processo de

Page 35: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

interiorização, que, sem nenhuma dúvida, aí ocorre. Entretanto, observemos que

Vigotski não deixa de insistir sobre um segundo desdobramento atestável na utilização

dos instrumentos psicológicos:

[...] a relação sonho/comportamento futuro (a função de regulação do sonho) deve

ser relacionada genética e funcionalmente a uma função social (o feiticeiro, o

conselho dos magos, o intérprete dos sonhos, etc.: essa função é sempre dividida

entre duas pessoas). É a seguir que tudo se reúne em uma só e única pessoa. A

história real da operadora e do aparelho (de um indivíduo) [...] se compreende

como a transferência das relaçõe sociais (entre as pessoas) para o psicológico (para

o interior do homem). (Vigotski, 1929/2004, p. 243)

Portanto, o que é interiorizado pelo sujeito são relações sociais que ocorrem entre

pessoas nas instituições sociais. As interações entre o feiticeiro e os membros de uma

tribo, entre o chefe e os seus subordinados, entre o professor e o aluno se reúnem « em

uma só e única pessoa ». O ponto de vista a partir do qual os instrumentos psicológicos

devem ser analisados está, portanto, claramente posto. É preciso abordá-los como sendo

oriundos de e portadores, neles mesmos, das relações sociais bem específicas que se

reconstituem no interior do sujeito. Entretanto, precisamos assinalar aqui, um possível

equívoco, pois pode ser que o sujeito não seja verdadeiramente levado em consideração

nesse contexto. Qual é o papel, de fato, a ser atribuído ao indivíduo nesse processo que

Vigotski resume na lei do desenvolvimento cultural?

Para responder essa questão, voltemos ao título que Vigotski deu a seu texto de 1928:

A psicologia concreta do homem. Quando discute esse título, ele apresenta duas

explicações. A primeira ressalta a novidade de sua concepção em relação à da

psicologia tradicional:

[...] a base da psicologia concreta são as relações do tipo „sonho do Cafre‟. A base da

psicologia abstrata são relações do tipo: sonho como reação (Freud, Wundt etc.) a

excitantes. (ibid., p. 244)

Mas o termo psicologia concreta destina-se ainda a tematizar outro traço daquilo que

se tornará o objeto do psicólogo. Assim, lemos no mesmo texto:

Sendo as leis do pensamento idênticas [...], o funcionamento do pensamento será

diferente de acordo com o indivíduo no qual ele tem lugar. Cf. as leis do

pensamento não são naturais (a substância cortical e subcortial, etc.), mas sociais (o

papel do pensamento em um indivíduo). Cf. o papel do sonho. (ibid)

Os psiquiatras o sabem muito bem. Tudo depende da questão de saber quem pensa

e que papel o pensamento desempenha nesse indivíduo. O pensamento autista

diferencia-se do pensamento filosófico não por determinadas leis, mas pelo papel

[...]. (ibid., p. 247)

Page 36: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

A tarefa mais importante para analisar fenômenos psíquicos como o pensamento, a

memória ou o juízo é, portanto, conhecer quem pensa ou, em outras palavras, como o

pensamento « ocorre nele ». Em outros termos, o que interessa à psicologia concreta são

os meios (instrumentos) que o indivíduo utiliza para controlar, realizar, desenvolver seu

pensamento, sua memória, seu juízo, como indivíduo cada vez mais diferente do outro.

Os meios utilizados por um autista, por um pedreiro, por um aluno e por um filósofo

para pensar vão ser bem diferentes, o que também signfica que não é a capacidade

intelectual mensurável por testes que fará a diferença, mas o papel que o pensamento

desempenha « no indivíduo ». O indivíduo está no centro da pesquisa, pois o que se

estuda é o indivídulo particular em sua qualidade de um ser pensante.

Assim, compreendemos que as duas ideias vigotskianas desenvolvidas nesse capítulo

caminham juntas e são interdependentes. A primeira postula que todas as funções

psíquicas superiores são mediatizadas pelos instrumentos psicológicos, e a segunda, que

qualquer psicologia deveria ser concreta, tanto no que diz respeito à análise dos

instrumentos psicológicos enquanto meios da transferência das relações sociais no

domínio do psíquico, quanto no que diz respeito ao indivíduo, no qual os fenômenos

psíquicos desempenham um papel. Essas duas ideias vão ganhar mais importância ainda

nos dois próximos capítulos, consagrados à concepção da aprendizagem e à do

desenvolvimento da criança, que nosso autor expõe, sobretudo, em seu livro mais

importante Pensamento e linguagem.

Page 37: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

CAPÍTULO 4

A FORMAÇÃO DOS CONCEITOS NA CRIANÇA27

Crítica dos métodos da definição e da abstração

Vigotski começa suas reflexões com uma crítica dos dois métodos dominantes nesta

área. A primeira, que ele nomeia o método da definição, identifica o conceito à

significação de uma palavra. Como consequência, o conceito é apresentado como a

definição verbal do conteúdo de uma palavra, em outras palavras, como uma entidade

de definição expressa por uma palavra. Nessa perspectiva, um estudo dos conceitos na

criança visa a analisar seu conhecimento verbal, seu nível de desenvolvimento verbal.

Na questão de saber o que é um cachorro, a criança mobiliza seu saber verbal e enumera

de memória certo número de traços característicos desse animal. Em função da idade, o

saber verbal dominado pela criança pode ser de uma riqueza e de uma complexidade

mais ou menos desenvolvidos. A crítica que Vigotski formula quanto a esse método

visa, antes de mais nada, ao fato de que ela permite apenas estudar os conceitos já

prontos, já formados, os que fazem parte do saber da criança e que são então,

reproduzidos por ela. Esse método não dá acesso ao pensamento enquanto processo

realizado pela criança em sua relação viva com a realidade. O pesquisador não pode de

maneira alguma compreender « o significado real, efetivo, que corresponde à palavra no

processo de sua correlação viva com a realidade objetiva que ele designa » (p. 190). No

entanto, para o pesquisador russo, torna-se essencial levar em conta que o conceito não

está apenas em ligação com o saber verbal, mas que ele tem uma relação com a

realidade experimentada e compreendida pela criança. Com efeito, analisar a maneira

pela qual o conceito é utilizado pela criança em confronto com a realidade torna seu

conteúdo independente do simples saber verbal e mostra que o conceito não é apenas

expressado pela palavra e, em seguida, aplicado ao mundo, mas pensado em função da

relação que a criança mantém com o mundo. Logo, a fraqueza do método e da

definição provém do fato de que ela separa o conceito de seu contexto « natural » (de

sua relação com o mundo) e o fixa no seio do saber verbal no qual ele é definido,

levando-se em conta os outros conceitos.

Existe um segundo método que se baseia no privilégio de ser considerado, ainda hoje,

como expressando a concepção que se faz habitualmente da natureza dos conceitos.

Poderíamos designá-la como método de abstração já que ela define o conceito como um

produto (uma representação) do espírito, que engloba (resume) um determinado número

de objetos por abstração e por generalização de seus traços comuns. Nessa perspectiva,

o conceito resulta do que há em comum entre vários objetos e distingue-se de cada um

desses objetos singulares por seu grau de generalidade. Essa situação é bem ilustrada na

dita pirâmide da abstração que Vigotski critica várias vezes:

27 Todas as citações de Vigotski neste capítulo foram tiradas de sua obra Pensamento e linguagem 1934/1997.

Page 38: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Esquema 1

plantas

flores cactos algas

rosa tulipa

Essa definição do conceito determina forçosamente a maneira pela qual a formação dos

conceitos na criança é analisada. São atos mentais como estes de encontrar por

comparação o que os diferentes objetos têm em comum, de isolar este traço e, em

seguida, de guardar as coisas isoladas em uma e mesma categoria que constituem aqui o

objetivo da pesquisa. O objeto de estudo são “os processos e as funções psíquicas que

estão na base da formação de conceitos, na base da elaboração mental da experiência

concreta que dá origem ao conceito” (p. 190). Em sua crítica a esse método, Vigotski

ressalta que ele negligencia o papel da palavra no processo de formação dos conceitos.

A primeira vista, essa objeção não parece convincente, já que a palavra é utilizada

mesmo que seja apenas para expressar o resultado da abstração. Mas o argumento

avançado por Vigotski visa, afinal, ao fato de que a palavra não é empregada como meio

da conceitualização. Lembremos a ideia dos instrumentos psicológicos que ele repete

no capítulo 5 da obra Pensamento e Linguagem, como segue:

[...] todas as funções psíquicas superiores estão unidas por uma característica

comum, a de serem processos mediatizados, ou seja, de incluirem em sua

estrutura, enquanto parte central e essencial do processo em seu conjunto, o

emprego do signo como meio fundamental de orientação e de domínio dos

processos psíquicos (p. 199).

A questão que se coloca é então a seguinte: como podemos levar em conta esta ideia

fundadora da sua psicologia no estudo experimental dos conceitos? Antes de discutir o

método elaborado com este objetivo por seu colaborador Léonid S. Sakharov (1900-

1928)28

, devemos nos remeter à crítica que Vigotski faz a um outro dispositivo, o que

foi concebido e utilizado por Narziss Ach (1871-1946). Esse dispositivo pretende levar

em conta os pontos fracos tanto do método de definição quanto do método de abstração.

Ele serve de ponto de partida para Sakharov/Vigotski, mesmo se o método de Ach é

globalmente insuficiente na visão de Vigotski. Vamos desenvolvê-lo a seguir.

28 Esse método foi também aplicado por outros pesquisadores da equipe de Vigotski. Assim, Léontiev (1931) analisava com esse mesmo método o desenvolvimento da memória. Esse método também foi chamado a seguir de método Sakharov/Vigotski.

Page 39: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Dois estudos experimentais: os dispositivos de Ach e de Sakharov/Vigotski

Narziss Ach publica em 1921, os resultados de sua pesquisa sob o título Da formação

de conceitos. Um estudo experimental. Esse psicólogo alemão fazia parte dos membros

da escola de Würzburg, conhecida na história da psicologia por seus trabalhos

experimentais sobre a psicologia do pensamento29

. A tendência geral de seu estudo é

clara: ele procura mostrar como a criança utiliza o conceito em uma situação de

resolução de problema. Partindo da hipótese de que o conceito deve estar implicado em

um processo vivo de pensamento, para que possamos apreender sua formação, ele

confronta as crianças a tarefas que não podem ser resolvidas sem recurso aos conceitos.

O que consiste em afirmar que o conceito tem um caráter produtivo e serve para realizar

um objetivo. Na pesquisa de Ach, o conceito recebe efetivamente um significado

funcional, um procedimento apoiado plenamente por Vigotski e aplicado em seu

próprio dispositivo.

Uma parte do capítulo 5 de Pensamento e Linguagem é dedicada à descrição do

dispositivo de Ach, que comporta duas etapas. Em um primeiro momento, o

experimentador fornece os meios necessários para resolver a tarefa. Neste período de

aprendizagem, o pesquisador dá palavras artificiais e desprovidas de sentido e lhes

atribui significados que a criança tem que memorizar. Assim, gazun é proposta como

uma palavra que significa todos os objetos grandes e pesados, ao passo que fal resume

tudo o que é pequeno e leve. Em um segundo tempo, o experimentador introduz o

problema. A criança tem a tarefa de utilizar as duas palavras aprendidas para designar

com elas os objetos correspondentes que se encontram à sua frente, na mesa. Após cada

tentativa de designação, o objeto é virado a fim de verificar se a palavra escrita no verso

do objeto valida ou invalida a proposta da criança. Se, por um lado, Vigotski está de

acordo com Ach, no que diz respeito ao objetivo da experimentação, por outro lado, ele

questiona o fato de que este dispositivo permitiria realmente apreender o processo de

formação de conceitos. Em sua argumentação, ele mostra que a maneira pela qual o

conceito é formado é predeterminada na pesquisa de Ach pela semantização da palavra

que teve que ser aprendida pela criança.

O método de Ach tem um grande defeito: ele não nos dá a possibilidade de

elucidar o processo genético de formação de conceitos, ele nos dá apenas a

possibilidade de constatar a presença ou a ausência desse processo. A própria

organização da experiência implica que os meios pelos quais se forma o

conceito, ou seja, as palavras experimentais que representam o papel de signos,

sejam dadas desde o início, que eles representem uma grandeza constante, não se

modificando ao longo da experiência, e, além disso, que seu modo de utilização

seja estipulado anteriormente nas instruções. (p. 199)

29 Ver Friedrich (2008).

Page 40: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Com efeito, o dispositivo de Ach mostra a mesma fragilidade que os outros dois

métodos, pois ele não permite descobrir a natureza genética do processo de formação de

conceitos. A razão dessa fragilidade reside, segundo Vigotski, no papel concedido às

palavras. Em Ach a palavra é utilizada para criar uma ligação associativa e direta com

os objetos que são conceitualizados graças a ela. A palavra tem a função de assinalar os

objetos resumidos sob o conceito. A palavra não traz nada ao processo de generalização,

pois seu modo de utilização é estipulado de início e não mudará. O que é verificado no

experimento nada mais é, então, do que a capacidade de a criança aplicar a palavra e,

logo, o conceito, de uma maneira correta em relação aos objetos.

Por outro lado, é significativo que o dispositivo concebido na equipe de Vigotski

conceda à palavra um papel de um meio essencial na formação dos conceitos. A tese de

partida estipula que a palavra represente um papel de instrumento psicológico; é então

com a ajuda das palavras que a criança formará os conceitos. Considerado funcional,

esse estudo da palavra do qual Vigotski nos convida a participar opera primeiramente

uma mudança no dispositivo de Ach. O experimento proposto por Sakharov/Vigotski

começa com a exposição do problema que é o mesmo que na pesquisa de Ach: a criança

tem a tarefa de agrupar os objetos que, segundo ela possuem as mesmas características;

objetos que poderiam então ser resumidos pelo mesmo conceito. No entanto, à diferença

de Ach, as palavras não são introduzidas no início, seus significados não são

predeterminados e aprendidos, em consequência elas não são consideradas como

constantes. Na pesquisa de Sakharov/Vigotski, as palavras são progressivamente

introduzidas e propostas para as crianças como instrumentos a utilizar para formar

conceitos.

Tentemos ilustrar essa diferença de uma maneira detalhada referindo-nos à descrição do

experimento tal como ela é dada por Vigotski. Primeiramente, o experimentador vira,

diante da criança, uma das figuras que se encontra em uma ordem qualquer sobre a

mesa. No verso dessa figura, encontra-se uma palavra desprovida de sentido que é lida

pelo pesquisador em voz alta. Em seguida, é pedido à criança para virar outra figura

que, segundo ele, trará certamente sobre o verso a mesma palavra. Após cada tentativa o

experimentador verifica o resultado. As figuras escolhidas são representadas no desenho

abaixo. As letras russas designam as cores das figuras (ж = amarelo, б = branco, к =

vermelho, з = verde, ч = preto), no verso de cada figura está escrito uma palavra

desprovida de sentido.

Page 41: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Estudo da formação dos conceitos

Método de Sakharov

Pode-se ver bem: as figuras estão dispostas em quatro séries constituídas com a ajuda

das palavras. Cada figura presente na mesa se distingue por certas características das

outras figuras e se assemelha a elas por outras. A primeira série de figuras compreende

objetos pequenos e planos, a segunda, objetos pequenos e espessos, a terceira, objetos

grandes e planos e a quarta, objetos grandes e espessos. A questão que a criança teve

que responder foi de saber quais são as figuras que “estão ligadas a um mesmo conceito

experimental”? São as palavras desprovidas de sentido e escritas no verso das figuras

que ajudaram a criança em sua busca de traços comuns que o conceito experimental

resume. As palavras guiaram e dirigiram o processo de formação de conceitos. Assim,

os pesquisadores da equipe de Vigotski puderam observar como a criança faz uma

primeira ideia do conceito experimental ou, em outras palavras, como ele dirige sua

atenção, com a ajuda das palavras, para certos traços das figuras que ele pressupõe

estarem resumidos pelas palavras; em seguida, ele valida ou invalida sua hipótese

virando a próxima figura e ele consegue, enfim, pouco a pouco, formar o conceito

preconizado e organizar as figuras de uma maneira totalmente correta nas quatro séries.

Pode-se ver bem que nessa classificação orientada e dirigida pelas palavras, nem a cor

e nem o tamanho das figuras funcionaram como traços distintivos. Não são esses dois

traços que estiveram na base da conceitualização e, em consequência, eles não foram

visados pelas palavras que simbolizavam o conceito. É claro que outras séries teriam

sido possíveis. Poderíamos ter organizado as figuras segundo suas cores ou segundo seu

tamanho, ou ainda segundo o fato de serem quadrangulares, triangulares ou redondas,

ou então pelo fato de serem simplesmente planas ou espessas. Em função da

conceitualização proposta pelas palavras, as fileiras poderiam ter sido mais ou menos

numerosas e mais ou menos preenchidas com figuras. Vigotski insiste no fato de que é a

utilização da palavra enquanto instrumento de conceitualização que muda

profundamente o modo de resolução da tarefa em relação às pesquisas de Ach e resume

seu próprio procedimento como a seguir:

Page 42: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Transformando assim os meios de resolver o problema, ou seja, os estímulos-signos

ou palavras, em grandeza variável e fazendo do problema uma grandeza constante,

nós tivemos a possibilidade de estudar como o sujeito emprega os signos enquanto

meios de dirigir suas operações intelectuais e como, em função desse modo de

utilização da palavra, de sua aplicação funcional, se desenrola e se desenvolve todo

o processo de formação do conceito em seu conjunto. (p. 202).

Duas diferenças maiores em relação às três outras maneiras de definir e de analisar os

conceitos que relatamos acima decorrem desse experimento e devem ser assinaladas

para compreender a especificidade da posição de Vigotski. A primeira diferença diz

respeito à concepção da linguagem. A maneira pela qual Vigotski discute a linguagem

enquanto meio de conceitualização inclui uma crítica das concepções nas quais as

palavras são discutidas como tendo uma ligação associativa ou exterior, seja com as

coisas, seja com as representações das coisas. Segundo os protagonistas dessa

concepção associacionista da linguagem, parece que podemos separar os objetos

representados das palavras que são, exclusivamente, consideradas como suporte

sensível dessas representações. A palavra teria então uma e única função, ou seja, de

expressar e de lembrar os objetos do mundo, da mesma maneira que o casaco do meu

amigo me faz pensar nele, mesmo quando ele não o está usando. Vigotski desenvolve

sua crítica dessa concepção da linguagem sobretudo no capítulo 7 de Pensamento e

linguagem e mostra que seus defensores tratam as significações das palavras como

constantes e imutáveis. Em consequência, um desenvolvimento das significações

quando da utilização das palavras não é concebível. Além disso, a especificidade da

própria linguagem é colocada em questão, pois nessa perspectiva, qualquer objeto do

mundo pode tomar o lugar da palavra e indicar um outro objeto ou sua representação. É

com a ajuda de um slogan que Vigotski mostra a originalidade de sua própria

concepção. Segundo ele: “O pensamento não se expressa na palavra, mas se realiza na

palavra” (p. 428). Essa frase resume perfeitamente a descoberta principal de suas

pesquisas, a qual o conduz a constatar que o pensamento e a linguagem não apresentam

dois processos independentes um do outro, se desenrolando em paralelo e se articulando

de vez em quando, mas que eles constituem um único e mesmo processo. É a

significação da palavra que “é esta unidade que não se decompõe na continuação dos

dois processos que não se pode dizer o que ela representa: um fenômeno da linguagem

ou um fenômeno do pensamento” (p. 417-418). Essa concepção da significação da

palavra está na base do experimento Sakharov/Vigotski sobre a formação dos conceitos

e, é ela também que é corroborada pelos resultados. É apenas se admitirmos que a

conceitualização se realiza através da palavra, mais precisamente na significação da

palavra, que não é jamais imutável, que diferentes maneiras de conceitualizar o mundo

com a ajuda das palavras se tornam visíveis.

O que nos leva à segunda diferença característica para a pesquisa de Vigotski. O

estudo funcional da palavra nos permite identificar diferentes formas de

Page 43: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

conceitualização do mundo em função da idade das crianças. Isso confere um grande

interesse a seu estudo, sobretudo para os profissionais da educação, pois ele permite

afirmar a existência de diferentes estados de formação de conceitos na ontogênese da

criança. Por meio de uma análise das significações das palavras utilizadas pela criança,

diferentes maneiras de conceitualizar o mundo podem ser inferidas e se tornam

« observáveis ». As análises de Sakharov/Vigotski provam que o emprego das palavras

e, também, do significado das palavras, se distingue em função da idade das crianças.

Vigotski tira dessa conclusão uma tese importante no plano desenvolvimental:

É apenas quando a criança se torna um adolescente que é possível a passagem

decisiva ao pensamento conceitual. Antes dessa idade, trata-se de formações

intelectuais originais que, por seu aspecto exterior, se parecem a autênticos

conceitos e, em razão dessa semelhança exterior, podem ser tomadas, quando de

uma análise superficial, por índices da presença de verdadeiros conceitos desde a

mais jovem idade. As formações intelectuais são, em realidade, equivalentes

funcionais de verdadeiros conceitos que, eles, vêm à maturidade muito mais tarde.

[…] Identificar uns e outros, é ignorar o longo processo de desenvolvimento, é

colocar no mesmo plano seu estado inicial e seu estado final. (p. 205)

Essa citação contradiz uma ideia muito divulgada na época, a qual afirmava que as

crianças, já na idade de dois anos, eram capazes de formar verdadeiros conceitos. Ela

introduz igualmente um termo que será utilizado em seguida, a saber, o termo

«equivalentes funcionais ». Vamos mostrar, no próximo parágrafo, as etapas da

formação de conceitos que a análise experimental de Shakarov/Vigotski permitiu

identificar. Além disso, tentaremos trazer alguns elementos de resposta a uma questão

imperativa que se coloca aqui: em que consiste então a natureza de um pensamento

conceitual verdadeiro ou autêntico? Essa questão diz respeito ao estágio final, o da

maturidade do pensamento conceitual, cujos primeiros indícios são atestáveis na idade

da adolescência. Entretanto, Vigotski apressa-se em afirmar que a existência desse

pensamento conceitual autêntico ou verdadeiro, tão característico da idade adulta, não

significa de maneira alguma que as outras formas de conceitualização, os ditos

equivalentes funcionais, teriam totalmente desaparecido. Bem ao contrário,

frequentemente elas existem ainda paralelamente.

Os estágios de formação de conceitos

Quais são então, a natureza psíquica, a estrutura e o modo de ação desses equivalentes

funcionais dos conceitos verdadeiros? Na parte seguinte, vamos nos limitar à discussão

dos três grandes estágios que são claramente separados por Vigotski, mesmo se a faixa

etária para cada estágio não é precisamente indicada. No interior desses estágios,

Page 44: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Vigotski discute sobre os subestágios (ver p. 204-232)30

, que, na seguinte demonstração,

vão ser apenas levados em conta se isso permitir esclarecer os próprios estágios.

O primeiro estágio é o dos conceitos sincréticos (ver p. 211-214). A criança designa

diferentes objetos, utilizando a mesma palavra. A ligação produzida entre os objetos

designados com a ajuda da palavra baseia-se em uma impressão totalmente subjetiva e

pouco estruturada. Assim, pode tratar-se de um encontro espacial ou temporal desses

objetos ou de uma configuração específica que provoca uma relação entre eles na

percepção subjetiva do mundo pela criança. Segue-se uma extensão difusa de uma

significação linguageira a uma série de elementos que não têm relações objetivas entre

eles. Vigotski ressalta que a generalização realizada aqui, com a ajuda de uma palavra,

tem um caráter difuso e aleatório, trata-se de uma reunião de coisas desprovidas de

qualquer regra de composição. No entanto, não se pode esquecer que não é, por assim

dizer, apesar da palavra, mas graças a ela que essa generalização se faz. Outra

particularidade desse estágio deixa-se detectar pela maneira pela qual a palavra é

tratada. « Na formação de imagens, a palavra é tomada como um estímulo entre outros,

presente na situação e participando da impressão global » (Zaccai-Reyners, p. 154).

Tomemos um exemplo: uma criança sentada no ônibus olha pela janela e designa

sucessivamente tudo o que acontece na frente da janela com a palavra « auto », pouco

importa que se trate de um ciclista, de um carrinho de criança, de um policial andando,

de um cachorro, de um esqueitista, de um quiosque. É difícil dar um sentido qualquer à

palavra « auto » tal como é utilizada pela criança, pois a ligação que ela cria entre os

objetos tem um caráter subjetivo (sincrético), a palavra só pode ser credidata a ela-

mesma. No entanto, é incontestável que a criança faz uma utilização funcional dessa

palavra que é aplicada a todas as coisas que ela percebe a partir de seu lugar no ônibus,

relacionando-os.

O segundo tipo de conceitos analisados em Pensamento e Linguagem são os

complexos. No pensamento por complexos, a criança torna-se capaz de compreender

relações objetivas que existem realmente entre as coisas e as pessoas no mundo.

Vigotski dá como exemplo os sobrenomes. Os « objetos » que são semelhantes pelo

sobrenome têm entre eles uma ligação muito específica que não se baseia mais em uma

impressão subjetiva, mas que também não têm um caráter lógico. A relacão entre os

membros de uma família, entre as pessoas que têm o mesmo nome é uma ligação

concreta e factual. Que Vladimir e Serguéï sejam membros da família Pétrov é um fato;

um fato empírico e concreto, já que se constatou que os dois têm o mesmo pai e a

mesma mãe. Aliás, a ligação entre Paul e Pierre apresenta-se igualmente como uma

ligação factual já que ela se baseia no fato de que os outros dois fazem parte da

associação de estudantes, o que é mostrado pelo crachá « membro da ADELME 31

» que

eles usam durante a Assembleia geral. Trata-se de uma ligação constituída por um

30 Assim, Vigotski distinque três etapas de formação dos conceitos sincréticos e cinco formas fundamentais do estado dos complexos. 31 Associação de estudantes de Licenciatura.

Page 45: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

pertencimento comum, no caso, aqui, pela de ser um membro da mesma associação.

Esses exemplos mostram claramente uma característica essencial dos complexos que

Vigotski mostra como segue: « Assim não podemos nunca determinar se uma dada

pessoa faz parte da família Pétrov, nem se podemos designá-la por esse nome a partir da

mesma base de sua relação lógica com os outros portadores desse nome » (p. 216).

Mesmo se Boris e Serguéï têm traços de caráter comuns, não é uma razão pela qual eu

poderia concluir que Boris faz parte da família Pétrov. Da mesma forma para Paul e

Pierre, pois, ainda que eles compartilhem as mesmas convicções políticas, esse fato não

permite concluir que eles são membros da mesma associação de estudantes, e não há

nenhuma necessidade lógica entre os dois fatos. « É o pertencimento de fato ou o

parentesco de fato entre os indivíduos que decide » (p. 216).

Vigotski sublinha que o caráter concreto e empírico dessas ligações objetivas que é

levado em conta cada vez que se utiliza um sobrenome ou, mais geralmente, um

complexo. Assim, este se baseia nas relações empíricas mais variadas, nas ligações

entre objetos que não têm, frequentemente, nada em comum entre si, como pode ser o

caso para os irmãos Vladimir e Serguéï, que são, no entanto, realmente ligados um ao

outro, sendo membros da mesma família. Essa especificidade dos complexos reflete-se

também no papel que a palavra tem na generalização. Enquanto que na formação dos

conceitos sincréticos a palavra foi um aspecto indiferenciado da percepção, « nos

complexos, a palavra pode ser considerada de maneira diferenciada […] Assim, por

exemplo, a palavra „maçã‟, [..] pertence à maçã da mesma maneira que sua forma, sua

textura, sua cor … » (Zaccaï-Reyners, p. 154). Aplicado a nosso exemplo, isso quer

dizer que o nome Pétrov pertence a Serguéï da mesma forma que sua barba e a cor de

seus cabelos.

Resta discutir os dois últimos tipos de conceitos, a saber, o pseudoconceito e o

verdadeiro conceito. Já que o pseudoconceito constitui um equivalente não maduro do

verdadeiro conceito, parece mais relevante começar por uma discussão desse último.

Segundo Vigotski, o verdadeiro conceito tem por base « ligações de tipo único,

logicamente idênticas entre elas » (p. 217). Um conceito é formado quando traços

distintivos de um grupo de objetos foram abstraídos e submetidos a uma nova síntese.

Essa síntese assim obtida se torna a forma fundamental do pensamento. Uma questão se

coloca, no entanto: Em que essa descrição do conceito verdadeiro se distingue da que

demos sobre o método de abstração discutido no primeiro parágrafo deste capítulo? O

método da abstração apoia-se justamente na ideia de que o conceito é uma

representação do espírito que reúne uma multitude de objetos pela abstração de um

traço comum. Aparentemente, é difícil de escapar de uma teoria representacionalista do

conceito. É então importante voltar para uma diferença que não é pequena e na qual

Vigotski não cessa de insistir.

O conceito é impossível sem as palavras, o pensamento conceitual é impossível

sem o pensamento verbal; o elemento novo, o elemento central de todo o processo,

que somos instituídos a considerar como a causa produtiva da maturação dos

Page 46: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

conceitos, é o emprego específico da palavra, a utilização funcional do signo como

meio de formação de conceitos. (p. 207 ; ver também p. 259, 267)

Na concepção representacionalista dos conceitos, a função concedida à palavra é de

expressar (ou de designar) o resultado da generalização, enquanto que, para Vigotski, a

palavra tem, de início, já na formação do conceito, um papel incontestável. A palavra

não fecha a generalização, mas contém a generalização; não é sua expressão, mas o

próprio suporte do processo. Na abordagem de Vigotski, a palavra não é o resultado da

generalização nem sua condição imutável, mas o « lugar » em que o pensamento nasce:

Nós vimos que a relação entre o pensamento e a palavra é o processo vivo do

nascimento do pensamento na palavra […] Hegel considerava a palavra como um

ser animado pelo pensamento. Esse ser é absolutamente necessário a nossos

pensamentos. (p. 498)

Poderíamos então, dizer que a palavra permite pensar no mundo e não apenas

representá-lo. Senão, como poderíamos formular os enunciados desse gênero: « O

homem é um animal que pensa »? Uma criança que não pensa com essas palavras, mas

procura designar, talvez a representar com elas as coisas no mundo, diria

imediatamente: « mas um animal não tem razão, então um homem não pode ser um

animal ». Evidentemente a validade dessa generalização não pode ser questionada, mas

isso não impede que, com esse enunciado, alguma coisa com relação ao homem seja

pensada. Esse enunciado permite pensar o mundo, mas à condição que nós não tentemos

considerar o traço « dotado de razão » como um traço comum ao homem e ao animal.

Nós pensamos com a expressão animal dotado de razão alguma coisa no mundo e,

nesse sentido, as palavras não representam o mundo, mas desencadeiam, trazem e

guiam o processo do pensamento. A diferença do conceito sincrético e de um complexo,

um verdadeiro conceito baseia-se na capacidade de o homem tomar as coisas no mundo

fora das relações nas quais elas se deram na experiência, além de seus traços empíricos

atestáveis, além de seu ser de fato. Em outros termos: utilizar um conceito não significa

apenas generalizar, colocar junto às coisas no mundo, mas pensar o mundo, o que pode

conduzir a ligações entre as coisas no mundo que não são ligações fatuais. Que o

homem seja um animal dotado de razão, só pode ser pensado, mas pensado utilizando a

linguagem que se revela, assim, indissociável do pensamento. O processo de formação

do pensamento através da linguagem, tal como é característico para um conceito

verdadeiro é descrito por Vigotski por um recurso ao conceito de mediação que já

encontramos no capítulo anterior:

Não apenas o pensamento é mediatizado exteriormente pelos signos, mas ele o é

interiormente pelas significações. […] Não se pode conseguir fazê-lo, a não ser por

uma via indireta, mediada, ou seja, graças à mediatização interna do pensamento,

primeiramente pelas significações, em seguida pelas palavras. É por isso que o

Page 47: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

pensamento nunca equivale à significação literal das palavras. A significação serve

de mediação entre o pensamento e a expressão verbal, ou seja, a via que vai do

pensamento à palavra é indireta, interiormente medidada. (p. 493)

É essa espécie de « jogo », de não coincidência entre pensamento e linguagem, os dois

sendo ao mesmo tempo indissociáveis, que constitui a condição para a formação de

conceitos verdadeiros. O conceito de mediação tematiza perfeitamente o processo que

ocorreu aqui. A linguagem não expressa, não reflete, não significa o pensamento, ela

funciona como um meio [médium], ela faz com que o processo de pensamento se

realize; em suma, o pensamento se faz através dela. Assim, a linguagem torna presente

o pensamento realizado pelos sujeitos sob forma de conceitos verdadeiros.

O objeto de uma psicologia do desenvolvimento

A análise experimental da formação de conceitos e a interpretação que Vigotski

propõe dela implicam duas consequências em relação ao desenvolvimento. Nós vimos

que, na ontogênese da criança, diferentes formas de pensamento em conceitos se

sucedem e coexistem e que os conceitos utilizados pela criança antes da idade da

adolescência constituem equivalentes funcionais. Esse termo explica, igualmente, um

fato bem observável na vida diária, a saber, que a criança, desde a mais terna idade, é

capaz de realizar trocas verbais e de assegurar uma compreensão mútua com os adultos,

mesmo se o que é dito e pensado com a ajuda das palavras é frequentemente diferente.

Vigotski empresta um célebre exemplo à filosofia da linguagem. Falando de Napoleão,

pode-se visar com essa mesma palavra tanto o « vencedor de Iéna », quanto o « vencido

de Waterloo » (p. 243). As palavras que a criança e o adulto utilizaram em suas

conversas, visam aos mesmos objetos (a denominação é comum). No entanto, a maneira

pela qual esses objetos são conceitualizados e pensados a partir delas (a significação) é

diferente. É essa diferença que deveria, segundo Vigotski, ser o objeto primário de uma

psicologia do desenvolvimento.

A segunda consequência diz respeito à escola e ao papel que Vigotski lhe atribui.

Antes da aquisição da capacidade de formar os conceitos verdadeiros, Vigotski constata

o estágio dos pseudoconceitos. Nesse estágio, o adolescente começa a ser capaz de

utilizar conceitos verdadeiros, mas não se exercitou, no entanto, a definir os conceitos.

O traço característico dos pseudoconceitos consiste no fato de que a generalização

realizada leva ao mesmo resultado que aquela que se baseia nos conceitos, mas ela se

realiza definitivamente na base de um pensamento por complexos, logo, apoiando-se em

operações intelectuais muito diferentes (ver p. 226-233). Vigotski mostra que a presença

dos conceitos e a consciência dos conceitos não coincidem; existe uma discordância

entre a utilização dos verdadeiros conceitos e a tomada de consciência desse fato pela

criança.

Page 48: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Essa discordância se mantém não apenas no adolescente, mas também no

pensamento do adulto, às vezes, mesmo no pensamento desenvolvido ao mais alto

ponto. […] O adolescente forma um conceito, emprega-o corretamente em uma

situação concreta, mas, assim que se trata de definir verbalmente esse conceito, seu

pensamento se choca então, imediatamente, a extremas dificuldades e a definição

que ele dá é muito mais estreita que o emprego vivo que ele faz dele. Vemos aí a

confirmação direta de que os conceitos não resultam simplesmente de uma

elaboração lógica de tais ou tais elementos da experiência, que eles não são o

produto da reflexão do adolescente, mas que eles aparecem nele por outro caminho

e só se tornam conscientes e lógicos muito mais tarde. (p. 261)

Esse outro caminho, mencionado por Vigotski, é o do ensino e, mais precisamente, do

ensino dos conceitos científicos que, segundo nosso autor, é uma das tarefas principais

da escola. É a esse aporte bem específico da escola que dedicamos o último capítulo

deste livro.

Page 49: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

CAPÍTULO 5

O APORTE ESPECÍFICO DA ESCOLA

A distinção entre conceitos cotidianos e conceitos científicos

É a distinção entre conceitos cotidianos e científicos que permite melhor compreender o

papel que Vigotski atribui à escola, já que é o ensino de conceitos científicos que

constitui, segundo ele, sua especificidade. A gênese dos conceitos cotidianos não

necessita desse quadro institucional, pois a criança os forma e os aprende em sua

atividade prática, na comunicação imediata com as pessoas ao seu redor; em suma, nas

situações informais de aprendizagem. O fato de que esses conceitos se formam na

experiência, logo, no contato direto com o mundo, explica que eles têm um nível de

abstração pouco elevado. Assim, um conceito cotidiano refere-se diretamente às coisas

do mundo como nossa análise dos conceitos sincréticos e dos complexos o mostrou. Por

outro lado, os conceitos científicos são generalizações de segunda ordem, já que a

referência ao mundo que eles operam não é nunca imediata nem direta. Ela sempre se

realiza por intermédio de algum outro conceito. Vigotski mostra que um conceito

científico tem uma relação tanto com os objetos do mundo, quanto com os outros

conceitos. Isso significa duas coisas: 1) os conceitos científicos sempre se apoiam nos

conceitos cotidianos, não podendo existir sem eles e 2) um conceito científico existe

sempre no interior de um sistema de conceitos.

C científico C cotidiano mundo

Para ilustrar essa definição dos conceitos científicos como generalizações das

generalizações, Vigotski faz referência a um conceito oriundo da ontogênese da criança.

Uma criança pequena ainda não é capaz de utilizar o conceito flor como tendo um nível

de generalidade diferente em relação aos conceitos rosa e tulipa. Ela o utiliza como um

conceito cotidiano entre outros e não compreende que o conceito flor inclui conceitos

mais particulares. Em vez de subordinar os conceitos tulipa e rosa ao conceito flor, a

criança os situa todos ao mesmo nível. Em consequência, a utilização do conceito flor

enquanto generalização do que é generalizado pelos conceitos tulipa e rosa, mostra o

fato de que a criança começa a dominar os conceitos que têm características

semelhantes àquelas dos conceitos científicos. Ela se torna capaz de operar no interior

de um sistema de conceitos organizado hierarquicamente. Em outros termos, ela

aprendre a seguir o movimento dos conceitos não apenas no plano horizontal, mas

também no plano vertical.

Flor

Rosa tulipa

Page 50: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Objeto objeto

Vigotski insiste no fato de que o conceito científico não anula de maneira alguma a

etapa precendente à formação de conceitos, mas se apoia nela e a transforma (p. 391). O

que explica a possibilidade de ligações supraempíricas entre os conceitos. Essa

característica dos conceitos científicos, a saber, de não ser um novo modo de

generalização dos objetos do mundo, mas de apresentar um trabalho sobre as

generalizações já existentes, revela-se um sinal precioso para poder determinar os

procedimentos que, segundo nosso autor, deveriam ser privilegiados no ensino escolar.

Dentre os inúmeros exemplos que cita, ele se refere em vários momentos ao ensino da

linguagem escrita e insiste em um ponto preciso32

. Uma das condições requeridas para a

aquisição da linguagem escrita é a decomposição e a recomposição da linguagem oral,

tanto no plano fonético quanto no plano sintático ou semântico. A linguagem oral deve

ser usada como “mediadora” para a aprendizagem do escrito. Mesmo se o escrito possui

uma qualidade totalmente nova e não reproduz de maneira alguma a linguagem oral, o

processo de aquisição da linguagem escrita deve se basear na linguagem oral. Segundo

Vigotski, é preciso levar a sério essa situação quase paradoxal: mesmo se o escrito não

se deixa inferir a partir do oral, ele não pode ser aprendido sem se referir ao oral, como

o conceito flor não pode ser adquirido por uma criança que não conhece os conceitos

rosa e tulipa. É nesse jogo de dependência e independência entre o escrito e o oral, entre

as generalizações de primeira e de segunda ordem, entre os conceitos cotidianos e os

conceitos adquiridos na escola, que a aprendizagem escolar deve se fundar.

Resta então, a discutir o que a criança adquire como capacidades quando se dá a

aprendizagem dos conceitos científicos. Em que consiste, no final das contas, o aporte

específico da escola? A resposta a essa pergunta será desenvolvida a partir de outro

exemplo trazido por Vigotski, no capítulo 6 de Pensamento e Linguagem. Trata-se da

relação entre os conceitos aritméticos e os conceitos algébricos. Comecemos com o

conceito aritmético, que é definido por Vigotski como a abstração do número a partir da

coisa ou, em outras palavras, como a generalização dos traços numéricos da coisa. Os

traços numéricos são, nos conceitos aritméticos, separados das coisas. Essa separação

permite operar livremente com os números, o que pode ser facilmente observado nas

operações elementares, a adição, a subtração e a multiplicação, que também são o objeto

da aritmética. Por outro lado, os conceitos algébricos são generalizações das

propriedades numéricas expressas nos conceitos aritméticos. Esses conceitos permitem

pensar qualquer relação entre os números e são proferidos sobretudo sob a forma de

equações. Trata-se de abstrações de segunda ordem que se baseiam no conceito

aritmético do número e que são completamente separadas do mundo dos objetos.

Vigotski expressa o fato como segue:

Operar a generalização de suas próprias ideias e operações aritméticas representa

alguma coisa superior e nova em relação à generalização das propriedades

numéricas dos objetos nos conceitos aritméticos. (p. 393)

32 Sobre a concepção da escrita em Vigotski, ver Schneuwly, 2008.

Page 51: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Para esclarecer em que consiste esta alguma coisa nova, proponho completar as

reflexões de Vigotski pela discussão de um ensino igualmente matemático que o

filósofo alemão Ludwig Wittgenstein (1889-1951) desenvolve em alguns curtos

parágrafos de seu livro Recherches philosophiques publicado em 1953. Essa articulação

inabitual entre esses dois pensadores, considerados como pertencentes a tradições de

pensamento bem diferentes, torna-se possível e pode ser defendida, pois os dois se

juntam em sua crítica a uma concepção mentalista do espírito33

. Wittgenstein discute em

Recherches philosophiques um ensino a respeito das sequências dos números naturais,

que ele começa como segue:

Imaginemos o seguinte exemplo: A escreve sequências de números; B o vê fazer

e se esforça para encontrar uma lei da sucessão desses números. Se ele consegue,

ele grita: “Agora eu posso continuar!” – Essa capacidade, essa compreensão é,

assim, alguma coisa que aparece em um instante. Vejamos então o que aparece

aqui. Suponhamos que A tenha escrito os números 1, 5, 11, 19, 29 e que B diga

que agora ele sabe como continuar. O que aconteceu? Pode ter acontecido várias

coisas. (§ 151, p. 99)

Aqui está, primeiramente, a segunda resposta dada por Wittgenstein:

[...] B não pensa em nenhuma fórmula. Ele observa com certa tensão os números que A

escreve, todos os tipos de pensamentos confusos que atravessam o espírito. E,

finalmente, ele se pergunta: „Qual é a continuação pelas diferenças?‟ Ele acha 4, 6, 8,

10, e ele diz: Agora eu posso prosseguir. (§ 151, p. 100)

Poderíamos ilustrar essa solução pelo seguinte esquema:

1 ______ 5 ______ 11 _____ 19 ______ 29 _____ 41

4 6 8 10 12

O procedimento aplicado por B torna-se claro: ele acrescenta um segundo nível à série,

um nível que a “generaliza”. Ele utiliza os números que permitem entender o princípio

de construção da série, ficando, no entanto, sob o plano aritmético. Acrescentando a

cada número da primeira série o número par seguinte da segunda série, começando a

segunda série com o número 4, B consegue continuar a série. Mas existe ainda outra

maneira de resolver o enigma, a que é discutida por Wittgenstein enquanto primeira

solução:

Por exemplo, no momento em que A escrevia lentamente esses números uns após os

outros, B tentava lhes aplicar diferentes formas algébricas. Depois, no momento em que

A escreve o número 19, B tentou a formula a = n2 + n – 1; e o número seguinte permitiu

confirmar sua suposição. (§ 151, p. 99-100)

1 ________ 5 ___________ 11 ___________ 19 ____________ 29 ____________ 41

a = n2 + n – 1

33 Sobre o antimentalismo de Wittgenstein, ver Bouveresse 1987.

Page 52: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Essa operação aplicada por B para poder continuar a sequência se situa claramente no

campo da álgebra. Enquanto que, na primeira resolução, os números continuam a ser o

suporte maior, no segundo caso, B consegue explicitar a equação na qual se baseia a

série. Essa equação explicita as operações aritméticas a realizar para formar cada

membro da série (por exemplo: 5 = 2x2 +2-1). Ela generaliza as operações aritméticas,

ou mais precisamente, ela os faz “ver” e permite tomar consciência delas.

Esse exemplo emprestado de Wittgenstein mostra bem o que Vigotski tenta ilustrar com

sua discussão sobre os conceitos aritméticos e algébricos. O psicólogo russo sublinha

que é a fórmula algébrica que permitiu tomar consciência da constituição da série, já

que é ela que contém o princípio de sua construção. O que se opera aqui, então, é a

tomada de consciência sobre as operações matemáticas na base da série.

Assim, a tomada de consciênca apoia-se em uma generalização dos processos

psíquicos próprios, que conduz ao seu domínio. Nesse processo, é antes de tudo

a aprendizagem escolar que representa um papel decisivo. Os conceitos

científicos, com sua relação totalmente outra com o objeto, sua mediação por

outros conceitos, seu sistema hierárquico de relações recíprocas, são o campo no

qual, sem dúvida, a tomada de consciência dos conceitos, ou seja, sua

generalização e seu domínio, se desenvolve no mais alto ponto. (p. 317)

Vigotski conclui, então, que a tomada de consciência é uma das duas neoformações

principais da escola, a outra sendo o domínio ou a intervenção da vontade, como ele

também a chama (p. 309).

As duas neoformações adquiridas na escola

Todas as funções essenciais que têm uma parte ativa na aprendizagem escolar

giram em torno do eixo das neoformações34

fundamentais desta idade: o caráter

consciente e o caráter voluntário. (p. 361)

Vigotski insiste na interdependência da tomada de consciência e da intervenção da

vontade. A tomada de consciência de um conceito é a condição indispensável para

utilizá-lo voluntariamente. Ao longo do capítulo 6, encontramos a identificação do

domínio da vontade. Essa identificação torna-se compreensível se levamos em conta

que, para Vigotski, dominar quer dizer “poder fazer voluntariamente”. De fato, uma

segunda identificação pode ser revelada aqui: aquela entre o saber e o poder fazer. Uma

identificação igualmente presente no exemplo de Wittgenstein. B diz, encontrando a

solução, “Agora, eu posso continuar” e ele continua a série. Para Wittgenstein, os dois

processos « ter compreendido e poder prosseguir corretamente a série” são apenas um.

Segundo ele, é importante reconhecer que a compreensão não existe enquanto processo

mental precedente e separado da realização da tarefa, nesse caso, de continuação da

série. O saber da fórmula algébrica não é nada mais do que “poder continuar a série”

(logo, fazê-lo realmente). B aprendeu álgebra, ele tem um conhecimento de álgebra

34 O termo neoformação significa que se trata de dois traços distintivos fundamentais das funções psíquicas superiores que são desenvolvidos tarde, na idade escolar, e dão a estes últimos um caráter totalmente novo.

Page 53: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

quando ele sabe continuar a série, em resumo, quando ele sabe fazer. A tomada de

consciência sobre suas próprias operações aritméticas não leva simplesmente ao

conhecimento da fórmula algébrica, mas ao domínio desse tipo de tarefa, à realização

dessa tarefa (ao seu domínio), que pode ser repetida em outras situações.

Outro exemplo de predileção de Vigotski, o da linguagem escrita, esclarece mais a

especificidade dessas duas neoformações. O autor insiste no fato de que antes de sua

entrada na escola a criança demonstra alguns “saber-fazer35

” no campo da linguagem,

mas ela não sabe que os possui. Um bom exemplo é a pronúncia das palavras que as

crianças fazem com facilidade, mas sem que tenham consciência das letras que elas

pronunciam nessas palavras. A atividade de pronúncia se desenvolve na maioria dos

casos de uma maneira involuntária e inconsciente, ela se apresenta como uma atividade

espontânea. Vigotski apresenta várias provas: quando se pede a uma criança para

pronunciar separadamente as letras “sk” que ela pronuncia sem nenhum problema na

palavra “Moskva”, os experimentos mostram que fora dessa palavra a criança não

consegue pronunciá-las. Estamos, assim, frente a uma pronúncia automática, na qual as

letras “sk” são utilizadas de maneira inconsciente e não dominada. A explicação que

Vigotski dá desse fenômeno se resume em uma frase: “A criança domina então alguns

“saber-fazer” no campo da linguagem, mas não sabe que os domina” (p. 344). A criança

realiza certas operações no campo da linguagem (como a da conjugação e a da

declinação) sem se dar conta, como o demonstramos quanto às operações aritméticas

que acontecem antes do ensino da álgebra. A linguagem escrita e a álgebra são sistemas

voluntários de signos e seu ensino tem por resultado não apenas uma tomada de

consciência sobre o funcionamento da linguagem oral, mas também seu domínio.

Assim, a criança começa a dominar, através de uma aprendizagem da linguagem escrita,

o que ela sabe fazer na linguagem oral, ela utiliza voluntariamente esse saber no curso

da palavra36

. Definitivamente, o resultado das aprendizagens escolares é um

desenvolvimento voluntário (dominado), logo, livre e independente dos automatismos

aprendidos e dos conhecimentos inculcados. A aquisição das duas neoformações é

considerada por Vigotski como objeto privilegiado das disciplinas escolares37

.

A relação entre aprendizagem e desenvolvimento

As reflexões de Vigotski sobre a escola seriam incompletas sem abordar e discutir a

problemática da relação entre aprendizagem e desenvolvimento. Primeiramente, ele

tenta se diferenciar das concepções que ele considera pouco compatíveis com suas

próprias ideias, porém bem difundidas na sua época. Estas se deixam esquematicamente

esboçar sob a forma de três teorias. A primeira considera a aprendizagem e o

desenvolvimento como dois processos independentes, que, embora não se influenciando

35 No original, “savoir-faire’ (nota de tradução). 36 Outro exemplo é a aprendizagem de uma língua estrangeira: a língua materna é a condição para aprender uma língua estrangeira que, por sua vez, nos torna conscientes de certos traços de nossa própria língua, permitindo utilizá-la de uma maneira voluntária. 37 Ver também sua discussão sobre a velha doutrina da disciplina formal, segundo a qual certas disciplinas escolares são mais aptas do que outras a participar do desenvolvimento das neoformações. (ver, p. 331-335)

Page 54: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

absolutamente, se preparam um ao outro. Nessa perspectiva, o desenvolvimento de

certas funções e capacidades psíquicas bem determinadas é apresentado como uma

condição indispensável para as aprendizagens e é então considerado como precedente às

aprendizagens. Segundo os representantes da segunda concepção, a aprendizagem e o

desenvolvimento são tratados como um único e mesmo processo. Considerar os dois

como sendo inseparáveis um do outro, implica que qualquer aprendizagem tem um

efeito direto sobre o desenvolvimento ou, mais precisamente, é automaticamente

identificado a um desenvolvimento. A terceira concepção tenta afirmar uma verdadeira

interdependência entre esses dois processos. Vigotski se posiciona em favor dessa

última, criticando seus representantes quanto a um número importante de pontos que,

segundo ele, não são sustentáveis (ver p. 328-331).

Sua própria concepção se deixa resumir em torno de duas grandes teses. A primeira

tese afirma que “a aprendizagem precede o desenvolvimento” (p. 348). Mostrando que

as funções psíquicas superiores se baseiam todas nas duas neoformações discutidas

anteriormente, que não são a condição, mas o objetivo primário e o resultado esperado

dos ensinamentos escolares, as aprendizagens têm um papel primordial no

desenvolvimento da criança. Essa afirmação reflete-se em um conceito que viu seu

alcance aumentar consideravelmente nos últimos anos, trata-se da “zona de

desenvolvimento proximal”. Opondo-o ao conceito de “desenvolvimento presente”, que

engloba tudo o que a criança sabe fazer de uma maneira autônoma, todas as capacidades

que vieram à maturidade, o conceito de “zona de desenvolvimento proximal” antecipa

os desenvolvimentos possíveis, o que a criança conseguirá fazer se acompanhada pelos

adultos na resolução de tarefas e problemas. É esse movimento entre “o que ela sabe

fazer” em direção “ao que ela poderia conseguir fazer”, que constitui o que os

ensinamentos escolares deveriam focalizar. Vigotski insiste no fato de que os últimos só

são frutíferos no quadro dessa zona que deve ser definida para cada aluno de maneira

individual, em função de seu desenvolvimento posterior. Esse último aspecto é

reforçado por um recurso às filiações históricas do conceito “zona de desenvolvimento

proximal”. Vigotski mostra que a psicologia empresta esse conceito da biologia na qual

utiliza-se o termo de “períodos sensíveis” (ver p. 358-359) a fim de delimitar um lapso

de tempo bem específico, durante o qual o organismo é particularmente sensível às

influências do meio. Durante esse período, o meio orienta e determina fortemente o

curso de seu desenvolvimento e provoca grandes modificações, enquanto que em outro

período as mesmas condições não têm nenhum efeito, nem mesmo efeitos inversos no

organismo.

Na sua segunda tese, Vigotski afirma que o ritmo do desenvolvimento não coincide

com o ritmo das aprendizagens, o que parece, à primeira vista, relativizar a tese anterior.

Se as duas curvas se juntassem em uma só, nenhuma relação, em geral, seria

possível entre aprendizagem e desenvolvimento. […] os dois processos são, de certo

modo, incomensuráveis na acepção própria da palavra. (p. 348)

Page 55: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Mas essa segunda tese é indispensável para poder supor uma verdadeira

interdependência entre aprendizagem e desenvolvimento, uma interdependência na qual

nenhum dos dois tem prioridade sobre o outro. Essa tese sobre a incomensurabilidade

permite justamente afirmar que não é apesar do desenvolvimento, mas graças a ele que

as aprendizagens se realizam. O que é então expresso aqui? O simples fato de que as

aprendizagens não garantem automaticamente que um aluno seja « afetado » por elas,

ou, em outras palavras, que ele seja sensível a elas. Em consequência, um

desenvolvimento não é garantido pelas aprendizagens, pois, com efeito, o processo

escolar tem seus encadeamentos, sua lógica e sua organização complexa que lhe são

próprias. Os ensinamentos se desenvolvem em função de um planejamento determinado

anteriormente, de uma maneira sequencial, na forma de lições, de deveres, que são

organizados segundo os diferentes campos e matérias a ensinar. É essa organização que

Vigotski tem em vista quando ele caracteriza as leis da aprendizagem como externas ou

artificiais, pois seria ilusório pensar que as aprendizagens coincidirão perfeitamente

« com as leis internas próprias à estrutura dos processos do desenvolvimento que a

aprendizagem desencadeia » (p. 346). O fato de que a estrutura e a temporalidade das

aprendizagens não correspondem ao desenvolvimento interno, não significa que os dois

processos não se cruzem nunca. Bem ao contrário, « esses pontos de cruzamento » são o

objetivo declarado e procurado do ensino e regularmente atestados nas práticas

escolares. No entanto, cada professor já observou o fenômeno que Vigotski relata como

segue: nem a primeira, nem a segunda e a terceira lições fizeram avançar o aluno B na

elaboração, por exemplo, de um pensamento algébrico; e, depois, a sessão seguinte se

mostra decisiva, « ele compreendeu ». Vigotski chama a atenção do leitor para o caráter

brusco e pouco contínuo das mudanças suscitadas pelas aprendizagens. Ele se refere

novamente à escola de Würzburg, desta vez, para tomar um termo que tenta explicar

esse fenômeno. Os membros dessa escola utilizaram em suas pesquisas sobre o

pensamento o termo de « Aha-Erlebnis » que encontrou em francês38

traduções como

« experiência estalo » ou « experiência eureka ». Esse termo indica o momento

aparentemente bem circunscrito durante o qual uma clarificação, uma compreensão, um

pensamento se faz repentinamente, instantaneamente; esse momento é frequentemente

expresso pela exclamação « agora, eu sei ».

Essa discussão da experiência estalo contém uma ideia já discutida no parágrafo

anterior e que é primordial para todo o pensamento de Vigotski sobre a escola:

Na verdade, não ensinamos à criança o sistema decimal propriamente dito. Ensinamos

a inscrever algarismos, a multiplicar, a resolver exercícios e problemas e o resultado de

tudo isso é o desenvolvimento, na criança, de umconceito geral de sistema decimal. (p.

348)

Novamente, um paralelo com as reflexões de Wittgenstein revela-se interessante, pois,

para este último, ensinar o sistema decimal a uma criança significa, nada menos, do que

mostrar, ressaltar, escrever a série no quadro. Nessa perspectiva, o sucesso das

38 NT: expérience déclic ou expérience eureka.

Page 56: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

aprendizagens depende inteiramente do que o aluno sabe fazer ou não sabe fazer em

seguida, em suma, do fato que ele continua sozinho a partir de certo momento, a série

decimal dos números naturais ou que ele não o faz.

Suponhamos que o aluno escreva agora a sequência 0 a 9 de uma maneira que nos

satisfaça. – Será o caso apenas se ele consegue frequentemente e não se ele o faz

corretamente uma vez a cada cem vezes. Eu o guio em seguida no desenvolvimento

da sequência e chamo sua atenção sobre o retorno da primeira sequência nas

unidades, depois sobre o retorno nas dezenas. (O que quer simplesmente dizer que

eu recorro a certas entonações, que eu ressalto alguns sinais, que eu os escrevo uns

sob os outros de tal ou tal maneira, e outras coisas semelhantes.) – E em certo

momento, ele continua a desenvolver a sequência sozinho, - ou ele não o faz. – Mas

por que você o diz? Isso é natural! – Evidentemente, e eu queria simplesmente dizer

que o efeito de toda explicação suplementar depende de sua reação. (§ 145, p. 97)

Não poderíamos dizê-lo mais claramente: o professor mostra, designa, acentua no

quadro, e depois ele pede à criança para continuar sozinho, para continuar a série.

Continuar a série não pode ser ensinado, trata-se de um processo produzido pela

criança, é um resultado de seu desenvolvimento. Para continuar a série, a criança deve

desenvolver um conceito de sistema decimal, esse conceito não pode ser adquirido tal

qual, mas é produzido pela criança. Assim, esse conceito só é adquirido se ele existe sob

a forma de saber fazer, quando ele continua a série. É a continuação da série, mas

geralmente sua reação, que mostra ao professor se ele pode continuar sua lição ou se o

processo de aprendizagem é temporariamente interrompido até que o aluno reaja de uma

maneira conveniente. Esse exemplo ilustra perfeitamente a divergência das

temporalidades próprias à aprendizagem e ao desenvolvimento. Ora, é o poder fazer, o

saber fazer que atesta o desenvolvimento da criança e, em consequência, o sucesso das

aprendizagens.

Essa diferença entre aprendizagem e desenvolvimento, tal como é discutida por

Vigotski, confirma sua ideia da mediação que encontramos ao longo desse livro. O

conhecimento não é dado nem adquirido, ele é mostrado, acentuado, demonstrado pelo

professor e, a partir dessas operações, ele é construído pela criança. A criança constrói o

que não pode ser expresso diretamente por essas operações, mas que é, no entanto,

visado por elas: por exemplo, o conceito algébrico. O que é mostrado pelo professor é

usado como um instrumento pela criança que se transforma ao mesmo tempo em objeto

e sujeito. Por um lado, o aluno segue as intervenções do professor: ele repete, continua,

escreve, recopia tudo o que é mostrado. Por outro lado, para continuar, por exemplo, a

série decimal, ele deve acrescentar a essas operações um conceito quer seja aritmético,

quer seja algébrico, como mostrou a demonstração de Wittgenstein. Assim, a

constituição dos conceitos que permitem continuar a série é um processo ativo realizado

pelo aluno, um processo que demanda que o aluno se constitua como ator de sua

aprendizagem no sentido de que o aluno deve moldar para si um poder fazer. O que

Page 57: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

implica também que os meios que fazem emergir esse poder fazer podem variar de um

aluno a outro, sem que isso tenha a menor incidência sobre sua eficiência.

Essa demonstração nos conduz a concluir que os saberes ensinados na escola não

podem ser transmitidos tais quais ao aluno\; eles devem ser dados com o objetivo de

incitar um poder fazer constituído pelo próprio aluno. As reflexões de Vigotski em

torno do desenvolvimento e da aprendizagem permitem propor uma concepção do saber

escolar que trata esse último como um instrumento psicológico. O saber requer essa

função de instrumento, assim que o aluno se torna capaz de intercalá-lo entre ele e o

mundo (por exemplo, o mundo das tarefas matemáticas), o que tem como resultado que

« ele pode continuar a série », ou, mais geralmente, que ele adquiriu um poder fazer. Se

o saber algébrico enquanto saber que39

, existindo sob a forma de manuais e definições,

era o objetivo das aprendizagens, não saberíamos nunca se a criança o aprendeu, pois

esse saber pode ser simplesmente sabido e redito. Ao contrário, um poder fazer (saber

como) deve ser realizado e efetuado, logo, é validado imediatamente por sua realização.

Esse saber(-fazer) não pode nunca ser desligado do homem e não existe sob forma de

proposições categóricas (ele sabe matemática, ele conhece a lei de Newton).

Parece então, totalmente relevante dar uma última vez a palavra a Wittgenstein para

relatar uma de suas breves reflexões conceituais que resumem tão bem a concepção do

saber que embasa as reflexões vigotskianas sobre a ligação entre a aprendizagem e o

desenvolvimento:

A gramática da palavra „saber‟ é, evidentemente, estreitamente semelhante à da

gramática da palavra „poder‟, „ser capaz de‟, mas também da palavra „compreender‟

(Maîtriser une technique40

.) (§ 150, p. 99)

A diferença entre aprendizagem e desenvolvimento que acabamos de discutir tem um

alcance considerável. Ela evidencia o fato de que sem resposta do lado do aluno, sem

sua participação ativa, as aprendizagens são condenadas ao fracasso. No entanto, essa

discussão sobre uma correlação complexa entre os dois processos não reforça

simplesmente a ideia, mais banal, de uma interação necessária entre o aluno e o

professor, mas chega também à definição de educação como o desenvolvimento

artificial da criança (Vigotski, 1930/1985, p. 45). Lembremos de que, segundo

Vigotski, a maioria das atividades psíquicas da criança se encontra antes das

aprendizagens escolares, no nível de uma atividade espontânea, quase involuntária.

Antes da aprendizagem da linguagem escrita, o dizer da criança se orientava quase

exclusivamente em direção ao que havia a dizer, a responder, a replicar. Assim que o

aluno se apropria da linguagem escrita, ele pode utilizar seus conhecimentos para

reorganizar e reestruturar a linguagem oral, que perde, em parte, seu caráter

involuntário. Ele intercala esse novo saber entre ele e seu dizer e começa a controlar

através dele a espontaneidade natural de seu falar sem a lesar ou a interromper. Nesse

sentido, Vigotski fala de um desenvolvimento artificial.

39 Ver G. Ryle (1949/2005, sobretudo capítulo III) que, na tradição wittgensteiniana, introduziu uma distinção conceitual entre um saber que e um saber como. 40 Dominar uma técnica (nota de tradução).

Page 58: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Segue-secerta concepção do aluno que Vigotski opõe a duas outras teorias dominantes

na época. Segundo a primeira, o desenvolvimento não depende da educação escolar, em

consequência, a criança pode ser estudada « independentemente do nível de

escolaridade em que se encontra ». Na segunda concepção, o desenvolvimento da

criança depende exclusivamente dos saberes e conhecimentos adquiridos na escola, a

criança é então, identificada ao aluno e analisada « independentemente de todas suas

outras características de criança ». Sua própria teoria, diz Vigotski, permitirá, enfim,

reunir o que, nas duas outras, é artificialmente separado. Ela « estuda uma criança

particular em sua qualidade de aluno » (ibid., p. 45-46). Isso se torna possível, pois em

sua concepção, o saber é considerado poder fazer, ele é, consequentemente, inseparável

de um indivíduo particular e de suas ações.

CONCLUSÃO

Se há uma problemática que se destacou em nosso diálogo com Vigotski como

altamente presente, é uma concepção bem específica do sujeito, a qual é essencial em

seu pensamento. Como pudemos ver, o sujeito (o pesquisador, o aluno, o professor) não

se encontra ausente em seus textos, mas é sempre tematizado em relação aos

instrumentos: com os instrumentos dos métodos indiretos, como o termômetro, ou com

os instrumentos psicológicos. Para dar conta do funcionamento do psiquismo como

órgão de seleção, o pesquisador deve encontrar meios para mostrar o que não passou o

filtro; sendo, entretanto, determinante para o comportamento do sujeito. Os

instrumentos psicológicos intercalados entre o sujeito e seus processos psíquicos

melhoram o desdobramento de seu curso natural, e as aprendizagens propostas ao aluno

visam a lhe permitir saber fazer. Esses instrumentos, como vimos, fazem desaparecer a

velha oposição entre sujeito e objeto, pois, desde que são utilizados, o indivíduo é, ao

mesmo tempo, sujeito (ativo) e objeto (passivo), de um modo inseparável.

Isso traz consequências para o conceito de instrumento, pois, nessa perspectiva, não

importa qual objeto do mundo natural, social e psíquico pode tornar-se tal instrumento.

É só em seu uso real por um indivíduo concreto que um objeto do mundo é identificado

ou reconhecido como instrumento. A fotografia da avó que trazemos na bolsa para

lembrarmos de que temos de comprar um presente pelo seu aniversário não funciona

como instrumento, se, ao vermos a foto, não nos lembrarmos do que devíamos fazer. A

partir desse exemplo, poderíamos concluir que, na compreensão vigotskiana, o

instrumento não existe além de seu emprego pelo sujeito. Isso não exclui que

determinados objetos do mundo se prestem de modo melhor que outros como

instrumento psicológico, ou ainda que tenham recebido essa função nos usos e costumes

sociais e culturalmente determinados (como é o caso no sonho do Cafre). Portanto, os

instrumentos psicológicos se distinguem dos outros instrumentos, dos que são

especialmente produzidos pelo homem para atividades bem determinadas, para as

chamadas atividades mediatizadas. Um machado é concebido para cortar madeira, mas

também pode servir para fixar pregos; mas ter esse domínio sobre ele se baseia no

Page 59: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

conhecimento de seu emprego e de suas características naturais e sociais. Sabemos para

que, normalmente, serve um martelo e como podemos usá-lo para chegar ao objetivo. É

claro que podemos utilizar tão bem um machado quanto um martelo para outros fins,

mas isso não muda em nada o fato de que eles são normalmente produzidos tendo em

vista ser utilizados para... e nós bem o sabemos. Em um de seus textos, Hans Georg

Gadamer (1900-2002), representante de hermenêutica filosófica, ilumina essa

característica dos instrumentos ditos comuns, para distigui-los do funcionamento da

linguagem:

A linguagem não é, de jeito algum, um instrumento, uma ferramenta, pois é uma

característica da essência da ferramenta é que saibamos dominar sua utilização, ou

seja, que nós a tomemos em mãos, e que a depositemos, quando ela cumpriu seu

serviço. (1986/1991, p. 60)41

Os instrumentos psicológicos discutidos neste nosso livro se assemelham à

linguagem, já que também se caracterizam pelo fato de que «não sabemos dominá-los».

Muito ao contrário, eles desvelam sua função de instrumento, só quando eles fazem

fazer. O domínio dos instrumentos comuns baseia-se no conhecimento de seus usos, o

que pode preceder ou suceder seu funcionamento e ser dele destacado e anotado nas

instruções de utilização e nos manuais. Ao contrário, o uso dos instrumentos

psicológicos exige um poder fazer engendrado e pelo sujeito, ao mesmo tempo que ele

os utiliza. Esse poder fazer não é separável dos instrumentos psicológicos, nem sob a

forma de um conhecimento, nem sob a forma de uma capacidade. Isso explica porque o

sujeito, bem presente nos textos de Vigotski, não é tematizado em relação às

competências a serem adquiridas ou em relação aos conhecimentos a lhe serem

transmitidos ou inculcados, mas enquanto aquele que, em sua relação com o mundo

cotidiano e escolar constitui e realiza um poder fazer utilizando esses instrumentos.

Uma compreensão do sujeito como essa leva, necessariamente, a uma psicologia

concreta, pois exige que o pesquisador analise, sob qual forma, onde, quando e por

quem, em um objeto do mundo, é despertada a possibilidade de funcionar como

instrumento, o que prova que, ao mesmo tempo é constituído por esse homem um poder

fazer. A essas questões só se pode responder com a ajuda de uma análise empírica que

se oporia, enfim, a qualquer procedimento a priori42

.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Untersuchung. Bamberg : Buchners Verlag.

42 Agradeço a Kim Stroumza e Giuseppe Di Salvatore pelas observações e pelo nosso debate em torno deste texto, a Maryvonne Charmillot, por seu trabalho sobre o francês e a Marianne Weberpela pela preparação do texto para a publicação. Muito obrigada aos estudantes da FAPSE e da Universidade d’Ouagadougou, com os quais desenvolvi essa leitura de Vigotski.

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Catálogo

Referências bibliográficas de documentos eletrônicos. Maryvonne Charmillot

(esgotado, versão eletrônica em Cahiers en ligne )

Une introduction aux théories de l’action.

Jean-Paul Bronckart.

Expliquer, interpréter, comprendre.

Le paysage épistémologique des sciences sociales.

Marie-Noëlle Schurmans.

Un bilan des recherches processus-produit. L’enseignement peut-il contribuer à

l’apprentissage des élèves et, si oui, comment ? Marcel Crahay

Activité(s) et Formation. Marc Durand

Concevoir des dispositifs de formations d’adultes.

Sandra Enlart & Cecilia Mornata

Intervention cognitive en éducation spéciale. Deux programmes métacognitifs.

Fredi Büchel (épuisé)

Préalables à l'ingénierie.

Sandra Enlart & Stéphane Jacquemet

Production écrite et difficultés d'apprentissage.

Joaquim Dolz, Roxane Gagnon & Simon Toulou

Didactique comparée et difficultés scolaires.

Francia Leutenegger

Introduction aux approches interculturelles en

éducation. Abdeljalil Akkari

Lev Vygotski : médiation, apprentissage et développrement. Une lecture

philosophique et épistémologique. Janette Friedrich

Page 64: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

A coleção Carnets des sciences de l'éducation

A coleção dos Carnets des sciences de l'éducation é uma edição da Seção das

ciências da educação, produzida pelo Grupo Publicação, em ligação com o comitê de

redação da coleção Raisons Educatives.

A coleção dos Carnets des sciences de l'éducation propõe-se a publicar textos

científicos próprios aos diversos campos disciplinares e temáticos das ciências da

educação. Esses textos, sempre assinados por um professor da seção, são articulados aos

ensinamentos dispostos no quadro dos diferentes cursos de formação, cujo estudo, eles

preparam ou aprofundam.

Do mesmo modo que os Cahiers de la Section des sciences de l’éducation et os

Raisons Educatives, a coleção Carnets des sciences de l'éducation também tem por

objetivo promover e desenvolver uma cultura da leitura e da pesquisa.

Page 65: LEV VIGOTSKI: MEDIAÇÃO, APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO

Contracapa

Janette Friedrich

Lev Vigotski: mediação, aprendizagem

e desenvolvimento

Uma leitura filosófica e epistemológica

Este Carnet apresenta a obra de Vigotski por uma leitura de seus principais textos.

Sem entrarmos em uma exposição de suas ideias sob a forma de uma doutrina, visamos

a pensar no interior de seu pensamento para encontrarmos os conceitos e os

procedimentos que permitem tratar a realidade pela qual atualmente se interessam os

pesquisadores, os professores ou formadores no domínio da educação.

A primeira parte se dedica à diferença entre os métodos diretos e indiretos, e à

relação entre a observação dos fatos e o trabalho sobre o conteúdo real dos conceitos. O

papel dos instrumentos psicológicos como mediação dos processos psíquicos e das

aprendizagens é central na segunda parte. Concluindo, encontra-se esboçado o projeto

de uma psicologia concreta que analisará o funcionamento bem específico dos

instrumentos psicológicos, baseado na constituição de um poder fazer dos seres

humanos.

Professora de ensino e pesquisa no campo Aportes da filosofia para a educação e a

formação, Janette Friedrich dirige atualmente pesquisas sobre a relação entre saber-

fazer e reflexão.