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II – Teoria Pura do Direito. Neste capítulo será apresentada a Teoria Pura do Direito e, em seguida será mostrado como essa teoria não é apenas relativa ao direito, e sim às ordens normativas em geral, ao menos em grande parte. A Teoria Pura do Direito divide-se em duas partes: a Estática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. Há ainda, é claro, outras idéias que são pressupostos ou conseqüências destas dimensões do Direito, mas que, ou já foram tratadas quando se apresentou a visão de Kelsen no capítulo anterior, ou não foram consideradas de interesse imediato. Esta divisão que Kelsen faz entre Estática e Dinâmica Jurídica remete à análise do Direito envolvendo ou não seu processo de criação e/ou validação. A Dinâmica Jurídica seria a análise do Direito enquanto algo em transformação, ou melhor, seria a análise da validação de uma norma. Enfim, a Dinâmica Jurídica busca responder à questão de porque se deve obedecer a uma determinada norma e porque se deve passar a obedecer a uma outra norma em determinadas circunstâncias, como a revogação da norma em questão. A Estática Jurídica é a análise do Direito enquanto um sistema de normas postas, cristalizadas, por assim dizer, deixando de lado a questão da validade destas normas, ou melhor, tendo por aceite a validade delas. A teoria da construção escalonada da ordem jurídica apreende o Direito no seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua auto- criação. É uma teoria dinâmica do Direito, em contraposição a uma teoria estática do Direito que procura conceber este apenas como ordem já criada, a sua validade, o seu domínio de validade, etc., sem ter em conta sua criação. (Kelsen, 2000: 309) Diferentemente de Kelsen, apresentarei a princípio a Dinâmica Jurídica, por entender que é de mais fácil apreensão e porque é a ela que se dirigem a totalidade das críticas apresentadas até então. Quanto à Dinâmica Jurídica, serão tratadas as questões do fundamento de validade e da estrutura escalonada da ordem jurídica. Já quanto à Estática Jurídica as questões da norma, do direito subjetivo, da pessoa, da organicidade e da relação jurídica. Dinâmica Jurídica. 1- A norma fundamental. Kelsen entende o Direito como uma ordem normativa, ou um sistema coercitivo de normas reguladoras da conduta humana. Uma ordem normativa, por sua vez, é entendida como um conjunto de normas que derivam sua validade de uma mesma norma fundamental. Colocada a questão de por que razão uma norma é válida, chega-se a uma Dinâmica Jurídica. A validade de uma norma é sua existência. Tal existência é a vinculação da conduta humana à norma, ou melhor é o caráter de objetividade do dever ser que constitui a norma. Dizer que uma dada norma é válida significa dizer que se deve obedece-la. Leve-se em conta aqui que ao afirmar que uma
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II – Teoria Pura do Direito

Feb 08, 2023

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Marcio Silva
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Page 1: II – Teoria Pura do Direito

II – Teoria Pura do Direito.            Neste capítulo será apresentada a Teoria Pura do Direito e,

em seguida será mostrado como essa teoria não é apenas relativa ao direito, esim às ordens normativas em geral, ao menos em grande parte.

            A Teoria Pura do Direito divide-se em duas partes: aEstática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. Há ainda, é claro, outras idéias quesão pressupostos ou conseqüências destas dimensões do Direito, mas que, ou jáforam tratadas quando se apresentou a visão de Kelsen no capítulo anterior, ounão foram consideradas de interesse imediato.

            Esta divisão que Kelsen faz entre Estática e DinâmicaJurídica remete à análise do Direito envolvendo ou não seu processo de criaçãoe/ou validação. A Dinâmica Jurídica seria a análise do Direito enquanto algoem transformação, ou melhor, seria a análise da validação de uma norma. Enfim,a Dinâmica Jurídica busca responder à questão de porque se deve obedecer a umadeterminada norma e porque se deve passar a obedecer a uma outra norma emdeterminadas circunstâncias, como a revogação da norma em questão. A EstáticaJurídica é a análise do Direito enquanto um sistema de normas postas,cristalizadas, por assim dizer, deixando de lado a questão da validade destasnormas, ou melhor, tendo por aceite a validade delas.

            A teoria da construção escalonada da ordem jurídica apreende oDireito no seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua auto-criação. É uma teoria dinâmica do Direito, em contraposição a uma teoria estáticado Direito que procura conceber este apenas como ordem já criada, a sua validade,o seu domínio de validade, etc., sem ter em conta sua criação. (Kelsen, 2000: 309)

            Diferentemente de Kelsen, apresentarei a princípio aDinâmica Jurídica, por entender que é de mais fácil apreensão e porque é a elaque se dirigem a totalidade das críticas apresentadas até então.

            Quanto à Dinâmica Jurídica, serão tratadas as questões dofundamento de validade e da estrutura escalonada da ordem jurídica. Já quantoà Estática Jurídica as questões da norma, do direito subjetivo, da pessoa, daorganicidade e da relação jurídica.

                       Dinâmica Jurídica.

                       1- A norma fundamental.            Kelsen entende o Direito como uma ordem normativa, ou um

sistema coercitivo de normas reguladoras da conduta humana. Uma ordemnormativa, por sua vez, é entendida como um conjunto de normas que derivam suavalidade de uma mesma norma fundamental.

            Colocada a questão de por que razão uma norma é válida,chega-se a uma Dinâmica Jurídica.

            A validade de uma norma é sua existência. Tal existência é avinculação da conduta humana à norma, ou melhor é o caráter de objetividade dodever ser que constitui a norma. Dizer que uma dada norma é válida significadizer que se deve obedece-la. Leve-se em conta aqui que ao afirmar que uma

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norma válida deve ser obedecida não se prescreve tal obediência, mas, antes,assume-se o caráter de objetividade de uma ordem normativa, da qual a normareferida faz parte. Ou seja, dizer que uma norma é válida significa que,segundo a ordem normativa levada em consideração, deve-se obedece-la.

            Assim, "dizer que uma norma que se refere à conduta de umindivíduo ’vale’ (é ‘vigente’), significa que ela é vinculativa, que oindivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma" (Kelsen, 2000: 215).

            Kelsen assume o pressuposto de que uma norma só pode servalidade, ou seja, ser considerada objetiva, em relação a outra norma. Emverdade o autor admite que do ser não decorre o dever ser. "Do fato dealgo ser não pode seguir-se que algo deve ser, assim como do fato de algo deverser se não pode seguir que algo é" (Kelsen, 2000: 215).

            Portanto, se uma norma (um dever ser) é tida como válida, oé porque decorre sua validade de uma outra norma, por exemplo: O indivíduo "A"deve fazer "" segundo a norma "a". Por que o indivíduo deve comportar-seconforme "a"? Porque a norma "b" prescreve que ele deva se portar comoprescreva "a".

            Mesmo quando fundamentamos determinada norma na autoridadede alguém ou algo, como Deus, por exemplo, pressupomos uma norma segundo aqual devamos obedecer a Deus, e não simplesmente o fato de Deus ter ordenadodeterminada conduta.

            Dois pontos importantes no pensamento kelseniano acerca danorma fundamental: 1) uma norma só pode fundamentar-se em uma outra norma. 2)Uma série de imputação há de ter um início e um fim.

            O primeiro ponto já foi tratado. Quanto ao segundo, Kelsennão admite uma série imputativa infinita, como uma série causal. No entanto,toda norma só é válida, considerada objetiva, se fundamentada em outra norma,ou melhor, se há uma norma considerada objetiva que prescreva sua observância.Daí que, se quisermos aceitar qualquer norma como objetiva, temos de pressuporuma norma cuja objetividade não se põe em questão.

            Assim, o fundamento de validade de uma ordem normativa é umanorma, mas uma norma pressuposta.

            Afirma o autor:

            Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de umanorma como fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ousupra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentoscom o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai, ou quando se diz quedevemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermãoda Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso maspressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinadanorma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemosobedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemosobedecer aos mandamentos de Seu Filho.

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            - Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposiçãode dever-ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos(ou ao mandamento que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição queverifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos (ouo Filho de Deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissamenor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostosda conclusão. Porém apenas a premissa maior é que é uma proposição de dever ser, éuma conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição dedever-ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento devalidade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona comopremissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Querdizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é ofundamento de validade da norma afirmada na conclusão. (Kelsen, 2000: 215 e 216).

            Uma norma é considerada superior ou inferior a outraconforme seja a que empresta ou a que receba da outra, respectivamente, avalidade.

            Do que ficou dito resulta que a norma fundamental éentendida como a conditio per quam, ou condição pela qual se considera válida umaordem normativa, ou melhor, é o elemento que confere validade à ordem. A normafundamental é pressuposta, e não posta por ato humano e, é claro, é norma.Enquanto norma de dever-ser, se presta a validar outras normas de dever ser.Esta norma, portanto, é o fundamento de validade de uma ordem jurídica. Aconstatação fática de uma autoridade haver posto uma norma em conformidade comuma norma é condição sine qua non de sua validade, e se constitui, juntamente coma norma fundamental, em condição de validade da ordem jurídica.

            Esta distinção entre condição de validade e fundamento devalidade é importante para a compreensão da relação que Kelsen entende haverentre eficácia e validade (27).

            Tanto a conformidade à norma fundamental como a eficácia sãocondições de validade de uma ordem normativa. No entanto a validade nãodecorre da eficácia. Não é o fato de uma determinada ordem jurídica ser eficazque a torna válida. "Tal eficácia é condição no sentido de que uma ordemjurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradoscomo válidas quando cessão de ser eficazes" (Kelsen, 2000: 236).

            A questão é que o fundamento de validade de uma ordemjurídica estabelece que se deva conduzir da forma como estabelece aConstituição, com um fator condicionante: tal Constituição deve ser eficaz (28).Desta forma, assim como na questão entre o ato de uma autoridade que põe umanorma e o seu fundamento de validade, cabe colocar a questão das diferentescondições de validade.

            A eficácia é condição sine qua non da validade, mas não é seufundamento. Tal como antes, pode-se conceber o silogismo normativo comocontendo, na premissa maior, o fundamento de validade, e na menor, a eficácia.

            No silogismo normativo que fundamenta a validade de uma ordemjurídica, a proposição de dever-ser que enuncia a norma fundamental: devemosconduzir-nos de acordo com a Constituição efetivamente posta e eficaz, constitui apremissa maior; a proposição de ser que afirma o fato: a Constituição foiefetivamente posta e é eficaz, quer dizer, as normas postas de conformidade comela são globalmente aplicadas e observadas, constitui a premissa menor; e aproposição de dever-ser: devemos conduzir-nos de conformidade com a ordem jurídica

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positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilarda sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elassomente valem se esta ordem jurídica é eficaz. Logo que a Constituição e,portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a suaeficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma de suas normas perdem a validade(vigência). (Kelsen, 2000: 237).

            O condicionante que Kelsen põe na norma fundamental, queexige a eficácia do ordenamento jurídico é, em verdade, a condição de que omesmo seja o direito atualmente posto, em vigor, eficaz. De fato, se supormosum ordenamento normativo não eficaz ainda o podemos analisar como um sistemacoerente de normas. Estas não serão, porém, válidas no sentido de vinculantesou existentes. Pode-se estudar uma ordem normativa não eficaz como um conjuntosistêmico de normas, mas tais normas seriam mera ficção. Se tomarmos, porexemplo, o ordenamento da antiga república romana poderemos fundamentar suavalidade do mesmo modo, ou seja, recorrendo à norma fundamental que prescrevaa observância da Constituição (em termos kelsenianos) daquela república. Nestecaso a eficácia continua, mesmo aí, como condição de validade, apenas o limitetemporal de validade foi alterado. Mas o raciocínio que levou à normafundamental pode ser aplicado mesmo a um ordenamento normativo fictício queregule, por exemplo, a vida de determinados personagens em uma história deficção, apenas não se pode afirmar que tal ordenamento seria válido, uma vezque dizer que uma norma é válida é dizer que é vinculante, e uma normaineficaz não pode sê-lo.

            A razão, a meu ver, que leva Kelsen a colocar a eficácia daOrdem como uma condição de validade é a seguinte: o autor está preocupado emexplicar o Direito Positivo, ou seja o Direito atualmente vigente, e nãosimplesmente um ordenamento normativo qualquer. Sua condição de validade é,também, uma condição de interesse, no sentido de que para analisar qualquerordenamento normativo é necessária a assunção de uma norma pressuposta queconfira objetividade ao conteúdo subjetivo de sentido de sua Constituição, maspara que Kelsen tenha interesse nesta análise, uma vez que lhe interessa oDireito, uma ordem válida, cumpre que tal ordenamento seja eficaz.

            A validade, como já se pôde notar, tem limitações. Estaspodem ser temporais, espaciais ou pessoais, conforme refiram-se ao tempo,espaço ou pessoas que são submetidas ao ordenamento. Assim é que se podeconceber como válido o Direito da antiga república romana ou mesmo o Direitocanônico nos dias de hoje. O primeiro tem um limite temporal de validade quenão abrange os dias atuais, e o segundo tem um limite pessoal de validade quenão abrange toda a população de qualquer território, senão, talvez, doVaticano. (29)

            Kelsen denomina por "princípio da legitimidade" aquelesegundo o qual "uma ordem jurídica é validada até a sua validade terminar porum modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituídapor uma outra norma desta ordem jurídica" (Kelsen, 2000: 233). Denomina, poroutro lado, "princípio da eficácia" aquele segundo o qual "a norma fundamentalrefere-se apenas a uma Constituição que é efetivamente estabelecida por um atolegislativo ou pelo costume e que é eficaz" (Kelsen, 2000: 234). Para Kelsen"o princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade".

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            É enquanto condição de validade que a eficácia não pode serexcluída da concepção de um ordenamento normativo. Por isto, o desuetudo ésempre, ainda que o ordenamento afirma o contrário, fator que revoga a norma,e até mesmo a Constituição, como já foi exposto.

            Do que precede podemos entender que um ordenamento normativopode ser alterado, revogado ou substituído tanto de acordo com as normas porele mesmo estabelecidas como pela perda de sua eficácia. Esta segunda forma é,por Kelsen, denominada "revolução" se, de uma forma não prevista naconstituição, estabelecem-se normas gerais com eficácia duradoura, ou seja, asnormas passam a ser postas de modo alheio ao estabelecido na constituição e,portanto, a norma fundamental segundo a qual devemos nos conduzir conforme aconstituição deixa de ter eficácia.

            Antes, porém, de tratar deste tema, cumpre definir oconceito de Constituição e apresenta as noções de "princípio dinâmico" e"princípio dinâmico" além de mostrar como a norma fundamental pode ser umanorma "pensada".

            O "princípio estático" e o "princípio dinâmico" nãocorrespondem à Estática e Dinâmica Jurídica, uma vez que ambos inscrevem-senesta última. São princípio utilizados para derivar uma norma de outra Estesprincípios permitem classificar o ordenamento jurídico de acordo com "anatureza do fundamento de validade".

            Sucintamente podemos definir estes princípios da seguinteforma: segundo o princípio estático as normas do ordenamento são consideradasválidas pela conformidade do seu conteúdo com o conteúdo da norma fundamental.Já conforme o princípio dinâmico as normas do ordenamento são consideradasválidas por terem sido postas de acordo com a maneira determinada pela normafundamental. Neste princípio, a norma fundamental apenas confere autoridade,ou seja põe como devida a obediência a outra norma, naquele, a normafundamental além de conferir autoridade, estabelece certo conteúdo para asdemais normas.

            Os ordenamentos cujo fundamento de validade das normas segueum princípio estático têm, contido na norma fundamental, o conteúdo de todasas normas do ordenamento e estas são deduzidas por uma operação lógica. (30) Oautor oferece um exemplo:

            Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemosfraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsostestemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreva a veracidade. (Kelsen,2000: 218).

            No entanto, Kelsen não parece crer que um ordenamentonormativo possa se apoiar em uma norma fundamental segundo o princípioestático. Diz o autor:

            Só que a norma de cujo conteúdo outras normas são deduzidas,como o particular do geral, tanto quanto ao seu fundamento de validade como quantoao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma fundamental quandoo seu conteúdo seja havido como imediatamente evidente (...) Dizer que uma norma éimediatamente evidente significa que ela é dada na razão, com a razão, (...)pressupõe o conceito de razão prática, que dizer, de uma razão legisladora; e este

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conceito é insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e oestabelecimento de normas é um ato de vontade. (Kelsen, 2000: 218)

            Kelsen pretende que a norma fundamental pressuposta, dessaforma, prescreveria a obediência a uma vontade que prescreveria a norma quepermite a dedução segundo o princípio estático. No entanto, não há razão paradizer que para considerar uma norma fundamental com conteúdo diverso dadelegação de autoridade como sendo o fundamento de validade de uma ordemnormativa devamos tomar tal conteúdo como imediatamente evidente. De fato, umecologista pode tomar como regra fundamental de conduta a norma segundo a qualnão se deve destruir a natureza. A norma fundamental seria a de que deve-seobedecer à referida norma. E dela decorreriam, por exemplo, as normas: deve-seevitar acender fogueiras ao acampar, deve-se evitar o uso de automóveis, etc.Por certo que a maioria dos preceitos que valem-se do princípio estáticofundamentam sua validade em vontades supra-humanas, mas disto não decorre quenão se possa pressupor a validade de uma norma sem teor de delegação deautoridade.

            Os ordenamentos normativos cujo fundamento de validade dasnormas segue um princípio dinâmico têm, como norma fundamental, uma norma quemeramente delega a autoridade.

            O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a normafundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fatoprodutor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o quesignifica o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normasgerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (Kelsen,2000: 219)

            Assim, ao delegar autoridade a uma entidade legisladora, anorma fundamental delega autoridade a um conjunto de regras que estabelecemregras, como se verá adiante. As normas postas por tal autoridade ou emconformidade com tais regras não têm, com relação ao seu conteúdo, qualquervínculo com a norma fundamental. Eis um exemplo:

            Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho:por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e ofilho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por quedevo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou aobediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho perguntapor que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão avalidade desta norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão talnorma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento de sua validade, queapenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida:o filho deve obedecer às ordens do pai, não pode ser deduzido desta normafundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridadelegisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem sercriadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000: 219)

            Apesar de não estar, de forma alguma, vinculada à normafundamental quanto ao conteúdo, as normas que são postas de conformidade comela segundo um princípio dinâmico compõe uma unidade. "Uma norma pertence a umordenamento que se apoia numa norma fundamental porque é criada pela formadeterminada através dessa norma fundamental" (Kelsen, 2000: 220).

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            Ambos os princípios, estático e dinâmico, podem serencontrados em um e mesmo ordenamento. O exemplo dado por Kelsen é o de que osDez Mandamentos, ao mesmo tempo em que proscrevem a confecção de imagens (ouídolos), estabelecem os pais como autoridade legisladora.

            O princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numae na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo oprincípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesmaautoridade ou outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quaisdelegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais seprescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais– como o particular do geral – podem ser deduzidas novas normas através de umaoperação lógica. (Kelsen, 2000: 220)

            Para Hans Kelsen, o ordenamento jurídico tem "essencialmenteum caráter dinâmico" (Kelsen, 2000: 221). Portanto o conteúdo de uma norma nãoé qualquer empecilho para que figure em um tal ordenamento. "Por isso, todo equalquer conteúdo pode ser Direito" (Kelsen, 2000: 221), desde que a norma queo prescreve tenha sido "produzida através de um ato especial de criação"(Kelsen, 2000: 221).

            O termo Constituição tem dois sentidos em Kelsen. O primeiroé o de uma regra que estabelece como serão produzidas as normas de umordenamento. O segundo é o de uma norma pressuposta que confere validade aoutras, ou seja, a norma fundamental. Diferenciam-se estes conceitos chamandoaquela de Constituição jurídico-positiva e esta de Constituição lógico-jurídica. "Neste sentido, a norma fundamental é a instauração do fatofundamental da criação jurídica e pode, nestes termos, ser designada comoconstituição no sentido lógico-jurídico, para a distinguir da Constituição emsentido jurídico-positivo." (Kelsen, 2000: 222).

            Ao tomar a constituição como a norma que determina oprocesso de formação de normas de um ordenamento, temos que a normafundamental, segundo o princípio dinâmico, prescreve a obediência àconstituição.

            Se por Constituição de uma comunidade se entende a norma ou asnormas que determinam como, isto é, por que órgãos e através de que processos – ouatravés de uma criação consciente do Direito, especialmente o processolegislativo, ou através do costume – devem ser produzidas as normas gerais daordem jurídica que constitui a comunidade, a norma fundamental é aquela norma queé pressuposta quando o costume, através do qual a Constituição surgiu, ou quando oato Constituinte (produtos da Constituição) posto conscientemente por determinadosindivíduos são objetivamente interpretados como fatos produtores de normas.(Kelsen, 2000: 221)

            O termo Constituição apresenta ainda um nuança importante,que há de ser levado em conta quando, a seguir, passarmos a tratar daestrutura escalonada da ordem jurídica. O conceito de Constituição em sentidojurídico-positivo foi o de uma ou várias normas que regulam o processo decriação de normas (instituindo órgãos, procedimentos, etc.). Ou seja, quandotratarmos de Constituição, salvo afirmação expressa em contrário, não estamostratando do documento a que se dá esse nome. Kelsen distingue, então, aConstituição em sentido material da Constituição em sentido formal. Aquela são

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as normas, figurantes ou não do documento a que se atribui o termo, queregulam o processo de produção normativa (e também, como se verá, de"aplicação" do Direito) e esta são as normas contidas no documentoConstitucional, sejam ou não materialmente constitucionais. (cf. Kelsen,2000:247).

            Por fim, registre-se que a norma fundamental não é umaprescrição propriamente dita, mas antes um construto da ciência jurídica. Éuma norma pensada, e não posta. É uma condição de validade da ordem sobre aqual se debruça a ciência.

            Afirma o autor:

            Como uma ciência jurídica positivista considera o autor daConstituição que foi historicamente a primeira como a autoridade jurídica maisalta e, por isso, não pode afirmar que a norma: devemos obedecer às ordens doautor da Constituição é o sentido subjetivo do ato de vontade de uma instânciasupra-ordenada ao autor da Constituição – v.g. Deus ou a natureza –, ela não podefundamentar a validade desta norma num processo silogístico. (Kelsen, 2000: 227).

            O processo silogístico é, em suma, o seguinte:

            A fundamentação da validade de uma norma positiva (isto é,estabelecida através de um ato de vontade) que prescreve uma determinada condutarealiza-se por um processo silogístico. Neste silogismo a premissa maior é umanorma considerada objetivamente válida (melhor, a afirmação de uma tal norma), porforça da qual devemos obedecer aos comandos de determinada pessoa, quer dizer, nosdevemos conduzir de harmonia com o sentido subjetivo destes atos de comando; apremissa menor é a afirmação do fato de que essa pessoa ordenou que nos devemosconduzir de determinada maneira. A norma cuja validade é afirmada na premissamaior legitima, assim, o sentido subjetivo do ato de comando, cuja existência éafirmada na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por exemplo: devemosobedecer às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nossos pais.Logo, devemos obedecer às ordens de nossos pais. (...) A norma afirmada comoobjetivamente válida na premissa maior, que opera a fundamentação, é uma normafundamental se a sua validade objetiva já não pode ser posta em questão. Ela jánão é mais posta em questão se a sua validade não pode ser fundamentada em umprocesso silogístico. (Kelsen, 2000: 226).

            A norma fundamental é, assim, um artifício lógico, utilizadopor ser uma conseqüência da necessidade que um comando subjetivo tem defundamentar-se em uma norma considerada objetiva para ser considerado válido,aliado à recusa em fundamentar este comando em uma instância supra-ordenada.

            Portanto, a norma fundamental é uma norma pressuposta queestabelece como devida (devendo ser), ou melhor, que delega autoridade numaconstituição. (31)

                       2- A estrutura escalonada da Ordem Jurídica            A Teoria Pura do Direito não se resume à teoria da norma

fundamental. É necessário que se destaque que um ordenamento normativo não é,pura e simplesmente um conjunto de normas justapostas umas às outras, mas simum sistema de normas unidas por um mesmo fundamento de validade. As normasestão vinculadas à norma fundamental de uma maneira sistemática, de forma quetambém entre si guardam uma relação. Este vínculo está precisamente em que uma

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norma confere validade a outra e decorre sua validade ainda de uma outranorma, até que, no extremo (os juristas gostam de representar tal situaçãocomo uma pirâmide onde no topo está a norma fundamental, mas as normas maisabaixo a ela são ligadas mediatamente) encontremos a norma fundamental.

            As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validadecomum é esta norma fundamental não são – como o mostra a recondução á normafundamental anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas umasao lado das outras, mas uma construção escalonada de normas supra e infraordenadas umas às outras. (Kelsen, 2000: 224)

            Desta forma, uma norma pode estar em relação desuperioridade, inferioridade ou de igualdade hierárquica com relação àsdemais.

            Outra característica do ordenamento normativo é a de que osprincípios lógicos podem ser aplicados para analisa-lo. O princípio daimputação liga um fato a outro como sanção, ou melhor liga um fato a outro daforma se A, então B deve ser. Se, como Kelsen, pressupomos como válida umanorma fundamental, a entendamos como objetiva, podemos aplicar os princípioslógicos à proposições acerca desse ordenamento. Assim, se uma norma emcorrespondência com o fundamento de validade diz que se A, então deve ser B, euma outra norma, afirma, em desconformidade com o mesmo fundamento de validadeque se A, então deve ser não-B, pode-se, logicamente, dizer que segundo oordenamento em questão a segunda norma é inválida. É impossível que algo devae não deva ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições dentro de um mesmoordenamento normativo.

            Consideremos, em primeiro lugar, que para Kelsen um juízo devalor não é, de qualquer forma, subjetivo, uma vez que qualquer juízo éobjetivo. O valor pode ser subjetivo, mas o juízo da realidade que assuma estevalor como sendo objetivo, é feito de forma objetiva.

            Se designarmos como juízo de valor o juízo através do qualdeterminamos a relação de um objeto domo desejo ou vontade de um ou váriosindivíduos dirigida a esse mesmo objeto e, desse modo, considerarmos bom o objetoquando corresponde àquele desejo ou vontade, e mau, quando contradiz aquele desejoou vontade, este juízo de valor não se distingue de um juízo de realidade, poisque apenas estabelece a relação entre dois fatos da ordem do ser. (...) Quandodesignamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e osjuízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar queos predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos e não aojuízo como função do conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de sersempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e davontade do sujeito judicante. Isto é bem possível. Podemos, com efeito, determinara relação de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja,afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento,sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa(...) A resposta à questão de saber se, de acordo com a Moral cristã, é bom amar oinimigo, e o juízo de valor que daí resulta, pode e dar-se sem ter em conta seaquele que tem de responder e formular o juízo de valor aprova ou desaprova o amordos inimigos (...)Então, e somente então, é objetivo este juízo de valor. (Kelsen,2000: 22 e 23).

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            Assim, o juízo segundo o qual uma determinada norma nãocorresponde quanto ao conteúdo com uma outra norma, é um juízo objetivo, nosentido de que não implica na aprovação ou reprovação do sujeito judicante,temos, tão somente, um esclarecimento lógico.

            É sabido que não pode haver contradição lógica entre norma efato. Uma norma que mande não matar não se contradiz com um assassinato, mascom uma outra norma que prescreva o assassinato.

            Na medida em que aceitamos que em um ordenamento jurídico detipo dinâmico as normas são consideradas válidas por haver sido postas deacordo com determinado processo, temos de acatar a possibilidade de normas queentrem em "conflito". Tal conflito é, basicamente, uma contradição lógica. Porexemplo, é possível que em um determinado ordenamento jurídico, o órgãocompetente elabore uma norma que proscreva o adultério, vinculando a tal ato apena de prisão. É possível ainda que o mesmo, ou outro órgão, estabeleça, aomesmo ou em outro tempo, que o adultério não deve ser punido.

            Os ordenamentos normativos, em geral, e o Direito emparticular, são produtos da ação humana e nada impede que esta tenha umsentido contraditório. A ciência do Direito, porém procura descrever o direitoem proposições jurídicas isentas de contradição. Distinguem-se as normasjurídicas das proposições jurídicas no sentido de que aquelas são postas porautoridades legislativas e têm caráter prescritivo e estas são apresentadaspela ciência jurídica e têm caráter descritivo.

            É possível que o legislador prescreva normas contraditórias.Uma norma não é verdadeira ou falsa, mas válida ou inválida. Se o legisladorpõe duas normas contraditórias em conformidade com a Constituição, ambasseriam válidas. No entanto, uma proposição acerca destas normas pode serverdadeira ou falsa e, portanto, pode valer-se dos princípios lógicos, emespecial o da não contradição. Deixo que as palavras do próprio autoresclareçam:

            Com efeito, os princípios lógicos, e particularmente oprincípio da não-contradição, são aplicáveis a afirmações que podem serverdadeiras ou falsas; e uma contradição lógica entre duas afirmações consiste emque apenas uma ou outra pode ser verdadeira; em que se uma é verdadeira, a outratem de ser falsa. Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ouinválida. Contudo, a asserção (enunciado) que descreve uma ordem normativaafirmando que, de acordo com esta ordem, uma determinada norma é válida, e,especialmente, a proposição jurídica, que descreve a ordem jurídica afirmando que,de harmonia com esta mesma ordem jurídica, sob determinados pressupostos deve serou não deve ser posto um determinado ato coercivo, podem, - como se mostrou – serverdadeiras ou falsas. Por isso, os princípios lógicos em geral e o princípio danão contradição em especial podem ser aplicados às proposições jurídicas quedescrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, também podem ser aplicados àsnormas jurídicas. Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normasjurídicas se "contradizem" uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas podeser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser aomesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e que A não é ao mesmo tempo. Umconflito de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo de sem

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sentido (...) Como, porém, o conhecimento do Direito – como todo conhecimento –procura apreender o seu objeto como um todo de sentido e descreve-lo emproposições isentas de contradição, ele parte do pressuposto de que os conflitosde normas no material normativo que lhe é dado podem e devem necessariamente serresolvidos pela via da interpretação. (Kelsen, 2000: 229)

            Importante notar que a interpretação de que aqui se fala nãoé a interpretação de um juiz, mas de um estudioso do direito. O juiz, aointerpretar uma norma, cria norma nova. O estudioso descreve-a como parte deum ordenamento. Esta interpretação é mera aplicação dos princípios lógicos,enquanto aquela é a busca de um ideal de justiça.

            Tratemos da interpretação do cientista. O Direito é umsistema de normas supra e infra-ordenadas no sentido de que uma norma derivasua validade da outra. Assim, a decisão judicial é válida porque postaconforme as normas que regem o procedimento judiciário e porque conforme umadeterminada norma geral. Ou seja, se uma norma é supra-ordenada a uma outra, oé porque esta deriva daquela sua validade. Em caso, portanto, de conflito denormas de escalões diferentes, prevalece a de escalão superior, uma vez que écondição de validade da outra e que, se considerada inválida por chocar-se coma norma inferior, também deveria ser (por deficiência de condição de validade)a própria norma inferior, donde já não haveria razão para tomar como inválidaa norma superior.

            Assim, digamos que a constituição estabeleça que o órgãolegislativo por ela instituído deva, de acordo com determinados procedimentos,prescrever normas que vinculem penas ao ato de contrabando, vedada apenas apena de morte. Suponhamos então que o órgão legislativo, sem respeitar aquelesprocedimentos estabeleça como pena para o contrabando, única e exclusivamente,a morte. Ora, segundo este ordenamento tal norma é inválida porque entre suascondições de validade figura a conformidade à constituição. Assumir a validadeda norma inferior equivaleria a declarar inválida a constituição. Se a normainferior é válida porque foi posta de acordo com uma constituição tida comoválida, e esta constituição não é tida como válida, então tampouco o é a normainferir. De fato, a não ser que se aceite uma nova constituição (aquelasegundo a qual o órgão legislativo está autorizado a estabelecer sob qualquerprocedimento, qualquer pena ao ato de contrabando) e se pressuponha uma novanorma fundamental que prescreva a observância a esta nova constituição, ésimplesmente impossível admitir logicamente a prevalência da norma inferiorsobre a superior.

            Pode haver, porém, conflitos entre normas de mesmo escalão,ou seja, entre normas que não estejam supra e infra ordenadas umas às outras.Em casos assim o raciocínio precedente não se aplica. No entanto, se há umórgão legislador que recebeu autoridade, segundo o princípio dinâmico, paraestabelecer normas gerais, ou um órgão que haja recebido autoridade para,conforme o princípio estático, deduzir de uma norma, como do geral para oparticular, outras normas, deve-se admitir que uma norma posteriormente postaou deduzida por tal órgão revogue uma norma anteriormente posta em sentidocontrário pelo mesmo órgão. É o princípio que os juristas chamam "lex posteriorderrogat priori".

            Se se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um emesmo órgão mas em diferentes ocasiões, a validade da norma estabelecia em últimolugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o

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princípio lex posterior derrogat priori. Como o órgão legislativo – v.g. o monarcaou o parlamento – é normalmente competente para produção de normas modificáveis e,portanto, derrogáveis, o princípio lex posterior derrogat priori pode serconsiderado como incluído, co-envolvido, na atribuição da competência. Esteprincípio também encontra aplicação quando as normas que estão em conflito sãoestabelecidas por dois órgãos diferentes, quando, por exemplo, a Constituiçãoatribua ao monarca e ao parlamento poder (competência) para regular o mesmo objetoatravés de normas gerais, ou a legislação e o costume são instituídos como fatosprodutores de normas. (Kelsen, 2000: 230).

            Há, aqui, duas situações possíveis: quando a Constituiçãoconfira competência para produção de normas revogáveis e quando o faça para ade normas irrevogáveis. No primeiro caso, considerando duas normas postasconforme à constituição em momentos diferentes, desaparece o conflito denormas de mesmo escalão. A norma constitucional revogou a norma geralinferior. A questão se resolve como no caso do conflito de normas de diferenteescalões. Lembre-se aqui que por "norma constitucional" entendem-se as normasque regulam a produção e aplicação de normas, sejam escritas ou não.

            Por outro lado, pode ser o caso de que a Constituiçãoestabeleça autoridade para a produção de normas irrevogáveis. Exemplo distoseria a autoridade que detém o Papa da Igreja Católica para a produção dedogmas, ou melhor, de normas que prescrevem crenças. Como Deus é perfeito eimutável, e o Papa recebe de Deus inspiração para estabelecer dogmas perfeitose imutáveis, seria inválido qualquer dogma contrário a um já posto. Digamos,por exemplo, que um Papa pronuncie ex-cathedra um dogma segundo o qual não sedeve crer que Maria foi assunta ao céu. Ora, anteriormente foi posto um dogmaem sentido contrário, e a constituição deste ordenamento não conferecompetência para revogar dogmas postos, portanto, o novo dogma não está deacordo com a constituição, por isso é inválido.

            Pode ainda ocorrer que o legislador, a um só tempo, ponhaduas normas em conflito, ou que o conflito se dê no interior de uma e mesmanorma.

            As normas que estão em conflito umas com as outras podem serpostas ser postas ao mesmo tempo, isto é, com um ato do mesmo órgão, por tal formaque o princípio da lex posterior não possa ser aplicado. Assim sucede quando numee mesma lei se encontram duas disposições que contrariem uma à outra (...) Entãohaveria as seguintes possibilidade de resolver o conflito: ou se entendem as duasdisposições no sentido de que é deixada ao órgão competente a aplicação da lei, umtribunal, por exemplo, a escolha entre as duas normas; ou quando – como no segundoexemplo – as duas normas só parcialmente se contradizem, que uma norma limita avalidade da outra (Kelsen, 2000: 230).

            Temos aqui os seguintes casos: em um primeiro, há duasnormas que são postas simultaneamente, havendo conflito entre elas, e em umsegundo há duas normas conflituosas entre si que são postas no mesmo momento,mas uma delas é mais específica do que a outra.

            Tomemos o primeiro caso. Ambas as normas são válidas porhaver sido postas de conformidade com a Constituição válida. Não há, portanto,como o estudioso do Direito afirmar que, segundo este ordenamento, qualquerdelas prevaleça. Ambas são, portanto, válidas. Se ambas são válidas ambasatitudes previstas nas normas são aceitas. Se as normas prescrevem que o

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adultério deve e não deve ser punido, ao aplicar a norma, o órgão aplicador,seguindo qualquer delas estabeleceria uma lei individual válida. Umaproposição jurídica portanto afirmaria que cabe ao órgão aplicador a decisãoacerca de aplicar ou não uma pena a um indivíduo que este mesmo órgão entendaque cometeu adultério.

            No segundo caso, pelas mesmas razões, não é possível aoestudioso afirmar que uma das normas é válida, segundo o ordenamento, emdetrimento da outra. Ambas são válidas. Ocorre, porém, que neste caso épossível entendê-las ambas como válidas sem ter de fazer opção entre elas, oumelhor, ambas podem ser aplicadas simultaneamente e, como têm a mesmavalidade, ambas devem ser aplicadas simultaneamente. O exemplo que nos ofereceKelsen é o de uma norma que prescreva uma pena ao que comete um delitoprevisto e uma que vede a punição de pessoas com menos de catorze anos mesmoque tenham cometido delitos. Neste caso, tomando-se ambas as normas comoválidas, temos que aquele que comete um delito deve ser punido e aquele que ofaça mas não tenha ainda completado catorze anos não o deve. Ou seja, pune-seo que comete o delito, a exceção dos que tenham menos de catorze anos. Em umcaso específico a lei específica prevalece, mas não revoga, a lei mais geral.

            Por fim, é possível que nenhuma das interpretaçõesapresentadas dirima o conflito. Em tal caso, o legislador prescreveu algo semsentido. Uma norma é um conteúdo de sentido subjetivo, entendido comoobjetivo, orientado à conduta de outrem. Não há sentido, logo não há norma.

            Quando nem uma nem outra interpretação sejam possíveis, olegislador prescreve algo sem sentido, temos um ato legislativo sem sentido e,portanto, algo que não é, sequer um ato cujo sentido possa ser interpretado comoseu sentido objetivo. Logo, não existe qualquer norma jurídica objetivamenteválida. Isto, embora o ato tenha sido posto em harmonia com a norma fundamental.Com efeito, a norma fundamental não empresta a todo e qualquer ato o sentidoobjetivo de uma norma válida, mas apenas ao ato que tem um sentido, a saber, osentido subjetivo de que os indivíduos se devem conduzir de determinada maneira. Oato tem de – neste sentido normativo – ser um ato com sentido. Quando ele tem umoutro sentido, por exemplo, o sentido de um enunciado (v.g. de uma teoriaconsagrada na lei) ou não tem qualquer sentido – quando a lei contém palavras semsentido ou disposições inconciliáveis umas com as outras –, não há qualquersentido subjetivo a ter em conta que possa ser pensado como sentido objetivo, nãoexiste qualquer ato cujo sentido seja capaz de uma legitimação pela normafundamental. (Kelsen, 2000: 231)

            Na concepção kelseniana, portanto há situações em que não épossível qualquer interpretação de uma norma. Pode bem ser que o legisladorprescreva algo rigorosamente sem sentido e, neste caso, a ciência jurídica nãoé capaz de descrever de maneira lógico o conteúdo de sentido de suaprescrição. Segundo Kelsen não haveria aí qualquer sentido.

            Autores como Dworkin, quando falam de interpretação da leireferem-se a algo bastante distinto daquilo que Kelsen tratou e que tenteiapresentar acima. Dworkin pensa na interpretação de uma lei geral pelo juizque deve aplicá-la ao caso concreto e Kelsen na interpretação que o cientistafaz do sentido de uma norma, sem pretender aplica-la a qualquer ato. Kelsennão oferece uma hermenêutica jurídica no sentido em que o faz Dworkin. O juiz,

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para Kelsen, com sua decisão a respeito de um caso qualquer, prescreve umanorma nova, uma norma individual e não simplesmente interpreta o direito. Oque ele faz não é uma interpretação cientifica, mas uma ação política.

            Importante salientar que "interpretação", para Kelsen, nãopassa de conseqüências lógicas da definição de lei fundamental e doordenamento normativo. "A norma fundamental torna possível interpretar(pensar) o material que se apresenta ao conhecimento jurídico como um todo comsentido, o que quer dizer, decrevê-lo em proposições que não são logicamentecontraditórias" (Kelsen, 2000: 232). Toda a "interpretação" kelseniana doDireito está assentada na norma fundamental, e no fato de que se consideramostal norma como objetiva, qualquer conteúdo de sentido normativo em conflitonão pode ser senão subjetivo, e, ainda, uma transgressão à norma consideradaobjetiva.

            Desta forma a norma mais específica prevalece sobre a geralporque ambas são válidas e ambas aplicam-se, considerando-se a específica meralimitação à geral. A norma mais recente prevalece sobre a mais antiga quando aconstituição confere competência para a produção de normas revogáveis. E anorma superior prevalece sobre a inferior porque a validade desta é mediadapor aquela e, se aquela fosse inválida, também o seria esta. Enfim, ainterpretação aqui é mera aplicação de princípios lógicos para uma descriçãocoerente. Enquanto que em Dworkin a interpretação é a aplicação de princípiose valores para a obtenção de um Direito justo.

            Este é o primeiro aspecto que considero crucial para acompreensão da teoria da estrutura escalonada das normas: a ordem normativa,graças à norma fundamental e à dinâmica jurídica, é uma unidade lógica e,portanto, pode ser pensada e descrita com a utilização dos princípios lógicos.

            O segundo aspecto, que é bastante irônico se lembrarmos deLyra Filho, é o de que "lei" e "direito" não são sinônimos. Se entendermos por"lei" as leis gerais consuetudinárias ou criadas por via legislativa, oDireito, já o disse, é um ordenamento normativo. Este é um sistema de normas.Normas são conteúdos subjetivos de sentido que são tidos por objetivos. Taisdefinições, aliadas à estrutura escalonada das normas (uma norma é válidaporque conforme a uma norma imediatamente superior), nos permite tomar comodireito todos os conteúdos de sentido orientados à conduta humana de uma sériede imputação, ou seja, desde a norma fundamental, que prescreve sem serprescrita, passando pela constituição (em sentido material), a lei geralfederal, estadual , municipal, o decreto administrativo que regulamenta a lei,a decisão do juiz sobre determinado caso, sua sentença, as determinaçõesadministrativas com vistas a implementar a sentença e, por fim, o ato quecumpre a sentença, ou melhor, que cumpre a prescrição sem nada prescrever.

            O termo "lei" geralmente se refere a um a lei geral, postapor um órgão legislativo. Por isto é mais preciso que se afirme acerca doDireito que é um sistema de normas. As normas podem ser gerais ou individuais,referindo-se à conduta de um ou vários homens. Podem também ser normas de"Direito material" ou de "Direito formal", dependendo se o seu conteúdo

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determina um processo de criação e aplicação de normas ou uma determinadaconduta humana alheia a tais fins.

            A distinção entre Direito material e formal é importanteprecisamente porque durante toda a série imputativa eles se imiscuem.

            Como o Direito formal designam-se as normas gerais através dasquais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais eadministrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo.Por Direito material entendem-se as normas gerais que determinam o conteúdo dosatos judiciais e administrativos e que são em geral designados como Direito Civil,Direito Penal e Direito Administrativo, muito embora as normas que regulam oprocesso dos tribunais e das autoridades administrativas não sejam menos DireitoCivil, Direito Penal e Direito Administrativo.(...) As normas gerais a aplicarpelos órgãos jurisdicionais e administrativos têm, portanto, uma dupla função: 1a –a determinação destes órgãos e do processo a observar por eles; 2o – a determinaçãodo conteúdo das normas individuais a produzir neste processo judicial ouadministrativo. (Kelsen, 2000: 256).

            Quando um determinado órgão aplica ou cria uma lei, geral ouindividual, está a aplicar uma norma de Direito material e uma norma deDireito formal. Assim, quando o juiz determina a execução forçada nos bens deum devedor, está aplicando a um só tempo a norma que estipula determinada penapara aquele ato como a que põe o juiz como autoridade para, segundo oprocedimento dado, criar a norma individual em questão. Assim também quando olegislador põe uma norma geral, aplica a norma formal acerca do processolegislativo e a norma material que impõe sanções à estipulação de determinadoconteúdo na norma geral a ser criada. É possível que não haja, naconstituição, qualquer norma material acerca da produção legislativa. Nestecaso a constituição aceita qualquer conteúdo para as normas gerais e olegislador, ao criar uma norma geral, ainda assim aplica a norma materialconstitucional que lhe permite pôr qualquer conteúdo quando legislar.

            O Direito material e o Direito formal estão inseparavelmenteligados. Somente na sua ligação orgânica é que eles constituem o Direito, o qualregula a sua própria criação e aplicação. Toda proposição jurídica que pretendadescrever perfeitamente este Direito deve contar tanto o elemento formal como oelemento material. (Kelsen, 2000: 257).

            Assim, a proposição jurídica que descreve o direito seriaincompleta se apresentasse apenas o direito material ou o formal.

            Uma disposição de direito penal – por mais simplificada queseja – tem de ser formulada da seguinte maneira: (...) se um órgão, cujaconstituição e função se encontram reguladas por uma norma geral [Direito formal],verificou, por um processo determinado também por uma norma geral [Direitoformal], que existe um fato a que uma outra norma geral liga uma determinadasanção [Direito material], esse órgão deve aplicar, pelo processo prescrito poruma norma geral [Direito formal], a sanção determinada pela norma jurídica geraljá mencionada [Direito material]. (Kelsen, 2000: 257).

            Com a distinção entre as noções de Direito material e formale, a um só tempo, percepção de que só podem ser aplicados simultaneamente,torna-se mais clara a idéia da construção escalonada da Ordem jurídica.

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            Nem todas as normas em um mesmo ordenamento sãofundamentadas diretamente pela constituição, que é fundamentada pela normafundamental. Em um ordenamento jurídico, as normas estão escalonadas, supra einfra ordenadas, de modo a que uma norma fundamente a norma imediatamenteinferior, segundo o princípio estático ou dinâmico e, mediatamente todas elasse fundem na norma fundamental segundo o princípio dinâmico.

            Como já anteriormente verificamos, uma ordem jurídica é umsistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de acriação de toda e qualquer norma que pertença a este sistema ser determinada poruma outra norma do sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental.(Kelsen, 2000: 260).

            Isto posto, é necessário que se destaque que, exceto nosdois extremos de uma série imputativa, a norma fundamental e a execução de umato coercitivos, todos os demais elos aplicam e criam direito simultaneamente.Com efeito, ao criar a norma geral, aplica-se a constituição; ao regulamentara norma geral, especificando-a, também se aplica a constituição e cria-senovas normas; ao aplicar a norma geral "ao caso concreto", o juiz cria umanorma individual; ao aplicar a sanção, extremo da série imputativa, tem-se otermo final da imputação.

            Aplicar uma norma não é, portanto, apenas julgar e afirmarse houve ou não incidência. Aplicar uma norma é realizar um ato de coação oucriar uma norma mais específica. "A aplicação do Direito é, por conseguinte,criação de uma norma inferior com base numa norma superior ou execução do atocoercitivo estatuído por uma norma." (Kelsen, 2000: 261).

            Kelsen demora-se em explicar que a decisão judicial é um atode produção de normas, mas creio poder passar apenas brevemente por talquestão, uma vez que aquela discussão se devia mais à idéia da separação dospoderes do que propriamente à questão do que é a aplicação de uma norma.

            Uma norma geral não é uma norma individual. Dizer que quemcometer um crime deve ser punido não é sinônimo de dizer que João cometeu umcrime e, por isso, deve ser punido. É mesmo possível separar por uma lado aconstatação do fato e por outro a criação da norma individual. Este é o casoquando o Júri decide pela culpa ou inocência do réu, ou seja, sobre se Joãocometeu de fato ou não a ação à qual a lei comina uma sanção, e o juiz aplicaa sentença. A norma individual só passa a existir depois que o juiz ou outroórgão autorizado, a ponha. A norma individual que estatui que deve serdirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinadasó é criada através da decisão judicial. Antes dela, não tinha vigência."(Kelsen, 2000: 265).

            A ordem jurídica confere ao juiz autoridade para criarnormas jurídicas individuais. Geralmente esta autoridade é conferida demaneira limitada, no sentido de que a norma individual a ser criada devecorresponder a uma norma jurídica geral criada por um parlamentar ou um outroórgão legislativo. Ou seja, a norma jurídica individual, enquanto conteúdo dedireito material, deve fundamentar-se segundo o princípio estático em umanorma geral.

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            Por vezes o órgão legislativo estabelecido é o costume, oque pouco altera a situação dada. Pode ser, porém, que nesta ordem jurídicanão haja limitação material ao conteúdo da norma individual a ser formulada.Neste caso o juiz cria uma norma jurídica individual que se fundamentaimediatamente na constituição.

            Resulta, por isso, que no ordenamento jurídico não há"lacunas". As chamadas "lacunas do direito" dizem respeito à ausência de umanorma aplicável ao caso específico. Ora, se o juiz é, segundo o ordenamento emquestão, competente para estabelecer uma norma individual sem que estafundamente-se segundo o princípio estático em uma norma geral superior, entãopode ele estipular ou não uma sanção ao ato sub judice. Se, ao contrário, oordenamento não lhe confere tal competência, não pode o juiz, segundo oordenamento, estipular qualquer sanção.

            Uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal aocaso concreto, mesmo na hipótese de esta ordem jurídica, no entender do tribunal,não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandado ou acusadoseja regulada de modo positivo, isto é, por forma a impor-lhe o dever de umaconduta que ele, segundo a alegação do demandante privado ou do acusador público,não realizou. Com efeito, neste caso, a sua conduta é regulada pela ordem jurídicanegativamente, isto é, regulada pelo fato de tal conduta não lhe ser juridicamenteproibida e, neste sentido, lhe ser permitida. (Kelsen, 2000: 273).

            Kelsen considera a afirmação de que o Direito possui certas‘"lacunas" como uma afirmação "político-jurídica" (idem: 274), uma vez que nãopretende dizer que o Direito não normatizou o fato em questão, mas sim que nãonormatizou como deveria ter normatizado.

            Resta destacar por fim que, tal como o termo constituição,em Kelsen, não se refere ao documento que leva esse nome, mas sim ao conjuntode regras que normatizam a produção normativa, assim também o autor nãopercebe a criação de normas apenas nos "órgãos legislativos, executivos ejudiciários". De fato o próprio conceito de "órgãos" é, como se mostrará naparte em que se tratar da Estática Jurídica", bastante mais amplo.

            A produção de normas jurídicas também se dá pelo que sedenomina "negócio jurídico".

            Num contrato, as partes contratantes acordam em que devemconduzir-se de determinada maneira, uma em face da outra... Este dever-ser é osentido subjetivo do ato jurídico-negocial. Mas também é o seu sentido objetivo.Quer dizer: este é um fato produtor de Direito se e na medida em que a ordemjurídica confere a tal ato esta qualidade; ela confere esta qualidade tornando aprática do fato jurídico-negocial, juntamente com a conduta contrária ao negóciojurídico, pressuposto de uma sanção civil. (Kelsen, 2000: 284).

            Desta forma, o negócio jurídico, cuja forma mais comum é ocontrato, fundamenta sua validade na ordem jurídica estatal. As partescontratantes são, ao realizar tal ato, órgãos da "comunidade jurídica" (ouordem normativa" a que se chama Estado.

            Esta postura de Kelsen acerca do negócio jurídico é coerentecom sua teoria e seria quase sem interesse para o presente trabalho não fossea denúncia que Kelsen faz a partir destas conclusões. Segundo o autor o

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negócio jurídico valida-se pela mesma norma fundamental, sendo mediado pelodireito civil, pelo direito processual civil e pela constituição. As normasindividuais ou coletivas postas por um negócio jurídico são, portanto, partedo ordenamento jurídico estatal, portanto, apenas tem validade enquanto e namedida em que corresponda a este ordenamento. Neste sentido, não há qualquerdistinção entre Direito Público e Privado. Esta distinção, que vincula aqueleao político e este ao "propriamente jurídico", visa tanto fazer crer que osórgãos governamentais estão de alguma forma acima do Direito quanto que oDireito privado é alheio à política.

            Representando-nos, na verdade, a oposição entre Direito Publicoe Direito Privado como a oposição absoluta entre poder do Estado e Direito, cria-se a idéia de que no domínio do Direito constitucional e administrativo – que têmespecial importância política –, o princípio da legalidade não vale com o mesmosentido e com a mesma intensidade que no domínio da Direito Privado, que seconsidera, por assim dizer, o domínio propriamente jurídico (...) cria também aimpressão de que só o domínio do Direito Público, ou seja, sobretudo, o Direitoconstitucional e administrativo, seria o setor da dominação política e que estaestaria excluída no domínio do Direito Privado. (Kelsen, 2000: 313).

            Como o Direito Privado, que se radica em torno doestabelecimento da propriedade privada (característica essencial do sistemaeconômico capitalista) é visto como um domínio alheio à dominação política e,portanto, auto-determinado, pretende-se que aí seja o "reino" da liberdade, emcontraposição a outros sistemas econômicos, onde vige a dominação. Além disso,enquanto alheio à política e campo propriamente jurídico, a criação do Direitonatural independe do Estado e, portanto, não pode ser alterado arbitrariamentepor ele, abolindo, por exemplo, a propriedade privada dos chamados "meios deprodução".

            Segundo Kelsen este pensamento é ideológico, não no sentidode socialmente condicionado, mas no de politicamente orientado, ou melhor,Kelsen não afirma expressamente que as ideologias sejam condicionadas porfatores sociais, mas apenas que sejam volitivamente orientadas, por isto,prefiro não afirmar que o autor, ao qualificar um pensamento de ideológico,esteja pensando em que este seja condicionado por fatores sociais ou materiaisde qualquer tipo.

            Na visão de Kelsen o pensamento segundo o qual o capitalismoé mais propício à democracia e o socialismo ao autoritarismo é uma crençaideológico. Para ele pode o capitalismo ser democrático ou autocrático (32), bemcomo o socialismo.

            Porém, ao nível da produção de Direito geral, este sistemaeconômico [capitalismo] tanto pode ter caráter democrático como autocrático. Osmais importantes Estados capitalistas do nosso tempo têm, na verdade,constituições democráticas, mas o instituto da propriedade privada e uma produçãode normas jurídicas individuais baseada no princípio da autodeterminação tambémsão possíveis nas monarquias absolutas e têm de fato existido nelas. Dentro daordem jurídica de um sistema econômico socialista, na medida em que este sópermite a propriedade coletiva, pode a produção de normas jurídicas individuaister caráter autocrático enquanto, no lugar do contrato de Direito privado, surge oato administrativo de Direito público. Mas também este sistema é compatível, tantocom uma produção democrática, como com uma produção autocrática de normas

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jurídicas gerais, quer dizer, tanto com uma Constituição democrática como com umaConstituição autocrática do Estado. (Kelsen, 2000: 314). (33)

                       Estática Jurídica.

            A Dinâmica Jurídica é o estudo do Direito enquanto umaestrutura escalonada de normas, em seu processo de criação, de transformação,ou melhor, o estudo do modo como o ordenamento jurídico é válido e conferevalidade às normas que o compõe, tornando-as, de sentidos subjetivos de certosatos, em sentidos objetivos. Em contraposição, a Estática Jurídica é o estudodo Direito enquanto um sistema de normas dado, deixando à parte a questão dadinâmica jurídica. Tomaremos aqui apenas alguns temas da Estática Jurídica,suficientes, a meu ver, para uma visão geral do pensamento sistemático dopositivismo jurídico e para buscar um paralelo com a sociedade entendida comoordem normativa. Deste modo, questões como a distinção entre o Direito Civil eo Direito penal, por exemplo, não serão levadas em consideração, porirrelevantes ao problema aqui tratado.

            Nesta parte, serão tratados os conceitos de "norma","direito reflexo (subjetivo)", personalidade jurídica, organicidade e relaçãojurídica.

                       Norma.

            Já aqui se tratou de definir o conceito de "norma", quandoafirmou-se que uma norma é um conteúdo subjetivo de sentido (um comando)dirigido à conduta de outrem e que é entendido como objetivo por ser conformea uma norma, por sua vez também entendida como válida por se fundamentar emoutra norma até que, enfim se chegue a uma norma cujo conteúdo de sentido éentendido como válido por força de uma norma pressuposta, ou normafundamental.

            Há, porém, uma outra característica essencial no conceito de"norma" da qual não nos ocupamos em razão da preocupação em descrever adinâmica jurídica. Tomemos o exemplo fornecido por Kelsen acerca de umacriança que indaga por que deve ir à escola. A esta pergunta, Kelsen fornece aresposta de que deveria fazê-lo porque devia obedecer às ordens de seu pai, eeste o havia ordenado ir à escola. Esta resposta visava legitimar o comando deir à escola. No entanto, há outra resposta possível e, talvez, mais evidente.Deve ir o menino à escola porque se não for receberá um castigo de seu pai. Odever é dado pela sanção.

            Percebe-se assim claramente a distinção entre a estática e adinâmica jurídica, que não se confunde com aquela outra distinção entreprincípio estático e dinâmico, uma vez que estes, ambos, fazem parte dadinâmica jurídica.

            Isto posto, passemos à apresentação da Estática Jurídica.

            Uma ordem normativa cria, segundo o princípio da imputação,ligações entre elementos, de acordo com a fórmula: se A é então B deve ser.Neste sentido, a conseqüência por esta ordem estipulada pode ser entendida

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seja como uma recompensa seja como uma punição. O Direito é uma ordemcoercitiva e prevalece a pena como conseqüência do ato definido por ele(prevalece a pena como sanção). De fato, segundo Kelsen, a maioria das ordensnormativas vale-se mais da pena que da recompensa, por exemplo, a idéia deinferno costuma ser mais presente que a de paraíso.

            Conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ouproibidas, podem distinguir-se diferentes tipos – tipos ideais, não tipos médios.A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar àobservância ou não observância deste imperativo quaisquer conseqüências. Tambémpode, porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar àesta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta opostauma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princípio queconduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípioretributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito desanção. No entanto, usualmente designa-se por sanção somente a pena, isto é, ummal – a privação de certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra,valores econômicos – a aplicar como conseqüência de uma determinada conduta, masnão já o prêmio e a recompensa. (Kelsen, 2000: 26).

            Desta forma, as ordens normativas podem ser classificadas deacordo com a espécie de sanções que põe ou se, simplesmente, não o faz. Apesarde concordar com Kelsen que cognitivamente pode-se falar em uma ordemnormativa sem sanções, penso ser difícil que tal possa, de fato, existir.

            Com relação à ordem jurídica, Kelsen afirma que estaprescreve uma conduta ao estipular, para a conduta oposta, a sanção.

            Finalmente, uma ordem social pode – e é este o caso da ordemjurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar àconduta oposta uma desvantagem (...) Desta forma, uma determinada conduta apenaspode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita –, na medidaem que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção (no sentido estrito). (Kelsen,2000: 26).

            Assim, a norma existe apenas se há sanção. No caso da ordemjurídica, as sanções são atos de coerção. Atos de coerção "são atos a executarmesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência,com o emprego da força física". (Kelsen, 2000: 121).

            Note-se que o conceito de norma se torna bem mais elaboradoe já não se confunde com o conceito de "dever". Se o dever ser pode serdefinido como um "comando" (conteúdo de sentido dirigido à conduta), a normajurídica é entendida em duas partes: um comando e uma sanção, ou seja, oindivíduo A deve-se comportar da forma , esse não o fizer, o indivíduo B deveagir da forma , que é um ato de coerção. A norma jurídica não se dirige àqueleque pode ser atingido pelo ato de coerção, mas àquele que, caso outroindivíduo se comporte de determinada maneira, aplicará a sanção.

            Podemos conceber a norma jurídica em duas partes, que porvezes são expressamente postas em separado. A primeira: A deve fazer . Asegunda: se A não fizer , C fará .

            A norma "A deve fazer " apenas vale em decorrência da outra.

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            Já num outro contexto fizemos notar que, quando uma normaprescreve uma determinada conduta e uma segunda norma estatui uma sanção para ahipótese da não-observância da primeira, estas duas normas estão essencialmenteinterligadas. Isto vale particularmente para a hipótese em que um ordenamentonormativo – como o ordenamento jurídico – prescreve uma determinada conduta pelofato de ligar à conduta oposta um ato coercitivo a título de sanção, de tal formaque a conduta somente se pode considerar como prescrita, nos termos desseordenamento (...); se a conduta é pressuposto de uma sanção. (...) E, quando asegunda norma determina positivamente o pressuposto a que liga a sanção, aprimeira torna-se supérflua do ponto de vista da técnica jurídica legislativa.(Kelsen, 2000: 60).

            A norma não autônoma, ou secundária, é útil para a descriçãodo Direito, mas irrelevante, ou melhor, dispensável. Uma ordem normativa, e oDireito em especial, pode ser descrita apenas por proposições jurídicasprimárias, ou seja, que enunciem que no caso de um determinado comportamentoprevisto na ordem, determinado órgão aplicará determinada sanção. Ou seja, anorma jurídica estabelece como "dever ser", a sanção e, como reflexo disto,dizemos haver o "dever jurídico" de se conduzir de modo a evitar a sanção.(cf. Kelsen, 2000b: 86).

            Assim sendo, o delito não é uma conduta contrária à ordemjurídica, mas uma conduta feita pressuposto de uma sanção.

            E, então, mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja forado Direito e contra o Direito, mas é um fato que está dentro do Direito e é poreste determinado, que o Direito, pela sua própria natureza, se refere precisa eparticularmente a ele. (Kelsen, 2000: 127).

            O indivíduo cuja conduta pode ser o pressuposto da sanção,diz-se que tem o dever jurídico de agir da forma contrária àquela queconstitui pressuposto da sanção. Disto percebemos duas coisas: a primeira éque "dever ser" e "dever jurídico" não são sinônimos. A ordem estabelece odever ser da sanção, e o dever jurídico é mero reflexo disto, ou o sentido deuma norma não autônoma, referente a uma determinada conduta. A segunda é que oindivíduo do qual se diz que tem o dever jurídico não é aquele que pode sofrero ato coercitivo previsto no ordenamento, mas aquele cuja conduta pode"evitar" ou "provocar" a sanção. Isto porque o conceito de "dever jurídico" édistinto, também, do conceito de "responsabilidade".

            Conceito essencialmente ligado com o conceito de deverjurídico, mas que dele deve ser distinguido, é o conceito de responsabilidade. Umindivíduo é juridicamente obrigado a determinada conduta quando uma oposta condutasua é tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sanção). Mas este atocoercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito, não tem de sernecessariamente dirigida – como já se fez notar – contra o indivíduo obrigado,quer dizer, contra o indivíduo cuja conduta é o pressuposto do ato coercitivo.(...) O indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito responde peloilícito, é juridicamente responsável por ele. (Kelsen, 2000: 133).

            Cabe ressaltar que a responsabilidade pode ser individual(por exemplo a pena de prisão) ou coletiva (como a guerra) e, em geral, supõeque o indivíduo cuja conduta pode "evitar" a sanção receba como um mal aimposição da sanção ao responsável.

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            Do que ficou dito acerca da norma, e da norma jurídica emespecial, ressalta a importância dos conceitos de "bem" e "mal". A sanção é"sentida como um mal pelo indivíduo que atinge" (Kelsen, 2000: 123) ou aomenos assim se espera. Kelsen, ao propor uma teoria pura do Direito isenta demoral, não entende que tal teoria seja alheia aos conceitos de bem e mal, massim que esta teoria não prescreverá qualquer norma. Em verdade, o autor define"bem" como conformidade à normas e "mal" como desconformidade às mesmas,entendendo-se a norma como um sentido volitivo. Desta feita, a bondade e amaldade dependem da vontade.

            Para Kelsen um juízo de valor é perfeitamente objetivo namedida em que toma como referência uma ordem normativa, que em caso extremopode ser a vontade de um único indivíduo, e se determine como bem e mal,segundo a ordem normativa, aquilo que é respectivamente conforme e desconformeà mesma ordem. Alertemo-nos para o fato de que uma norma não tem,necessariamente, a conduta humana por objeto. Há, de fato, uma tendência nasordens jurídicas a apenas tomar como objeto de normas a conduta humana, masnão tem de ser assim. A sociedade, como o autor a define, é um conjunto dosmesmos elementos da natureza, porém vinculados por elos normativos, e nãocausais. (cf. Kelsen, 1945).

            Assim, segundo Kelsen, animais e objetos inanimados poderser objeto de imputação. Quando isto ocorre, em geral, os animais têm um papelde órgãos aplicadores de sanções. Ou seja, se um homem faz determinado ato, umanimal ou um objeto lhe deverá impingir determinada pena. Assim, Kelsen afirmaque os esquimós crêem que todos os animais de que se servem têm almasimortais, e que podem, caso não se observem determinados tabus, "vingar-se"dos humanos. Neste caso, os animais estão sujeitos à lei de Talião, oprincípio retributivo. Assim também entre os Hebreus, se um boi reincidisse emmatar um homem, deveria sofrer pena de morte. No primeiro caso os animais têmo direito de que os homens respeitem certos tabus, no segundo, têm o dever denão matar um homem. (34)

            Para Kelsen o conceito de bem é sinônimo de conformidade anormas. Algo é bom, segundo um determinado ordenamento se em conformidade comsuas normas, e mau se em desconformidade com as mesmas. Kelsen não escreve umaTeoria do Direito sem fazer recurso ao bem e ao mal, mas uma que não diga oque o Direito deveria entender ou estabelecer como bem e mal. Assim, aoafirmar que a sanção é "sentida como um mal", ou que em geral o é, ou aindaque o legislador assim supôs, apenas insere o Direito em uma ordem normativamais ampla que coloca a propriedade, a vida, a liberdade, etc, como valores e,na medida em que o legislador e o sujeito do dever jurídico compartilhem taisvalores, é razoável aceitar que o legislador tenha uma noção mais ou menosclara daquilo que será "sentido como um mal", como a pena de prisão, de morteou mesmo de flagelação.

            A norma é definida pela sanção na medida em que a parte danorma que afirma o dever ser é dispensável se se afirma simplesmente que aconduta oposta é objeto de sanção. Assim, sem sanção não há norma.

                       Direito Reflexo ou Direito subjetivo.

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            O conceito de "dever jurídico" tal como apresentado na"Teoria Geral do Direito e do Estado" guarda semelhança com o que se costumadenominar "direito subjetivo". Kelsen demora-se em debates acerca desteconceito, opondo suas formulações às teorias de seu tempo, que aliás,continuam bastante em voga. Entretanto, tal debate será deixado de lado etrataremos apenas da definição que o próprio autor dá de direito subjetivo,ou, em sua terminologia, direito reflexo. Segundo o autor os conceitos deDireito reflexo, bem como o de Dever jurídico, são meros conceitos auxiliaresà ciência jurídica, que bem pode descrever seu objeto sem fazer recurso àeles. Sua utilidade, porém, radica em facilitarem a apreensão do conceito de"pessoa jurídica" e este, por sua vez, o de "relação jurídica" que, em Kelsen,é bastante curioso.

            Vimos que a norma jurídica estabelece um "dever ser", que seconstitui em um ato coercitivo a ser posto como conseqüência de uma condutahumana. Como "uma hipostatização" deste "dever ser" tem-se o "dever jurídico",que pode ou não ser expresso numa norma.

            Um exemplo: não se deve roubar; se alguém roubar será punido.Caso se admita que a primeira norma, que proíbe o roubo, é válida apenas se asegunda norma vincular uma sanção ao roubo, então, numa exposição jurídicarigorosa, a primeira norma é, com certeza, supérflua. A primeira norma, se é queela existe, está contida na segunda, a única norma jurídica genuína. Contudo, arepresentação do Direito é grandemente facilitada se nos permitirmos admitirtambém a existência da primeira norma. (Kelsen, 2000b: 86)

            Fala-se de direito subjetivo, de forma análoga, quando aOrdem jurídica confere a um indivíduo autoridade para determinada ação. Noentanto este conceito é usado de várias formas distintas e, segundo Kelsen, éapresentado como o principal fenômeno jurídico, o que seria um equívoco.

            No cotidiano utiliza-se a expressão "tenho um direito" daforma como os juristas usaria o termo "direito subjetivo". Subjetivo porquepróprio de um sujeito. Este direito subjetivo, na visão kelseniana, noentanto, não é senão reflexo de um dever jurídico. (35)

            Em Kelsen "dever" pode significar permissão, atribuição decompetência ou obrigação, (36) por isso também a situação em que a ordemjurídica confere competência pode ser descrita como dever.

            Quando se fala em um direito subjetivo à propriedade, porexemplo, tem-se em mente um sentido diferente daquele da autorização. Diz-segeralmente que o direito subjetivo é a pretensão ou interesse, de umindivíduo, juridicamente protegido. No entanto o direito subjetivo àpropriedade não é senão um reflexo do dever jurídico de abster-se dedeterminados bens que foram de certa forma definidos no ordenamento. O direitosubjetivo de um é mero reflexo do dever jurídico dos demais. E este deverjurídico não é senão o reflexo de um dever ser, que é a norma, ou melhor, aaplicação de uma sanção sob determinados pressupostos.

            Esta situação designada como "direito" ou "pretensão" de umindivíduo, não é porém, outra coisa senão o dever do outro ou dos outros. Se,neste caso, se fala de um direito subjetivo ou de uma pretensão de um indivíduo,como se este direito ou esta pretensão fosse algo diverso do dever do outro (oudos outros), cria-se a aparência de duas situações juridicamente relevantes onde

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só existe uma. (...) Se se designa a relação do indivíduo , em face do qual umadeterminada conduta é devida, como o indivíduo obrigado a esta conduta como"direito", este direito é apenas o reflexo daquele dever. (Kelsen, 2000: 142 e143).

            Distingue a Teoria do Direito entre direitos subjetivos depersonalidade e direito subjetivos reais (sobre coisas). Segundo Kelsen não hádireitos sobre coisas, vez que o direito subjetivo é reflexo de uma obrigaçãoe não se obrigam coisas, mas apenas pessoas. Segundo ele essa distinção temcomo objetivo legitimar a propriedade privada, apresentando esta instituiçãocomo o domínio de um homem sobre uma coisa e não, como é de fato, a exclusãode todos os demais, o que ainda segundo ele, é particularmente grave comrelação à propriedade dos meios de produção.

            A função ideológica desta conceituação do sujeito jurídico comoportador (suporte) do direito subjetivo, completamente contraditória em si mesma,é fácil de penetrar: serve para manter a idéia de que a existência do sujeitojurídico como portador do direito subjetivo, quer dizer, da propriedade privada, éuma categoria transcendente em confronto do Direito objetivo positivo, de criaçãohumana e mutável, é uma categoria transcendente em confronto do Direito objetivopositivo, de criação humana e mutável, é uma instituição na qual a elaboração deconteúdo da ordem jurídica encontra um limite insuperável. O conceito de umsujeito jurídico independente do Direito objetivo, como portador do Direitosubjetivo, redobra de importância quando a ordem jurídica que garante ainstituição da propriedade privada é reconhecida como uma ordem mutável e sempreem transformação , criada pelo arbítrio humano e não fundada sobre a vontadeeterna de Deus, sobre a razão ou sobre a natureza e, particularmente, quando acriação desta ordem é operada através de um processo democrático. A idéia desujeito jurídico independente, na sua existência, de um direito objetivo, comoportador de um direito subjetivo que não é menos "Direito", mas até mais, do que oDireito objetivo, tem por fim defender a instituição da propriedade privada da suadestruição pela ordem jurídica. Não é difícil compreender por que a ideologia dasubjetividade jurídica se liga com o valor ético da liberdade individual, dapersonalidade autônoma, quando nesta liberdade está também incluída sempre apropriedade. Um ordenamento que não reconheça o homem como personalidade livreneste sentido, ou seja, portanto, um ordenamento que não garanta o direitosubjetivo da propriedade – um tal ordenamento nem tampouco deve ser consideradocomo ordem jurídica. (Kelsen, 2000: 190/191).

            O conceito de direito subjetivo, no entanto não é de todoinútil pois pode servir como um conceito auxiliar, dispensável, mas que podefacilitar a descrição de certas situações juridicamente relevantes.

            Este conceito de direito subjetivo que apenas é o simplesreflexo de um dever jurídico, isto é, o conceito de um direito reflexo, pode, comoconceito auxiliar facilitar a representação da situação jurídica. É, no entanto,supérfluo do ponto de vista de uma descrição cientificamente exata da situaçãojurídica. (Kelsen, 2000: 143).

            Este conceito é especialmente útil na construção de um outroconceito auxiliar da ciência jurídica, o de personalidade.

                       Personalidade Jurídica

            A teoria pura do Direito costuma distinguir os conceitos de"pessoa física" e "pessoa jurídica", conforme o detentor dos direitos e

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deveres seja um indivíduo humano ou uma corporação. O debate travado porKelsen com tal teoria, novamente, não nos interessa aqui, mas sim a definiçãodo próprio autor.

            Ora, a premissa fundamental da teoria Pura do Direito éafastar tudo aquilo que não compõe seu objeto de estudo, e este é uma ordemnormativa, ou melhor, a ordem jurídica. Não pode, portanto, esta teoriadefinir como pessoa física "o homem, enquanto sujeito de direitos e deveres"(cf. Kelsen, 2000: 191), nem mesmo a relação jurídica como uma relação entrehomens juridicamente regulamentada.

            Num conhecimento dirigido às normas jurídicas não são tomadasem consideração – nunca é demais acentuar isso – os indivíduos como tais, masapenas as ações e omissões dos mesmos, pela ordem jurídica determinadas, queformam o conteúdo das normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 189).

            Portanto, coerente com seu pensamento, Kelsen define apessoa em função da Ordem jurídica:

            A pessoa física ou jurídica que "tem" – como sua portadora –deveres e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexode deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressano conceito de pessoa. A pessoa é tão-somente a personificação desta unidade.(Kelsen, 2000: 192).

            Uma pessoa é um conjunto de normas, ou melhor, umsubconjunto de normas. Como a distinção entre pessoa física e jurídica refere-se a ter ou não um homem como o "suporte" de determinados direitos e deveres,a distinção torna-se irrelevante.

            É na definição de pessoa jurídica que, a meu ver, ganha emimportância os conceitos, que Kelsen denomina de "auxiliares", de direitosubjetivo e dever jurídico. De fato, para descrever o ordenamento eles não sãonecessários, mas, como a pessoa jurídica é determinada como um subconjunto denormas que têm em comum o fato de que incidem sobre a conduta de um mesmoindivíduo ou sobre uma mesma corporação, torna-se mais simples determinarquais normas constituem esta pessoa valendo-se de tais conceitos "auxiliares".

            Poderíamos dizer que, se uma ordem normativa é um conjuntode normas vinculadas por um fundamento de validade comum, ou melhor o mesmoponto inicial da série imputativa, uma pessoa jurídica é um conjunto de normasvinculadas por incidirem sobre uma mesma conduta, ou melhor, porcompartilharem o mesmo ponto terminal na série imputativa. (37)

            Não seria possível, entretanto, determinar a pessoa jurídicacomo um conjunto de normas que incidem sobre um mesmo elemento, já quedireitos subjetivos são normas que incidem sobre o comportamento dos outros,constituindo um dever para estes e sendo um reflexo de dever referente àpessoa em questão. O dever jurídico é reflexo de uma norma ou dever ser, e,por sua vez, o direito subjetivo é reflexo de tal reflexo. Não seria possível,sequer, desprezar o direito subjetivo sob o argumento de que faz parecer haverduas normas onde, de fato só há uma porque, no estudo da relação jurídicaimporta conhecer a pessoa jurídica e, se deixar de lado o direito subjetivo naesperança de que se apresentará como dever jurídico de uma outra pessoa,

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corremos o risco de essa outra pessoa não fazer parte da relação, de modo queo referido direito (a norma) seja desprezada.

            Assim como o direito subjetivo não é um interesse – protegidopelo Direito –, mas a proteção jurídica de um interesse, assim também a pessoafísica não é o indivíduo que tem direitos e deveres mas uma unidade de deveres edireitos que tem por conteúdo a conduta de um indivíduo. (...) O que em ambos oscasos – tanto o da pessoa física como o da pessoa jurídica – realmente existe sãodeveres jurídicos e direitos subjetivos tendo por conteúdo a conduta humana e queformam uma unidade. Pessoa jurídica (pessoa em sentido jurídico) é a unidade de umcomplexo de deveres e direitos subjetivos. Como estes deveres jurídicos e direitossubjetivos são estatuídos por normas jurídicas – melhor: são normas jurídicas –, oproblema da pessoa é, em última análise, o problema de um complexo de normas. Aquestão é a de saber qual é, num caso e no outro, o fator que produz essa unidade.(Kelsen, 2000: 193/194).

            Não há, na descrição do Direito realizada pela teoria pura,indivíduos concretos, fatos sociais ou quaisquer outros fatores que não sejaconteúdos de sentido normativos. A pessoa jurídica é um complexo de normas,não um indivíduo ou uma instituição social. As normas que compõe uma pessoajurídica tem por vínculo não um mesmo fundamento de validade, mas a referênciaà conduta de um mesmo indivíduo ou corporação.

            A unidade de deveres e direitos subjetivos, quer dizer, aunidade das normas jurídicas em questão, que forma uma pessoa física resulta dofato de ser a conduta de um e o mesmo indivíduo que constitui o conteúdo dessesdeveres e direitos, do fato de ser a conduta de um e o mesmo indivíduo a que édeterminada através destas normas jurídicas. A chamada pessoa física não é,portanto, um indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas queobrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo, mas a unidade personificada dasnormas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo. Não é umarealidade natural, mas uma construção jurídica criada pela ciência do Direito, umconceito auxiliar na descrição de fatos juridicamente relevantes. Neste sentido, achamada pessoa física é uma pessoa jurídica (juristiche person). (Kelsen, 2000:194).

            Cumpre esclarecer o que seria, portanto, uma corporação.Kelsen afirma que tradicionalmente se entende a corporação como uma comunidadede indivíduos a que a ordem jurídica estabelece direitos e deveres. Apersonificação desta comunidade costuma ser definida como pessoa jurídica, emcontraposição à pessoa física. Este entendimento não é cabível para a teoriaPura do Direito, uma vez que direitos e deveres só o são da conduta humana, enão de entidades personificadas. "Como os deveres e direitos apenas podem terpor conteúdo a conduta humana, a ordem jurídica pode conferir direitos somentea indivíduos". (Kelsen, 2000: 196).

            Quando se diz que determinada corporação tem um "direito" ouum "dever", diz-se de fato que um indivíduo determinado pela mesma corporaçãotem tal dever. Para compreender esta situação convém ter em mente o que,precisamente é esta corporação. Ela não é um conjunto de indivíduos, unidospor um fim em comum, ela é algo criado por alguns indivíduos. Maisprecisamente, uma corporação é um conjunto de regras de conduta postas pordeterminados indivíduos. Estas regras, no caso de esta corporação ser parte deum estado são consideradas válidas por estarem de conformidade (segundo os

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princípios estático e dinâmico) com determinadas normas estatais, em geral, ocódigo civil. A corporação é, portanto, um ordenamento normativo particular,dentro de uma ordem normativa mais ampla.

            Quando dois ou mais indivíduos querem perseguir em comum, porqualquer motivo, certos fins econômicos, políticos, religiosos, humanitários ououtros, dentro do domínio de validade de uma ordem jurídica estadual, formam umacomunidade na medida em que subordinam a sua conduta cooperante endereçada àrealização destes fins, em conformidade com a ordem estadual, a uma ordemnormativa particular que regula esta conduta, e, assim, constitui a comunidade.(Kelsen, 2000: 196).

            A corporação, enquanto ordem normativa, é sujeito dedireitos e deveres, ou seja, é pessoa jurídica. Ora, se definirmos ordemnormativa como conjunto de normas e pessoa jurídica da mesma forma, isto nadamais seria que uma tautologia. Convém, portanto, esclarecer a diferença entreuma corporação (ordem normativa) e uma pessoa jurídica, além de explicitar emque medida aquela pode ser sujeito de direitos e deveres.

            Definiu-se, anteriormente, o que seria uma Constituição emsentido material: o conjunto de normas que regulamenta a produção de normas.Uma corporação é um conjunto de normas, ou ordenamento normativo, dotado deConstituição em sentido material, normas gerais, normas individuais e sanções,tal como o ordenamento jurídico (38). Diferencia-se deste, porém, porque decorredele sua validade. Poderíamos, portanto, fazendo uma analogia com os conceitosde norma superior e inferior, designar a corporação como um ordenamentonormativo inferior. De um modo mais preciso, a corporação é uma ordemnormativa e não uma pessoa jurídica porque o vínculo das normas que a compõeestão no início da série imputativa (se pressupusermos sua constituição),enquanto que a pessoa jurídica é um conjunto de normas vinculadas por um mesmotermo final na série imputativa, ou seja, por incidirem sobre a mesma condutahumana.

            Isto posto, como aceitar que uma ordem normativa sejasujeito de direitos e deveres? Na medida em que a ordem normativa em questãoderiva sua validade de uma ordem normativa superior (a ordem jurídica), podeesta determinar certa forma ou conteúdo para as normas e para a constituiçãoda ordem inferior. Também pode a ordem jurídica determinar sanções para o casode normas postas em desacordo, lembrando que o indivíduo cuja conduta podeevitar a sanção não é necessariamente o mesmo que "responderá" por talconduta. Em geral, a ordem jurídica estabelece sanções à corporação quandoatribui a ela os atos cometidos por determinados indivíduos. Esta atribuição éfeita por considerar-se tal indivíduo como um órgão da corporação, ou melhor,aquela conduta específica como conduta deste órgão, o que ficará melhorexplicitado quando, adiante, tratar-se da teoria da organicidade.

            A pessoa jurídica ficou definida como um conjunto de normasque incidem sobre a conduta de um mesmo indivíduo ou corporação, ou melhor, umconjunto de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Neste sentido não háqualquer diferença essencial entre a pessoa jurídica e a chamada pessoafísica, sendo ambas tratadas aqui como pessoas jurídicas.

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Organicidade

            No linguajar cotidiano, bem como em textos científicos,encontramos com facilidade a atribuição de certas ações a corporações ou, emgeral, "comunidades de indivíduos" (especialmente ao Estado). No entanto, "háaí uma ficção, pois não é a comunidade, mas um indivíduo humano, quem exerce afunção." (Kelsen, 2000: 142). Afirmar que uma certa empresa realizoudeterminada obra, ou cometeu determinado delito é uma figura de linguagem.Determinados indivíduos que trabalhavam em uma dada situação cometeram taisatos.

            Quando deixamos de lado a personificação, por assim dizer,animística da corporação, assumimos uma postura que permite descrever de formamais precisa as situações nas quais uma certa conduta humana é atribuída a umaentidade, ou melhor, a uma ordem social.

            Retomemos, portanto, a definição de comunidade,aqui ,sinônimo de corporação:

            A comunidade consiste na ordem normativa que regula a condutade uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade que a Ordem constitui acomunidade. Mas ordem e comunidade não são dois objetos distintos. Uma comunidadede indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste apenasnesta ordem que regula a sua conduta. (Kelsen, 2000: 168).

            Se atribuímos determinados atos humanos a determinadasordens normativas é, basicamente, porque o tomamos como determinado por estamesma ordem. Se dizemos que a empresa A construiu uma ponte, ou que despediudeterminados funcionários, ou mesmo que superfaturou uma obra e desviourecursos governamentais, afirmamos de fato que certos indivíduos humanos,agindo de conformidade com a ordem em questão, ou agindo como órgãos dessaordem, realizaram tais atos.

            Atribuir à comunidade um ato de conduta humana não significaabsolutamente nada mais que referir esse ato à ordem que constitui a comunidade,concebê-lo como um ato que a ordem normativa autoriza (no sentido mais amplo dapalavra). (Kelsen, 2000: 168).

            Uma ordem normativa (uma comunidade) pode estabelecer quedeterminados atos, inclusive de produção de normas, poderão ser realizados pordeterminados indivíduos de uma forma dada e vedar esses mesmos atos a todos osdemais, ou seja, uma comunidade pode funcionar segundo o princípio da divisãodo trabalho. (39)

            A ação humana, ou função, determinada pela ordem normativapode ser entendida como ação ou função e um órgão da mesma ordem e, portanto,a ação feita em conformidade com ela será atribuível à comunidade. O indivíduopode ser caracterizado como órgão apenas na medida em que sua ação sejadeterminada pela ordem. De qualquer forma, importa distinguir o indivíduo emsi de sus ações realizadas segundo o sentido posto pela ordem normativa, ourealizadas em desconformidade com tal sentido.

            Como já se acentuou acima, estes indivíduos não pertencem comotais, mas apenas com as suas ações e omissões reguladas pelo estatuto, àcomunidade constituída pelo estatuto e designada como corporação. Somente uma ação

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ou omissão regulada no estatuto pode ser atribuída à corporação. Com efeito, naatribuição de um ato de conduta humana à corporação nada mais se exprime senão areferência deste ato à ordem normativa que o determina e constitui a comunidadeque, através desta atribuição, é personificada. (Kelsen, 2000: 197)

            Diz-se de uma comunidade ou corporação que é organizada. "Ascomunidades que têm ‘órgãos’ chamam-se comunidades ‘organizadas’; e porcomunidades organizadas entendem-se aquelas que têm órgãos funcionando segundoo princípio da divisão do trabalho". (Kelsen, 2000: 171).

            O conceito de órgão e o de comunidade organizada servem parafacilitar a descrição do Direito (40). Não são, também, conceitos rigorosamentenecessários, mas úteis para identificar com celeridade quando uma ação éatribuível a uma ordem normativa.

            Os conceitos personalísticos "sujeito jurídico" e "órgãojurídico" não são conceitos necessários para a descrição do Direito. Sãosimplesmente conceitos auxiliares que, como o conceito de direito reflexo,facilitam a exposição. (Kelsen, 2000: 189).

            A utilidade de saber quando é possível tal atribuição residena análise da relação jurídica, à qual agora passamos.

                       Relação Jurídica.

            Também neste ponto Kelsen está preocupado em refutar asconcepções correntes, apresentando-as e contrapondo-as à teoria Pura doDireito. Este debate não é muito útil à problemática aqui tratada, por issonão será aqui tratada.

            A esta altura já é nítida a postura da Teoria Pura doDireito que teima em não definir seus conceitos por referência ao mundoempírico (a não ser que se tomem por empíricas as normas por haverem sidopostas por atos humanos) como o conceito de pessoa, de órgão e de corporaçãoou comunidade. Já não parecerá, por este motivo, tão estranha a definição queKelsen oferece para a relação jurídica.

            Com o intuito de que se perceba a originalidade dopensamento do autor convém que se faça notar que em geral a relação jurídica édefinida como a relação fática ou relação social "juridicizada", ou seja, umarelação empírica entre dois homens ou um homem e uma corporação, ou mesmoentre duas corporações, acerca da qual há normas jurídicas.

            Esta definição não se presta à teoria pura do Direito, umavez que esta exclui de seu objeto as relações fáticas entre indivíduos ougrupos. No dizer do autor:

            Do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito, istoé, dirigido às normas jurídicas, não são tomadas em linha de conta as relaçõesentre indivíduos, mas apenas relações entre normas – pelos indivíduos criadas eaplicadas – ou entre os fatos determinados pelas normas, dos quais a condutahumana apenas representa um caso especial, se bem que particularmentesignificativo. (Kelsen, 2000: 185).

            Para o Direito, isto implica em que se há uma norma queestabeleça a obrigação de João perante Pedro de fazer algo, e dizemos que

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Pedro tem o direito de que João lhe faça aquilo e que João tem o deverjurídico de fazê-lo, não há qualquer relação jurídica, uma vez que há apenasuma norma que, portanto, não se relaciona com qualquer outra. Apenas quandouma outra norma estipule que Pedro, no caso da não efetivação da condutaprescrita a João, é autorizado a tomar uma determinada atitude, como recorrera um tribunal ou, como outrora, infligir determinado dano a João. "Não háqualquer relação entre um dever jurídico e o direito reflexo que lhecorresponde" (Kelsen, 2000: 185). Dever jurídico e Direito reflexo (ousubjetivo) são o constitutivo da pessoa jurídica, ou melhor, o são as normasde que são "reflexos". Neste sentido, os "conceitos auxiliares" podem servirpara identificar, em uma dada situação, se há e qual seriam as normasenvolvidas.

            Assim diz-se que o conjunto de normas que incidem sobre umamesma conduta compõe uma "pessoa jurídica". Uma relação jurídica pode serentendida como uma relação entre pessoas jurídicas, que são, como o disse, umconjunto de normas. A relação jurídica é uma relação entre normas. Um exemplotalvez torne isto mais claro: digamos que João possua um imóvel e que Pedro otenha arrendado. Dizer que João tem um imóvel é dizer que tem um direito. Oconjunto de direitos e deveres que incidem sobre a conduta de João compõe uma"pessoa" (física, que também é, latu sensu, jurídica) assim também acerca daconduta de Pedro. Neste caso, digamos que a pessoa de João seja composta dosdireitos de a) propriedade sobre o imóvel e utilização dele como bem entender;b) receber pelo arrendamento do imóvel uma soma pecuniária pelo seuarrendamento. Ora, o Direito à propriedade e o dever de todos os demais de seabster de impedir o usufruto de um bem pelo seu proprietário sob uma penadeterminada constituem uma só norma, bem como o direito de receber e o deverde pagar o arrendamento. A pessoa de Pedro tem o direito a usufruir do bemarrendado e o dever de pagar o arrendamento. Este dever insere-se na mesmanorma do Direito de João. Há, porém, uma outra norma que confere o direito deusufruto a Pedro, esta norma implica em um dever de João de, apesar de serproprietário do bem, abster-se de usufruir dele enquanto estiver arrendado ePedro pagar uma contraprestação pecuniária. Teríamos assim, uma relaçãojurídica entre a norma que prescreve que apenas o proprietário pode usufruirde um bem e a que prescreve que caso este arrende o bem, o usufruto passa aser permitido apenas ao arrendatário. É uma relação entre normas, ou, se sequiser, entre condutas humanas determinadas por normas. Não é, no entanto, doponto de vista da teoria pura do direito, uma relação entre homens sobre aqual incidem regras, mas uma relação entre regras pelas quais a conduta humanase orienta. A relação empírica entre os homens escapa ao campo de conhecimentoabordado pela teoria kelseniana.

            A relação jurídica é a relação entre normas ou entre açõeshumanas determinadas por tais normas.

            Porém, assim como o direito subjetivo não é o interesseprotegido pelas normas jurídicas mas a proteção que consiste netas mesmas normas,também a relação jurídica não é uma relação de vida que seja extrinsecamenteregulada ou determinada pelas normas jurídicas como se fosse um conteúdo vestidopela forma jurídica, mas esta forma, quer dizer, uma relação que somente éconstituída, instituída ou criada pelas normas jurídicas. A relação jurídicamatrimonial, por exemplo, não é um complexo de relações sexuais e econômicas entredois indivíduos de sexos diferentes que, através do Direito, apenas recebem uma

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forma específica. Sem uma ordem jurídica não existe algo como um casamento. Ocasamento como relação jurídica é um instituto jurídico, o que quer dizer: umcomplexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos no sentido técnico de normasjurídicas. As relações que aqui são tomadas em consideração são relações entrenormas jurídicas ou relações entre fatos determinados pelas normas jurídicas.(Kelsen, 2000: 188).

            Assim, mesmo para a análise da relação jurídica, não carecea Teoria Pura do Direito recorrer aos "fatos", mas às normas, de tal forma quea descrição que um jurista positivista faz de um assassinato não coincidiriacom a descrição de uma testemunha ocular, muito menos com a de um advogado, deum Juiz, de um psicólogo ou de um sociólogo. A atenção do jurista estáfocalizada no Direito, não nos fatos, e o Direito é uma ordem normativa.

            A sociedade, no entanto, também é, na visão de Kelsen, umaordem normativa.

                       A Teoria Pura do Direito e a Sociedade.

            Ser e dever ser são duas ordens radicalmente distintas, detal forma que o pensamento lógico é incapaz de deduzir, a partir de premissasde uma ordem, conclusões de outra. Ora, o Direito é da ordem do dever ser,enquanto a conteúdo de sentido de ações humanas. Estas são da ordem do ser,mas não se confundem com seu conteúdo de sentido. Analisar o Direito,portanto, exige que se tomem em consideração estes fatos na esperança deduzirou explicar normas.

            A ordem normativa a que chamamos direito não se confunde nemcom as ações com sentido que lhe deram origem, nem com as que a transformam e,com mais razão, nem com as que se orientam por seu sentido.

            Kelsen define a Sociedade como uma ordem normativa. Nestesentido cumpriria separar o estudo da Sociedade enquanto conteúdo de sentido,do estudo das ações com sentido que lhe deram origem ou por ela se orientam.Há em Kelsen uma teoria da ordem normativa. Há, em Weber, uma teoria da ação.

                       A Teoria Pura do Direito e a Sociologia            Há uma corrente de pensamento que aqui fiz representar-se

pelo professor Roberto Lyra Filho que sustenta que o "reducionismo"kelseniano, ou melhor, a "pureza" de sua teoria acerca do Direito, enviesa adescrição e explicação do Direito.

            Uma devida compreensão do Direito levaria em conta fatoressociais, ou seja, uma Sociologia do Direito. Esta seria capaz ou de fornecerelementos para a avaliação da justeza do Direito posto (o que ficourepresentado pela definição que Lyra Filho dá do Direito) ou da função eorigem do Direito (como na definição de legislação, do mesmo autor).

            Além disso, a teoria pura do Direito seria, segundo estacorrente, uma ideologia burguesa em dois sentidos: 1) sua gênese pode serexplicada por fatores sócio-econômicos e 2) constitui uma falsa consciênciaque legitima o sistema econômico social vigente.

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            No entanto, na medida em que Kelsen pretende voltar seuestudo para o Direito positivo e não para sua origem, abstêm-se de qualquerexplicação da gênese do Direito, qualquer explicação neste sentido seriacompatível com sua teoria.

            Da mesma forma, se o Direito justo pode ser percebido pelasociologia, o máximo que se poderia afirmar acerca da teoria Kelseniana é queela descreve um Direito injusto. O que, na concepção kelseniana, não seria umacrítica, mas um juízo de valor ancorado em uma ordem normativa diversa daordem jurídica vigente. De qualquer forma, dizer que o Direito que se descreveé injusto não é uma crítica à descrição, mas ao direito, e, em verdade, Kelsennão fez o direito, mas somente a descrição.

            Quanto ao caráter histórico da concepção kelseniana,abstenho-me de tratar da questão de se sua origem deveu-se à uma burguesiavitoriosa ou decadente, uma vez que não tenho dados históricos para tanto. Jáquanto a ser uma ideologia que legitima o status quo, não parece ser uma críticafundada. Kelsen afirma, durante toda a obra, que o ordenamento jurídico éconsiderado válido por uma norma fundamental pressuposta que afirma que osentido de dever ser posto por uma constituinte, ou pelo costume ou mesmo porum imperador absoluto, deve ser tido por seu sentido objetivo. Acerca dissocabem duas ponderações: em primeiro lugar, a norma fundamental não épressuposta necessariamente pelos indivíduos de uma sociedade (não énecessariamente, em Kelsen, uma ideologia ou uma crença grandemente difundidana sociedade), nem pelos legisladores, mas é pressuposta, no sentido depensada, pelo estudioso do Direito que entende só poder fundamentar uma normaem outra norma e, como não há qualquer norma "natural" ou "metafísica" quefundamente o Direito, supõe uma norma para que possa concebê-lo como válido.Em segundo lugar, ainda que se tome a norma fundamental como uma verdadeiranorma, no sentido de que se deve efetivamente obedecê-la, a Teoria Pura doDireito seria antes uma denúncia do que uma legitimação do status quo, na medidaem que afirma que o fundamento do Direito é uma mera suposição.

            Ora, se a única razão pela qual devemos obedecer ao Direito(que Kelsen identifica com o Estado) é por pressupormos, ou pelo fato de olegislador pressupor, uma norma segundo a qual devemos fazê-lo, basta que serejeite esta suposição (mais frágil impossível) e toda a estrutura estatalseria ilegítima. De fato a resposta de Kelsen para a pergunta de por quedevemos obedecer à constituição equivaleria àquela que os pais freqüentementetêm de dar aos filhos quando indagam sobre uma ordem que crêem não seradequada: "porque sim!".

            A "sociologia crítica" de Lyra Filho vê nesse "porque sim" aefetiva base de sustentação do Estado e denuncia a teoria Pura do Direito porescamotear a ilegitimidade do mesmo.

            De fato a teoria Kelseniana do Direito não é, de formaalguma, incompatível com uma abordagem sociológica do Direito, ela apenas nãoé uma abordagem sociológica do Direito.

            No entanto, quando se equipara o Direito a algo "reto ecorreto" ou a um "processo de emancipação" e se concebe a sociologia como uma

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ciência capaz de revelar esse Direito, então a teoria Kelseniana se tornaincompatível com esta sociologia, mas não por ser ela a legitimação de umadeterminada ordem social, mas exatamente por não sê-lo.

            O pressuposto fundamental de toda a Teoria Pura do Direito éo de que do "ser" não se deduz "dever ser" e vice-versa. Tal pressupostoapenas se contradiz com uma afirmação com a qual se expresse que do "ser" é dealguma possível deduzir o "dever ser" e vice versa.

            Se a sociologia estuda o "ser" e revela o "dever ser",Kelsen não é capaz de fornecer uma teoria viável. Que a sociologia possa fazê-lo não é, decerto, ponto pacífico.