UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Programa de Pós-Graduação em Letras If bawdy talk offend you – O discurso do humor sexual nas peças-problema de Shakespeare Leonardo Augusto de Freitas Afonso Rio de Janeiro
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Programa de Pós-Graduação em Letras
If bawdy talk offend you –
O discurso do humor sexual
nas peças-problema deShakespeare
Leonardo Augusto de Freitas Afonso
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
If bawdy talk offend you –
O discurso do humor sexual nas peças-problema de Shakespeare
Leonardo Augusto de Freitas Afonso
Dissertação de Mestrado submetida aoPrograma Interdisciplinar emLinguística Aplicada da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro – UFRJ,como parte dos requisitos necessáriospara a obtenção do título de Mestre emLinguística Aplicada.
Orientadora: Profa. Doutora MarleneSoares dos Santos.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Leonardo Augusto de Freitas Afonso
Orientadora: Marlene Soares dos Santos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar emLinguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, comoparte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre emLinguística Aplicada.
Aprovada por:
_________________________________
Profa. Dra. Marlene Soares dos Santos – PIPGLA
(Presidente)
_________________________________
Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha – PIPGLA
_________________________________
Profa. Dra. Fernanda Teixeira de Medeiros – UERJ
________________________________
Prof. Dr. Henrique Fortuna Cairus – PIPGLA
(Suplente)
________________________________
Prof. Dr. Leonardo Béranger Alves Carneiro – PUC-Rio
(Suplente)
RESUMO
If bawdy talk offend you –
O discurso do humor sexual nas peças-problema de Shakespeare
Leonardo Augusto de Freitas Afonso
Orientadora: Marlene Soares dos Santos
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinarem Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre emLinguística Aplicada.
Esta dissertação se propõe discutir o discurso do humor sexual na obra dopoeta e dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 – 1616), em especial noconjunto de peças conhecido como peças-problema: Troilus e Créssida, Bom éo que acaba bem e Medida por medida. Para analisar as piadas detectadas,será feita uma revisão da teoria do humor disponível. Busca-se ainda delinear ocontexto de produção das peças e apresentar brevemente a fortuna crítica arespeito delas.
Palavras-chave: humor, discurso, humor sexual, peças-problema
ABSTRACT
If bawdy talk offend you –
The discourse of sexual humour in Shakespeare’s problem plays
Leonardo Augusto de Freitas Afonso
Orientadora: Marlene Soares dos Santos
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinarem Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre emLinguística Aplicada.
This dissertation proposes a discussion of the discourse of sexual humour inthe works of English poet and playwright William Shakespeare (1564 – 1616),especially that set of plays known as “problem plays”: Troilus and Cressida, All’sWell That Ends Well and Measure for Measure. In order to analyze the jokesfound, a revision of available theory of humour will be made. It is also attemptedto outline the play’s context of production and to briefly present the criticalscholarship on them
Key-words: humour, discourse, sexual humour, problem plays
Dedico esta dissertação a Alexandre Prudente Piccolo, um grande amigo, um erudito à altura do termo e aquele que meapresentou o glossário de linguagem sexual em Shakespeare pela primeira vez.
Agradecimentos
Agradeço a todos os professores e colegas do PIPGLA. Agradeço à CAPES
pelo financiamento desta pesquisa. Agradeço à minha orientadora, Marlene
Soares dos Santos, pelo trabalho paciente e admirável dedicação. Agradeço
aos demais membros da banca examinadora. Agradeço a meu pai, Francisco
Augusto Afonso, pelo apoio ao longo de tantos anos. Agradeço a minha
namorada, Gabrielle Beatriz Beiró Lourenço, por me encher de forças para lutar
quando é preciso.
Sumário
Introdução..............................................................................................1Capítulo 1: Riso e Comicidade............................................................11Seção 1.1 Riso, Cômico, Comédia e Humor..........................................11
Seção 1.2 O riso segundo Bergson.......................................................19
Seção 1.3 Os chistes segundo Freud....................................................27Seção 1.4 Comicidade e riso segundo Propp........................................39Seção 1.5 Humor Sexual........................................................................47Capítulo 2: Shakespeare e Sexo.........................................................54Seção 2.1 Contexto da modernidade nascente.....................................54Seção 2.2 Sexo na obra de Shakespeare..............................................65Capítulo 3: Troilus e Créssida.............................................................93Seção 3.1 Crítica....................................................................................94Seção 3.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman....100Seção 3.3 O humor sexual de Troilus e Créssida.................................104Capítulo 4: Bom é o que acaba bem..................................................131Seção 4.1 Crítica...................................................................................131Seção 4.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman....139Seção 4.3 O humor sexual de Bom é o que acaba bem......................143Capítulo 5: Medida por medida..........................................................162Seção 5.1 Crítica...................................................................................163Seção 5.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman....168Seção 5.3 O humor sexual de Medida por medida...............................170Conclusão............................................................................................196Bibliografia..........................................................................................201Anexos.................................................................................................205
1
Introdução
“If bawdy talk offend you, we’ll have very little of it.”
(Measure for Measure; 4.3.163-164)
Uma piada explicada é uma piada arruinada. Tendo isso em mente, a
empresa de explorar o discurso do humor sexual nas peças de William
Shakespeare (1564 – 1616) – ou em um subconjunto delas, no caso – só pode
estar fadada ao fracasso, se o objetivo for rirmos das piadas de quatro séculos
atrás. No entanto, se considerarmos que – em meio ao enorme volume de
páginas dedicadas, na academia e no mercado editorial, à obra do poeta
nacional inglês – as tragédias sempre receberam maior atenção do que as
comédias; as peças do grupo conhecido como peças-problema sempre
desafiaram os críticos; e a retórica rebuscada sempre foi mais associada ao
dramaturgo do que a linguagem chula, o esforço se justifica.
Assim, a presente dissertação se propõe a fazer a exposição e a análise
do conteúdo sexual com apelo cômico nas três peças-problema: Troilus and
Cressida (Troilus e Créssida), All’s Well That Ends Well (Bom é o que acaba
bem) e Measure for Measure (Medida por medida). Para isso, primeiramente
será discutido o pensamento sobre teoria do humor mais influente, conforme os
trabalhos de Henri Bergson (1859 – 1941), Sigmund Freud (1856 – 1939) e
Vladímir Propp (1895 – 1970). Em seguida, serão apresentados o contexto em
que as peças foram escritas, no que se refere ao comportamento sexual, e um
breve panorama de como a linguagem sexual figura na obra dramática de
Shakespeare. Cada uma das peças será, então, abordada em um capítulo, que
buscará retomar a teoria do humor para classificar as piadas sexuais, das quais
será feita uma análise numérica, apresentada na forma de tabelas, de modo a
determinar as técnicas e os temas mais empregados.
O humor sexual presente nas peças é tratado como um discurso – termo
que de acordo com Sara Mills em Discourse (1997) tem “talvez o mais amplo
espectro de possíveis significações de quaisquer termos em teoria literária e
2
cultural...”1 (p.1) – no sentido dado ao conceito por Michel Foucault (1926 –
1984), ou mais precisamente dois deles: “um grupo individualizável de
sentenças, e... uma prática regulada que é responsável por um número de
sentenças.” (apud Mills, 1997, p.6). É também pertinente a definição de Roger
Fowler: “fala ou escrita vistas do ponto de vista das crenças, valores e
categorias a que encarnam; [e que] constituem um modo de olhar para o
mundo, uma organização ou representação da experiência – ‘ideologia’ no
sentido neutro e não pejorativo.”2 (apud Mills, 1997, p.5). Assim, interessa-nos
o discurso do humor sexual nos três sentidos: um conjunto de sentenças, ou
seja, as piadas sexuais; a prática social envolvida, o teatro; e, por fim, a visão
de mundo que tanto esse conjunto de sentenças quanto essa prática
evidenciam.
O grupo de peças denominado peças-problema foi delimitado pela crítica
para designar Troilus e Créssida (1601), Bom é o que acaba bem (1603) e
Medida por Medida (1604)3. Entretanto, não há consenso sobre o que as
define, e nem mesmo sobre quais seriam as peças incluídas. Tentemos
esboçar, através do artigo The Problem Plays, 1920-1970: A Retrospect, de
Michael Jamieson, incluído em Aspects of Shakespeare’s ‘Problem Plays’
(Kenneth Muir and Stanley Wells, eds., 1982), como a crítica veio a considerar
as três peças como um grupo distinto sob o nome de peças-problema –
lembrando que comédias sombrias ou comédias-problema são outras
denominações que podem ocorrer, e que alguns autores propõem a inclusão
de outras peças.
Já em 1875, Edward Dowden (1843 – 1913) em Shakespere: his Mind
and Art agrupava as três peças sob a rubrica “terceiro período: Nas
1 “...perhaps the widest range of possible significations of any term in literary and cultural theory...”
2 “...speech or writing seen from the point of view of the beliefs, values and categories which it embodies... constitute a way of looking at the world, an organization or representation of experience – ‘ideology’ in the neutral non-pejorative sense.”
3 Datas de acordo com as edições New Cambridge Shakespeare.
3
Profundezas”4 (p.126); o autor “achava All’s Well ‘séria’, Measure for Measure
‘sombria’, e Troilus ‘amarga’ - e tão intrigante que adiou sua discussão para
edições posteriores”5 (p.126, n.3). F.S. Boas (1862 - 1957), em Shakespeare
and his Predecessors (1896), via elos entre as três peças e Hamlet: “‘nos resta
interpretar seus enigmas o melhor que pudermos’”6 (p.127); e ele tomou do
teatro ibsenista (Henrik Ibsen, 1828-1906) o termo “peça-problema” para
designá-las.
A designação ganhou impulso com o trabalho de W.W. Lawrence,
Shakespeare’s Problem Comedies (1931), “o primeiro estudo de Bom é o que
acaba bem, Medida por medida e Troilus e Créssida como um grupo”7 (idem).
Ele percebia nas peças “‘uma complicação desconcertante e perturbadora na
vida humana... apresentada em um espírito de alta seriedade’”8, e definia o
“problema” como ético, uma vez que “‘complicadas interrelações de
personagem e ação’ são exploradas ‘em uma situação que admite diferentes
interpretações éticas’”9 (idem).
E.M.W. Tillyard (1889 – 1962), em Shakespeare’s Problem Plays (1950,
p.9-10), ressalva que “peça-problema” é “tudo menos um termo satisfatório”,
mas explora sua analogia com dois tipos de “criança-problema”, incluindo,
como Boas, Hamlet no grupo. Ele avalia que há em Bom é o que acaba bem e
4 “’third period: In the Depths’”
5 “found All’s Well ‘serious’, Measure for Measure ‘dark’ and Troilus ‘bitter’ –and so puzzling that he deferred discussing it till later editions.”
6 “’we are left to interpret their enigmas as best we may’”
7 “the first study of All’s Well, Measure for Measure and Troilus and Cressidaas a group”
8 “’a perplexing and distressing complication in human life... presented in a spirit of high seriousness’”
9 “’complicated inter-relations of character and action’ are probed ‘in a situation admitting different ethical interpretations’”.
4
Medida por Medida “algo radicalmente esquizofrênico”10 – a criança-problema
“genuinamente anormal” –, e vê em Troilus e Créssida e Hamlet peças que
“apresentam e lidam com problemas interessantes”11 – o tipo de criança-
problema que é “interessante e complexa em vez de anormal”12.
Voltando ao artigo de Jamieson, lemos que A.P. Rossiter, em palestras
proferidas no início dos anos cinquenta do século passado, publicadas como
Angel with Horns (1961),13 “propôs uma fundamentação para tratar as três
comédias como peças-problema”14 (p.127); infelizmente, o artigo não explicita
qual seria essa fundamentação. Como também não fica clara qual é a
“definição rigorosa” de peça-problema introduzida por Ernest Schanzer, em
The Problem Plays of Shakespeare (1963), que inclui Júlio César, Medida por
Medida e Antônio e Cleópatra. Recorrendo à introdução do livro de Schanzer,
descobrimos que, segundo ele, o que caracteriza uma peça-problema é “uma
preocupação com um problema moral central, que tomará inevitavelmente a
forma de um ato de escolha confrontando o protagonista, e em relação ao qual
ficamos em dúvida quanto ao nosso posicionamento moral”15 (p.127).
O panfleto Shakespeare: the Problem Plays (1961), de Peter Ure,
incluía Timon de Atenas no grupo. William B. Toole (Shakespeare’s Problem
Plays, 1966) foi outro que incluiu Hamlet, enxergando nas peças “o mesmo
padrão teológico que governa a estrutura e o sentido da Divina comédia”16
(idem). Jamieson ressalta que “suposições biográficas de que Shakespeare
10 “something radically schizophrenic”
11 “deal with and display interesting problems.”
12 “interesting and complex rather than abnormal.”
13 Obra póstuma.
14 “put forward a rationale for treating the three comedies as problem plays.”
15 “a concern with a central moral problem, which will inevitably take the form of an act of choice confronting the protagonist, and in relation to whichwe are in doubt of our moral bearings.”
5
passou por uma crise psicológica no ‘terceiro período’ por longo tempo
coloriram a leitura de alguns críticos para as três peças.”17 Seria o caso de E.K.
Chambers (1866 – 1954), que as descrevia, no início do século passado, como
“desagradáveis” e “amarguradas” – “as três pseudo-comédias amargas e
cínicas”18. Nos tempos mais recentes, entretanto, as peças-problema foram
reabilitadas tanto na crítica quanto nos palcos, e têm sido julgadas como peças
interessantes e desafiadoras por shakespearianos como Harold Bloom e A.D.
Nutall.
Vejamos agora brevemente como se lidou ao longo do tempo com o
conteúdo sexual na obra de Shakespeare, e as recentes tentativas de
sistematizar o conhecimento nesse campo. O que primeiro se pode constatar é
que a percepção de linguagem sexual nos textos de Shakespeare é difícil e
controversa, principalmente pela distância temporal – não compartilhamos nem
o mesmo momento cultural nem as mesmas convenções – mas também pelo
caráter geralmente dissimulado da linguagem sexual, que é expressa nas
entrelinhas, como insinuação ou duplo-sentido, especialmente nos usos
cômicos. Sendo assim, diferentes autores divergirão quanto à insinuação
sexual de determinada palavra ou expressão.
Recorrendo ao trabalho de Gordon Williams, Shakespeare’s Sexual
Language – a Glossary (1997), que será a principal ferramenta neste trabalho
para a detecção de linguagem sexual, descobrimos (p.1) que “no século
dezessete, a identidade editorial [de Shakespeare] estava em grande medida
ligada ao uso de linguagem sexual e tratamento de temas eróticos. Foi Vênus
e Adônis (1593) que estabeleceu sua reputação como poeta erótico...”19 Nos
sonetos (pp.2-3), também foram detectadas brincadeiras sexuais, que
causavam desconforto porque “o que podia servir... para a casa de espetáculos
16 “the same theological pattern that governs the structure and meaning of the Divina commedia.”
17 “Biographical assumptions that Shakespeare underwent a psychological crisis in ‘the third period’ for long coloured some critics’ reading of the threeplays.”
18 “’the three bitter and cynical pseudo-comedies’.”
6
evidentemente parecia fora de lugar nessas declarações as mais pessoais.”20 É
o caso dos duplos-sentidos para as palavras prick (soneto 20), rise (151), will
(134-136), ou ride (137).
No caso das peças, Williams inicialmente registra reverberações da
linguagem sexual de Shakespeare no trabalho de outros dramaturgos, como
John Fletcher (1579 – 1625) e Thomas Dekker (c.1572 – 1632), e se lança
então a apresentar as reações ao tema dos acadêmicos shakespearianos. No
século dezoito, “com Shakespeare em um pedestal e o movimento para a
reforma dos costumes ganhando força,”21 observa-se que “passagens sexuais
atraíam muita atenção dos primeiros editores.”22 (p.4) e que os
“comentadores... dificilmente [deixavam] passar uma alusão à sífilis.”23 (p.6).
Havia uma tendência em atribuir a indecência nas peças de Shakespeare à
“contaminação derivando de condições da casa de espetáculo elisabetana”24
(p.5), ao passo que, em 1647, William Cartwright (1611 – 1643), em prefácio à
edição em Folio das peças de Francis Beaumont (1584 – 1616) e Fletcher, “põe
a responsabilidade inteiramente em Shakespeare, Whose wit our times would
obsceannesse call,/ And which made Bawdry passe for Comicall.”25. Williams
19 “...in the seventeenth century, his authorial identity was very much bound up with the use of sexual language and treatment of erotic themes. Itwas Venus and Adonis which established his reputation as erotic poet..”
20 “What might serve for... the playhouse evidently seemed out of place in these most personal of utterances.”
21 “...with Shakespeare empedestalled and movement towards the reformation of manners gathering force...”
22 “…sexual passages attracted close attention from early editors…”
23 “...eighteenth century commentators... seldom miss a pox allusion.”
24 “contamination deriving from Elizabethan playhouse conditions.”
25 “places responsibility squarely on Shakespeare”; “cuja espirituosidade nossos tempos chamariam de imundície/ E que fazia obscenidade se passar por comicidade.”, em tradução livre.
7
cita a omissão, por Alexander Pope (1678-1844) e George Steevens (1736 –
1800), de duas linhas de Romeu e Julieta (cf.pp.74-75) que, segundo o
vitoriano Charles Knight (1791 – 1873) constituíam então “a única passagem
nas edições originais que foram omitidas por editores modernos.”26 (p.4, ênfase
no original). Mesmo Pope, que acreditava geralmente na interpolação posterior,
por outro que não Shakespeare, das passagens obscenas, não consegue
defendê-la quanto à lição de inglês de Catarina em Henrique V. Samuel
Johnson (1709 – 1784), por sua vez, emendou ‘country matters’ para ‘manners’
em Hamlet, evadindo a interpretação sexual, e achava que “o conceito de
French crown em Henrique V é ‘de fato baixo demais para um rei’.”27 (p.6)
O uso de linguagem sexual por Shakespeare é expressivo a ponto de ter
motivado, no início do século XIX, uma versão censurada das peças, no
trabalho de Henrietta Bowdler (1754 – 1830), Family Shakespeare (1807),
assumido pelo irmão Thomas (1754 – 1825) por não condizer a uma dama a
familiaridade com o tema. Outra parceria de irmãos, Tales from Shakespeare,
de Charles (1775 – 1834) e Mary Lamb (1764 – 1847), também de 1807,
esforça-se igualmente em fazer desaparecer as impropriedades. O nome de
Mary só foi incluso na sétima edição, como nos conta Stanley Wells em
Shakespeare: For All Time (p.275). Ambos os livros se destinavam à educação
de crianças e jovens, contemplando a pudicícia de um vitorianismo pré-
vitoriano. Bowdler, em seu prefácio, falando da leitura de Shakespeare em
família – pelo pai – como uma forma de lazer, declara que seu “objetivo é
permitir a ele que faça isso sem incorrer no perigo de cair desavisadamente
entre palavras e expressões que sejam de tal natureza que ergam um rubor
nas faces da modéstia”28 (apud WELLS, p.277). Henrietta e Thomas acabaram
por dar nome, na língua inglesa, ao próprio ato de expurgar obscenidades de
26 “...constitute the only passage in the original editions which has been omitted by modern editors.”
27 “...the French crown conceit in Henry V is ‘rather too low for a king’.”
28 “object is to enable him to do so without incurring the danger of falling unawares among words and expressions which are of such a nature as to raise a blush in the cheek of modesty.”
8
uma obra, no verbo, “já em uso em 1836” (idem), to bowdlerize. Tanto Family
Shakespeare quanto Tales from Shakespeare foram imensamente populares. A
obra dos Bowdler teve trinta e cinco impressões no século XIX (p.277),
enquanto a dos Lamb ganhou impulso com a educação elementar compulsória
(p.277-278).
Retomando o texto de Williams, é ressaltada a importância de Edmond
Malone (1741 – 1812) na detecção de passagens com significado sexual, como
por exemplo o tick-tack que veremos no capítulo sobre Medida por medida e
trocadilho entre reason e raisin que surgirá em Bom é o que acaba bem. Outros
acadêmicos que estabeleceram sentidos sexuais em passagens das peças são
citados, observando a forma evasiva como anunciam seus achados: G.B.
Harrison 1894 – 1991) é “oblíquo [a respeito da brincadeira com cunt em Noite
de Reis]: ‘Um conhecimento da língua vulgar é desejável ao editar
Shakespeare, pois qualquer marinheiro pode explicar a piada – tal como
está.’”29; enquanto Joseph Ritson (1752 -1803) diz de um gracejo com a
palavra emballing em Henrique VIII: “‘[esta] alusão em forma de jogo de
palavras é mais fácil de compreender do que de explicar’”30 (p.6). Essa
tendência refletia não apenas uma reserva de fundo moralista, mas também
um elitismo do meio:
Da ascensão da erudição literária [scholarship] inglesa no século dezoito até [a
Segunda] guerra, seus adeptos pertenciam a um grupo de elite. Eles possuíam
a exclusividade dos latinistas; mas o elitismo não é menos marcado no
comentário sexual, que se dirigia aos pares em linguagem codificada.”31 (p.8);
29 “oblique: ‘A knowledge of the vulgar tongue is desirable in editing Shakespeare, for any sailor could explain the joke – such as it is’.”
30 “‘quibbling allusion is more easily understood than explained’.”
31 “From the rise of English scholarship in the eighteenth century until that war, practitioners belonged to an élite. They possessed a Latinist exclusivity;but the élitism is no less marked in sexual commentary, which addressed peers in coded language.”
9
“... acadêmicos jogavam seus pequenos jogos, bastante inofensivos, mas
demonstrando privilégio a cada passo. O comentário sexual deles se refugiava
em referências a livros raros aos quais apenas uma elite teria acesso.”32 (p.9).
Em 1947, o campo de estudos da linguagem sexual em Shakespeare
iniciava sua sistematização com o trabalho de Eric Partridge (1894 - 1979),
Shakespeare’s Bawdy. Williams observa que “Partridge... foi não tanto um
pioneiro quanto um divisor de águas. Seu feito foi ser o primeiro a fornecer uma
listagem simples de usos obscenos e fazer isso em termos comparativamente
sem rodeios.”33. Williams entende Partridge em seu “esforço em seguir a trilha
de qualquer innuendo possível, uma vez que, em 1947, isso não era de modo
algum um procedimento em voga”34, criticando apenas aqueles que se
amparam acriticamente em seu trabalho, no qual vê “o balanço de volta do
pêndulo após o desconforto experimentado em público por tantos acadêmicos
a respeito dos modos robustos de Shakespeare no emprego de termos
sexuais...”35. De fato, Partridge inicia seu texto observando que
No século XVIII, este livro, ou um como ele, poderia ter sido publicado; no
período vitoriano, não; até (digamos) 1930, ele teria sido atacado; nos dias de
hoje [1947], ele será – como deveria ser – visto basicamente como algo
corriqueiro.36 (p.xi)
A tendência para buscar sentidos sexuais na linguagem shakespeariana a
qualquer custo já havia, de fato, sido apontada no século XVIII por Steevens:
32 “...scholars played their little games, harmless enough yet demonstratingpriviledge at every turn. Their sexual commentary took refuge in references to scarce books to which only an élite would have access.”
33 “Partridge... was not so much a pioneer as a watershed. His achievementwas that he was the first to provide a listing simply of bawdy uses and to do so in comparatively forthright terms.”
34 “...effort to sniff out every possible innuendo, since in 1947 this was by no means a fashionable procedure.”
35 “...return swing of the pendulum after the discomfort experienced in public by so many scholars over Shakespeare’s robust way with sexual usage...”
10
“‘Shakespeare tem que se responsabilizar por tantos jogos de palavra próprios,
que há aqueles que acham difícil que a ele sejam atribuídos outros em que
talvez nunca tenha pensado.’”37. Para Williams, o próprio Steevens é culpado
pela prática, ao ver em “fine forehead” (Troilus e Créssida) uma alusão à sífilis,
assim como também o era Thomas Manmer (1677 – 1746), que viu na
expressão “good years” em Rei Lear, uma alusão velada à palavra goujeres,
que também indicaria os sintomas da mesma doença, associação ainda
defendida em 1989 (Shakespeare Quarterly 40) por Frankie Rubinstein, autora
que em seu trabalho A Dictionary of Shakespeare’s Sexual Puns and Their
Significance (1984) faz os mais impensáveis malabarismos para enxergar jogos
de palavra sexuais.
Outra contribuição para a área veio com E.A.M. Colman, e seu The
dramatic use of Bawdy in Shakespeare (1974). Williams o considera “um
trabalhador mais cauteloso no assunto”38 em comparação a Partridge, mas a
real inovação introduzida pelo autor é a abordagem crítica da obscenidade.
Escreve Colman em seu prefácio, sobre as obras que o precederam: “...é
minha impressão que os esclarecimentos editoriais foram lentos em influenciar
a escrita crítica contemporânea sobre Shakespeare, sobre a qual paira uma
sensação de que qualquer coisa indecente deve ser trivial.”39 (p.ix, ênfase no
original). Além do trabalho de Partridge, Colman se refere àquele de Helge
Kökeritz (1903 – 1964), Shakespeare’s Pronunciation (1953), autor que,
segundo Williams, deu origem a “uma nova raça de caçador de jogos de
36 “In the 18th Century, this book, or one like it, could have been published;in the Victorian period, not; up till (say) 1930, it would have been deprecated; nowadays, it will – as it should – be taken very much as a matter of course.”
37 “‘Shakespeare has so many quibbles of his own to answer for, that there are those who think it hard he should be charged with others which perhaps he never thought of.’”
38 “...a more cautious worker in the field...”
39 “...it is my impression that editorial éclaircissements have been slow to influence contemporary critical writing on Shakespeare, where there lingers a feeling that anything scurrilous must also be trivial.”
11
palavras”40 para a qual “se ficou demonstrado que uma palavra tem significado
sexual em um contexto, então esse significado pode ser atribuído
apropriadamente a qualquer outra instância independentemente de contexto.”41
(p.11). É citada M.M. Mahood a respeito: “‘uma geração que aprecia
Finnegan’s Wake [de James Joyce] corre mais o perigo de ler jogos de palavra
não existentes no trabalho de Shakespeare do que de ignorar o mais sutil jogo
de significados’.”42 (p.12).
Como vemos, é um terreno de poucas certezas e visões discrepantes a
tarefa de precisar a linguagem sexual em Shakespeare, principalmente sob a
ótica da comicidade. Neste trabalho, optou-se por seguir o trabalho de Williams
– palavras em negrito indicam verbetes de seu glossário – na determinação
dos sentidos sexuais, ressalvando uma eventual discordância, e por incluir as
observações críticas de Colman; Partridge tem sua importância reconhecida,
mas tanto seu ensaio quanto seu glossário se mostram hoje um tanto
defasados, e Rubinstein será apenas eventualmente citada, como
complemento. As edições das peças adotadas serão aquelas da série New
Cambridge Shakespeare. As traduções fornecidas, salvo indicado, são de
Bárbara Heliodora. As referências a linhas, que costumavam usar algarismos
romanos para ato e cena, e atualmente são grafadas em arábicos, seguem a
seguinte lógica: apenas as citações retiradas da obra de Colman mantêm as
referências em romanos, todas as demais usam arábicos, e foram modificadas
quando preciso. Foi feito um esforço para tornar as piadas claras para todos os
leitores, mas o conhecimento prévio das peças e da língua inglesa, quando
possível, em seu registro do período, é desejável para a compreensão plena do
trabalho.
40 “...a new breed of quibble hunter...”
41 “...if a word has been shown to have sexual significance in one context, then that significance might be attached properly to any other appearance regardless of context.”
42 “a generation that relishes Finnegan’s Wake is more in danger of readingnon-existent quibbles into Shakespeare’s work than of missing his subtlest paly of meaning’...”
13
Capítulo 1: Riso e Comicidade
No caso de todos os chistes obscenos, estamos sujeitos a sucumbir a erros dejulgamento sobre a ‘excelência’ do chiste... a técnica de tais chistes é muito
frequentemente [pífia], mas tem imenso sucesso em provocar riso.
(Sigmund Freud)
O fenômeno do riso e as formas de provocá-lo têm intrigado a
humanidade há milênios. É bem verdade que a maior parte de nós não se
pergunta por que exatamente ri de uma piada ou gracejo, e a melhor resposta
para a questão “do que rimos?” é provavelmente um tautológico “rimos do que
é engraçado”. No entanto, muito já foi escrito por profissionais das mais
diversas áreas, tais como filósofos, médicos, psicólogos, críticos literários,
antropólogos, sociólogos e historiadores, sem que se chegue a uma explicação
simples e unívoca para a hilaridade, resultando em uma série de teorias
parciais que explicam apenas uma parte ou aspecto do fenômeno – não há um
princípio que explique a “graça” de tudo que é engraçado. George Minois em
História do riso e do escárnio (2004, p.16), observa que “já em 1956, Edmund
Bergler, em Laughter and Sense of Humour, apontava mais de oitenta teorias
sobre a natureza e a origem do riso, e a lista prolongou-se depois”. Algumas
das mais consagradas tentativas serão analisadas neste capítulo.
1.1 Riso, Cômico, Comédia e Humor
O campo de estudo da comicidade e do riso envolve uma série de
conceitos que são vitais; todos estão interligados semanticamente e é difícil por
vezes separá-los, mas é necessário tentar delimitá-los para evitar
inconsistência no uso dos termos – que, aliás, podem ter diferentes usos e
significados para diferentes autores. O tema desta dissertação é o humor, mas
cumpre analisar sua relação com o riso, o cômico e a comédia.
Riso é o nome de um fenômeno corporal típico do ser humano,
caracterizado pelo ato de “contrair, em geral de modo súbito, os músculos
faciais, em consequência de uma impressão alegre ou cômica; achar graça”
14
(Dicionário Houaiss, “rir”). Entretanto, para além do caráter físico, “o riso faz
parte das respostas fundamentais do homem confrontado com sua existência.”
(MINOIS, p.19). Simon Critchley, em sua obra On Humour (2002), ressalta o
caráter corporal do riso43:
O riso é um fenômeno muscular, consistindo em contração e relaxamento
espasmódico dos músculos faciais com movimentos correspondentes no
diafragma. As contrações da laringe da epiglote interrompem o padrão da
respiração e emitem som44 (p.7-8),
René Descartes (1596 – 1650), em As Paixões da Alma (1649) havia
dado ao fenômeno uma descrição bastante interessante, que se articula ainda
com o caráter “sanguíneo” do riso que vinha da medicina galênica (discutida
adiante):
O riso consiste em que o sangue que procede da cavidade direita do coração
pela veia arteriosa, inflando de súbito e repetidas vezes os pulmões, faz com
que o ar neles contido seja obrigado a sair daí com impetuosidade pela
traqueia, onde forma uma voz inarticulada e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao
se inflarem, quanto este ar, ao sair, impelem todos os músculos do diafragma,
do peito ao pescoço, mediante o que movem os do rosto que têm com eles
qualquer conexão; e não é mais que essa ação do rosto, com essa voz
inarticulada e estrepitosa, que chamamos riso.45 (apud CRITCHLEY, p.8).
Critchley salienta que a interrupção da respiração diferencia o riso do
sorriso, e faz um paralelo com outros “fenômenos convulsivos similares como
orgasmo e choro” (idem).
Outra característica do riso é ser uma exclusividade humana, nenhuma
outra espécie o manifesta: Aristóteles (384 – 322 a.C.) celebremente postulou
que “animal algum ri exceto o homem”, embora ele mesmo advertisse quanto
aos “perigos do excesso de riso” e à importância de um “estado médio”, no
43 As traduções de fontes em inglês são de minha responsabilidade, e são acompanhadas de notas trazendo o original.
44 “Laughter is a muscular phenomenon, consisting of spasmodic contraction and relaxation of the facial muscles with corresponding movements in the diaphragm. The associated contractions of the larynx andepiglottis interrupt the pattern of breathing and emit sound.”
15
Livro IV da Ética a Nicômaco. Platão (427 – 347 a.C.) proibiria o riso aos
guardiões de sua República, uma vez que “‘quando alguém se abandona ao
riso violento sua condição provoca uma reação violenta’”46 (apud LEGATT, ed.,
The Cambridge Companion to Shakespearean Comedy, p.6). Essa
desconfiança do riso se reflete em sua condenação pelo cristianismo medieval.
O riso sempre foi visto em sua proximidade com as lágrimas pelos antigos,
aponta David Galbraith (in LEGATT, ed. p.5), tendo ambos explicações
fisiológicas e psicológicas. A tradição médica de Hipócrates (c.450 – c.380 a.C.)
e Galeno (129 – c.200) enfatizava o papel das contrações do diafragma no riso,
cuja origem – assim como toda a fisiologia e psicologia humanas – estava no
equilíbrio ou desequilíbrio entre os humores corporais (sangue, fleuma, bile
amarela e bile negra). Shakespeare faz repetidas menções a essa teoria
médica, ainda vigente em seu tempo – e foi na Inglaterra, no século XVIII, que
a palavra “humor” foi tomada ao vocabulário médico para denotar uma
predisposição jocosa (MINOIS, p.17). É interessante a explicação do riso
atribuída a certo Meletius (LEGATT, ed, p.5)., combinando etimologia e
“psicologia humoral”, para quem a palavra grega para riso, gelos, viria de helos,
calor, e aquela para sangue, haema, viria de aetho, “queimo”, explicando por
que pessoas sanguíneas são mais quentes e assim inclinadas ao riso.
Se o riso é algo eminentemente físico, o conceito de cômico é
inteiramente psicológico. É definido por Patrice Pavis em seu Dicionário de
Teatro como um “fenômeno antropológico [que] responde ao instinto do jogo,
ao gosto do homem pela brincadeira e pelo riso” (p.58). Este último pode ser
45 “Laughter consists in the fact that the blood, which proceeds from the right orifice in the heart by the arterial vein, inflating the lungs suddenly andrepeatedly, causes the air which they contain to be constrained and to pass out from them with an impetus by the windpipe, where it forms an inarticulate and explosive utterance; and the lungs in expanding equally with the air as it rushes out, set in motion all the muscles of the diaphragm from the chest to the neck, by which means they cause motion in the facial muscles, which have a certain connection with them. And it is just this action of the face with this inarticulate and explosive voice that we call laughter.”
46 “when one abandons himself to violent laughter his condition provokes a violent reaction.”
16
suscitado de modo fortuito ou deliberado, estabelecendo a diferença “entre o
cômico na realidade e o cômico na arte”; sendo que o autor privilegia o último,
restringindo o sentido de cômico: “É verdadeiramente cômico somente o que
for reinvestido pela invenção humana e responder a uma intenção estética”
(PAVIS, 59). Ver alguém cujas calças se rasgam pode ser risível, mas apenas
uma piada, uma peça, um filme podem ser cômicos. O risível se articula com o
ridículo e com o riso de superioridade (ver adiante), enquanto o cômico se
relaciona com o que é engraçado, ou plaisant – “dirige-se ao intelecto e ao bom
humor” (p.60), segundo o mesmo autor, que distingue ainda o bufo e o
grotesco, situados abaixo ainda do ridículo, caracterizados por caricatura e
excesso.
Outro conceito central a este trabalho é o de comédia; é um conceito de
natureza estritamente mental, e uma produção histórico-cultural. Relaciona-se
diretamente com o riso e com o cômico, pois emprega recursos cômicos para
produzir o riso (ou o sorriso). Trata-se de um gênero literário dramatúrgico, que
pode ocorrer em diferentes suportes, como teatro, cinema e televisão. É
definida por suas convenções: “define-se a comédia por três critérios que a
opõem à tragédia: suas personagens são de condição modesta, seu desenlace
é feliz e sua finalidade é provocar o riso no espectador” (PAVIS, p.52).
Obviamente, esses critérios se baseiam no teatro da antiguidade, e são
desafiados por obras modernas – All’s Well That Ends Well (Bom é o que
acaba bem), já na virada do século XVII, tem um final ambíguo. A comédia
difere da tragédia pela imprevisibilidade: “vive da ideia repentina, das
mudanças de ritmo, da inventividade dramatúrgica” (p.53)
Galbraith inicia seu artigo Theories of comedy com um alerta: “A
comédia é notoriamente resistente à teorização47” (in LEGATT, ed., The
Cambridge Companion to Shakespearean Comedy, p.3), mas nos apresenta os
esforços de pensadores medievais cujos trabalhos sobre a comédia
prescreviam convenções ainda em vigor no tempo de Shakespeare. Donatus
(séc. IV) escreveu o influente ensaio “Da Comédia”; já outro ensaio, “Do
Drama”, antes atribuído ao mesmo Donatus, hoje se acredita ser de um
47 “Comedy is notoriously resistant to theorization.”
17
gramático contemporâneo, Euanthius; ambos costumavam ser apensados à
obra do poeta cômico latino Terêncio (c.195 – c.159 a.C.). Euanthius aponta as
origens da comédia – cuja etimologia derivaria de komai (vilas) e oide (canção)
– em “’cerimônias religiosas que os antigos realizavam para agradecer por uma
boa colheita’”. Ele também analisa a transição da “Velha Comédia” de
Aristófanes para a “Nova Comédia” de Menandro (c.342 – c.292 a.C.), no teatro
grego. Sobre Terêncio, Galbraith nota que “ambos Euanthius e Donatus
discutem os elementos estruturais da comédia terenciana, usando um conjunto
de termos que passariam desses ensaios para o uso comum na Europa da
Renascença”48 (idem, p.9). Uma regra bem conhecida dos leitores de
Shakespeare e seus contemporâneos havia sido formulada por Horácio (65
a.C. – 27 a.C.), a de que nenhuma peça deveria ter menos ou mais do que
cinco atos; entretanto, Donatus estrutura uma comédia em quatro partes:
prólogo, protase, epistase e catástrofe, que seriam respectivamente: “‘a
primeira fala’”, “‘a primeira ação do drama, em que parte da história é
explicada, parte mantida oculta para atiçar suspense entre a audiência’”, “‘a
complicação da história, por cuja excelência seus elementos são entretecidos’”,
e “‘o desenrolar da história, através do qual o desfecho é demonstrado’”49 (apud
GALBRAITH in LEGATT, ed., p.9). Euanthius provê suas próprias definições, e
especifica o final feliz ocorrendo na “catástrofe”. Essas categorias, juntamente
com a exigência dos cinco atos, forneceram à Europa da Renascença – e a
Shakespeare, por conseguinte – “o vocabulário essencial e o entendimento
estrutural do gênero que informaria a teoria da comédia ao longo da maior
parte do século XVI”50 (p.9).
A mesma desconfiança em relação ao riso registrada desde a
Antiguidade é naturalmente estendida à comédia. Platão, no livro X da
48 “Both Euanthius and Donatus discuss the structural elements of Terentian comedy, using a set of terms which would pass from these essays into common use in Renaissance Europe.”
49 “‘the first speech’; [...] ‘the first action of the drama, where part of the story is explained, part held back to arouse suspense among the audience’; [...] ‘the complication of the story, by excellence of which its elements are intertwined’; [...] ‘the unravelling of the story, through which the outcome is demonstrated’”
18
República, temia que a comédia fizesse aceitar comportamentos reprováveis:
“‘em representações cômicas, ou mesmo em conversas particulares, tem-se
intenso prazer em bufonarias que se enrubesceria em praticar, e não se as
detesta como abjetas’”51 (in LEGATT. ed.; p.6). Galbraith lembra que a “principal
razão para a suspeição contra o riso e o cômico derivava de sua associação
com o vulgar ou o abjeto”52. Aristóteles, cujo suposto tratado sobre a comédia é
o mote da trama de O nome da rosa de Umberto Eco, na verdade esboçou
linhas sobre o tema em sua Poética: ao contrário da tragédia, cujos
protagonistas são homens de estatura social e moral, a comédia é
uma imitação de homens piores que a média; piores, no entanto, não no que se
refere a todo tipo de defeito, mas apenas no que se refere a um tipo em
particular, o ridículo, que é uma espécie de feiura, [e] pode ser definido como
um erro ou deformidade não produtivos de dor ou dano a outrem.53 (apud
GALBRAITH in LEGATT, ed. p.6).
Aristóteles é claro quanto à superioridade da tragédia sobre a comédia:
dos poetas dramáticos, “‘os mais graves entre eles representariam ações
nobres, aquelas de personagens nobres; e a espécie mais baixa as ações dos
ignóbeis’”54. (idem)
50 “essential vocabulary and structural understanding of the genre which would inform the theory of comedy throughout most of the sixteenth century.”
51 “in comic representations, or for that matter in private talk, you take intense pleasure in buffooneries that you would blush to practice yourself and do not detest them as base.”
52 “The principal reason for the suspicion of laughter and of the comic derived from their association with the vulgar or the base.”
53 “an imitation of men worse than the average; worse, however, not as regards every sort of fault, but only as regards one particular kind, the ridiculous, which is a species of the ugly... [The ridiculous] may be defined as a mistake or deformity not productive of pain or harm to others”.
54 “the graver among them would represent noble actions, and those of noble personages; and the meaner sort the actions of the ignoble.”
19
O conceito mais complexo desse campo semântico é certamente o de
humor. Há diferentes definições e diferentes entendimentos entre os teóricos, e
suas discussões confundem-se de certa forma com a do riso e a do cômico,
sob o título de teoria do humor. O humor é um conceito dos domínios
psicológico e mental, e pode ser estudado por mais de um viés, como o da
crítica literária ou o da antropologia. Em Comicidade e riso, de Vladímir Propp,
lemos que “em sentido lato, podemos entender por humor a capacidade de
perceber e criar o cômico”, e que “o humor é aquela disposição de espírito que
em nossas relações com os outros, pela manifestação exterior de pequenos
defeitos, nos deixa entrever uma natureza internamente positiva” (p.152). O
dicionário Houaiss traz as definições “comicidade em geral; graça, jocosidade”
(5) e “faculdade de perceber ou expressar tal comicidade” (7). Já Freud reserva
o termo para a espirituosidade ante o infortúnio, e Minois comenta sobre certos
“debates ubuescos” que pretendem “reservar a palavra e a coisa, como uma
safra controlada, para a Inglaterra depois do século XVIII” (p.17).
Como mencionado, o termo humor tem origem na teoria médica
galênica, segundo a qual a harmonia entre os quatro humores corporais
(sangue, fleuma, bile amarela e bile negra) determinava a psicologia humana,
daí a evolução de sentido para aquele registrado no dicionário Houaiss: “estado
de espírito ou de ânimo; disposição, temperamento” (4), e a subsequente
especificidade do temperamento jocoso, numa Inglaterra tradicionalmente tão
afeita ao espírito (wit).
A teoria do humor é um campo que explora o fenômeno da comicidade e
do riso. Critchley aponta três teorias de humor que, segundo ele mesmo, não
chegam a esgotar o tema: a da superioridade, a do alívio e a da incongruidade.
A primeira, a da superioridade, foi defendida por Aristóteles, Platão, Quintiliano
(35 – c.96) e Hobbes (1588 – 1679); formula o último que rimos
“da súbita Glória advinda de súbita Concepção de certa Eminência em nós
mesmos, em Comparação com as Debilidades dos outros, ou com nosso
próprio passado.’”55 (apud CHRITCHLEY, p.2-3).
55 “feelings of superiority over other people, from ‘siddaine Glory arising from suddaine Conception of some Eminency in our selves, by Comparison with the Infirmities of others, or with our own formerly’.”
20
A teoria do alívio surgiu no século XIX com Herbert Spencer (1820-
1903), mas ficou cristalizada no trabalho de Sigmund Freud (1856-1939) – o
qual analisaremos em maior detalhe adiante – e prevê que o riso é uma
liberação de energia psíquica poupada, ou, na formulação de Critchley, o riso
“economiza energia que seria normalmente usada para conter ou reprimir
atividade psíquica”56 (p.3). Por fim, a teoria da incongruidade surgiria com
Francis Hutcheson (1694-1746), tendo sido de diferentes modos formulada por
Immanuel Kant (1724-1804), Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Soren
Kierkegaard (1813-1855), e prevê que “o humor se produz pela experiência de
uma incongruência sentida entre o que sabemos ou esperamos ser o caso, e o
que de fato ocorre na piada, gag, gracejo ou blague”57 (idem). Henri Bergson
(1859 – 1941), em O riso, que será analisado adiante, atribui a Spencer a teoria
de que “o riso seria um indício de um esforço que depara de súbito com um
vazio” (apud BERGSON, p.49), e a Kant uma definição segundo a qual “o riso
advém de uma espera que dá subitamente em nada”58 (idem). A proposta
central do mencionado trabalho de Bergson, a de que a observação do
mecânico e da rigidez no organismo vivo (ou numa situação) é risível, é um
caso particular de incongruência.
O retórico latino Cícero (106 a.C.- 43 a.C.) se dedicou ao uso de humor
em oratória em seu De oratore. Algumas de suas contribuições são a
percepção de que o riso exclui tanto a “forte repulsa [quanto] a mais profunda
empatia”, observação feita tanto por Freud quanto por Bergson séculos mais
tarde, e a discussão das variedades de espírito (wit), divididos entre os “de
fatos” – sejam “narrativas anedotais” ou “mímica vulgar” – e aqueles “de
palavras”, estudados de forma comparável, segundo Galbraith, à realizada por
Freud em Os chistes e sua relação com o inconsciente (LEGATT, ed. p.7-8).
56 “economizes upon energy that would ordinarily be used to contain or repress psychic activity.”
57 “Humour is produced by the experience of a felt incongruity between what we know and what we expect to be the case, and what actually takes place in the joke, gag, jest or blague.”
58 “Laughter is the result of an expectation, which, all of a sudden, ends in nothing.”
21
Georges Minois, em História do riso e do escárnio (p.106) expõe em maior
detalhe as ideias de Cícero:
No cômico de palavras, Cícero registra o simples trocadilho (ambiguum) ou
palavra de duplo sentido, a palavra inesperada que surpreende o auditor, a
paronomásia, ou aproximação fonética de duas palavras de sentido diferente, o
jogo de palavras com nomes próprios, as citações paródicas, as antífrases,
metáforas, alegorias, antíteses. No cômico de ideias, ele cita pequenas
histórias engraçadas inventadas, as aproximações históricas, hipérboles,
alusões, traços irônicos.
Critchley traz uma interessante discussão segundo a qual “o humor se
enraíza no lapso intransponível entre o físico e o metafísico, entre corpo e
alma, entre ‘ser’ e ‘ter’.”59 Ele observa que “não apenas somos nós nossos
corpos, nós também temos nossos corpos [e podemos] subjetivamente [nos]
distanciar [deles]”60 (ênfase no original, p.42), e segue daí que que “o que nos
faz rir [...] é “o retorno do físico ao metafísico”61 (p.43). Bergson menciona que
sempre que o físico é realçado quando se espera que a atenção recaia sobre o
moral temos fonte de comicidade. O retorno do físico não chega a constituir
uma teoria do humor em si, podendo ser incluída na teoria da incongruência –
entre uma percepção de uma criatura elevada e espiritual e a realidade de um
animal chão e corpóreo – mas é certamente grande fonte de humor, às vezes
considerado de mau gosto, é verdade, como são os casos do humor
escatológico e sexual, este último o principal tema deste trabalho.
1.2 O riso segundo Bergson
Uma perene contribuição aos estudos do riso, da comicidade e da
comédia foi dada por Henri Bergson em 1900 com O riso: ensaio sobre a
59 “humour takes root in the unbridgeable gap between the physical and the metaphysical, between body and soul, between ‘being’ and ‘having’.”
60 “not only are we our bodies, we also have our bodies... [human being] can subjectively distance itself from its body.”
61 “return of the physical into the metaphysical”
22
significação do cômico (Guanabara, 1987). Como observa Critchley (p.55), “ao
lado de Os chistes e sua relação com o inconsciente, de [Freud, publicado em]
1905, Le Rire, de Henri Bergson, datado de 1900, é a teoria do riso que
exerceu maior influência no século XX.”62. Uma diferença deve já ser
explicitada entre as duas obras: enquanto Bergson, ao discutir o riso, debruça-
se principalmente sobre a comédia, recorrendo fartamente a Molière (1622-
1673), Freud centra sua atenção sobre os chistes, compreendendo tanto os
chamados witticisms (ditos espirituosos), quanto as piadas (narrativas curtas
jocosas) – especialmente aquelas da tradição judaica. Isso os torna, de certa
forma, complementares.
Bergson se propõe achar o elemento basal ou essência do riso,
reconhecendo que ele tem sua própria lógica, um “método na loucura” (a
alusão – a Hamlet – já é uma forma de humor). Ele passa a observar que o riso
é um fenômeno estritamente humano: não só apenas o humano ri, mas só se ri
do que é humano. O próximo ponto debatido é a necessidade de ausência de
sentimento, ecoando Cícero e antecipando Freud. Discute ainda o autor a
necessidade da relação com outras inteligências para a apreciação do cômico.
Ele propõe que o riso de alguém que tropeça e cai se deve à percepção de
falta de elasticidade, indício de rigidez e inércia: características semelhantes a
uma máquina; rimos de sua distração. Ele vê nos vícios exemplos de rigidez no
intelecto, ou “curvatura da alma”, e aponta o vício cômico como vindo de fora –
é como se o personagem cômico fosse inconsciente – observando a tendência
de comédias serem nomeadas a partir de um vício (O avarento) enquanto
Otelo nunca poderia ser “O ciumento”. A sociedade então suspeitaria da falta
de elasticidade, daí o caráter de “gesto social” do riso, ao restringir a
excentricidade, sendo a um tempo estético e utilitário – ficando entre a arte e a
vida. Ele tem essa questão do riso como corretivo da rigidez não como
definição do cômico, mas um leitmotiv (motivo recorrente) em suas
explicações.
62 “Alongside Freud’s 1905 Jokes and Their Relation to the Unconscious, Henri Bergson’s Le Rire from 1900 is the theory of laughter that exerted the greatest influence in the twentieth century.”
23
Bergson passa a abordar o cômico na fisionomia, e postula que não é do
feio – oposto de belo – que rimos, mas do oposto de gracioso, que é rígido; cita
a arte da caricatura, baseada no exagero e aponta que rimos de uma
“deformidade que podemos imitar”. O próximo passo é ver o elemento cômico
em gestos e movimentos, e ele formula: “Atitudes, gestos e movimentos do
corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos leva a
pensar num simples mecanismo” (p.23). Bergson lembra o problema proposto
por Blaise Pascal (1623 – 1662) – por que duas faces similares causariam
comicidade: se no mundo natural a variedade é a norma, a semelhança parece
mecânica, o que também vale para vários atores repetindo o mesmo
movimento, ou para a repetição em geral – de gestos em um orador, por
exemplo. Daí a fórmula básica para o cômico: “O mecânico calcado no vivo”
(p.27, ênfase no original).
Outra discussão é a do cômico por relação a essa fórmula, como
observado em roupas incongruentes, o que nos leva ao cômico do disfarce.
Uma mecanização da natureza – substituição do natural pelo artificial – sempre
é cômica. Surge a questão da volta ao físico, aludida acima, e que explica – ao
menos em parte – o humor sexual:
Suponhamos que, em vez de participar da leveza do princípio que o anima, o
corpo não passe a nosso ver de um envoltório pesado e embaraçante, lastro
incômodo que retém na terra uma alma ansiosa de elevar-se do chão. Nesse
caso, o corpo se converterá para a alma no que a roupa era há pouco para o
próprio corpo, isto é, certa matéria inerte imposta a uma energia viva. E a
impressão de comicidade se produzirá desde que tenhamos o sentimento
nítido dessa superposição. (p.32)
Concluindo, como lei geral: “É cômico todo incidente que chame nossa
atenção para o físico de uma pessoa estando em causa o moral.” (p.33)
Relacionada a essa vem a discussão do automatismo profissional,
acompanhado “como um harmônico de uma nota musical” por algo fisicamente
ridículo. Chega-se então a uma formulação importante, que amplia a ideia de
humano como mecanismo:
“Rimo-nos sempre que uma pessoa nos dê a impressão de ser uma coisa.
Rimo-nos do gordo Sancho Pança derrubado numa cobertura e jogado no ar
24
como simples balão. Rimo-nos do Barão de Münchhausen transformado em
bala de canhão e voando pelo espaço. (p.36, ênfase no original)
Chegamos então ao cômico em situações e em palavras. Bergson
observa que “quase sempre ignoramos o que há de infantil ainda, por assim
dizer, na maioria dos nossos sentimentos alegres” (p.41), e define a comédia
como um “brinquedo que imita a vida” (p.42), e um tipo cômico como um
marionete que, sem deixar de sê-lo, se torna humano. Bergson então estende
para situações a mesma regra que vale para um ser humano: “É cômico todo
arranjo de atos e acontecimentos que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão
da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica.” (idem, ênfase no
original) Ele lista três “brinquedos” dos quais a comédia pode se valer: 1) o
boneco de mola: “é o conflito de duas obstinações, uma das quais, puramente
mecânica, no entanto acaba sempre por ceder à outra, que se diverte com ela”
(p.46); é o mecanismo que explica a comicidade da repetição; 2) o fantoche a
cordões: dá-se quando um personagem crê agir livremente mas é manipulado,
e “é do lado dos trapaceiros que se põe o espectador” (p.46); 3) a bola de
neve: explora a desproporção entre causa e efeito: “um efeito que se propaga
acrescentando-se a si mesmo, de modo que a causa, insignificante na origem,
chega por um progresso inevitável a certo resultado tão importante quanto
inesperado” (p.47). Bergson ressalta que a desproporção entre causa e efeito
não é a causa direta do riso, mas o arranjo mecânico. O cômico nas situações
seria advindo de uma impressão de algo fora do natural, ou de “distração por
parte da vida”, seguindo a ideia de ampliar o domínio humano para os
acontecimentos: “O mecanismo rígido que deparamos vez por outra, como um
intruso, na continuidade viva das coisas humanas tem para nós um interesse
particularíssimo, porque é como um desvio [sic] da vida.” (p.50 ênfase no
original: distraction) e expressa “uma imperfeição individual ou coletiva que
exige imediata correção” (idem) pelo riso.
Bergson passa então a esmiuçar outros três mecanismos do cômico
advindos do rompimento com a naturalidade da vida: repetição, inversão e
interferência de séries, todos associados ao vaudeville (teatro bufo, na
tradução adotada).
25
a) Repetição: “já não se trata, como antes vimos, de uma palavra ou
expressão repetidas por certo personagem, mas de uma situação, isto é, uma
combinação de circunstâncias, que se repete exatamente em várias ocasiões,
contrastando vivamente com o curso cambiante da vida.” (p.51). É muito usada
a repetição de uma situação entre dois grupos de personagens, de classes
sociais diferentes.
b) Inversão: espécie de repetição da situação com papéis invertidos.
c) Interferência de séries: “Uma situação será sempre cômica quando
pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos absolutamente
independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois
sentidos inteiramente diversos.” (p.54); Bergson aponta que há uma enorme
variedade de apresentações do mecanismo, ressaltando o quiproquó, que
“apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um simplesmente
possível: o que os atores lhe atribuem, e o outro real: o que o público lhe dá”
(idem).
Bergson se dispõe então a debater algo de particular importância para
este trabalho: o cômico criado através das palavras, distinto do apenas
expresso por elas; ele primeiro diferencia o cômico e o espirituoso: “Será
cômica talvez a palavra que nos faça rir de quem a pronuncie, e espirituosa
quando nos faça rir de um terceiro ou de nós.” (p.58), e também estabelece
dois sentidos para espírito (wit): amplo e restrito.
“No sentido mais amplo da palavra, parece que se chama espírito a certa
maneira dramática de pensar. Em vez de manejar suas ideias como símbolos
neutros, o homem de espírito as vê, as ouve, e sobretudo as faz dialogar entre
si como pessoas.” (idem)
Quanto ao sentido estrito, diz ele:
Mas se o espírito consiste em geral em ver as coisas sub specie theatri,
concebe-se que ele possa estar mais particularmente voltado a certa variedade
da arte dramática: a comédia. Daí um sentido mais estrito da palavra, único,
aliás, que nos interessa do ponto de vista da teoria do riso. Chamaremos então
de espírito certa disposição a esboçar de passagem cenas de comédia, mas
esboçá-las tão discretamente, tão leve e rapidamente, que tudo já esteja
acabado quando começarmos a nos aperceber dela. (p.59)
26
Ele singulariza um dos recursos do espírito, o “ladrão roubado”:
“Captamos uma metáfora, uma frase, um raciocínio, e os voltamos contra quem
os faz ou poderia fazê-los, de maneira que tenha dito o que não queria dizer e
que venha a cair na própria armadilha da linguagem.” (idem). Bergson observa
que o espírito nunca foi definido, que atribuir-lhe uma fórmula é fracasso certo,
mas propõe uma relação entre espírito e cômico, na forma de um simile: “a
mesma relação que entre uma cena feita e a fugidia insinuação de uma cena a
ser feita” (p.60).
Bergson empreende, então, a tarefa de retomar as categorias do cômico
em situações e aplicá-las ao cômico de palavras. 1) Uma fala que exiba
inelasticidade ou momento, que traia distração, é cômica; para sê-lo
independentemente do falante, deve parecer sem sombra de dúvida ter sido
emitida automaticamente. “E isso só pode acontecer quando a frase encerrar
um absurdo manifesto, um erro grosseiro ou sobretudo uma contradição em
termos. Daí podermos inferir esta regra geral: obteremos uma expressão
cômica ao inserir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase.” (p.61,
ênfase no original). 2) A atenção desviada ao aspecto físico: refere-se aos
sentidos físico e moral da mesma palavra: “Obtém-se um efeito cômico quando
se toma uma expressão no sentido próprio, enquanto era empregada no
sentido figurado.” (p.62, ênfase no original). “Desde que nossa atenção se
concentre na materialização de uma metáfora, a ideia expressa torna-se
cômica.” (idem).
Em seguida, os procedimentos aplicados a séries de eventos, repetição,
inversão e interferência de séries, são replicados no âmbito das palavras,
levando a “três leis fundamentais do que poderíamos chamar de a
transformação cômica das proposições [sentenças].” (p.64) A menos
interessante seria a inversão, mero truque sintático. A interferência de séries se
observa quando dois significados coexistem, sendo a forma “menos reputada”
o trocadilho, em que
“é de fato a mesma frase que parece apresentar dois sentidos independentes,
mas apenas aparentemente. Há, em realidade, duas frases diferentes,
compostas de palavras diferentes, que se pretende confundir entre si, obtendo
vantagem de produzirem o mesmo som ao ouvido.” (p.65)
27
diferindo, por “gradações imperceptíveis”, do verdadeiro jogo de palavras, no
qual
“os dois sistemas de ideias se superpõem realmente numa única e mesma
frase, e se lida com as mesmas palavras; tira-se proveito apenas da
diversidade de sentidos que uma palavra pode assumir, em sua passagem do
sentido próprio ao figurado.” (idem)
Em Shakespeare, a atenção ao “aspecto físico” da palavra, o jogo de
palavras, ocorre em abundância, seja com ou sem intenção cômica, até em
demasia na opinião de Samuel Johnson, que lamenta que “um jogo de
palavras, pobre e estéril como é, dava-lhe tal deleite que ele se contentava em
adquiri-lo pelo sacrifício da razão, propriedade e verdade”63 (apud MCDONALD,
2001, p.141). Alguns exemplos poderão ser observados na análise das peças-
problema adiante.
A “repetição” vista na seção sobre eventos corresponde à “transposição”
no cômico de palavras, que pode ser de magnitude ou valor; Bergson formula
mais uma regra: “Obteremos um efeito cômico ao transpor a expressão natural
de uma ideia para outra tonalidade.” (p.66, ênfase no original). Um exemplo é a
paródia, transposição do solene para o familiar, que teria influenciado uma
visão do cômico como degradação – mais uma proposição restritiva e
incompleta:
Foi, sem dúvida alguma, a comicidade da paródia que sugeriu a certos
filósofos, em particular a Alexandre Bain, a idéia de definir o cômico em geral
pela degradação. O risível surgiria "quando nos apresentam uma coisa, antes
respeitada, como medíocre e vil. (p.66-7)
Outra forma de transposição seria o exagero, do qual os poemas
heroico-cômicos e a gabolice são exemplos. Também é uma instância a
transposição de valor moral: “Exprimir decorosamente uma ideia velhaca,
referir-se a certa situação escabrosa, a certa profissão inferior ou a certa
conduta vil e descrevê-las em termos de estrita respectability, é em geral
cômico” (p.67). O autor prossegue com o contraste entre real e ideal, que pode
ser explorado em ambos os sentidos; em duas definições um tanto restritivas
63 “A quibble, poor and barren as it is, gave him such delight that he was content to purchase it by the sacrifice of reason, propriety and truth.”
28
para humor e ironia – ambas situações podem ser descritas como instâncias de
ironia, aliás – ele afirma que
“Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o
que é. Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada vez mais
meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam
ser. É o caso do humor. O humor, assim definido, é o inverso da ironia.”(p.68)
Uma formulação importante amarra todo o trabalho e anuncia o próximo
tema – central à proposta desta dissertação, como se observará em
personagens cômicos como Parolles e Pandarus: “a comicidade de palavras
segue de perto a comicidade de situação e vem se perder, como por sua vez
este último gênero de comicidade, na comicidade de caráter.” (p.69), que
Bergson considera a “parte mais importante da nossa tarefa” (p.71). Como o
“cômico exprime antes de tudo certa inadaptação particular da pessoa à
sociedade”, “é o caráter que primeiramente tivemos por alvo”, sendo difícil ver
“como nos acontece rir de alguma coisa que não seja um caráter” (idem). Dada
a condição de ausência de sentimento, “só quando outra pessoa deixa de nos
comover, só nesse caso pode começar a comédia. E ela começa com o que
poderíamos chamar de enrijecimento contra a vida social.” (p.72) É a função
social da comédia (não o gênero dramático necessariamente, mas um
determinado modo de pensamento cômico) que a põe entre a arte e a vida.
Bergson postula que “os elementos do caráter cômico serão os mesmos no
teatro e na vida” (p.73), que um defeito “nos faz rir quando o achamos leve”
(idem), mas que “não rimos apenas dos defeitos de nossos semelhantes, mas
também, algumas vezes, de suas qualidades” (idem), uma vez que o que
causa “suspeita à sociedade é a rigidez” (p.74, ênfase no original): “Um vício
maleável seria menos fácil de ridicularizar do que uma virtude inflexível.”
(idem). Observa-se ainda que “os defeitos nos fazem rir em razão de sua
insociabilidade mais do que por sua imoralidade.” (idem, ênfase no original). O
autor relembra que os defeitos não nos podem comover, e aponta os dois
métodos que o teatro utiliza para evitar isso, distinguindo-se do “drama” : “O
primeiro consiste em isolar, em meio à alma do personagem, o sentimento que
se lhe atribui, e fazer dele por assim dizer um estado parasita dotado de
existência independente” (p.75); e o segundo seria o procedimento da comédia,
que “em vez de concentrar nossa atenção sobre os atos, a dirige sobretudo
29
para os gestos.” (p.76). Conclui-se que as condições essenciais para a
comédia são “insociabilidade do personagem, insensibilidade do espectador”
(p.77), além do automatismo, tendo em mente que “rigidez, automatismo,
distração, insociabilidade, tudo isso se interpenetra, e em tudo isso consiste a
comicidade de caráter” (p.78). O automatismo é o que permite a imitação, daí a
comicidade do tipo – que veremos em personagens como Parolles ou Lucio.
Bergson observa que a comédia é “a única de todas as artes que tem por alvo
o geral” (p.79, ênfase no original), estabelecendo que a “diferença essencial
entre a tragédia e a comédia [é que uma se aplica] a indivíduos e a outra a
gêneros [ou classes]” (p.86). Entrando em questões mais específicas, observa
como um ramo profissional pode ser fonte de ridículo pela vaidade, pelo
endurecimento, pelo jargão e pela lógica peculiar (p.89-93).
Bergson se lança a uma discussão do papel do absurdo no cômico. Ele
menciona Théophile Gautier (1811-1872), que teria dito que “o cômico
extravagante é a lógica do absurdo.” E que “vários filósofos do riso gravitam em
torno de noção análoga” (p.93). O autor discorda dos que veem no absurdo em
si fonte de comicidade, pois seria apenas um tipo específico dele que
determinaria o cômico: “trata-se de uma inversão especialíssima do senso
comum. Consiste em pretender modelar as coisas por uma ideia que se tem, e
não as suas ideias pelas coisas.” (p.94), como fazia Dom Quixote. Observa
então, prenunciando Freud, que “o absurdo cômico é da mesma natureza que
o dos sonhos.” (p.95), ressaltando como semelhanças entre os domínios do
sonho e do absurdo cômico o “relaxamento geral das regras do raciocínio”
(p.96), o paralelo entre obsessões oníricas e cômicas e um efeito de crescendo
do absurdo (p.97).
Elaboramos, a partir das discussões de O riso, a seguinte tabela para
auxiliar referências posteriores:
Cômico de formas
e gestos
Cômico de
situação
Cômico de
palavras
Cômico de
caráterrigidez, inelasticidade físico vs. moral cômico vs. espírito inadaptação/
ausência de
sentimento
humano como máquina ilusão de vida vs.
montagem mecânica:
ladrão roubado
humano como coisa boneco de mola automatismo qualidade rígida
30
fantoche a cordões
bola de neve
(absurdo + frase
feita)caricatura (exagero) literal vs. metafóricodeformação imitável inversão Cômico do
absurdorepetição
inversão
interferência de séries
interferência de
séries:
trocadilho
jogo de palavras
moldar o
mundo às ideias
transposição:
magnitude
valor
1.3 Os chistes segundo Freud
Já Freud, em seu trabalho de 1905, Os chistes e sua relação com o
inconsciente (Imago, 1969), discute três categorias: a piada, o cômico e o
humor, para concluir que em todos eles o riso advém da economia de energia
psíquica: “O prazer nos chistes pareceu-nos proceder de uma economia na
despesa com a inibição, o prazer no cômico de uma economia na despesa com
a ideação (catexia) e o prazer no humor de uma economia na despesa com o
sentimento” (p.228). O que nos interessará principalmente em sua teoria serão
as piadas ou chistes, então passemos a explicar brevemente sua posição
sobre o cômico e o humor.
O cômico seria uma categoria mais ampla da qual os chistes fariam
parte. Naquele, bastam duas pessoas, o espectador e a pessoa que parece
cômica (primeira e segunda), enquanto nestes a segunda pode ou não estar
presente, mas é necessária a terceira, o ouvinte (p.179). Freud humildemente
se exime de fornecer uma contribuição definitiva a tema tão amplo. Ele aborda
a questão do ingênuo, modalidade de cômico que se aproxima das piadas, mas
que é produzido de modo involuntário. “O ingênuo ocorre quando alguém
desrespeita completamente uma inibição, inexistente em si mesmo – portanto,
quando parece vencê-la sem nenhum esforço” (p.180). A fonte do prazer
estaria tanto na ausência de inibição da segunda pessoa (no lugar da qual a
primeira se coloca) quanto na indignação poupada ao saber justamente dessa
ausência. É o mecanismo por trás da obscenidade incorrida por uma criança,
ou mesmo de qualquer obscenidade não-intencional – fonte de boa parte do
31
humor das peças analisadas adiante. Freud postula que o “cômico aparece, em
primeira instância, como involuntária descoberta, derivada das relações sociais
humanas” (p.186), observada em características primeiramente físicas, depois
mentais; e, finalmente, animais e objetos, quando humanizados, podem ser
cômicos. Ele acrescenta que se pode tornar a si mesmo cômico tanto quanto a
outra pessoa (servindo às vezes a tendências – ver abaixo – hostis), e os
mecanismos para fazer isso seriam “colocá-las em uma situação cômica, o
disfarce, o desmascaramento, a caricatura, a paródia, o travestismo etc.”
(p.186). Ele aborda o cômico de movimento, a pantomima, fornecendo uma
teorização central (ainda que um tanto frágil): ri-se dos movimentos exagerados
do palhaço porque há uma diferença de energia entre o que vemos e
imaginamos e aquilo que nós mesmos faríamos, mesmo caso da criança que
põe a língua para fora da boca ao escrever. Essa economia também explicaria
a hilaridade de olhos esbugalhados e orelhas que se movem. Segundo Freud,
essa imitação mental dos movimentos, chamada mímica da imaginação, se
refletiria fisicamente em uma “enervação” que poderia ser medida por
equipamentos médicos.
Sua próxima discussão se centra nas “funções intelectuais e nos traços
de caráter de outras pessoas” (p.191), ecoando Bergson ao observar que “os
mesmo caracteres, que em certa ocasião, podem ser risíveis, como cômicos,
em outra ocasião podem nos parecer desprezíveis e odiosos.” Ele se refere ao
nonsense, no sentido aqui das cômicas “asneiras” ditas por candidatos em
entrevistas; no caso, a economia de esforço psíquico seria da segunda pessoa,
não da primeira, daí que64
o efeito cômico, então, depende aparentemente apenas da diferença entre os
dois gastos de energia, aquele da ‘empatia’ [Einfühlungsaufwand] e aquele de
nós mesmos [Ich] – e não de quem tem a vantagem dessa diferença.65
64 Dada a falta de clareza da tradução adotada, recorremos à edição inglesa, The Joke and Its Relation to the Unconscious, 2002, p.188)
65 “The comic effect, then, depends apparently only on the difference between the expenditures of energy, that of the ‘empathy’ [Einfühlungsaufwand] and that of our self [Ich] – and not on the one who has advantage from this difference.”
32
A conclusão é que achamos cômica a performance desnecessária no físico e a
performance insuficiente no mental.
Outra temática importante abordada é aquela da comicidade das
metáforas, bastante prevalente nas peças a serem abordadas nesta
dissertação. Para Freud, o que buscamos em uma metáfora é adequação, e
seu uso fornece “prazer original na descoberta da mesma coisa [e] acarreta um
alívio de trabalho intelectual” (p.205), mas isso não basta para efeito cômico,
que surge quando há uma diferença de nível – entre algo abstrato e familiar –
redundando em um caso de degradação.
Freud elenca (p.213-5) as condições para que o cômico se produza, ou
seja, para que o excesso de energia gerado in statu nascendi seja liberado na
forma de riso: a) disposição favorável, sendo a mais favorável delas a eufórica;
b) expectativa; c) ausência de busca de fins intelectuais sérios; d) atenção não
focada na comparação em causa; e) ausência de fortes emoções; e f) efeito de
contágio (prazer preliminar).
Passemos então a sua breve abordagem do que ele chama humor,
categoria intimamente ligada ao cômico. A peculiaridade aqui é que, ao
contrário do cômico e da piada, que não podem coexistir com fortes emoções,
o humor para Freud é o riso que se dá a despeito dessas mesmas emoções,
seu prazer advindo de “economia na despesa de afeto” (p.222, ênfase no
original). Outra característica é ocorrer totalmente dentro da primeira pessoa.
Há uma longa tradição de piadas de condenados à morte, e o humor de Mark
Twain (1835 – 1910) é citado como exemplo de que a “economia da compaixão
é uma das mais frequentes fontes de prazer humorístico”; mas também raiva,
dor e ternura podem ser poupados. Sem dúvida, a de Freud é uma concepção
bem restritiva de humor. [É o riso de Byron, que escreve em Don Juan (canto
IV I. 25): “...se de algo mortal rio,/ É para que não chore”66, ou o risus purus de
Beckett “o riso que ri... daquilo que é triste”67 (apud CHRITCHLEY, epígrafe)]
Chegamos então ao tratamento dos chistes. Guiando-nos pelas
definições do dicionário Houaiss para piada (4. história curta de final
66 “...if I laugh at any mortal thing,/ ‘Tis that I may not weep”
67 “the laugh that laughs... at that which is unhappy”
33
surpreendente, às vezes picante ou obscena, contada para provocar risos) e
chiste (1. dito espirituoso, ger. de humor fino e adequado gracejo; facécia,
pilhéria), podemos dizer que Freud os trata de forma quase indistinta: é o que
revelam seus exemplos. Freud faz duas distinções entre as piadas, as quais
ele afirma serem independentes entre si; essas distinções são apresentadas
aqui e mais bem esclarecidas adiante: chistes verbais vs. chistes conceituais, e
piadas inócuas [inocentes, na tradução adotada] vs. piadas tendenciosas, estas
últimas podendo ser hostis ou obscenas. Como já adiantado, a teoria do riso de
Freud pressupõe uma economia de energia psíquica; ele atribui às piadas
inócuas uma economia em pensamento crítico e às piadas tendenciosas uma
economia de inibição ou repressão – em sua conclusão ele privilegia estas ao
associar o prazer do chiste apenas à economia em inibição. O autor também
distingue entre conteúdo e técnica de uma piada, favorecendo a técnica como
mais importante, uma vez que após a redução de uma piada a seu conteúdo
semântico toda a hilaridade se esvai – muito embora se contradiga ao
reconhecer que as piadas obscenas costumam ter os melhores resultados com
técnicas simples. Tal espécie de piadas nos interessa particularmente ao se
relacionar mais diretamente com o presente trabalho. Outra proposição central
é a comparação entre a elaboração do chiste e a elaboração dos sonhos, que
compartilhariam os processos de condensação e deslocamento, que por não
pertencer ao escopo mais imediato de nosso trabalho, fica aqui apenas
esboçada, todas considerações sobre inconsciente ou pré-consciente
igualmente evitadas.
Passemos à discussão das técnicas dos chistes. A primeira a ser
apresentada é a (I-a) “Condensação: com formação de palavra composta”, em
que “tratou-me bastante familiär, isto é, tanto quanto é possível para um
Millionär” (redução do chiste, p. 28) se torna “tratou-me bastante familionär”.
Outro dentre os exemplos citados é alcoholidays, fusão de alcohol e holidays.
Mais adiante (p.33) introduz a técnica (I-b) “Condensação: com modificação”,
como no chiste “Viajei com ele tête-à-bète”, ou seja: (1) “viajei com ele tête-à-
tête”, (2) ele é uma besta (bète)”, na redução. Freud discute a importância
atribuída à brevidade – associada a sua proposição de economia –,
observando que ela não basta em si; a proposta de Lipps, uma das autoridades
34
por ele consultadas, aponta que a brevidade é cômica quando usa “palavras
poucas demais, [...] palavras que são insuficientes do ponto de vista da estrita
lógica ou dos modos usuais de pensamento e expressão” (p.21); já Freud
aproveita para fazer um paralelo entre elaboração da piada e elaboração do
sonho, de modo que a relação entre conteúdo condensado e conteúdo
“reduzido” corresponderia àquela entre “conteúdo do sonho [e] pensamentos
oníricos latentes” (p.36).
O trocadilho entre Rousseau e roux/sot (ruivo/tolo) não traz
condensação, “a técnica desse chiste consiste no fato de que uma mesma
palavra – o nome – aparece usada de duas maneiras, uma vez como um todo,
e outra vez segmentada em sílabas separadas” (p.39); trata-se da técnica (II-c)
“Múltiplo uso do mesmo material: como um todo e suas partes”. Outra
possibilidade de uso do mesmo material é “fazer simplesmente alguma
alteração em seu arranjo (ordem das palavras): (II-d) “Múltiplo uso do mesmo
material: em ordem diferente”. Freud acrescenta: “quanto mais leve a alteração
– maior a impressão de que algo diferente está sendo dito pelas mesmas
palavras –, melhor será o chiste tecnicamente” (p.40). Um exemplo fornecido é
o seguinte:
‘O Sr. e a Sra. X vivem em grande estilo. Alguns pensam que o esposo ganhou
muito dinheiro e tem, portanto, economizado um pouco (dando pouco) [sich
etwas zurückgelegt]; outros, porém, pensam que a esposa tem tem [sic] dado
um pouco [sich etwas zurückgelegt] ganhando portanto muito dinheiro.’ (p.40)
A próxima variante está refletida no célebre chiste “Traduttore –
Tradittore”, em que há uma leve modificação, daí sua classificação (II-e)
“Múltiplo uso do mesmo material: com leve modificação”. A técnica seguinte
explora o contraste entre sentido pleno e sentido esvaziado (termos do alemão)
de uma mesma palavra, como no exemplo: ‘“Como é que você anda?’ -
perguntou um cego a um coxo. ‘Como você vê’ - respondeu o coxo ao cego.’”;
é a técnica (II-f) “Múltiplo uso do mesmo material: com sentido pleno e sentido
esvaziado”.
Prosseguindo com a exploração do uso múltiplo, chega-se à conhecida
técnica do “jogo de palavras” ou “duplo sentido”, dos quais Freud estabelece
três subcategorias: (III-g) “Duplo-sentido: significado como um nome e como
uma coisa”, do qual o exemplo é extraído de Shakespeare: “’Discharge thyself
35
of our company, Pistol! [Descarrega-te (desaparece) de nossa companhia,
Pistola!] (Shakespeare [II Henry IV, ii, 4.])” (p.43-44), o que nos justifica ainda
mais em buscar as técnicas de chiste elencadas aqui nas peças a serem
analisadas.
A técnica seguinte é o jogo entre sentido literal e metafórico, “uma das
mais férteis fontes das técnicas dos chistes” (p.44), infelizmente, com tanta
fartura, Freud escolhe um exemplo sem a menor graça, sobre “espelho” como
modelo e um instrumento médico. É a técnica (III-h) “Duplo sentido:
significados metafórico e literal”. Na sequência vem a técnica chamada por ele
de “duplo sentido propriamente dito ou jogo de palavras”, em que “nenhuma
violência é feita às palavras”, sendo o “caso ideal de múltiplo uso”: “Exatamente
como figuram na sentença, é possível, graças a certas circunstâncias
favoráveis, fazê-las expressar dois significados diferentes” (p.44). É o caso da
referência a Napoleão: “le premier vol de l’aigle”, em que vol pode ter dois
significados: “o primeiro voo/roubo da águia”. É a técnica (III-i) “Duplo sentido
propriamente dito (jogo de palavras)”. Como caso particular, surge o jogo de
palavras com sentido sexual, ou (III-j) “Duplo sentido: double entendre”, como é
o caso do chiste que brinca com a “inocência” de Dreyfuss (ausência de culpa)
e a “inocência” de uma garota (significando falta de experiência sexual) – é
uma técnica muito produtiva nas peças a serem analisadas. Já a categoria (III-
k) “Duplo sentido com uma alusão” não seria um grupo separado, ocorrendo
quando “os dois significados não são óbvios da mesma maneira”, o que não
fica em absoluto muito claro no texto de Freud.
São comparados então o trocadilho e o jogo de palavras, e a
diferenciação segue as mesmas linhas de Bergson, aquele se valendo de
similaridade de som e sendo a forma mais baixa de chiste verbal, enquanto
este partiria de sentidos múltiplos de uma palavra, sendo uma forma elevada
de comicidade verbal.
Encerrada a exploração da comicidade verbal, passa-se às técnicas de
chistes conceituais. O chiste sobre a confusão deliberada com os sentidos de
“tomar um banho” (“Dois judeus se encontram nas vizinhanças de um
balneário. ‘Você tomou um banho?’, pergunta um deles. ‘O quê?’, retruca o
outro, ‘há um faltando?’” p.56) desafia as técnicas apresentadas até então,
mesmo se assemelhando a (II-f) “Múltiplo uso do mesmo material: com sentido
36
pleno e sentido esvaziado”. Outro chiste similar é o do indivíduo empobrecido
que toma dinheiro emprestado e é surpreendido pelo credor comendo em um
restaurante, e responde ao questionamento da seguinte forma “‘se não tenho
dinheiro, não posso comer maionese de salmão; se o tenho, não devo comer
maionese de salmão. Bem, quando vou então comer maionese de salmão?”’.
Ambos constituem para Freud uma nova técnica:
“Proponho descrevê-la como ‘deslocamento’, já que sua essência consiste no
desvio do curso do pensamento, no deslocamento da ênfase psíquica para
outro tópico que não o da abertura. [...] Nosso exemplo (‘maionese de salmão’)
mostra-nos que um chiste de deslocamento independe, em alto grau, da
expressão verbal. Depende aqui não das palavras mas do curso do
pensamento.” (p.58)
Como o pensador austríaco abandona a catalogação das técnicas,
passemos a nomeá-las e numerá-las; chamemos então a esta última técnica
(IV) “Deslocamento ou raciocínio falho” (como ele vai chamá-la adiante). Ele
contrasta nestes chistes uma fachada que esconde uma “lógica falha” com
outros chistes que lidam abertamente com absurdo e nonsense. A partir de
exemplos, mostra que o nonsense geralmente é um absurdo que revela outro
absurdo, como no chiste do soldado indisciplinado que ouve o conselho do
superior para que compre um canhão e declare independência – o nonsense
do conselho evidencia o comportamento absurdo. Podemos chamá-la (V)
“Representação pelo absurdo”. Por vezes o chiste revela em seus personagens
um automatismo cômico, aproximando-se da teoria de Bergson: “O
desvelamento de automatismo psíquico é uma das técnicas do cômico,
exatamente como qualquer tipo de revelação ou autotraição.” (p.71). O autor
encara o chiste como algo separado do cômico (e do humor), portanto opta
abertamente por abandonar essa linha de raciocínio, perdendo justamente uma
chance de explicitar as imbricações entre esses conceitos (cf. seção 1.1). Este
trabalho, que entende não ser sempre possível delimitar nitidamente os
conceitos do campo da comicidade, buscará reconhecer as categorias de
chiste propostas por Freud nas linhas das comédias analisadas, ainda que não
se trate de narrativas jocosas ou tiradas espirituosas, que são de fato seu
escopo.
37
Freud aborda então a técnica por trás de witticisms como: “A experiência
consiste em experimentar o que não desejávamos experimentar” (p.72), a qual
seria de (VI) “Unificação”:
“aqui se agenciam novas e inesperadas entidades, inter-relações de ideias,
definições efetuadas mutuamente ou por referência a um terceiro elemento
comum. Gostaria de denominar ‘unificação’ a esse processo que é claramente
análogo à condensação pela compressão nas mesmas palavras” (p.72)
Outra categoria apresentada é a (VI-a) “‘Unificação com enumeração
chistosa’ (‘coordenação’)”: “Com um forcado e muito esforço/ Sua mãe pescou-
o do ensopado.” (p.75). Outra técnica do chiste é a (VII) “Sim pelo não, ou
representação pelo oposto”, observada no chiste do duque e o tintureiro: “Pode
tingi-lo [cavalo] de azul?” “Naturalmente, Alteza”, foi a resposta, “se ele suportar
a fervura.” (p.74). Freud destaca um grupo de chistes que seriam de (VII-a)
“Representação pelo oposto: com exageração”, como o do cirurgião que
pergunta ao rei que assistira – e aplaudira – à cirurgia: “Vossa Majestade
ordena que eu ampute também a outra perna?” (p.78).
Chega-se então à técnica de (VIII) “Representação pelo que é similar ou
relacionado”. Exemplo seria a reação a dois quadros cujos modelos são
“homens de negócio, não particularmente escrupulosos”: “Mas onde está o
Salvador?” (p.79). É uma técnica análoga (no domínio conceitual) ao trocadilho,
e tem como variações:
(VIII-a) similaridade de som com leve modificação (“‘Uma garota de mais
ou menos doze Moden [jogo entre Moden, modas, e Monden, luas]”, p.81)
remetendo, misturando-se mesmo, à técnica verbal (I-b): “É quase impossível
distinguir entre ‘alusão através de modificação’ e ‘condensação com
substituição’” (p.82);
(VIII-b) omissão como forma de alusão – “na verdade omite-se algo em
toda alusão, ou seja, o processo dedutivo leva à alusão” (idem). O exemplo
dado é “Se X ouve isso, terá seus ouvidos [sic] socados novamente” (idem),
onde se alude ao fato, omitido, de que “ele escreverá um artigo tão caústico
[sic] sobre o homem que… etc” (p.83). Freud opina que a
“alusão é talvez o método do chiste mais comum e mais facilmente controlável,
estando talvez no fundo da maior parte dos efêmeros chistes que costumamos
38
urdir em nossas conversações e que não tolerariam ser transplantados do solo
original e mantidos isoladamente” (p.84)
Freud tenta organizar suas categorias na seguinte passagem:
“Tenho descrito ocasionalmente a alusão como uma ‘representação indireta’ e
podemos agora observar que as várias espécies de alusão, juntamente com a
representação pelo oposto e outras técnicas que ainda vão ser mencionadas,
poderiam se reunir em um único grande grupo para o qual o nome mais
compreensivo seria o de ‘representação indireta’. ‘Raciocínio falho’, ‘unificação’
e ‘representação indireta’ - eis então os rótulos sob os quais podemos
classificar aquelas técnicas de chistes conceptuais que viemos a conhecer.”
(p.84-5)
Sua tentativa de estabelecer, “através dos poucos exemplos que podem
ser aduzidos”, uma técnica de “representação de algo pequeno ou mesmo
muito pequeno” (p. 85) merece o seguinte comentário de John Carey, na
introdução à edição inglesa: “[Freud] afirma que a ‘representação por um item
pequeno, ou muito, muito pequeno’ deve ocorrer em chistes, uma vez que
ocorre nos sonhos. Ocorre que ele não consegue achar quase nenhuma piada
que a exemplifique, o que, se ele estivesse pensando cientificamente, o urgiria
a reexaminar sua tese”68 (p.xiv-xv, ênfase adicionada). De qualquer modo, fica
criada a categoria (IX) “Representação pelo pequeno”, ainda que o chiste do
judeu que responde apenas “Ora!” e volta a ficar à vontade quando percebe
que seu companheiro de viagem é da mesma fé não convença como exemplo.
O uso da metáfora também é abordado na discussão do cômico
(cf.p.29), e é mais um ponto que mina o isolamento que Freud propõe entre
chiste e cômico. Como dito acima, uma metáfora faz rir pela diferença extrema
entre imagem e coisa representada, resultando em uma degradação cômica.
“Tais analogias, ou contêm uma singular justaposição, com frequência uma
combinação aparentemente absurda, ou são substituídas por algo semelhante
ao resultado da analogia.” (p.88). Os exemplos são de Lichtenberg, como: “Até
que finalmente, finalmente todo botão rebenta nos calções de minha
paciência.” (p.89). Esse grupo de chistes, para Freud, aparenta se relacionar
68 “He... states that ‘representation by a small or very, very small item’ must occur in jokes, since it occurs in dreams. As it happens he can find almost no jokes that exemplify it, which, if he were thinking scientifically, would prompt him to re-examine his thesis.”
39
com a técnica (V) “Representação pelo absurdo”, mas constituiria, na verdade,
um ato de (VI) “Unificação”, pois “a conexão de tais abstrações com as coisas
ordinárias que normalmente enchem sua vida é um ato de unificação” (p.90).
Ele chega à conclusão de que “onde uma analogia nos parece um chiste, isso
se deve à mesclagem com uma das técnicas do chiste que já conhecemos”
(idem), embora infelizmente não dê exemplos de outras mesclagens possíveis
com outras das técnicas. Freud é humilde a ponto de admitir, mais adiante,
que:
“estamos completamente perdidos quanto a constatar o que determina a
característica chistosa das analogias, [...]. Tudo que podemos fazer é incluir a
analogia entre as espécies de ‘representação indireta’ usadas pela técnica do
chiste...” (p.91-2)
Mesmo não estabelecendo solidamente o caráter da analogia como
técnica de chiste, Freud cria uma categoria, a que chamamos (X)
“Representação indireta: por analogia”, e que será muito produtiva de humor
nas peças analisadas neste trabalho, permitindo que se busquem exemplos de
outras técnica imiscuídas.
Tentemos agora organizar todas as técnicas em uma tabela. Quanto aos
chistes verbais, é bom lembrar, seguimos a classificação de Freud; quanto aos
chistes conceituais, buscamos elaborar uma classificação a partir das
teorizações. A esta tabela nos referiremos quando buscarmos detectar estas
técnicas no humor da peças-problema de Shakespeare.
40
Chistes Verbais Chistes Conceituais(I) Condensação (IV) Deslocamento/ Raciocínio falho
(I-a) com formação de palavra composta
(V) Absurdo
(I-b) com modificação Representação Indireta:(II) Múltiplo uso do mesmo material
(VI) Unificação
(II-c) como um todo e suas partes (VII) Representação pelo oposto(II-d) em ordem diferente (VII-a) oposto com exageração(II-e) com leve modificação (VIII) Representação por similar/
relacionado(II-f) com sentido pleno e sentido esvaziado
(VIII-a) similar/ relacionado com modificação
(III) Duplo sentido (VIII-b) omissão com alusão(III-g) significado como nome e como coisa
(IX) Representação pelo pequeno
(III-h) significados metafóricos e literal (X) Representação por analogia(III-i) propriamente dito (jogo de palavras)(III-j) double entendre(III-k) duplo sentido com uma alusão
Partamos então para a discussão dos chistes tendenciosos, aqueles que
servem a um propósito, podendo ser obscenos ou hostis, ou ainda – como
caso particular dos hostis – cínicos. Nosso interesse maior é obviamente no
primeiro grupo – “desnudadores” pela tradução adotada –, que, observa Freud,
“têm sido muito mais raramente julgados dignos de investigação” (p.102).
Comentemos brevemente, portanto, sobre os outros dois. Freud propõe que a
“hostilidade brutal, proibida por lei, foi substituída pela invectiva verbal” e que
“desenvolvemos [...] uma nova técnica de invectiva que objetiva o aliciamento
[de uma] terceira pessoa contra nosso inimigo” daí que “o chiste evitará as
restrições e abrirá fontes de prazer que se tinham tornado inacessíveis” (p.107,
ênfase no original). Tais obstáculos podem ser de natureza interna – uma
objeção estética ao insulto direto, as exigências de polidez – ou externa – a
autoridade, que pode inibir o livre discurso retaliando ataques diretos. Quando
o insulto é dirigido não a um indivíduo, mas a uma instituição prevalente, como
a crença em Deus, Freud particulariza tais chistes como cínicos.
Os chistes obscenos – ou desnudadores – teriam seguido um processo
desde a baixaria ou fala suja (smut na versão em português e bawdry na
41
inglesa)69, a qual teria a intenção de desnudar uma mulher e (supostamente!)
seduzi-la, até uma forma de aliciar uma terceira pessoa (testemunha – e aliado
– de uma agressão sexual) e assim vencer um obstáculo, o que chamaríamos
de tabu da pudicícia, liberando uma forma de prazer inacessível. Entende-se
então que, para Freud, o chiste sexual é um assunto exclusivamente
masculino, cabendo à mulher o papel de vítima. Suas concepções de classe
também se refletem na seguinte afirmativa (e em diversos outros pontos em
que Freud associa espírito a status social):
“Entre os camponeses ou em ambientes de espécie mais humilde há de se
notar que o smut só começa após a entrada da garçonete ou da esposa do
albergueiro. Só em níveis sociais mais altos ocorre o oposto, a presença de
uma mulher condicionando o fim do smut. Os homens se abstêm desse tipo de
divertimento, que originalmente pressupõe a presença de uma mulher
sentindo-se envergonhada, até que estejam ‘juntos a sós’. De modo que
gradualmente, no lugar da mulher, o espectador, depois o ouvinte, torna-se a
pessoa a quem é dirigido o smut, bem perto já de assumir o caráter de chiste
devido a essa transformação (p.104)
De fato ele observa que nos meios refinados a obscenidade só é
tolerada quando em roupagem espirituosa. Para Freud, “O método técnico
usualmente empregado é a alusão - ou seja, a substituição por algo menor,
apenas remotamente conexo, que o ouvinte reconstrói em sua imaginação
como uma obscenidade direta e completada.” (p.105), em mais uma tentativa
de fazer seu “algo pequeno” funcionar.
Sobre o prazer advindo do chiste tendencioso, Freud se contradiz: “os
chistes tendenciosos têm a seu dispor fontes de prazer além daquelas abertas
aos chistes inocentes [ou inócuos], nos quais todo o prazer está de algum
modo vinculado à técnica” (p.106), estipulando que “com relação aos chistes
tendenciosos, não estamos em condições de distinguir intuitivamente que parte
do prazer procede das fontes de sua técnica e que parte deriva de seu
propósito” (idem), e complicando-se ainda mais:
“No caso de todos os chistes obscenos, estamos sujeitos a sucumbir a erros de
julgamento sobre a ‘excelência’ do chiste na medida em que estes dependem
69 smut (3): linguagem ou publicações indecentes; obscenidade; bawdry (1,arcaico):lascívia, obscenidade, indecência. (dictionary.com)
42
de determinantes formais; a técnica de tais chistes é muito frequentemente
desprezível [sic], mas tem imenso sucesso em provocar riso.” (idem)
Talvez ele devesse rever então o que disse anteriormente: “perdura como fato
incontrovertido que, uma vez desfeita a técnica do chiste, este desaparece”
(p.79).
São várias as críticas que podem ser feitas ao trabalho de Freud, como
o uso alternado de “descarga de energia economizada” e “energia
economizada” para se referir ao riso, mas ele nos interessa porque nos permite
reconhecer suas categorias nos chistes encontrados nas peças que serão
discutidas adiante, e para isso O Chiste é de grande utilidade – assim como o
será a obra de Bergson no que se refere a situações e personagens.
1.4 Comicidade e riso segundo Propp
O autor russo Vladímir Propp (1895-1970), em Comicidade e Riso (1976)
se incumbe de descobrir a essência do cômico pelo método indutivo, ou seja,
“um cuidadoso estudo comparativo e... uma análise dos fatos” (p.16), em vez
do dedutivo, apriorístico, mais comumente adotado. Seu material é
basicamente o da tradição russa. Assim como nos dois outros autores
analisados, o projeto de descobrir o princípio do riso e da comicidade tem como
resultado uma relação de recursos cômicos.
A primeira variedade de riso, e a mais importante no esquema do autor,
é a do riso de zombaria, uma vez que “apenas este aspecto do riso está
permanentemente ligado à esfera do cômico”, e “é exatamente este tipo de riso
o que mais se encontra na vida” (p.28). O autor busca estabelecer
subcategorias do riso de zombaria de acordo com as “causas que suscitam o
riso”, isto é, “o que exatamente é ridículo” (p.29).
Propp ecoa Bergson (e seu riso como “corretivo social”) ao ver o riso
como punitivo de “um defeito qualquer oculto ao homem” (p.44), e também ao
distinguir os defeitos passíveis de comicidade: nunca os defeitos trágicos,
“somente os mesquinhos”. Assim como Critchley (cf.p.18) e Bergson (cf.p.21),
o russo salienta o aspecto físico do humor: “rimos quando as manifestações
43
exteriores e físicas das ações e das aspirações dos homens encobrem seu
sentido e sua significação interior” (p.45). Ele vê comicidade “onde a natureza
física põe a nu os defeitos da natureza espiritual” (p.46). Observa como
“gorduchos costumam parecer ridículos” (p.45), e como são fonte de cômico as
funções corporais, como a alimentação, a embriaguez (desde que não seja
total) e as “funções fisiológicas involuntárias” (p.51) como os soluços. Propp
discute o potencial cômico do rosto, dos olhos, e do nariz.
Em seguida, discute-se a comicidade da semelhança, que dependeria
necessariamente do inesperado, uma vez que a semelhança perfeita entre um
par de gêmeos nunca é engraçada para os pais; a explicação seria que: “o riso
é provocado pela repentina descoberta de algum defeito oculto” (p.55). Já a
comicidade da diferença viria de uma “particularidade ou estranheza que
distingue uma pessoa do meio que a circunda [e] pode torná-la ridícula” (p.59,
ênfase no original), ou seja, de “desvios da norma”. Daí provém o humor contra
estrangeiros.
Outra fonte de ridículo é o homem com aparência de animal, mas
“apenas quando serve para desvendar um defeito qualquer” (p.67). A próxima
matéria-prima para o cômico discutida é a “representação do homem como
coisa... cômica pelas mesmas razões e nas mesmas condições em que é
cômica sua representação em vestes de animal” (p.73). Propp vê uma
insuficiência na teoria de Bergson, que não observa que a semelhança entre
um humano e uma coisa só é cômica quando “a coisa é intrinsecamente
comparável à pessoa e expressa algum defeito seu” (p.75). Também critica o
francês na discussão do autômato, o homem assemelhado à máquina, pelo
mesmo motivo.
Propp discute outro tema abordado por Bergson, a comicidade das
profissões, que podem ser fonte de riso especialmente quando “não requer[em]
uma tensão mental especial, e toda atenção se dirige apenas às suas formas
exteriores” (p.79-80), citando aquelas de cozinheiro e alfaiate como
particularmente produtivas de humor.
Outra forma de humor apresentada é a paródia, que seria o “exagero
cômico na imitação”, conforme Bóriev (p.84). Propp, entretanto, observa que “o
44
exagero é próprio da caricatura, não da paródia” (idem), e define esta última
como a “imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer da
vida [...] de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que é submetido
à paródia” (p.84-5), representando “um meio de desvendamento da
inconsistência interior do que é parodiado” (p.85, ênfase no original).
Propp prossegue discutindo o exagero cômico. Mais uma vez, “o
exagero é cômico apenas quando desnuda um defeito” (p.88). Ele elenca “três
formas fundamentais de exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco” (idem).
A caricatura toma “um detalhe [que] é exagerado de modo a atrair atenção
exclusiva” (idem), observando que “a representação de uma pessoa através de
um animal ou de uma coisa, [...] e também todos os tipos de paródia podem ser
enquadrados no domínio da caricatura” (p.89). Já a hipérbole é uma “variedade
da caricatura” (p.90) que exagera não o pormenor, mas o todo. O grotesco é “o
grau mais elevado e extremo do exagero”, de modo que “aquilo que é
aumentado... se torna monstruoso” (p.91); Gargantua e Pantagruel, de
François Rabelais (1494 – 1532) é dada como exemplo. Seguindo o princípio
adotado pelo autor, o grotesco só é cômico quando “encobre o princípio
espiritual e revela os defeitos”, e “o que é intencionalmente terrível pode ter um
caráter grotesco fora do domínio do cômico” (p.92); A pintura de Goya é citada
como exemplo deste último caso.
O malogro da vontade é a variedade de cômico (ou risível) apresentada
a seguir. Propp observa que “pequenos reveses” que sofremos podem ser
fonte de riso, mas que esse é “um riso um tanto cruel” (p.93). Seguindo a
exclusão entre cômico e fortes emoções, enunciada por Bergson e Freud, e o
princípio da risibilidade das faltas mesquinhas, Propp postula que “o naufrágio
de iniciativas grandes ou heroicas não é cômico, mas trágico. Será cômico um
revés nas coisas miúdas do dia-a-dia” (p.94). Entra nesse campo o cômico que
explora a distração, em que “alguma inferioridade oculta na pessoa” é revelada;
entretanto, “o riso pode ser suscitado também por defeitos dos quais o próprio
homem não é absolutamente culpado” (p.97, ênfase no original).
Outra fonte de ridículo é o fazer alguém de bobo, que é “o revés ou
malogro da vontade [...] intencionalmente suscitado por outrem” (p.99), o que
45
introduz um conflito, que pode ser “entre personagens centrais positivas e
negativas, ou entre duas figuras negativas” (idem). O personagem logrado
pode ter uma falta exposta ou ser inocente. Propp comenta que este recurso,
além de muito produtivo na tradição russa, é encontrado na commedia dell’arte
e em Shakespeare. É mencionado o procedimento cômico do “trapaceiro
trapaceado”, e a prevalência do recurso do logro no folclore, no qual, observa o
autor, assim como Bergson, o leitor ou público se põe ao lado do “espertalhão”,
nunca do enganado.
Passemos ao alogismo, o “fracasso [que] se deve à falta de inteligência”
(p.107) como fonte de riso. O alogismo tem duas formas: “os homens dizem
coisas absurdas ou realizam ações insensatas” (idem), e pode ser manifesto ou
latente – caso em que exige desmascaramento. Propp especula ser esta “a
forma mais comum de comicidade” (p.108) na vida. Não é a ignorância que é
cômica, mas o “momento em que a ignorância oculta se manifesta
repentinamente” (idem), postula Propp, ressaltando o papel do inesperado no
cômico. Menção é feita às tiradas espirituosas que desmascaram uma tolice
latente: “a capacidade de dar respostas desse tipo é um dos aspectos da
espirituosidade” (p.111).
A mentira como recurso cômico é o próximo tema: propõe-se a questão:
“por que e em condições é cômica a mentira dos homens?” (p.115, ênfase no
original). São destacados dois tipo de mentira cômica: quando “o impostor
procura enganar o interlocutor” e quando “sua finalidade é outra, ele pretende
divertir” (idem). O primeiro caso será cômico sempre que seja “de pequena
monta e não [leve] a consequências trágicas”, além disso ela necessariamente
“deve ser desmascarada” (idem), momento em que se dá o riso. No segundo
caso, o alogismo é “perfeitamente evidente e manifesto” e desperta “um sorriso
de alegria e um riso de satisfação” (p.118), caso das narrativas fantasiosas.
Assim como Bergson discute a comicidade de palavras (cf.p.23), e Freud
aborda os chistes verbais (cf.p.30-32), Propp elenca os instrumentos
linguísticos da comicidade. Atendo-se, de modo talvez forçado neste caso, ao
ridículo exposto como fonte de comicidade, Propp observa que “a língua não é
cômica por si só, mas porque reflete alguns traços da vida espiritual de quem
46
fala, a imperfeição de seu raciocínio” (p.119). Ocorre que há humor de cunho
linguístico que não se liga sequer remotamente à desnudação de um defeito, e
Propp usa um único exemplo para tentar provar que “os defeitos existem,
embora pouco perceptíveis à primeira vista” (p.122), o que mostra que, assim
como os teóricos que criticava, Propp tenta acomodar a realidade a sua teoria.
O autor elenca quatro espécies de humor linguístico: os trocadilhos (ou
calembures), os paradoxos, as tiradas (citadas anteriormente como uma
exposição de alogismos) e algumas formas de ironia. Propp se assemelha a
Bergson (cf.p.24) ao ver no calembur “o significado mais geral da palavra...
substituído pelo significado exterior, ‘literal’” (p.121). O trocadilho é um caso
particular de espirituosidade; para definir espirituosidade, Propp recorre a
Tchernichévski: “uma aproximação rápida e inesperada de dois objetos” (p122).
Os paradoxos se caracterizam por “sentenças em que o predicado contradiz o
sujeito, ou a definição o que está para ser definido” (p.124); Oscar Wilde é
citado como destacado explorador desta técnica. Próxima dela estaria a da
ironia, na qual “expressa-se com as palavras um conceito mas se subentende
(sem expressá-lo por palavras) um outro, contrário.” (p.125). A ironia “constitui
um dos aspectos da zombaria e nisto está sua comicidade”, e é
“particularmente expressiva na linguagem falada, quando faz uso de uma
particular entoação escarnecedora” (idem).
Enquanto os recursos de comicidade linguística já apresentados
dependem tanto da linguagem quanto do conteúdo, Propp apresenta uma
variedade calcada apenas nas “formas exteriores [da] expressão” (p.126), que
faz uso do “‘procedimento da fisiologização”, o qual torna o discurso
“desprovido de sentido e constituído apenas de sons” (idem), como no caso do
personagem Akaki Akákievitch, do conto O Capote, de Nikolai Gógol (1809 –
1852) que, segundo o próprio Gógol, “‘se expressa principalmente por meio de
preposições, advérbios e, enfim, com partículas que decididamente não têm
nenhum significado.” (idem).
Outra fonte de humor linguístico são os jargões, como aponta também
Bergson. Aqui opera tanto a comicidade linguística quanto a comicidade das
diferenças (ver acima). Também um fenômeno misto é o caso dos erros
47
linguísticos, sempre que eles “desnudam um defeito de pensamento”, pois “se
aproximam dos alogismos” (p.129). A comicidade dos nomes próprios é
debatida: os tipos negativos têm seus defeitos reforçados por eles, ou
personagens são por eles associados a animais ou coisas, comparações que já
tiveram a comicidade discutida.
Propp, assim como Bergson (cf.p.26), analisa a comicidade dos
caracteres. Novamente, alerta que “caracteres cômicos em si não existem”,
mas que um “traço de caráter negativo pode ser representado comicamente
graças aos mesmos meios com os quais se cria, em geral, o efeito cômico”
(p.134). A partir de Aristóteles, observa que “para criar caracteres cômicos é
necessário certa dose de exagero” (idem, ênfase no original); entretanto, “as
qualidades negativas não podem chegar à objeção; elas não podem suscitar
sofrimento no espectador [...] não devem provocar repugnância ou desgosto”
(p.135). A comicidade de caráter nas comédias também pode ser reforçada
pelo delineamento do caráter através da trama, o que é característica dos
grandes escritores: “as personagens negativas são derrotadas na intriga e, ao
mesmo tempo, revelam... todas as propriedades de seu caráter” (p.138).
É discutida a possibilidade dos tipos cômicos positivos, aludindo às
pessoas reais que contagiam com seu “otimismo, unido a uma alegria e um
contentamento habituais” (p.139). Propp vê no riso que elas suscitam tanto um
riso de alegria (distinto do de zombaria) quanto uma exposição da ingenuidade
do otimismo infundado. Conclui-se que a comicidade de caracteres positivos
“não surge da presença de qualidades positivas enquanto tais, mas da
precariedade e da insuficiência dessas mesmas qualidades” (p.140-1). Outra
qualidade positiva, além do otimismo, que pode ser explorada comicamente, é
“a engenhosidade e a esperteza” (p.142); o autor observa que os “antagonistas
são sempre tipos negativos e por isso a personagem sabida que os engana
adquire um caráter ao mesmo tempo positivo e cômico” (idem).
Recuperando a explicação kantiana para o riso – “‘efeito (que deriva) de
um fracasso repentino de uma intensa expectativa’”, Propp acrescenta: sempre
que esse fracasso “não leva a consequências sérias ou trágicas”. Observa ele:
“se considerarmos com atenção esta teoria [de Kant] descobriremos que sua
48
essência se reduz a um certo desmascaramento” (p.145, ênfase no original). É
o princípio do quiproquó, “‘um em lugar do outro’”, que opera, por exemplo, em
O Inspetor Geral, de Gógol. Expresso de forma mais geral, dá origem a “‘uma
coisa no lugar da outra’”, e daí se deriva “‘o vazio em lugar do suposto
conteúdo”, que é muito próximo do que ele chama de “princípio de Muito
barulho por nada”, a partir da comédia de Shakespeare: “quando acontece um
clamor extraordinário motivado por causas insignificantes” (p.147). Bergson
chama a esse procedimento “bola de neve” (cf.p.21).
Finda a discussão do riso de zombaria e suas variedades, Propp se
lança à apresentação de outros tipos de riso, postulando de saída que “há duas
grandes subdivisões do riso, ou dois gêneros. Um contém a derrisão, o outro
não” (p.151). Entretanto, “uma delimitação nítida e precisa não existe [e] há
casos intermediários” (p.152). O riso bom é proposto como tendo por base
psicológica “um pequeno defeito” que, “no quadro geral de uma avaliação
positiva”, “não provoca condenação”, mas reforça um “sentimento de afeto e
simpatia” (p.152). É o riso que suscitam as crianças, por exemplo. Este riso
contradiria Bergson quando este preconiza a “anestesia do coração” como
condição do riso (a qual só se aplica ao riso de zombaria).
Prossegue o autor com o oposto do riso bom, o riso mau. É o riso dos
misantropos, em que os “defeitos, às vezes mesmo só aparentes, imaginados
ou inventados são aumentados, inflados, alimentando assim os sentimentos
maldosos, ruins e a maledicência”; é ainda um tipo de riso que “não está ligado
nem direta nem indiretamente à comicidade [e] não suscita simpatia” (p.159). O
riso mau se divide em maldoso e cínico: “o riso maldoso está ligado a defeitos
falsos e o riso cínico prende-se ao prazer pela desgraça alheia” (p.160).
Por fim, Propp se debruça sobre categorias de riso “estranhas a
qualquer defeito humano”, risos que “não são provocados pela comicidade”, e
que “constituem uma questão de caráter mais psicológico que estético” (p.162).
É o caso do riso alegre, que “pode originar-se dos pretextos mais
insignificantes” e é “alegre e vivificador” (idem), ao qual Kant chamava “‘jogo de
forças vitais’” (p.163). Outra dessas formas de riso é o riso ritual, que era
obrigatório, como no caso das “procissões fálicas da Antiguidade” (p.165) às
49
quais é atribuída a origem da comédia. Na Idade Média, houve o “riso pascal”:
na preparação para a páscoa, “o sacerdote alegrava os paroquianos com
brincadeiras indecentes a fim de fazê-los rir” (p.165). O riso imoderado é
apresentado como relacionado à “total entrega de si àquilo que habitualmente
se considera ilícito e inadmissível e que costuma suscitar uma grande risada”;
é um riso visto como baixo pelas “estéticas burguesas”, associado às “festas
e... diversões populares” (p.166).
Propp definitivamente traz uma contribuição relevante ao difícil estudo
da comicidade, mas sua insistência em equacionar comicidade e zombaria o
leva a dificuldades, como no caso do humor linguístico. Organizamos, também,
as categorias propostas por ele em uma tabela.
Riso de Zombaria
A natureza física Malogro
Semelhança Fazer de Bobo
Diferença Alogismo
Homem-Animal Mentira
Homem-Coisa Instrumentos linguísticos
Profissões Caracteres
Paródia Um no lugar do outro
Exagero Muito barulho por nada
Outros tipos de riso
Riso bom
Riso mau: maldoso Riso mau: cínico
50
Riso alegre
Riso ritual
Riso imoderado
1.5 Humor Sexual
Apresentadas as mais influentes teorias sobre o cômico, atenhamo-nos
um pouco sobre a questão mais específica do humor sexual, a partir da obra de
G. Legman, Rationale of the Dirty Joke: An Analysis of Sexual Humor (1968). O
autor aponta (descontada a vagueza do argumento e a ambição da
generalização) que:
O humor erótico é de longe o mais popular de todos os tipos, e uma
percentagem extremamente grande das piadas autenticamente em circulação
oral, neste e aparentemente em todos os séculos e culturas, dizem respeito ao
humor – frequentemente não intencional, desagradável, e mesmo
deliberadamente macabro – do impulso sexual.70 (p.9-10, ênfase adicionada)
Seu ponto de vista sobre humor sexual – e em todas suas análises – é
abertamente freudiano, vendo a fala suja como uma tentativa de sedução, e
frisando que:
se a mulher se mostra recalcitrante, ou se a situação social é tal que – devido à
presença de terceiros – a questão não pode ser prontamente levada a uma
consumação física, as piadas do homem se tornarão mais e mais hostis, e
mais insistentes em sua denudação e mesmo degradação da mulher. Em tais
casos, a dissimulação frequentemente adotada será a de direcionar as piadas
presumivelmente ao terceiro presente (um homem), em vez de à própria
mulher.71 (p.12)
70 “Erotic humor is far & away the most popular of all types, and an extremely large percentage of all jokes authentically in oral circulation, in this and apparently all centuries and cultures, is concerned with the humor –often unwilling, unpleasant, and even purposely macabre – of the sexual impulse.”
71 “if the woman shows herself unwilling, or if the social situation is such – owing to the presence of third parties – that the affair cannot readily be brought to any physical conclusion, the man’s jokes will become more and more hostile, and more insistent in their denudation and even degradation of the woman. In such cases, the feint will often be engaged in directing the
51
O ouvinte é “subornado pela gratificação fácil de sua própria libido”72
(p.13) e, no caso de o terceiro ser parceiro da mulher, a violação verbal passa a
ser um adultério verbal, com o parceiro como “comparsa inconsciente”. A visão
compartilhada por Freud (cf.p.38) e Legman nos parece reducionista, pois
depende de uma situação muito específica para explicar o impulso de brincar
com o tema, além de etnocêntrica, dependente das repressões da cultura
europeia letrada. Definir o humor sexual por algo que não lhe é intrínseco, mas
contextual, não chega a explicar muita coisa. Legman, escrevendo um século
depois do pai da psicanálise, em um tempo de rápida transformação social,
mostra-se, ao longo da obra, por um lado liberal – pelo fato mesmo de abordar
o tema nos Estados Unidos que ele mesmo denuncia como ridiculamente
pudibundos – mas por outro culturalmente, e mesmo em questões de
sexualidade, conservador (como ao ver a homossexualidade como um desvio
neurótico).
O autor vai além de Freud e salienta que “esta não é a única função do
humor erótico e piadas sujas”, tampouco do riso fundado no tema, associado
àquele por Legman, da escatologia – “porque ambos operam sob os mesmos
tabus fisiológicos e verbais”73 (p.10). Ressalta ele que “a piada suja comum [...]
lida de forma direta e, portanto, aparentemente aprazível com temas tabu:
sexo, escatologia, incesto, e a troça sexual com figuras de autoridade...”74
(p.13). É a que se encaixa no modelo freudiano de “relação sexual vocal e
inescapável” (idem). Já a “função inteiramente diferente que a distribuição de
obscenidade desempenha”75 (idem) depende de vocabulário repulsivo e
conteúdo “horrível e excruciante”:
jokes presumably to the (male) third party present, instead of the woman herself.”
72 “bribed by the easy gratification of his own libido”
73 “because both operate under the same physiological and verbal taboos”
74 “The ordinary dirty joke [...] engages directly and apparently therefore pleasurably with taboo themes: sex, scatology, incest, and the sexual mocking of figures of authority...”
75 “entirely different function that the retailing of obscenities performs”
52
a proposta aqui é absorver e controlar, até mesmo expurgar, por meio de
apresentação jocosa e pelo riso, a grande ansiedade que ambos contador e
ouvinte sentem em conexão com certos temas culturalmente determinados. Os
temas realmente temidos, em nossa sociedade são, sobretudo: doença
venérea, homossexualidade e castração.76 (p.13-4)
Sobre o contador de piadas em geral, Legman observa que ele é, por
vezes, a vítima de suas próprias piadas mas, geralmente, elas são uma
agressão sob a máscara do humor:
na risada final do ouvinte ou observador – cuja posição é frequentemente de
fato aquela de vítima ou alvo – o contador da piada trai sua hostilidade velada e
sinaliza sua vitória sendo, ao menos teoricamente, a única pessoa presente
que não ri.77 (p.9, ênfase no original)
Voltando ao tema sexual, ouvintes e contadores teriam suas predileções
por temas, o que revelaria muito de sua personalidade: “a piada favorita de
uma pessoa é a chave para seu caráter”78 (p.16, ênfase no original), axioma
ainda mais válido para “pessoas altamente neuróticas”. Extrapolado do
indivíduo para a sociedade, esse conceito leva aos estilos nacionais de humor
sexual. Legman observou na Inglaterra alta incidência de piadas envolvendo
homossexualidade, por exemplo, o que parece indicar uma alta ansiedade
quanto ao tema.
O autor aborda também o que seria “uma das principais funções do
humor folclórico”, a racionalização, ou seja, uma
tentativa de tornar compreensível, ao menos crível, até suportável, pelo menos
como ‘piada’ – [...] alguma situação neurótica muito carregada na qual o
contador folclórico original esbarrou ou viu a si mesmo forçado a viver [...] O
76 “The purpose here is to absorb and control, even to slough off, by means of jocular presentation and laughter, the great anxiety that both teller and listener feel in connection with certain cultural determined themes. The really fearful themes , in our society, are, above all: venereal disease, homosexuality, and castration.”
77 “In the culminating laugh by the listener or observer – whose position is often really that of victim or butt – the teller of the joke betrays his hidden hostility and signals his victory by being, theoretically at least, the one person present who does not laugh.”
78 “a person’s favorite joke is the key to that person’s character”
53
conto folclórico ou piada representa um mecanismo protetor pelo qual a
seriedade, e mesmo a realidade física, da situação se possa negar e dela fazer
pouco [...], permitindo à tensão acumulada de viver essa situação, ou narrá-la,
ou ouvi-la, aliviar-se na inócua mas necessária explosão do riso. Esta é talvez
a principal função da criação de humor.79 (p.17-8)
Embora relacionada à teoria de Freud (pela liberação de energia e pelo
conceito de humor como economia em afeto), a racionalização nos parece uma
teoria do humor nova e de grande valia (ainda que parcial, obviamente), por
não ocorrer no âmbito do indivíduo como o “humor” freudiano (cf.p.29), mas em
escala social, relacionando-se com cultura e folclore. Um exemplo “extremo” é
fornecido na figura do conto folclórico Cocu, battu et content, aparecendo na
Europa primeiramente no sétimo conto da sétima jornada do Decameron
(1353) de Giovanni Bocaccio (1313-1375), passando pelo Contes et Nouvellles
(1665) de Jean de La Fontaine (1621 – 1695), e ainda como a história final de
Russian Secret Tales (1872); nele, dá-se um “jogo” sadomasoquista armado
pelo próprio marido (exceto na versão russa) que é “corneado, espancado e
contente” com o pretexto de testar a virtude da mulher – mas implicitamente
com o fim de restabelecer a própria virilidade, afirma Legman. Assim,
transforma-se “o que é um motivo de ansiedade crer que poderia realmente
acontecer, naquilo que é motivo de riso como uma ‘impossibilidade’ ou uma
‘piada’”80 (p.18). A insanidade cômica cumpre um papel importante na
racionalização, o de “escusar ou explicar as irracionalidades inexplicáveis dos
sadios [...] mais sérias, de algum modo, e mais inquietantes – mais necessárias
de expurgar pelo riso [...] – do que a mera insanidade”81 (p.21, ênfases no
original). Legman cita um casal que de forma jocosa “castra” um ao outro
79 “attempt to make understandable, or at least believable, even endurable, if only as a ‘joke’ – of some highly-charged neurotic situation intowhich the original folk-teller of the tale has stumbled, or has found himself forced to live [...] The folktale or joke represents a protective mechanism whereby the seriousness, and even the physical reality, of the situation can be denied and made light of [...] allowing the accumulated tension of living this situation, or telling about it, or listening to it, to relieve itself in the harmless but necessary explosion of laughter. This is perhaps the principal function of the creation of humor.”
80 “what is a matter of anxiety to believe could really happen, into what is amatter of laughter as an ‘impossibility’ or a ‘joke’.”
54
assumindo uma insanidade cômica, e o paralelo é feito com o personagem
shakespeariano Hamlet: “pode-se safar de qualquer coisa desde que se porte
como louco o bastante”82 (idem), concluindo que “estar louco é talvez a melhor
racionalização de todas”83 (p.22). Legman pretende com sua abordagem do
humor folclórico extrair
alguma ordem do caos daquela enorme categoria de contos e canções
folclóricos envolvendo comportamento antissocial ou antinatural, especialmente
nas áreas de alimentação, sexo, escatologia, sadomasoquismo, e suas muitas
combinações.84 (idem)
Isso remete diretamente a Bergson, para quem o riso é, acima de tudo,
um corretivo para o comportamento antissocial. Citando como exemplos gibis
de guerra modernos, filmes de agentes secretos, os “mais ferozes novellieri85
italianos”, os “mais impiedosos fabliaux”86 e baladas folclóricas, o autor vê na
tendência de apresentar tais histórias como se fossem verídicas – vide o Barba
Azul – uma necessidade de
personificar o que contadores e cantadores sabem bem ser peculiaridades
reais mas inexplicáveis do comportamento humano, as quais estão tentando de
81 “to excuse or explain the inexplicable irrationalities of the sane, [...] moreserious, somehow, and more disturbing – more necessary to be laughed of [...] – than mere insanity.”
82 “one can get away with anything if only one acts crazy enough.”
83 “being insane is perhaps the best rationalization of all”
84 “some order out of the chaos of that very large category of folktales and folksongs involving anti-social or anti-natural behavior, especially in the areas of food, sex, scatology, sado-masochism, and their various combinations.”
85 Escritores de coletâneas de contos em prosa caracterizados pela verossimilhança e final moralizante, dentre os quais se destaca Boccaccio.
86 “O termo refere-se a um gênero literário da Idade Média, de origem italiana. Consistia num conto humorístico curto com um final espirituoso. (PROPP, p.101n)
55
alguma forma encaixar em uma visão racional do mundo, seja como horror ou
como humor.87 (idem).
Passemos, por fim, a considerações sobre a circulação cultural histórica,
e o seu impacto sobre a cultura da modernidade nascente inglesa em que
Shakespeare produziu suas peças: Legman observa (p.25) que as belas-letras
francesas do “crucial século XVI” derivaram da Itália (o epicentro do
Renascimento, acrescente-se), assim como “a literatura e a poesia inglesa dos
séculos XVI e XVII extraem da França sua inspiração (apenas ocasionalmente
de modo direto da Itália, via traduções, como nas fontes de Shakespeare)”88
(p.25, ênfase adicionada). Lembremos que, das peças analisadas neste
trabalho, Bom é o que acaba bem tem como fonte um conto do Decameron de
Boccaccio (dia III, conto 9) , o qual também é fonte secundária para Medida por
Medida. Legman prossegue observando que essa trajetória é válida, mais do
que qualquer outra coisa, para “a arte popular ou sub-literária dos contos
humorísticos e piadas, chegando à Itália e à Espanha em primeiro lugar desde
a Conquista Árabe e durante os séculos que ela durou”89. Esta configurava a
“principal ponte” para a origem do humor da Europa ocidental, que, percorrida
de volta, leva “através da França, pela Itália (ou Espanha) e daí para o
Levante” – enquanto as tradições eslavas e germânicas poupariam o “desvio
ocidental”, os contos passando pela “Ásia Menor, via Turquia ou Grécia, até a
Europa Oriental” (idem). Indo mais longe, ele garante que “análogos históricos
e ‘originais’ europeus e levantinos” das piadas apresentadas em seu livro
87 “personify what the tellers and singers well know to be real but inexplicable peculiarities of human behavior, which they are attempting somehow to fit into a rational view of the world, whether as horror or as humor.”
88 “English literature and poetry of the sixteenth and seventeenth centuriestake their inspiration from France (only occasionally directly from Italy, via translations, as in Shakespeare’s sources).”
89 “the popular or sub-literary art of humorous tales and jokes, arriving in Italy and Spain in the first place from and during the centuries of the Arab Conquest.”
56
remontam tão longe, por vezes, quanto aos gregos Astéia ou Philogelos,
atribuídos a Hierocles e Philagrius no século IX A.D.; às Mil e uma noites
(século X), e aos novellieri italianos derivativos, tais como Boccaccio.90 (p.24).
Legman ressalta (p.24) a importância dos primeiros “compiladores de
livros de piadas”91 europeus: Poggio Bracciolini (a quem dedica sua obra),
Heinrich Bebel, e Girolamo Morlini (séculos XV e XVI), que vertiam para o latim
– para mais fácil circulação – as piadas92 recolhidas em vernáculo. E chama
atenção ainda (p.25-26) para “três obras raras contendo contos eróticos e
histórias de bobo em grego moderno, árabe e outros [idiomas] levantinos”93 –
La Fleur Orientale de J.-A Decourdemanche (1882), Contes Licencieux de
Constantinople et de l’Asie Mineure, coletados por Jean Nicolaidès (1906-09),
além dos franceses Histoires Arabes (1927) de ‘Khati Cheghlou’ (pseudônimo)
e – sua continuação ou suplemento – Les Meilleures Histoires Coloniales
(c.1935). Tais obras, defende Legman, “nas mãos de um anotador acadêmico”
de estatura,
poderiam servir como a Pedra de Roseta da transmissão das extraordinárias
histórias eróticas da Grécia Antiga para o mundo árabe, e do mundo árabe para
Espanha, Itália, e o resto da Europa, provavelmente via imigrantes judeus e
convertidos...”94
Ainda que no nosso trabalho não seja o caso traçar genealogias de
contos ou piadas mais longe do que a referida fonte italiana, tal panorama é
90 “traced as far back, on occasion, as the Greek Astéia or Philogelos attributed to Hierocles and Philagrius in the 9th century A.D.; the Arabian Nights (10th century), and the derivative Italian novellieri, such as Boccaccio.”
91 “jestbook compilers”
92 folk-jests
93 “three rare works presenting Modern Greek, Arabic and other Levantine erotic tales and fool-stories”
94 “could serve as the Rosetta Stone of the transmission of the extraordinary erotic stories of Ancient Greece to the Arab world, and from the Arab world to Spain, Italy, and the rest of Europe, probably via Jewish immigrants and converts...”
57
sugestivo da origem da mentalidade prevalente que informa o conteúdo sexual
das três peças-problema, discutidas nesta dissertação.
58
Capítulo 2: Shakespeare e Sexo
Fornicação, adultério e geração de bastardos (para ambos oslados) eram todos pecados sexuais intimamente relacionados: eleseram, assim, frequentemente aglutinados na linguagem legal como
‘incontinência’, e também eram punidos similarmente.
(Johanna Rickmann)
Antes de passar à análise do conteúdo sexual das peças-problema de
Shakespeare, convém investigar as percepções prevalentes na Inglaterra da
modernidade nascente no que diz respeito a questões relacionadas a sexo,
além de esboçar um sucinto panorama de como a sexualidade figura na obra
dramática do poeta nacional inglês. Na primeira seção deste capítulo, procura-
se contextualizar a dramaturgia de Shakespeare ante a realidade social em que
ele viveu e escreveu. O modo como a Inglaterra da época via questões de
gênero, casamento e separação, fornicação e adultério, bastardia e prostituição
é de central interesse para analisar o tratamento dado a esses temas pelo
autor. Na segunda seção, busca-se explorar o conteúdo sexual na obra
dramática do poeta inglês.
2.1Contexto da modernidade nascente
O conhecimento da realidade sexual da sociedade inglesa no período da
modernidade nascente é possível, geralmente, apenas de forma indireta, como
através da análise de registros religiosos e legais concernentes a casamentos
ou processos judiciais por crimes sexuais, por exemplo. Ainda assim, é
possível delinear de forma satisfatória o quadro de percepções vigentes sobre
temas ligados diretamente à sexualidade.
Inicialmente, é preciso situar a obra de Shakespeare no contexto da
Reforma Protestante: o dramaturgo nasceu quarenta e sete anos depois das
59
Noventa e Cinco Teses de Lutero (1483 – 1546). W. Reginald Rampone Jr., em
Sexuality in the Age of Shakespeare (2011), destaca que Lutero criticava o
celibato dos sacerdotes e considerava o sexo extremamente importante para o
casamento, defendendo o direito ao divórcio em casos de “adultério,
incompatibilidade, impotência e deserção” (p.19, ênfase adicionada).
Outro fator importante a se considerar que afeta a questão da
sexualidade é o caráter profundamente patriarcal da sociedade em questão,
que determinava ideais de gênero que “refletiam o ideal sociopolítico geral de
uma sociedade ordenada em estrita hierarquia: assim como monarcas e
patrões mandavam em súditos e serviçais, os homens mandavam nas
mulheres”95, aponta Johanna Rickmann em Love, Lust, and License in Early
Modern England (2008, p.11). O ideal feminino podia ser resumido pelo
trinômio “casta, silenciosa e obediente”, pressupondo virgindade antes do
casamento, fidelidade, passividade e submissão depois; já do homem se
esperava um mando razoável e, também, fidelidade. Mas “a realidade nem
sempre refletia esses ideais”96: maridos podiam abusar das esposas e recorrer
a amantes ou prostitutas, e esposas podiam se rebelar e incorrer em
infidelidade.
Daí o surgimento da influente literatura dos “livros de conduta” (“conduct
books”). Rampone Jr. (p.32) destaca a importância de Der Christlich Eestand
(1540), de Heinrich Bullinger (1504 – 1575), “circulado em Zurique”, anterior ao
inglês The Book of Common Prayer (1559), que representaria “o manual de
casamento mais popular composto por um importante pensador protestante”97,
e cuja tradução de Miles Coverdale (1488 – 1569) teve oito edições e exerceu
influência em escritores puritanos como William Gouge (1575-1553), John
Dodd (1549 – 1645) e Robert Cleaver (? – c.1613). É importante ressaltar que
o patriarcado não foi questionado pela Reforma Protestante, e Rampone Jr.
95 “mirrored the overall sociopolitical ideal of a society ordered in a strict hierarchy: as monarchs and masters ruled over subjects and servants, men ruled over women.”
96 “the reality did not always reflect those ideals...”
97 “the most popular marriage manual by a significant Protestant thinker.”
60
observa, citando Carrie Euler, que “uma razão para a popularidade do livro [de
Bullinger] era sua íntima semelhança com livros de conduta domésticos pré-
Reforma”98 (p.32). Uma das homilias elisabetanas de 1563, a Homily of the
State of Matrimony, “promulgava que o estado de matrimônio foi criado por
Deus para que mulheres e homens fossem capazes de viver em concórdia,
produzir filhos e evitar o pecado da fornicação”99 (p.33, ênfase adicionada). De
fato, sublinha Rickmann (p.13) que “de acordo com as tradições cristãs da
modernidade nascente, toda atividade sexual fora do casamento era ilícita”100
(p.13, ênfase no original); e que, mesmo dentro do casamento, “sexo que não
fosse para procriação (masturbação mútua, sexo oral etc.) também era
proibido”101 (p.13, n.38). A submissão feminina era defendida nos livros de
conduta como parte dos ensinamentos de São Paulo e São Pedro, justificada
com o argumento de que “o estado subserviente [das mulheres] era um produto
da queda em desgraça da humanidade no Jardim do Éden...”102 (RAMPONE,
Jr., p.33).
Dois desses escritores puritanos merecem destaque: William Gouge e
William Whately (1583 – 1639). Gouge, em seu Of Domesticall Duties (1622),
defendia que “os maridos não devem abusar de sua autoridade e, como
consequência, as esposas não devem ter razão para reclamar de sua posição
subserviente ante seus esposos.”103 (p.34); o puritano comparava um lar a um
estado, a ser governado pelo marido. Seu livro lidava com a questão do sexo
98 “one reason for the book’s popularity was its close resemblance to pre-Reformation domestic conduct books.”
99 “promulgated that the state of matrimony was created by God in order that women and men would be able to live in amity, produce children, and avoid the sin of fornication.”
100 “According to early modern Christian traditions, all sexual activity outside of marriage was illicit.”
101 “non-procreative sex (mutual masturbation, oral sex and so on) was also illegal.”
102 “...their subservient state was a product of humanity’s fall from grace inthe Garden of Eden.”
61
como sendo “necessária ao funcionamento do casamento”, daí ser ele “a favor
de permitir divórcios se o marido era impotente, mas não em caso de
infertilidade”104 (idem). Whately enfatizava o silêncio da esposa ante o marido e
outros homens, e a importância da subserviência mesmo que a mulher fosse
socialmente superior. Enquanto Whately desencorajava a agressão física como
“sinal de arrogância por parte do marido e abjeção por parte da esposa”105,
Gouge se lhe opunha por acreditar que “agredir sua esposa era equivalente a
agredir a si mesmo”, e que “bater em suas mulheres não era um modo
particularmente eficiente de corrigi-las”106 (idem).
Rickmann aponta nessa literatura e, na verdade, em toda Reforma
Protestante, um projeto de “criar lares estáveis e pios, governados por
patriarcas igualmente estáveis e pios”107. Ou seja, a Reforma não apenas
confirma como intensifica o patriarcado. Isso, para alguns historiadores, teria
gerado uma “crise nas relações de gênero”, e certamente “o século XVI e o
início do XVII testemunharam uma intensificação, às vezes muito estridente, do
discurso sobre a natureza de homens e mulheres e seus papeis de gênero
apropriados” (p.12). Rickmann acrescenta: “Na Inglaterra, este discurso tomou
a forma de uma torrente de panfletos misóginos e respostas proto-feministas
no início do século XVII.”108 (p.12, n.33).
103 “husbands are not to abuse their authority, and as a consequence wivesshould not have any reason to complain about her subservient position to her husband.”
104 “necessary to the functioning of marriage”, “in favor of permitting divorces if the husband was impotent but not in the case of infertility.”
105 “sign of arrogance on the part of the husband and abjection on the part of the wife...”
106 “striking his wife was equivalent to his striking himself”, “beating their wives was not a particularly efficient way of correcting them.”
107 “create stable, godly households, ruled by equally stable and godly patriarchs.”
62
Outro fenômeno de gênero nesse período eram as mulheres travestidas.
Rampone Jr. salienta que o “Rei Jaime (reinado: 1603 – 1625) expressou
ansiedade cultural sobre mulheres usando roupas de homem, especialmente
chapéus largos, doublets, e cabelo curto”, e também que “a preocupação
primária eram as calças, que simbolizavam o patriarcado”. A real causa de
ansiedade, porém, parece ser o fato de que “a aparência travestida indicava
disponibilidade sexual”109 (p.42). No que se refere a estereótipos de gênero, a
mulher era vista como mais lasciva. Aludem a isso ambos Rampone Jr. (p.24) e
Rickmann: “pensava-se que as mulheres eram mais sexualmente vorazes do
que os homens no século XVI e início do XVII”, uma vez que, se os homens
eram, pela teoria humoral, “dominados por calor e secura”, e então “capazes de
pensamento racional”, as mulheres eram “dominadas por frio e umidade”, o que
as fazia mais “‘carnais’, e portanto mais suscetíveis de ceder às tentações da
carne”110 (p.13).
Quanto a casamentos, Rampone Jr destaca que “complexos sistemas
de segurança providenciavam o bem-estar financeiro da noiva. Às vezes, o
sucesso da união dependia do dote matrimonial (o dinheiro ou propriedade com
que a esposa contribui para o casamento)”111 (p.36). Há dois casamentos
adiados por questões de dote em Medida por medida: entre Cláudio e Julieta e
entre Ângelo e Mariana. Como refletido na dramaturgia (na comédia Sonho de
108 “In England, this discourse took the shape of a flurry of misogynistic pamphlets and proto-feminist responses in the early seventeenth century.”
109 “King James expressed cultural anxiety about women wearing men’s clothes, especially wide hats, doublets, and short hair”; “The primary concern was the breeches, which signaled the patriarchy.”; “cross-dressed appearance indicated sexual availability.”
110 “women were thought to be more sexually rapacious than men in the sixteenth and early seventeenth centuries”; “dominated by heat and dryness”; “dominated by cold and moistness”; “‘carnal,’ and therefore more likely to give in to temptations of the flesh.”
111 “complex security systems provided for the financial well-being of the bride. Sometimes the success of the match would depend upon the marriage dowry (the money or property that the wife contributes to the marriage).”
63
uma noite de verão, ou na tragédia Romeu e Julieta), havia “certamente um
embate por poder entre o poder patriarcal da família e o desejo de felicidade
pessoal da parte da jovem dupla”112 (idem), ou seja, podia haver resistência a
casamentos arranjados. Casamentos nas altas classes deixaram mais
registros, e pareciam compreender mais etapas de formalidades do que
aqueles entre os menos abastados (p.35). Rampone Jr. aponta a idade média
para casamento nos séculos XVI e XVII na Inglaterra como “27 ou 28 anos
para homens e 25 ou 26 anos para mulheres” (p.37).
Havia dois tipos de voto de matrimônio, sponsalia per verba di praesenti
e sponsalia per verba de futuro.
“Primeiro, havia o contrato que podia ser articulado em verba de presenti [sic],
que era ‘um imediato e indissolúvel compromisso expresso pela palavra
‘aceito’; [e, em segundo lugar,] Verba de futuro, uma promessa de ação futura
expressa pela palavra ‘aceitarei’; ou condicionalmente, tal como ‘quando herdar
minha terra’ ou ‘se tua mãe nos doar uma casa’”113 (CRESSY, apud RAMPONE
Jr., p.36).
Em Medida por medida, o casamento per verba de futuro entre Ângelo e
Mariana é rompido por Ângelo, antes da ação da peça, após a perda do dote
da noiva em um naufrágio, e sem nenhuma transgressão por parte dele, pois,
segundo Marliss Desens em The Bed-Trick in English Renaissance Drama
(1956, p.81), citando Youings: “promessas feitas no tempo futuro,
especialmente se condicionadas a consentimento parental ou transferência de
terra ou bens, não geravam obrigação legal, a menos que acompanhados de
intercurso sexual”114. Este último requisito é o que o duque Vicentio providencia
112 “certainly a struggle for power between the patriarchal power of the family and the desire for personal happiness on the part of the young couple...”
113 “immediate and indissoluble commitment expressed by the words ‘I do’; Verba de futuro, a promise of future action expressed by the words ‘I will’; or conditionally, such as ‘when I inherit my land’ or ‘if your mother will provide us a house’.”
114 “promises made in the future tense, especially if conditional on parentalconsent or on settlement of land or goods, were not binding, unless followed
64
com o truque-do-leito (bed trick), fazendo com que Mariana substitua Isabela
no encontro amoroso com Ângelo. Já Cláudio garante que Julieta é sua
legítima esposa, faltando apenas o anúncio público: é um casamento per verba
de praesenti, mas um casamento clandestino.
Rickmann salienta que a rainha Elisabete I (reinado: 1558 – 1603)
controlava sexualmente os membros da sua corte como forma de preservar
sua própria reputação, enquanto Jaime I era mais leniente com a transgressão
sexual, a menos que associada a um crime mais sério, e que “membros da
nobreza que contraíam casamentos secretos ou clandestinos frequentemente
se viam declarados descasados ou banidos da corte, excluídos do favor real”115
(p.17). O já mencionado autor puritano William Gouge reforçava a necessidade
de testemunhas nas declarações de compromisso “uma vez que claramente
pensava nessa transação em termos legais”116 (p.37). A verdade é que “mesmo
casamentos clandestinos aconteciam em uma igreja com um sacerdote
ordenado realizando a cerimônia”, e os noivos cumpriam o requerimento legal
mínimo de consentimento mútuo, mas ainda assim “estavam longe de cumprir
suas obrigações legais e culturais casando-se desta forma”117 (p.38). A
consumação, apesar de considerada importante para a validade do casamento,
não era, de acordo com Thomas Ridley em A View of the Civile and
Ecclesiastical Law (1676), indispensável – aponta Rickmann (p.16) –, o que
nos remete à estratégia de Bertram em Bom é o que acaba bem, de desposar
Helena, mas com ela não dividir o leito para escapar ao casamento forçado.
Outro dado relativo aos casamentos na modernidade nascente se relaciona
não com uma peça, mas com a vida pessoal de Shakespeare. Rampone Jr. cita
by intercourse.”
115 “Noblemen and women who contracted secret or clandestine marriages often found themselves either declared unmarried or banned from court, cutoff from royal favor...
116 “as he clearly thought of this transaction in legal terms.”
117 “Even clandestine marriages took place in a church with an ordained minister performing the ceremony.”, “they were far from meeting their social and cultural obligations by marrying in this fashion.”
65
Cressy: “algo entre vinte e trinta por cento de todas as noivas tinham filhos nos
primeiros oito meses de casamento”118 (p.37), e Rickmann estima que “em
torno de uma em cada cinco noivas estava grávida na hora do casamento na
Inglaterra elisabetana”119 (p.14). Susanna Shakespeare, acredita-se, nasceu
seis meses após o casamento de William e Anne Hathaway, cujos anúncios
públicos (banns) foram encurtados para apressar a cerimônia.
Vejamos como a Inglaterra do período tratava a questão sexual em seu
aspecto legal – o fulcro do enredo de Medida por medida. Não apenas qualquer
ato sexual que não fosse marital e reprodutivo era considerado pecado pela
religião cristã (antes e depois da Reforma), mas “a fornicação, o adultério e a
ilegitimidade eram atos legalmente puníveis por todo o período da modernidade
nascente”120, diz Rickmann (p.15), acrescentando que
fornicação, adultério e geração de bastardos (para ambos os lados) eram todos
pecados sexuais intimamente relacionados: eles eram, assim, frequentemente
aglutinados na linguagem legal como ‘incontinência’, e também eram punidos
similarmente.121 (p.19).
Entretanto, não apenas a common law (justiça comum, em tradução
livre) inglesa se baseava mais em precedentes do que em um código, sendo
contenciosa e reinterpretada, mas “as leis da modernidade nascente para sexo
e reprodução eram frequentemente vagas, contraditórias e elásticas,
especialmente porque não estava sempre claro quem tinha jurisdição sobre
118 “some 20 to 30 percent of all brides [bore] children within the first eightmonths of marriage.”
119 “about one in every five brides was pregnant at the time of marriage in Elizabethan England.”
120 “Fornication, adultery, and illegitimacy were legally punishable acts throughout the early modern period.”
121 “Fornication, adultery and bastard –bearing and –begetting were all closely related sexual sins: they were therefore often lumped together in thelegal language as ‘incontinencie’ and also punished similarly.”
66
estas ofensas.”122 (p.15). “Em teoria, ofensas sexuais estavam sob a jurisdição
da cortes eclesiásticas”, mas “também podiam ser punidas sob a lei secular [...]
sob a rubrica de perturbação da ordem”123 (p.19). As cortes eclesiásticas eram
estabelecidas pelas igrejas: ao churchwarden (curador, responsável pelos
assuntos seculares) cabia a tarefa de denunciar paroquianos, mas Rickmann,
apoiando-se no historiador Martin Ingram, observa que tais curadores não
representavam uma polícia sexual, apresentando apenas os casos mais
notórios (idem). Apesar de autorizadas a impingir castigo corporal, as cortes
eclesiásticas “se concentravam em fazer os transgressores admitir sua ofensa
e fazer penitência pública”, consistindo em “usar um lençol branco e confessar
seus pecados em frente à comunidade”124. Quanto às punições das cortes
seculares para ofensas sexuais, as mais comuns eram o tronco (stocks) e o
açoite, chegando à prisão em caso de não pagamento pelos acusados da
pensão estipulada pelos filhos ilegais. Rickmann cita Keith Thomas para
acrescentar que a jurisdição secular
costumava assentar-se sobre o costume local, mas era ocasionalmente
reconhecida por mandado real, como em Boston, onde Elisabete I deu ao
prefeito e aos burgueses autoridade para punir frequentadores de prostitutas,
alcoviteiros, e ‘todos, sem exceção, vivendo lasciva e incontinentemente’.125
(idem).
122 “the early modern laws on sex and reproduction were often vague, contradictory, and elastic, especially since it was not always clear who had jurisdiction over these offenses.”
123 “In theory, sexual offenses fell under the jurisdiction of the ecclesiastical courts”; “could also be punished under secular law [...] under the heading of breaking the peace.”
124 “focused on having offenders admit their offense and give public penance”; “wear a white sheet and confess his or her sins in front of the community...”
125 “usually rested on local custom, but was occasionally recognized by royal charter, as at Boston, where Elizabeth I gave the mayor and burgessesauthority to punish whoremongers, panders, and ‘all whatsoever living lasciviously and incontinently’.”
67
Aparentemente, não há estudos extensivos para mostrar se era comum
o julgamento de uma ofensa sexual pelas cortes secular e eclesiástica ao
mesmo tempo, mas G.R.Quaife126 mostra que as instâncias podiam trabalhar
juntas, “mandando uma parte – geralmente o homem – para a corte
eclesiástica para punição quando ele se recusava a admitir culpa na corte
secular”127. (apud RICKMANN, p.20).
O julgamento de ofensas sexuais operava segundo um duplo critério
duplo: havia diferença no tratamento entre homens e mulheres – corolário
natural do patriarcado – e entre nobreza e plebe – desdobramento dos
privilégios de classe. Falando sobre bastardia – a grande inquietude social com
a fornicação, levando Elisabete I a contemplá-la nas Poor Laws (Lei dos
pobres, em tradução livre), “concebida para evitar que as paróquias tivessem
que pagar por crianças bastardas pobres”128 – Rickmann se ampara no
historiador Walter King para dizer que “homens e mulheres eram punidos
diferentemente”: “cortes seculares e eclesiásticas tendiam a punir mulheres
mais em bases morais”, e homens “‘por falhar em prover garantias para livrar
as paróquias do custo de manter os filhos’”129 (p.21). Na prática, Rampone Jr.
garante, a partir de Cressy, que “a taxa real de crianças nascidas fora do laço
de matrimônio era muito baixo, oscilando entre 2 e 4 por cento”130 (p.37). No
contexto do ato de 1650 – com os puritanos no poder no Parlamento – que
tornava fornicação e adultério crimes (felonies), com penas de três meses de
126 Wanton Wenches and Wayward Wives (1979; 216-20)
127 “sending one party – usually the man – to the ecclesiastical court for punishment when he refused to admit guilt in the secular court.”
128 “designed to keep parishes from having to pay for poor bastard children...”
129 “men and women were punished differently”; “Secular and ecclesiastical courts tended to punish women more on moral grounds”; “’for failing to provide sureties to free parishes of the cost of maintaining the children.’”
130 “The actual rate of infants born out of wedlock was very low, hovering between 2 and 4 percent.”
68
prisão para fornicação e de morte para adultério, este foi definido como aquele
da esposa e seu amante. “O adultério do marido era punido como
fornicação”131, Rickmann (p.23) observa, ressaltando que o ato de 1650 –
culminação de longos esforços para endurecer a lei contra ofensas sexuais –
raramente era empregado e constituiu uma anomalia na modernidade
nascente.
Quanto à distinção de classe, Rickmann, que estudou o sexo ilícito entre
a nobreza inglesa, encontrou apenas uma instância de adultério entre essa
classe que foi levada a julgamento nas cortes eclesiásticas.
Como regra, os curadores não levavam a nobreza às cortes eclesiásticas, e os
juízes de paz não os processavam por adultério ou fornicação. Em vez disso,
suas ofensas sexuais eram punidas diretamente pelo monarca, usualmente por
prisão, banimento da corte ou simplesmente por perda do favor real.132 (p.24).
A punição de penitência era vista como inadequada para “‘aqueles de
sangue nobre ou de estirpe’”, aos quais um ato (bill) de 1628 poupava tal
punição em troca de uma alta multa. Poder sustentar os filhos ilegítimos
também protegia a nobreza de processos. Rickmann conclui que a nobreza
“em essência estava acima das leis que valiam para as classes mais baixas”133
(idem). Em Medida por medida, Escalus usa em defesa de Cláudio o fato de
ele ter tido um “mui nobre pai” (2.1.7). Rickmann também identifica, além dos
privilégios sociais e legais da nobreza, um privilégio moral: mesmo a igreja
evitava advertir seus membros quanto a ofensas sexuais. A partir do estudo de
Peter McCullough134, Rickmann mostra que dos sermões das cortes
131 “Adultery of the husband was punished as fornication.”
132 “As a rule, churchwardens did not present the nobility in the ecclesiastical courts, and JPs did not prosecute them for adultery and fornication. Instead, their sexual offenses were punished directly by the monarch, usually by imprisonment, banishment from court or simply fall from royal favor.”
133 “in essence stood above the laws that ruled the lower classes.”
134 Sermons at Court: Politics and Religion in Elizabethan and Jacobean Preaching (Cambridge University Press, 1998)
69
elisabetanas e jaimescas estudados, “apenas um... aborda diretamente o
assunto do pecado sexual”, e “pode-se encontrar uma marcada ausência de
admonições expressas contra adultério e fornicação”135 (p.15). Ainda a mesma
autora nota (p.3-4) que, embora historiadores comumente equacionem honra
feminina e castidade, a nobreza conferia honra por si mesma, de modo a
“proteger a reputação [das mulheres nobres] mesmo se se envolvessem em
casos desonrosos”136.
Outro aspecto legal relacionado a questões de sexualidade é o divórcio.
Rickmann mostra que, se em teoria o casamento era um laço permanente, “em
casos de adultério ou extrema crueldade, era possível obter um divórcio das
cortes eclesiásticas”137 (p.17), embora esse divórcio não permitisse novo
casamento. Diferente do divórcio era a anulação, que deixava ambas as partes
livres:
As cortes eclesiásticas poderiam declarar um casamento nulo se pudesse ficar
provado que uma ou ambas partes eram de menor idade, sofriam de frigidez
ou impotência permanentes, tinham contrato prévio com outra pessoa, ou se os
noivos eram parentes em graus proibidos.138 (p.18, ênfase adicionada).
O uso do adultério como razão para divórcio segue a lógica do
patriarcado. Rampone Jr. observa que “quase sempre homens pediam
separação por conta de adultério, e mulheres... com base na violência de seus
maridos. [...] O adultério de um marido raramente constituía base para
135 “only one sermon directly approaches the subject of sexual sin”, “one can find a marked lack of express admonitions against adultery and fornication.”
136 “cushion their reputation to some extent, even if they got involved in dishonorable affairs.”
137 “In cases of adultery or extreme cruelty, it was possible to obtain a divorce from the ecclesiastical courts.”
138 “The church courts could declare a marriage annuled if it could be proven that one or both parties was under-age, suffered from permanent frigidity or impotence, had a prior contract with another person, or if the spouses were related within prohibited degrees.”
70
separação”139 (p.40). Já Rickmann salienta que “na realidade, o adultério da
esposa era usualmente visto como mais sério do que o adultério do marido”140
(p.14). Na cultura vigente, a honra masculina dependia do controle da
sexualidade da esposa, constituindo humilhação pública ser feito de corno
(cuckold); ainda pior era deixar de tomar alguma providência quando isso
acontecia, tornando-se um “corno manso” (wittol). Essa típica ansiedade
masculina é explorada comicamente no personagem Ford em As alegres
comadres de Windsor, e tragicamente nas figuras de Otelo na peça de mesmo
nome, Póstumo em Cimbeline e Leontes em Conto de inverno.
Passemos enfim a um tema que informa toda a trama secundária de
Medida por medida: o da prostituição. Rampone Jr. usa a realidade da Europa
Continental para mostrar como a prostituição costuma ser – no enquadre do
patriarcado – tolerada como um “mal social necessário”. Falando da Espanha,
e observando o pequeno número de prostitutas processadas pela Inquisição,
ele aponta que
a prostituição legalizada havia sido tolerada porque se acreditava que ela
prevenia transgressões sexuais muito mais sérias, a saber, adultério, incesto,
propostas indecorosas a mulheres castas e talvez o pior de tudo, o odioso
crime de sodomia141. (p.30)142.
139 “Almost always men sued for separation because of adultery, and women... on the grounds of their husband’s violence. [...] A husband’s adultery rarely constituted grounds for separation.”
140 “In reality, the adultery of the wife was usually regarded as more serious than the adultery of the husband.”
141 Para debater a questão da sodomia na Inglaterra da modernidade nascente, seria preciso uma pesquisa mais específica, mas Rampone Jr. (p.42) aponta que, apesar de ser a sodomia denunciada com veemência porreligiosos como o puritano John Rainolds (1549 – 1607), “houve supreendentemente poucos casos levados à corte” (p.42).
142 “Legalized prostitution had been tolerated because it was believed to prevent much more serious sexual transgressions, namely, adultery, incest, the propositioning of chaste women, and perhaps worst of all, the heinous crime of sodomy.”
71
Na França (p.32), onde havia bordéis licenciados, a coroa decidiu terminar sua
operação em 1560, o que nos remete à proclamação em Medida por medida
determinando o fechamento dos bordéis. Voltando à Inglaterra, Rampone Jr.
destaca que “mulheres que de fato se envolviam com a prostituição eram
conhecidas por seus usos de cosméticos”143 (p.41); e, também em Medida por
medida, há ao menos duas menções a esse fato: Lúcio pergunta a Pompeu se
Brígida “ainda se pinta”144 (3.2.70), e este conclui que, se a pintura é um
mystery – ministério, ou mister – a prostituição também o é, por usar pintura
(4.2.28-30)145. Outro índice da prostituição eram as roupas (p.42); em um
contexto em que o vestuário era marcador de status social, prostitutas usavam
seda, cetim, e tafetá146, os tecidos da nobreza, violando assim as sumptuary
laws, leis que regulavam as vestimentas da população estabelecendo
distinções de classe, e cuja única exceção era feita, acrescente-se, aos atores
de teatro, que podiam se vestir como nobres em cena.
2.2 Sexo na obra de Shakespeare
A temática sexual está presente em virtualmente toda a obra de
Shakespeare, em variados níveis de proeminência dramática, central ou
periférica à trama. O conteúdo sexual também pode figurar de modo cômico ou
sério, independentemente do gênero: comédias podem incluir usos cômicos e
não-cômicos do tema (como é o caso das três peças-problema analisadas
adiante), assim como as tragédias podem incluir desde a sexualidade trágica
de Otelo até o humor sexual do porteiro de Macbeth; e as peças históricas
trazem as piadas sexuais de Falstaff e seus companheiros, em Henique IV
143 “women who did engage in prostitution were known for their use of cosmetics.”
144 Tradução livre para o original “Does Bridget paint still...?”; a tradução de Heliodora, “continua pintando” não é muito clara.
145 “Painting, sir, I have heard say, is a mystery; and your whores, sir, beingmembers of my occupation, using painting, do prove my occupation a mystery.”; “Pintura, senhor, já ouvi dizer que é um mister; e as putas, senhor, sendo do meu ofício, usam a pintura pra fazer de sua ocupação um mistério.” (4.2.28-30).
146 Lavache, em Bom é o que acaba bem, fala em “taffeta punk” (2.2.17).
72
partes I e II como contribuições cômicas, e questões de bastardia em Rei João
ou Ricardo III, como elementos sexuais sérios.
Para traçar um panorama da representação da obscenidade – bawdy,
conteúdo sexual com intenção cômica – na obra de Shakespeare,
recorreremos a The dramatic use of Bawdy in Shakespeare (1974)147, de
E.A.M. Colman. O autor traça a evolução de seu uso pelo poeta inglês desde o
gracejo expletivo, passando pelo emprego na caracterização, até a integração
à trama; veremos, ainda, que no período em que Shakespeare produz as
peças-problema, suas obras parecem refletir uma náusea sexual, que leva a
especulações sobre a biografia do autor (na ficção de Anthony Burgess,
Nothing Like the Sun, ele é acometido de sífilis). Entretanto, Colman alerta que,
no que se refere ao tratamento de sexo, “as últimas peças de Shakespeare se
recusam teimosamente a recair em tais agrupamentos rigorosos como Peças-
Problema, Grandes Tragédias e Peças Tardias”148 (p.143). Lançaremos mão
também do glossário de Gordon Williams, Shakespeare’s Sexual Language
(1997), esclarecendo que as palavras em negrito indicam os verbetes do
glossário.
O primeiro grupo analisado é o das peças que usam a obscenidade
como simples farsa: são as comédias iniciais A comédia dos erros (1589), Dois
cavalheiros de Verona (1594) e Sonho de uma noite de verão (1595). Colman
salienta que as primeiras comédias “não se valem de tramas obscenas” (p.27).
Sobre A comédia dos erros, Colman comenta como Shakespeare cortou a
obscenidade de suas fontes Os Irmãos Menecmos e Anfitrião, de Plauto (c. 254
– 184 a.C.), acrescentando suas próprias menções a “chifres e cornos” (p.25),
e um diálogo sobre a geografia do corpo da serviçal Nell – incluindo uma piada
sobre sífilis, a “doença francesa”, e outra associando a genitália feminina aos
147 As citações retiradas do livro de Colman mantêm as referências de ato e cena em algarismos romanos, para diferenciação. As citações em algarismos arábicos foram retiradas das edições constantes na Bibliografia. As referências às traduções de Bárbara Heliodora foram convertidas de romanos para arábicos.
148 “Shakespeare’s later plays stubbornly refuse to fall into any such tidy groupings as Problem Plays, Great Tragedies and Late Plays.”
73
Países Baixos. As demais referências sexuais na peça “tendem a ser diretas,
não humorísticas, e portanto não obscenas”149 (p.26).
Uma característica de A comédia dos erros que se repete em Sonho de
uma noite de verão é a limitação da obscenidade ao âmbito da classe servil.
Nesta peça, boa parte do humor sexual é involuntário, produzido através dos
malapropismos150 (como entre “devorar” e “deflorar”) ou dos duplos-sentidos
(stone, “pedra” ou “testículo”). A peça Píramo e Tisbe, encenada pelos
artesãos, é o veículo para muitas piadas, como usos sugestivos para “buraco”
(hole) e “fresta” (chink).
Em Os dois cavalheiros de Verona, Colman observa que das “vinte e
seis ou vinte e sete linhas que podem ser razoavelmente consideradas
obscenas ou quase obscenas, vinte se distribuem entre os dois clowns, Raio e
Lança”151, com cinco cabendo a Júlia, cuja “percepção sadia da fisicalidade do
amor a salva do idealismo brumoso que envolve seu volúvel Proteu e seu
amigo Valentim”152 (p.31). Uma instância de quase obscenidade de Julia é
149 “tend to be direct, non-humorous, and therefore non-bawdy.”
150 Definido pela Encyclopaedia Britannica (online) como “equívoco verbal em que uma palavra é substituída por outra similar em som, mas diferente em significado. Embora William Shakespeare tivesse usado o recurso com efeito cômico, o termo deriva da personagem Mrs. Malaprop, de Richard Brinsley Sheridan, em sua peça The Rivals (1775). Seu nome vem do termo malapropos (do francês: “inapropriado”) e é típico da prática de Sheridan [e de Shakespeare] de elaborar nomes indicando a essência de um personagem.”; “verbal blunder in which one word is replaced by another similar in sound but different in meaning. Although William Shakespeare hadused the device for comic effect, the term derives from Richard Brinsley Sheridan’s character Mrs. Malaprop, in his play The Rivals (1775). Her name is taken from the term malapropos (French: “inappropriate”) and is typical ofSheridan’s practice of concocting names to indicate the essence of a character.” (Malapropism)
151 “twenty-six or twenty-seven lines that can reasonably be considered either bawdy or quasi-bawdy, twenty are shared between the two clowns, Speed and Launce.”
152 “sane awareness of love’s physicality saves her from the cloudy idealism that envelops her changeable Proteus and his friend Valentine.”
74
...maids, in modesty, say no to that
Which they would have the profferer construe ay153.
I.ii.55
Já entre Raio e Lança, merece destaque o diálogo sobre a leiteira que
Lança pretende desposar: (“‘tis a milkmaid; yet, ‘tis no maid”154), que faz um
paralelo com a Nell de A comédia dos erros como presenças femininas
carregadas de erotismo construídas apenas pelo discurso. Ambas refletem a
ansiedade masculina ante a sexualidade feminina. O espectro da infidelidade
da mulher é encarado com deboche por Lança, como será depois por Lavache
(Bobo) em Bom é o que acaba bem:
SPEEDItem: She is too liberal.
LAUNCE Of her tongue she cannot, for that’s writ down she is slow of; ofher purse, she shall not, for that I’ll keep shut. Now, of another thing she may,and that I cannot help. Well, proceed.155
III.i.338
Colman percebe em Os dois cavalheiros de Verona um jovem
Shakespeare “tateando o caminho rumo ao uso de obscenidade como um
elemento significativo de caracterização”156 (p.33), mas ainda de forma
inconsistente.
Outro recorte que faz o autor nas comédias, duas das iniciais, mais uma
mais madura, todas três destacadas pela obscenidade como ginástica verbal:
Trabalhos de amor perdidos (1594), A megera domada (1593) e Muito barulho
por nada (1598) são caracterizadas pelo combate espirituoso, em contextos de
batalha entre os sexos. Em Trabalhos de amor perdidos (1594), apenas uma
153 “Todas as virgens, por modéstia, negam/Aquilo a que mais querem dizersim.” (1.2.55-56)
154 “...é a moça do leite, mas não sei se é moça...” (3.1.265-266)
155 “RAIO Item, ela é muito liberal. LANÇA De língua não é, porque é de falalenta; de bolsa não será, pois a guardarei fechada. Bom, de uma outra coisapode ser, e para isso não tenho remédio. Continue.” (3.1.326-329)
156 “feeling his way towards the use of bawdy as a significant element of characterisation.”
75
personagem, a Princesa da França, evita a indecência, e “todos na peça, de
aristocrata a clown, gracejam às rédeas soltas e às vezes obscenamente”157
(p.35). A caça de cervos fornece uma série de trocadilhos no campo semântico
da conquista amorosa, como shooter/suitor, (atirador/pretendente), deer/dear
(cervo/querida), além de duplos sentidos obscenos, como horns (chifres, nos
sentidos literal e figurado), mark (alvo/vulva) e bow (arco/vulva). As piadas
podem ser previsíveis: “seis vezes Shakespeare brinca com light no sentido de
fácil ou pouco casta; três vezes ele invoca os familiares chifres do corno”158.
Já em A megera domada, há basicamente dois momentos de
espirituosidade indecente: a cena da corte de Petrúquio a Catarina e um
momento do banquete nupcial na cena final. Colman observa que Petrúquio
tem a maior parte das linhas obscenas: dez de um total de dezesseis são por
ele ditas ou a ele atribuídas. A batalha verbal entre Petrúquio e Catarina
(2.1.177-213) é uma das cenas mais eroticamente carregadas da obra de
Shakespeare. Ao ser comparado a um tamborete, Petrúquio diz a ela “Come sit
on me” (“Sente-se em mim”); e o embate prossegue com comparações a
bestas de carga:
KATHERINA Asses are made to bear, and so are you.
PETRUCHIO Women are made to bear, and so are you.
KATHERINA No such jade as you, if me you mean.
PETRUCHIO Alas, good Kate, I will not burden thee.159
O verbo to bear, usada por Catarina no sentido de “suportar carga”, ganha na
fala de Petrúquio os sentidos de “suportar o peso de um homem no ato sexual”
157 “everyone in the play, from aristocrat to clown, quibbles unrestrainedly and at times obscenely.”
158 “six times Shakespeare puns on light in the sense easy or unchaste; three times he invokes the familiar horns of cuckoldry.”
159 “CATARINA Burro e você são feitos para a carga. PETRÚQUIO Bela carga é a que é feita de mulheres. CATARINA Eu não sou pangaré como você. PETRÚQUIO – Querida Catarina, eu não lhe pesarei” (2.1.193-196) Os sentidos sexuais se perdem parcialmente na tradução.
76
e de “gerar filhos”. Em outra passagem, o trocadilho tale/tail (conto/rabo) é
usado por Petrúquio para sugerir sexo oral:
KATHERINA If I be waspish, best beware my sting.
PETRUCHIO My remedy is then to pluck it out.
KATHERINA Ay, if the fool could find it where it lies.
PETRUCHIO Who knows not where a wasp does wear his sting? In his tail.
KATHERINA In his tongue.
PETRUCHIO Whose tongue?
KATHERINA Yours, if you talk of tales, and so farewell. [She turns to go.]
PETRUCHIO What, with my tongue in your tail? Nay, come again. Good Kate, Iam a gentleman.160
uma vez que tail, “na gíria de Shakespeare, denota o órgão sexual feminino
com mais ou menos a mesma frequência que o masculino”161 (p.39).
A cena final traz mais diálogos obscenos. Petrúquio brinca com os
sentidos de to conceive: conceber uma ideia ou uma criança:
WIDOW Thus I conceive by him.
PETRÚQUIO Conceives by me! How likes Hortensio that?162
5.2.22-23
Muito barulho por nada é uma comédia mais madura, que reflete a
mesma preocupação com a linguagem. A impropriedade surge principalmente
160 “CATARINA Se sou vespa, cuidado com meu ferrão. PETRÚQUIO O remédio que tenho é arrancá-lo. CATARINA Um tolo assim não sabe onde elefica. PETRÚQUIO Quem não sabe onde ‘stá o ferrão da abelha? No rabo. CATARINA Na língua. PETRÚQUIO Língua de quem? CATARINA Se é por grossura, na sua; e adeus. PETRÚQUIO Que é isso? A minha língua no seu rabo? Kate; sou cavalheiro.” (2.1.204-210)
161 “in Shakespearean slang, denotes the female sexual organ just about asoften as the male.”
162 “VIÚVA É o que ele me levou a conceber. PETRÚQUIO Eu a levei a...? O que diz Hortênsio?” (5.2.22-23)
77
no confronto entre Beatriz e Benedito, que concentram metade das linhas
obscenas, ao passo que se nota uma ausência de obscenidade no nível social
inferior. Nas três peças marcadas pelo humor verbal, conclui o autor que “a
impropriedade sexual toma seu lugar ao lado de uma grande variedade de
invento espirituoso, e tende a ser usada ‘antissepticamente’”163 (p.45). Em
Muito barulho por nada, observa ele, mais do que nas comédias do início da
carreira, “a obscenidade começou a contribuir para a caracterização, e daí para
o desenvolvimento da trama.”164 (idem). O fato de Beatriz e Benedito usarem de
impropriedade sexual é um traço importante de suas personalidades fortes, o
que determina a trama de amor entre os dois.
Outro grupo delimitado por Colman também inclui peças do início da
carreira: a tragédia Titus Andronicus (1593) e a primeira tetralogia de peças
históricas: Henrique VI partes I,II e III (1591, 1590, 1590) e Ricardo III (1592),
que são marcadas pelo uso de obscenidade na caracterização. O autor
ressalta, no entanto, que esse recurso não se circunscreve a estas peças, mas
“segue sendo um de seus recursos frequentes tanto em drama sério como em
cômico”165 (p.47).
Na primeira parte de Henrique VI, a indecência é centrada em dois
personagens: Humphrey, duque de Gloucester, e Joan la Pucelle. Humphrey,
em discussão com o Bispo de Winchester, chama-o de Winchester goose
(“prima” de Winchester, em tradução livre), termo que designava prostituta e
traz aqui sugestões de doença venérea e proxenetismo, aludindo ao fato de
bordéis licenciados terem funcionado em prédios pertencentes à sé de
Winchester no reino de Henrique II. Vejamos o que diz o glossário de Williams
(Winchester goose): “bulbo ou inchaço sifilítico na virilha; prostituta ou cliente
de bordel do Bankside. Um ou ambos os sentidos podem estar presentes em
163 “sexual impropriety takes its place among a large variety of witty contrivance, and tends to be used ‘antiseptically’.”
164 “bawdy has begun to contribute to characterisation and hence to plot development.”
165 “remains one of his regular devices in serious drama as well as comic.”
78
[Henrique VI parte I] quando Gloucester repreende o bispo de Winchester...”166
A função da obscenidade é tornar a ofensa imperdoável, o que lhe confere
importância dramática. A respeito de Joan la Pucelle, cuja virgindade é central
à personagem, observa-se a dualidade santa/puta nas referências a ela. Para
os eventos finais de sua vida, a peça adota o modo de “obscenidade satírica”
(p.51): ao se defender, quando capturada, alegando estar grávida, é ironizada
por York: “Now, heaven forfend! The holy maid with child!”167 (V.iv.65), que
acrescenta ainda, mais adiante, quando ela passa a apontar como pai da
criança não mais Alençon, mas Reignier: “Why, here’s a girl! I think she knows
not well,/ There were so many, whom she may accuse.”168 (5.4.80-1).
A segunda parte de Henrique VI é notadamente menos obscena, e a
indecência é usada para indicar “baixo nível social e irresponsabilidade em
geral” (p.53), nas cenas de turba – o mesmo expediente ocorrendo em Júlio
César e Coriolano. O líder dos revoltosos, Jack Cade, reserva a si, em seu
imaginado governo, o privilégio de tirar a virgindade de todas as noivas: “There
shall not a maid be married but she shall pay to me their maidenhead ere they
have it.”169 (4.7.116-118).
Na terceira parte de Henrique VI, a obscenidade surge “em trocas
diretas de invectiva pessoal” (p.55). Ricardo e Eduardo fazem insinuações
quanto à legitimidade do filho da rainha Margaret, o que “cumpre a função de
manter a infidelidade de Margaret para com Henrique fresca na memória”170
(idem). Outra função da obscenidade em Henrique VI, parte III é delinear o
166 “syphilitic bulbo or botch in the groin; Bankside brothel whore or client. Either or both senses may operate in 1H6 [...] when Gloucester berates the bishop of Winchester...”
167 “Agora, que o céu a defenda! A santa donzela esperando um filho!” (Nova Aguilar, 1988, vol iii, p.426)
168 “Ora! Que donzela essa! Suponho que não tenha bem certeza, pois foram tantos, que não sabe a quem acusar.” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii, p.426)
169 “...nenhuma virgem se casará, sem me conceder sua virgindade, antes que lhe tirem...” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii p.489)
79
personagem de Eduardo IV. Retratado nas crônicas como suscetível a
mulheres bonitas, o novo rei tem a corte à viúva Grey comentada pelos irmãos
em um registro obsceno. A imoralidade fornece um contraste entre o pio
Henrique e o libidinoso Eduardo.
Colman observa que dada a “atmosfera cômico-macabra” de Ricardo III,
a peça é “surpreendentemente sem obscenidade” (p.58). Em uma das poucas
instâncias, Ricardo faz um trocadilho com os sentidos de naught: um geral
(nada) e um específico (eufemismo para sexo), em uma tirada sobre a amante
do rei.
BRAKENBURY With this, my lord, myself have naught to do.
RICHARD Nought to do with Mistress Shore? I tell thee, fellow,
He that doth naught with her, excepting one,
Were best do it secretly, alone.171
I.i.93
Uma das estratégias de Ricardo para atingir o trono é fazer circular tanto
a insaciabilidade sexual quanto a bastardia do irmão morto, cinicamente
recomendando a Buckingham cautela quanto a esta última acusação: “Yet
touch this sparingly, as ‘twere far off,/ Because, my lord, you know my mother
lives”172 (III.v.26). Colman aponta que, se Henrique VI parte I usa a obscenidade
de modo desajeitado, Ricardo III refina seu uso: “O pouco de indecência que a
peça tem está plenamente integrado com a sua caracterização e a estrutura da
trama”173 (p.60).
170 “fulfil the function of keeping Margaret’s infidelity to Henry fresh in our minds.”
171 “BRAKENBURY – Nada tenho a ver com isto, meu lorde. GLÓCESTER – Nada que ver com a Senhora Shore? Garanto-te, camarada, que aquele que tiver algo com ela, excetuando um, fará melhor em realizá-lo secretamente, a sós.” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii. p.581; o trocadilho se perde na tradução)
172 “Mas, tocai ligeiramente a respeito disto, como uma coisa no ar, porque, como sabeis, meu lorde, ainda vive minha mãe.” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii, p.622)
80
A última peça do grupo é a tragédia Titus Andronicus, que apresenta
uma sexualidade perversa. “Em um texto tão relacionado com crime sexual
quanto Titus Andronicus”, observa o autor, “não é matéria simples determinar
precisamente onde, ou por que, a sexualidade se torna obscenidade”174 (p.60).
O estupro não é obsceno (bawdy), pois não tem efeito cômico, mas alusões ao
estupro podem sê-lo, como aquelas do grupo dos criminosos: Demetrius,
Chiron, Aaron e Tamora. Ao incitar os filhos de Tamora à violência sexual,
Aaron brinca com dois sentidos de hit it: “acertar em cheio” e “copular”:
DEMETRIUS Aaron, thou hast hit it.
AARON Would you had hit it too!
Then should not we be tired with this ado.175
II.i.95.
Quando Aaron justapõe a to undo (arruinar) o verbo to do no sentido de
possuir sexualmente, na cena em que salva a vida de seu próprio filho, das
mãos dos meio-irmãos da criança, “a indecência entra em jogo para criar
contraste dramático”176 (p.62),
CHIRON Thou hast undone our mother.
AARON Villain, I have done your mother.177
IV.ii.71
173 “What little salacity it has is fully integrated with its characterisation and its plot structure.”
174 “In a text as much concerned with sexual crime as Titus Andronicus, it is no simple matter to determine precisely where, or why, the sexuality turns to bawdy.”
175 “DEMETRIUS – Acertou, Aaron. AARON – Por que não se acertam? Assim não nos cansávamos com isso.” (2.1.97-98)
176 “indecency comes into play to create dramatic contrast.”
177 “DEMETRIUS Vilão, o que fez? AARON O que não se pode desfazer.” (4.2.73-74) O jogo de palavras se perde na tradução.
81
Mesmo a recatada Lavínia tem linhas obscenas, que parecem estar em
contradição com a personagem, embora a alternância entre pureza e
vulgaridade faça sentido se tivermos em mente que não se deve buscar uma
heroína totalmente boazinha numa peça como esta (p.61-2). Recriminando a
adúltera Tamora, Lavínia também brinca com a convenção dos chifres: “‘Tis
thought you have a good gift of horning.”178 (II.iii.67).
Titus Andronicus, diz o autor, apesar de ser uma das primeiras peças de
Shakespeare, “revela em seu uso de obscenidade uma precisão e economia
que são inesperadas...”179 (p.64). Colman salienta que o uso de obscenidade
na caracterização prossegue em obras posteriores do autor. “Ninguém precisa
ser lembrado que gente como Falstaff ou Parolles, Tersites ou Pandarus,
Pompeu ou Lúcio, Boult ou seus patrões [...] são obscenos. Dispa-os da
indecência, e eles virtualmente deixarão de existir.”180 (idem). A afirmação pode
ser válida para Boult, mas é no mínimo exagerada para Pompeu, Lúcio ou
Parolles, questionável para Tersites e Pandarus, e absurda para Falstaff.
Colman vê uma evolução no uso de obscenidade por Shakespeare nos
próximos grupos estudados: “à medida que o próprio personagem se torna
cada vez mais inserido em questões mais amplas de atmosfera e tema,
metáfora e mito, também a obscenidade o faz”181 (p.65). O autor aponta que
quando Shakespeare progride à segunda série de peças históricas e às
comédias maduras, “fica mais fácil ver seu uso de indecência tomando uma
forma definitiva”182 (p.67). A obscenidade ganha proeminência nas cenas-
espelho, que implicitamente comentam a ação principal da peça (como as
178 “Pensam todos que sabe cornear” (2.3.67)
179 “reveals in its use of bawdy a precision and economy that come unexpectedly ...”
180 “Nobody needs to be told that people like Falstaff or Parolles, Thersites or Pandarus, Pompey or Lucio, Boult or his employers [...] are bawdy. Strip them of indecency, and they will virtually cease to exist.”
181 “as character itself becomes increasingly subsumed in the larger concerns of atmosphere and theme, metaphor and myth, so too does bawdy.”
82
cenas de taverna, confrontadas com as disputas aristocráticas em Henrique
IV).
O primeiro grupo estudado dessa segunda fase inclui Romeu e Julieta
(1594), O mercador de Veneza (1596), As alegres comadres de Windsor
(1600), Noite de Reis (1599), e Bom é o que acaba bem (1603). São peças em
que a obscenidade “ajuda a colocar grandes temas em perspectiva”183 (p.68).
Esta última é objeto desta pesquisa e será abordada no capítulo
correspondente.
Romeu e Julieta inicia com obscenidades trocadas entre Gregório e
Sansão, explorando duplos sentidos de palavras como stand (ficar ereto),
thrust (estocar), weapon (arma, pênis), ou tool (ferramenta, pênis). Seu diálogo
associa os impulsos do sexo e da violência. Ao longo da peça, Mercúcio
funcionará como comentador obsceno para Romeu enquanto a Ama cumprirá a
mesma função para Julieta. Mercúcio, por exemplo, caçoando do amor de
Romeu por Rosalina, tem as seguintes linhas:
Now will he sit under a medlar tree
And wish his mistress were that kind of fruit
As maids call medlars when they laugh alone.
O, Romeo, that she were, O that she were
An open-arse and thou a poppering pear!184
II.i.34
Recorrendo a Shakespeare’s Sexual Language, de Gordon Williams,
descobrimos que a nêspera (Mespilus germanica) era uma fruta com um
formato sugestivo que lhe rendia o nome popular de open-arse (ânus aberto);
182 “it becomes easier to see his use of indecency taking a definite shape.”
183 “it helps to place major issues in perspective.”
184 “Ela vai se encostar numa ameixeira./ Querer que a amada seja uma fruta igual/ À que faz rirem, em segredo, as moças./ E quase sempre chamam-na de ameixa./ Ai, Romeu, ai! Se ao menos ela fosse/ Uma ameixa,e você uma pêra pontuda!” (2.1.35-40)
83
essa fruta tinha a peculiaridade de só estar boa para o consumo quando podre.
Seu nome podia designar uma “mulher sexualmente disponível” (Williams,
medlar). Já em poppering pear, pera é metáfora para pênis (Williams, pear),
enquanto poppering seria uma brincadeira com “pop her in” (algo como “põe
para dentro”) e Poperinghe, cidade flamenga famosa pelas peras.
Na cena em que Romeu sabe de seu banimento de Verona e é procurado pela
Ama, “a justaposição de obscenidade e sentimento sério é impactante”185
(COLMAN, p.71). A obscenidade vem de duplos sentidos muito explorados,
como case (caso/genitália) e to stand (erguer-se/ter uma ereção).
O, he is even in my mistress’ case,
Just in her case! [...]
Stand up, stand up! Stand an you be a man.
For Juliet’s sake, for her sake, rise and stand!
Why should you fall into so deep an O?186
III.iii.85
Também a letra O, “como nought e nothing, servia como pronto portador de
associações sexuais para os elisabetanos, e parece ter vulva como sentido
secundário aqui” (p.71), assim como nas linhas de Mercúcio acima. Vemos em
Wiiliams (O) que a letra indicava “orifício vaginal”, e as duas passagens acima
são mencionadas (ver medlar).
O mercador de Veneza é “outra peça em que a indecência sexual tem
um papel significativo como paródia irônica, embora não necessariamente
como ‘realismo’”187 (p.74). Os primeiros atos têm em Launcelot Gobbo seu foco
de obscenidade, como quando ele faz o inventário de suas conquistas sexuais
185 “the juxtaposition of bawdy and serious feeling is startling.”
186 “O caso dele é o mesmo da patroa;/ Exatamente o mesmo. [...] Levante-se; levante-se se és homem./ Pelo bem de Julieta, fique de pé./ Como pudeste cair dessa maneira?” (3.3.84-85; 88-90)
187 “another play in which sexual indecency has a significant role as ironic parody though not necessarily as ‘realism’.”
84
(“alas, fifteen wives is nothing! eleven widows and nine maids is a simple
coming-in for one man”188, II.ii.149); Solanio, ao narrar o desespero de Shylock
quando roubado pela filha, dá ênfase à expressão two stones (duas
pedras/dois testículos), conferindo um sentido de emasculação à fuga da filha e
ao roubo dos ducados (aos quais Williams atribui o sentido de “testículos”;
ducat). As uniões de Pórcia e Bassânio, Nerissa e Graziano são pontuadas de
obscenidade, como a piada de Graziano com stake down (baixar a aposta/
perder a ereção). A cena final, em que Pórcia e Nerissa cobram dos maridos os
respectivos anéis, explora a associação entre esses objetos e a genitália
feminina; Graziano encerra a peça dizendo: “Well, while I live I’ll fear no other
thing/ So sore as keeping safe Nerissa’s ring.”189 (V.i.306).
Colman vê em As alegres comadres de Windsor um “padrão de
contrastes dramáticos bastante intricado”190 (p.78). Falstaff, diz o autor, não tem
linhas indecentes até o meio da peça, quando rejeita a ajuda de afrodisíacos:
“I’ll no pullet-sperm in my brewage”191 (III.v.26). Aparentemente, Colman não vê
sentido sexual, registrado por Williams (kiss), em “But not kissed your keeper’s
daughter?192 (1.1.89). O eufemismo ainda é usado em língua francesa. O
personagem Ford é fonte de humor obsceno pelo medo de ser traído. A lição
de latim do jovem William fornece terreno propício para as confusões de
Madame Quickly, que entende as palavras latinas como impropriedades em
inglês, como pulcher (belo) por polecat (prostituta). A ambiguidade da palavra
case (cujo sentido principal aqui é o gramático, o secundário denotando
genitália), a prosódia de Hugh Evans, que transforma vocative em focative
(brinca com fuck), e a repetição do som de “O”, “que pode ser visto tanto como
188 “ai, ai, quinze esposas não é nada, ainda tem mais onze viúvas e nove virgens, o que já é um bom começo para qualquer homem.” (2.2.147-149)
189 “E na vida, o maior cuidado meu/ Será cuidar do anel que ela me deu.” (5.1.305-306)
190 “quite intricate pattern of dramatic contrasts”
191 “não quero esperma de galinha nas minhas fermentações.” (3.5.25-26)
192 “Mas não beijei a filha do porteiro?” (1.1.88)
85
um símbolo da pudenda ou o eco de um grito orgásmico”193, todos conferem
obscenidade a estas linhas:
EVANS ...What is the focative case, William?
WILLIAM O – vocativo, O.194
IV.i.45
E mais adiante o caso genitivo (genitive case) é entendido por Mistress Quickly
como Jenny’s case (vulva da Jenny) e horum como whore (prostituta). Colman
defende que, em As alegres comadres, “as indecências... são mais variadas
em tom e efeito do que em qualquer outra peça até aqui”195 (p.84).
Em Noite de Reis, “se excetuarmos Feste, de fato, a indecência
inconsciente é quase a variedade padrão”196 (p.85). Malvolio lê a carta forjada
por Maria e reconhece a caligrafia de Olívia com uma frase sugestiva. “By my
life, this is my lady’s hand. These be her very C’s, her U’s and her T’s; and thus
makes she her great P’s.”197 (II.v.86). A explicação de Helge Kökeritz em
Shakespeare’s Pronunciation (1953) não vê jogo de palavras entre as letras C-
U-T e cunt (termo tabu para vagina), mas com cut (corte), que também
significaria vulva. Gordon Williams, em seu glossário (cunt), defende que “cunt
se completa por uma familiar redução de and para n” (C’s-U’s-aNd-T’s). Já “P’s”
soa como piss (urina), o que reforçaria a piada anatômica.
193 “which can be thought of as either a pudendal symbol or the echo of an orgasmic cry”
194 “EVANS Qual é o caso vocativo, William? WILLIAM Oh! Vocativo é oh!” (4.1.38-39)
195 “the indecencies here are more varied in tone and effect than in any other play so far”
196 “If we except Feste, indeed, unconscious ribaldry is almost the standardvariety”
197 “São esses seus “cês”, seus “tês”; é assim mesmo que faz seu P maiúsculo.” (2.5.70-72) O jogo de palavras sexual se perde na tradução.
86
Feste faz uma piada sobre dimensão peniana, que Colman não registra:
“Let her hang me. He that is well hanged in this world needs to fear no
colours”198 (1.5.4-5). O glossário de Williams define well hanged: “tendo
grandes genitais (de homens)”. Essa característica era tida como típica dos
bobos: “a deficiência mental do bobo é proverbialmente tida como compensada
na parte de baixo”199 (bauble), e Feste alude a essa crença (1.5.12-13): “God
give them wisdom that have it; and those that are fools, let them use their
talents”200 (talent: “pênis”). De modo geral, a obscenidade se limita aos
revellers (foliões) da trama secundária, estabelecendo um contraste com o
tratamento idealizado do amor na trama principal (Orsino não diz uma única
obscenidade); no entanto, Viola tem linhas em que “Shakespeare fala através
dela, diretamente à plateia”201 (p.85), como quando, em aparte, ela comenta: “A
little thing would make me tell them how much I lack of a man.”202 (3.4.255-6),
em que thing (coisa) alude às partes sexuais masculinas.
O próximo grupo analisado se compraz de peças que usam indecência
como realismo, e inclui Rei João (1596), Henrique IV partes I e II (1597, 1597),
Henrique V (1598) e Como quiserem (1599). Rei João inclui o tema da
bastardia de Phillip Faulconbridge, tema que não é obsceno em si, mas é
tratado pelo mesmo personagem com “franca hilaridade e insinuação maldosa,
alternadamente”203 (p.95).
198 “Pois que me enforque. Quem já está bem enforcado neste mundo não precisa ter medo de bandeira.” (1.5.4-5)
199 “the fool’s mental deficiency is proverbially thought to find compensation below.”
200 “Bem, que Deus dê sabedoria a quem a tem, e que os bobos saibam usar seus talentos.” (1.5.13-14)
201 “Shakespeare is speaking past her, and direct to the audience.”
202 “Por pouco que eu lhes digo o quanto falta para eu ser homem.” (3.4.348-249)
203 “alternately, buff hilarity and arch innuendo.”
87
Nas duas partes de Henrique IV, em especial na segunda, a trama
secundária da boa vida do príncipe Hal com Falstaff e amigos garante uma das
maiores incidências de linhas obscenas em todo o cânone (em contagem por
nós realizada a partir do glossário de Williams). O contraste entre a trama
principal, envolvendo questões de Estado, com “os fatos comicamente
intransigentes do apetite humano, sexual ou não”204, determina “a espécie de
peça histórica... destinada a se tornar caracteristicamente”205 shakespeariana
(p.98). A maior parte das obscenidades “se acumula em torno de Falstaff, que é
obsceno em si mesmo e a causa de obscenidade em outros homens”206 (p.99)
– com a notável exceção do príncipe. Na primeira parte, Falstaff diz da
taberneira: “She’s neither fish nor flesh, a man knows not where to have her”207
(III.iii.124); para Colman, “nem peixe nem carne” implica “nem macho nem
fêmea”, de modo que “um homem não sabe onde possuí-la” seria “uma das
pouquíssimas referências de Shakespeare ao intercurso anal”208 (p.100). Entre
os aristocratas, Hotspur é o único a se permitir o uso de obscenidades:
HOTSPUR Come, Kate, you are perfect in lying down.
[...]
LADY PERCY Now, God help thee!
HOTSPUR To the Welsh lady’s bed.209
III.i.221 ,
204 “the comically intransigent facts of human appetite, sexual and otherwise.”
205 “the kind of history-play... destined to become characteristically...”
206 “accumulates around Falstaff, who is bawdy in himself and the cause that bawdy is in other men.”
207 “Ora, porque não é nem peixe, nem carne. Um homem nunca sabe como reconhecê-la.” (Nova Aguilar, 1988, vol.III, p.186)
208 “one of Shakespeare’s very few references to anal intercourse.”
209 HOTSPUR Vamos, Kate, que é perfeita deitada: [...] LADY PERCY Ai, Deusque o ajude! HOTSPUR Até o leito da galesa.” (p.101-102)
88
Sobre a segunda parte, Colman observa que a obscenidade “ecoa, de
seu próprio modo estridente, a triste e inerte música de alguns dos monólogos
da peça”210, e que Falstaff “começa a aparecer consistentemente em uma luz
que é menos que rósea”211 (p.101). Um exemplo desse tom sombrio é a
personagem Boneca Rasga-Lençol (Doll Tearsheet), prostituta e amante de
Falstaff, que, ainda que inegavelmente engraçada, é representada bêbada,
doente e presa para ser açoitada. Também contribuem para esse mal-estar as
menções a doenças venéreas (“We catch of you, Doll, we catch of you”212,
II.iv.44). Colman observa que a obscenidade de Henrique IV parte II a aproxima
mais dos “dramas sombrios do século XVII do que daqueles de fato
contemporâneos seus em torno de 1597.”213 (p.103). Recorrendo ao glossário
de Williams, detectamos diversos exemplos de obscenidade em Henrique IV
parte II, dos quais destacamos alguns. A piada é sobre testículos (bullet) e
ejaculação (discharge) em um dos inúmeros double entendres.
FALSTAFF Welcome, Ancient Pistol. Here Pistol, I charge you with a cup ofsack; do you discharge upon my hostess.
PISTOL I will discharge upon her, Sir John, with two bullets.214
2.4.109-12
Dois termos alusivos a vagina (etcetera, nothing) são justapostos na pergunta
nonsense do mesmo Pistol, mais adiante: “And are etceteras nothing?”215
(2.4.182). Se, em Noite de Reis, Feste brinca com genitais avantajados,
210 “echoes,, in its own strident way, the still, sad music of some of the play’s monologues.”
211 “begins to appear consistently in a light that is less than rosy.”
212 “...pegamos de você, Doll; é de você que pegamos.” (p.70)
213 “the darker dramas of the 1600s rather than with its actual contemporaries around 1597.”
214 “FALSTAFF – Bem vindo, Alferes Pistol. Olha aqui, Pistol, estou-te carregando com um copo de vinho; descarrega na hospedeira. PISTOL – Descarregarei nela uma carga dupla, Sir João.” (Nova Aguilar, 1988, vol.III, p.240)
89
Falstaff imputa um pênis pequeno a Master Shallow: “When a was naked [...] A
was so forlorn that his dimensions, to any thick sight, were invincible. [emenda
de Rowe: invisible]”216 (3.2.295-99). Uma grande fonte de humor sexual são os
duplos sentidos involuntários incorridos pela Taverneira. Falando de Falstaff,
ela diz: “...he stabbed me in my own house, most beastly, in good faith. A cares
not what mischief he does; if his weapon be out, he will foin like any devil, he
will spare neither man, woman, nor child.”217 (2.1.16-18). No verbete foin,
descobrimos que o verbo, originalmente significando “estocar com arma
pontiaguda”, ganha o sentido de copular. Já weapon (arma) traz “insinuação de
pênis”, stab (estocar) é definido como “penetrar sexualmente”, e beast alude “à
loucura e ao animalismo que pode acompanhar a paixão sexual”.
Em Henrique V, com o sumiço de Falstaff, a obscenidade desempenha
um papel bem menos importante do que em ambas as partes de Henrique IV
(p.104). Duas são as passagens com piadas obscenas: a lição de inglês de
Catarina – em que encontramos os trocadilhos foot/foutre (pé em inglês/transar
em francês) e count/cunt (conde/vagina) – e o diálogo de Henrique com
Borgonha que sucede à corte de Catarina.
BURGUNDY ...If you would conjure in her, you must make a circle. [...] Can youblame her [...] if she deny the appearance of a naked blind boy in her nakedseeing self? It were, my lord, a hard condition for a maid to consign to.
[...]
KING HENRY ...I shall catch the fly, your cousin, in the latter end, and she mustbe blind too.
BURGUNDY As love is, my lord, before it loves.218
V.ii.288
215 “E os et coetera não são nada?” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii p. 241) O jogo de palavras sexual se perde na tradução.
216 “Quando ficava nu [...] Era tão fraco que, para alguém que não enxergasse bem, tinha as dimensões invisíveis.” (Nova Aguilar, 1988, v.iii p.255)
217 “Apunhalou-me em minha própria casa e da maneira mais brutal do mundo. Na realidade, não se preocupa com o mal que possa fazer, quando está com a arma de fora; dá estocadas como um diabo e não respeita mulher, homem ou criança.” (Nova Aguilar, 1988, viii, p.229)
90
Analisemos a primeira fala recorrendo ao glossário de Williams: temos os
verbetes conjure up, down: “alusivo a ereção e detumescência”; circle
“alusivo a vulva”; naked seeing self: “alusivo ao olho adicional das mulheres”
(naked blind boy sugerindo pênis); e hard: “insinuação para pênis ereto”. O
segundo trecho alude à virgindade de Catarina, que deve ser “cega do lado
posterior”, como “o amor é, até que ama”. Colman salienta que a obscenidade
é mais que “embelezamento trivial” porque, na trama política, “a princesa
simbolicamente é a França”219 (p.106, ênfase no original), conforme é expresso
pelo Rei da França: “...the cities turned into a maid, for they are all girdled with
maiden wall that war hath never entered.”220 (5.2.286-288). O uso de palavras e
frases obscenas, um acréscimo às fontes, reforça essa associação.
A obscenidade é a mais marcante diferença entre Como quiserem e sua
fonte, o romance Rosalynde (1590) de Thomas Lodge (1558 – 1625), cujas
figuras de porcelana dão lugar ao realismo cínico do bobo Touchstone, e às
tiradas picantes de Célia e Rosalinda. O melancólico Jaques (cujo próprio
nome é uma piada coprológica com jake, latrina), embora geralmente livre de
obscenidade, incorre em dois trocadilhos, supostamente citando Touchstone:
‘...And so from hour to hour we ripe and ripe,
And then from hour to hour we rot, and rot,
And thereby hangs a tale.’221
218 “Se quiseres encantá-la, deveis traçar um círculo; [...] Podeis censurar, [...] se recuse a evocar um menino nu e cego, que aparecerá assim diante dela em plena luz? Seria impor, meu lorde, uma condição bem dura a uma virgem”; “REI – ...apanharei a mosca, vossa prima, que se tornou, também, cega. BORGONHA – Como o amor, meu lorde, antes do amor. (Nova Aguilar, 1988, vol.iii, p.360-361)
219 “The Princess symbolically is France...”
220 “...cada uma dessas cidades faz o efeito de uma donzela, porque todas estão cercadas de muralhas virgens, que jamais foram tocadas pela guerra.” (Nova Aguilar, 1988, vol.iii p.361)
221 “’E de hora em hora amadurecemos,/ E depois, de hora em hora, apodrecemos,/ E está feita uma história’.” (2.7.26-28)
91
II.vii.26
A semelhança entre hour (hora) e whore (prostituta) era mais marcada na
chamada Original Pronuntiation (Pronúncia Original), modo como as palavras
eram articuladas no tempo de Shakespeare, conforme reconstituído pelo
trabalho de David e Ben Crystal; já tale (conto) era um trocadilho fácil para tail
(rabo, sugeria as partes sexuais masculina e feminina, cf.p.69), e o verbo to
hang (ficar dependurado) poderia indicar “impotência doente” (p.110).
O grupo seguinte reflete em seu uso de obscenidade uma repugnância
sexual, uma característica do período inicial do reino de Jaime I, marcado por
obscenidade séria na dramaturgia (p.112), e por maior leniência quanto aos
modos sexuais da corte, como já vimos (cf.p.59). Este grupo inclui as tragédias
Hamlet (1600), Otelo (1604), Rei Lear (1605), e Timon de Atenas (1607), além
das tragicomédias que “usam obscenidade como meio para repugnância ou
agressão”222 (idem): Troilus e Créssida (1601), Péricles (1608), e Cimbeline
(1609). As discussões sobre Troilus e Créssida serão incluídas no capítulo
dedicado à peça. Medida por medida, embora escrita no mesmo período, é
classificada pelo autor em outro grupo – aquele no qual a obscenidade introduz
“um senso de tolerância” (cf.p.89) – por tratar a sexualidade de modo mais bem
humorado, ou seja, não há repugnância ou agressão no conteúdo sexual.
Desens (1994) também aponta que, no período jaimesco, um “desejo de
explorar temas sexuais em maior profundidade se reflete na ascensão do
drama satírico e da forma jaimesca de tragicomédia...”223 (p.52).
Hamlet tem recebido muita atenção da crítica pós-freudiana devido ao
componente edipiano do protagonista. O casamento apressado da mãe com o
tio torna o príncipe um misógino convicto; e é Ofélia, inicialmente, a vítima de
agressão verbal de natureza sexual:
HAMLET I could interpret between you and your love, if I could see the puppetsdallying.
222 “use bawdy as a medium for disgust or aggression.”
223 “...desire to explore sexual issues in greater depth is reflected in the rise of satiric drama and the Jacobean form of tragicomedy...”
92
OPHELIA You are keen my lord, you are keen.
HAMLET It would cost you a groaning to take my edge off.224
III.ii.240
A resposta de Ofélia (keen significando satírico) sugere um sentido obsceno
para puppets dallying (fantoches balançando), mas o sentido é incerto; no
glossário de Williams, a entrada puppets dallying nos diz que “vários
comentadores sentiram uma coloração obscena”, proposições incluindo a
sugestão dos movimentos dos seios225 e voyeurismo por parte de Hamlet226. A
expressão to take one’s edge off sugere aqui “tirar a ereção” (Williams, edge),
o que custaria a Ofélia um gemido (perda de virgindade, embora groaning
fosse geralmente usado para a dor do parto).
Colman rejeita o sentido comumente atribuído à palavra nunnery
(convento), aquele de “bordel”, na primeira cena do terceiro ato, quando Hamlet
hostiliza Ofélia (get thee to a nunnery). Diz ele que “saber que tal uso era
possível no início do século XVII não é em si suficiente para demonstrar que
Shakespeare dele lança mão para Hamlet”227 (p.14). Essa instância
exemplifica, para ele, “a importância do tom geral de uma passagem em
determinar o que é indecente e o que não é”228 (idem). Como Hamlet é o
personagem mais inescrutável de Shakespeare, parece-nos difícil determinar
224 “HAMLET – Poderia narrar o que vai entre tu e teu amante, se eu pudesse ver como se acariciam os títeres. OFÉLIA – Sois agudo, senhor, sois agudo. HAMLET – Custar-te-ia um gemido tirar-me essa agudeza.” (3.2.235-238)
225 José Roberto O’Shea adota essa interpretação em seu O Primeiro Hamlet In-Quarto de 1603: “Eu poderia interpretar o amor que carregas, se pudesse ver esses peitinhos se mexendo.”
226 Bárbara Heliodora subscreve essa interpretação, ver nota 223.
227 “to know that such a usage was possible in early seventeenth century isnot in itself enough to demonstrate that Shakespeare avails himself of it for Hamlet.”
228 “the importance of general tone of a passage in determining what is indecent and what is not.”
93
qual era sua intenção; certamente o significado ostensivo é o literal (convento),
e a menção a evitar “conceber pecadores” faz, nesse caso, mais sentido, mas
fica aberta a possibilidade do duplo sentido para editores e diretores.
Na cena do quarto, Hamlet se mostra obcecado com a sexualidade da
mãe:
Rebellious hell,
If thou canst mutine in a matron’s bone
[...]
Nay, but to live/ In the rank sweat of an enseamed bed,
Stewed in corruption, honeying and making love
Over the nasty sty229
III.iv.82,91
A maior parte do conteúdo sexual deste grupo de peças não é de
natureza cômica, como é o caso do exemplo acima – e Colman aparentemente
amplia sua definição de obscenidade para incluir tais discussões – mas uma
piada sexual eventualmente ocorre. É o caso da troca entre Hamlet e os
recém-chegados Guildenstern e Rosencrantz sobre as “partes secretas da
Fortuna”:
HAMLET Then you live about her waist, or in the middle of her favours?
GUILDERNSTERN Faith, in her privates, we.
HAMLET In the secret parts of Fortune? O, most true; she is astrumpet.230
II.ii.228
229 “Se o inferno exalta assim uma matrona”; “Para viver num leito conspurcado,/ Em meio à corrupção, fazendo amor/ Em vil pocilga..” (3.4.87;98-100)
230 “HAMLET Vivem então em torno da cintura, em meio a seus favores? GUILDENSTERN Por nossa fé, na sua intimidade. HAMLET Nas partes secretas da fortuna? É verdade; ela é uma rameira.” (2.2.228-230)
94
Depois de Hamlet, ainda segundo Colman, a personagem com mais
linhas obscenas é, surpreendentemente, Ofélia em sua loucura. Ou nem tanto,
uma vez que “não surpreende que Ofélia, tendo perdido o juízo, deva agora ser
apresentada repisando obsessivamente os aspectos sexuais de uma inocência
perdida”231 (p.116). É uma interpretação possível que Ofélia se referia a si
mesma e a Hamlet ao cantar “Quoth she, ‘Before you tumbled me,/ You
promised me to wed.’”232 (IV.v.67), ficando implícito que os dois teriam ido para
a cama.
Colman aponta a semelhança entre Otelo e Hamlet: homens ilustres dão
vazão a obscenidades viciosas, fruto da desilusão com suas amadas.
“Desdêmona e Ofélia são inocentes e castas, ainda assim, eles se dirigem a
elas como se fossem prostitutas”233 (p.121). Colman vê em Otelo uma prova de
que Shakespeare, em 1604, “aprendeu a usar os aspectos amargo e alegre da
indecência em poderosa combinação”234 (p.126). Iago usa imagens de
animalismo, e de cunho racista, para sugerir a Brabantio a cópula entre Otelo e
Desdêmona: “Even now, now, very now, an old black ram/ Is tupping your white
ewe”; “you’ll have your daughter covered with a Barbary horse”235 (I.i.91,119); e,
sem sucesso, tenta envolver em diálogos obscenos Desdêmona (“You rise to
play and go to bed for work”236, II.i.113), e Cássio (“What an eye she has!
Methinks it sounds a parley of provocation”237, II.iii.20). Um exemplo do
231 “Small wonder that Ophelia, having lost her wits, should now be depicted as dwelling obsessively on the sexual aspects of a lost innocence.”
232 “Pois antes de eu ter caído,/ Jurastes ser meu marido.” (4.5.62-63)
233 “Desdemona and Ophelia are innocent and chaste, yet both are spoken to as if they were prostitutes.”
234 “has learned to use the bitter and lighthearted aspects of indecency in forceful combination.”
235 “Neste momento, um bode velho e preto/ Cobre a sua ovelhinha!”; “terá sua filha coberta por um garanhão da Barbária;” (1.1.87-88; 11-112)
236 “Na casa brincam, o ofício é na cama.” (2.1.115)
237 “E que olhos! A mim parecem um desafio ou provocação.” (2.3.29)
95
engenho de Iago é o episódio conhecido como “o sonho de Cássio”, em que
narra como este teria acariciado seu corpo em sonho dizendo o nome de
Desdêmona. Colman vê na passagem uma dupla obscenidade “já que combina
sugestões indefinidas de sodomia com a mais precisa descrição de um coito
em todo o cânone de Shakespeare”238(p.123). Já a obscenidade de Otelo seria
de um tipo desesperado, um indicador de seu autocontrole flutuante a partir de
certo ponto. Chegada enfim a revelação pública das maquinações de Iago e da
inocência de Desdêmona, não há mais espaço para a obscenidade. A última
linha da canção do salgueiro (“If I court moe women, you’ll couch with moe
men”239, IV.iii.54) cumpre a mesma função dramática que a obscenidade nas
canções de Ofélia. Emília, nessa cena, assume postura análoga à da Ama de
Romeu e Julieta, poderia Colman observar, contrapondo à idealização do amor
um realismo calejado: falando sobre adultério, Emilia garante que não o
cometeria pela luz do céu, preferindo para isso o escuro: “Nor I neither, by this
heavenly light;/ I might do ‘t as well i’ th’ dark.”240 (4.3.75-76).
Assim como Romeu e Julieta, Rei Lear traz linhas obscenas tão logo se
inicia, no diálogo entre Kent e Gloucester a respeito do bastardo Edmund,
sobre quem seu pai diz: “yet was his mother fair; there was good sport in his
making, and the whoreson must be acknowledged”241 (I.i.16). A concepção de
Edmund ganha cores mais morais, e sombrias, no fim da peça, Edgar dizendo
ao meio-irmão “The dark and vicious place where thee he got/ Cost him his
eyes”242 (V.iii.170). Outras fontes de obscenidade são o Bobo, a performance
de “Pobre Tom” de Edgar, e a diatribe misógina de Lear, que, juntas, apontam,
238 “since it combines indefinite suggestions of sodomy with the most precise description of a coital act in all of Shakespeare.”
239 “Cada traição só enche mais sua cama.” (4.3.54)
240 “Nem eu tampouco, pela luz do céu./ Era melhor que o fizesse no escuro.” (4.3.63-64)
241 “mesmo assim sua mãe era bonita, fazê-lo foi um bom divertimento, e o filho da mãe deve ser reconhecido.” (1.1.19-21)
242 “O lugar negro em que te concebeu/ Custou-lhe os olhos.” (5.3170-171)
96
segundo o autor, para “a visão da peça do impulso sexual como uma força no
destino humano”243(p.127), o que é enunciado sem uma fundamentação muito
sólida.
O humor do Bobo traz um tipo de obscenidade que é, geralmente,
periférico, mas pode ter a função dramática de criar um “gélido pathos em
momentos de clímax.”244 (p.128). O exemplo dado é da passagem em que Lear
se desespera (“O let me not be mad, not mad, sweet heaven!”245; 1.5.39) e o
Bobo contrasta a tragédia pessoal do rei apunhalado pelas filhas mais velhas
com uma canção indecente: “She that’s a maid now, and laughs at my
departure,/ Shall not be a maid long, unless things be cut shorter.”246 (I.v.48). O
personagem Poor Tom, assumido por Edgar, por sua vez, retorna
insistentemente aos temas de fornicação e adultério:
...served the lust of my mistress’ heart and did the act of darkness with her [...]Keep thy foot out of brothels, thy hand out of plackets.247
III.iv.83,86;
No glossário de Williams, temos em placket: “anágua, daí a mulher usando;
também a fenda no topo de uma saia ou anágua, daí vagina”248. Lear em sua
loucura tem um discurso (IV.vi.110) em que, dirigindo-se a Gloucester,
menciona o tema de Medida por medida, a punição ao crime sexual:
243 “the play’s vision of the sexual urge as a force in human destiny.”
244 “...chilled pathos at moments of climax.”
245 “Que eu não fique louco, céu; não louco!” (1.5.38)
246 “A virgem que hoje ri porque eu vou só,/ Só fica virgem se eu ficar cotó.” (1.5.43-44)
247 “satisfazia a luxúria do coração de minha ama, e fazia com ela o ato obscuro”, “mantenha os pés fora de bordéis, as mãos fora das fendas nas saias,” (3.4.77-78; 85-86)
248 “petticoat, hence the woman wearing it; also the slit at the top of a skirt or petticoat, hence vagina”
97
“Adultery?/Thou shalt not die. Die for adultery? No.”249 Mais adiante, incita à
cópula: “Let copulation thrive”250, e por fim faz sua invectiva contra a mulheres,
especificamente contra a sua sexualidade:
Down from the waist they are centaurs,
Though women all above.
But to the girdle do the gods inherit;
Beneath is all the fiend’s. There’s hell, there’s darkness,
There is the sulphurous pit, burning, scalding,
Stench, consumption!251
4.6.122-27
Edgar fará na cena final a mesma associação entre o sexo da mulher e um
lugar de trevas, como visto acima (cf.p.86).
Se nos três primeiros atos de Timon de Atenas há muito pouca
indecência – e aquela que há vem do humor negro de Apemantus – o quarto
ato “traz uma explosão de obscenidade amarga e obcecada vinda do herói da
peça”252, antes e após o surgimento no palco das prostitutas Phrynia e
Timandra. Em sua diatribe, Timon manda a empregada para a cama do patrão,
pois a patroa está no bordel (“Maid, to thy master’s bed;/Thy mistress is
o’th’brothel.”253; 4.1.12-13). Em outro momento, a alusão é à sífilis e às suas
consequências como ossos ocos, narizes corroídos e calvície: “Consumption
sow/ In hollow bones of man; [...] Down with the nose,/ Down with it flat, take
249 “Adultério?/ Não morrerás. Por adultério? Não!” (4.6.105-106)
250 “Que grasse a cópula.” (4.6.109)
251 “Da cintura para baixo são centauros, mesmo sendo mulheres mais para cima. Deuses são só da ilharga para cima; pra baixo só há demos, negro inferno; a fonte do enxofre – queima, escalda, fede e consome;” (em prosa; 4.6.117-120)
252 “brings an explosion of bitter, obsessed obscenity from the play’s hero.”
253 “O amo, no leito,/ tenha a serva, com a ama no bordel!” (4.1.12-13)
98
the bridge quite away” [...] make curl’d-pate ruffians bald”254 (4.3.152-153; 158-
159; 161). Colman observa que Timon de Atenas e Troilus e Créssida são as
peças em que o cinismo sobre a experiência sexual tem a última palavra sobre
o tema (p.134).
Cimbeline é uma peça que no tema sexual destoa do agrupamento
tradicional de romances ou peças tardias, tendo afinidades com Otelo, Rei Lear
e Timon de Atenas, “peças nas quais os elementos sexuais são raramente
engraçados e frequentemente sinistros”255 (p.135). A obscenidade cumpre
distintas funções para os três personagens a ela associados: Iáquimo, Póstumo
e Cloten. Iáquimo, uma versão menos bem sucedida de Iago, usa-a para
provocar ciúmes: “but you know strange fowl light upon neighbouring ponds”256
(I.iv.84). Póstumo, convencido do adultério de Imógene, é acometido de “uma
tipicamente jaimesca náusea sexual”257 (p.136): “she hath bought the name of
whore thus dearly”258 (II.iv.128). Nossa empatia com o herói é diminuída por
suas “fulminações obscenamente absurdas”:
This yellow Iachimo in an hour, was’t not?
Or less? At first? Perchance he spoke not, but,
Like a full-acorned boar, a German one,
Cried ‘O!’ and mounted;.259
2.5.15-18
Cloten representa outra ameaça à castidade de Imógene, e usa de duplos
sentidos grosseiros para se referir a ela; diz ele aos músicos: “Come on, tune.
254 “Semeiem tísica,/ Em ossos ocos”; “Acabe com o nariz,/ Que fique chato”; “Que fiquem calvos” (4.3.154-155; 160-161; 163)
255 “plays in which the sexual elements are rarely funny, often sinister.”
256 “mas sabe que aves estranhas pousam em lagos vizinhos.” (1.5.69-70)
257 “a typically Jacobean sexual nausea”
258 “pagou caro para ser puta.” (2.4.130)
259 “E esse demônio a teve em um’hora?/ Ou menos; logo? Talvez nem falasse,/ Mas qual chifrudo javali germânico/ Só gritou e montou...” (2.4.169-172)
99
If you can penetrate her with your fingering, so. We’ll try with tongue too”260
(2.3.14-15). Duas cenas de Cimbeline são sexualmente carregadas de uma
forma sinistra: a primeira é Iáquimo invadindo o quarto de Imógene, um estupro
simbólico reforçado pela presença do livro aberto na história ovidiana do
estupro de Filomel (referência já usada em Titus Andronicus); a segunda é
quando Imógene acorda ao lado do corpo decapitado de Cloten e o toma pelo
marido Póstumo, numa versão mórbida de truque-do-leito (bed-trick), recurso
dramático que envolve uma substituição de parceiro na cama, e figura em duas
das peças-problema, sendo discutido adiante.
A questão da autoria dos dois primeiros atos de Péricles não afeta o
estudo da obscenidade, uma vez que ela só surge no quarto ato,
consensualmente de Shakespeare, no qual três cenas se passam em um
bordel. Tais cenas têm sido comparadas com o submundo de Medida por
medida. O Cafetão fala de suas prostitutas, contaminadas pelas doenças
venéreas: “and they with continual action are even as good as rotten”261 (IV.ii.8-
9), as quais podem ser letais: “the poor Transylvanian is dead that lay with the
little baggage”262 (4.2.17-18). Em relação à fonte, o romance The Pattern of
Painful Adventures (1576), de Lawrence Twyne (c.1540 – 1588), a peça de
Shakespeare elimina a sugestão de prosperidade do negócio do sexo e
enfatiza a lascívia depravada de seus agentes. Colman postula que, “do ponto
de vista da técnica em desenvolvimento de Shakespeare no uso dramático de
obscenidade, Péricles mostra o balanço mais distante do pêndulo para longe
das indecências casuais de suas primeiras comédias”263 (p.140). A indecência
260 “Vamos, afinados: se a puderem penetrar com seu dedilhado, ótimo. Vamos tentar com a língua também...” (2.3.10-12)
261 “e com o uso constante elas já estão quase podres.” (4.2.6-7)
262 “O coitado do homem da Transilvânia morreu, o que dormiu com a putinha.” (4.2.16-17)
263 “from the point of view of Shakespeare’s developing technique in the dramatic use of bawdy, Pericles shows the farthest swing of the pendulum away from the casual scurrilities of his very early comedies.”
100
está plenamente integrada à trama, e cumpre a função dramática de aumentar
a expectativa quanto ao futuro de Marina.
O último grupo analisado é caracterizado por um “senso de tolerância”
(p.143) introduzido pela obscenidade. Medida por medida pertence a este
grupo, mas será discutida em um capítulo próprio. As demais peças seriam a
tragédia Antônio e Cleópatra (1606), e as últimas três peças: Conto de inverno,
(1610), A tempestade (1611), e a parceria com John Fletcher (1570 – 1625),
Henrique VIII (1612). Colman não aborda a outra colaboração da mesma dupla,
Os dois primos nobres. Antônio e Cleópatra é regida pela mesma dualidade
que Medida por medida, uma vez que Shakespeare “pode ser visto
manipulando a obscenidade de uma forma que, simultaneamente, reconhece o
poder de corromper do impulso sexual e assevera sua resiliência vital”264
(p.143). Medida por medida também “aponta adiante para as complexidades de
Antônio e Cleópatra e Conto de inverno, onde o sexo será mais do que nunca
capaz de despedaçar o tecido social”265 (p.147). Colman mostra que, nesse
grupo final, a “tendência a discriminar na colocação dramática de indecência
agora atinge o ponto culminante”266 (p.144).
Em Antônio e Cleópatra, ambas visões do sexo, como uma força vital a
ser celebrada e como impulso destrutivo para os protagonistas e suas relações
políticas, são representadas antiteticamente: “mais uma batalha
shakespeariana entre um amor idealizado e uma oposição galhofeira”267
(p.147). Antônio é acusado de se tornar “a strumpet’s fool” (o bobo de uma
puta), seu coração transformado em “the bellows and the fan/ To cool a gipsy’s
264 “can be seen to be manipulating bawdy in a way that simultaneously acknowledges the corrupting power of the sexual urge and asserts its vital resilience.”
265 “points ahead to the complexities of Antony and Cleopatra and The Winter’s Tale, where sex will more than ever be capable of shattering the social fabric.”
266 “tendency to discriminate in the dramatic placing of indecency now reaches culminating-point”
267 “yet another Shakespearean struggle between an idealised love and a mocking opposition”
101
lust”268 (I.i.9). As funções da obscenidade em Antônio e Cleópatra são ajudar a
“estabelecer e manter na peça o equilíbrio entre o transcendentalismo do caso
amoroso e a deveras aparente sensualidade”269 e “contrastar Cleópatra
temperamentalmente com Antônio”270 (p.148). Enobarbus comenta a morte de
Fulvia de modo equívoco: “If there were no more women but Fulvia, then had
you indeed a cut, and the case to be lamented.”271 (I.ii.156), onde “cut” e “case”
sugerem um sentido auxiliar de genitália feminina. Antônio, ao se crer traído por
Cleópatra, recorre à convenção dos chifres: “O that I were/ Upon the hill of
Basan, to outroar/ The horned herd!272” (3.13.126-28).
Conto de inverno tem dois momentos de obscenidade: o primeiro nas
fantasias ciúmentas de Leontes, que o aproximam de Otelo e Póstumo (sem
um instigador), e outro nas cenas pastorais na Boêmia. Leontes se convence
da traição de Hermíone (tão inocente quanto Desdêmona, Imógene e Hero) e
se lamenta:
Inch-thick, knee-deep,o’er head and ears a forked one!Go play, boy, play: thy mother plays, and IPlay too – but so disgraced a part, whose issueWill hiss me to my grave.273
I.ii.186 Mais adiante, recorre a uma imagem já familiar para a temida infidelidade
feminina: “his pond fished by his next neighbour”274 (1.2.194), similar à usada
por Iáquimo (cf. p.88) e também – ainda que não se trate de infidelidade – ao
268 “Tornou-se o fole e o leque que refrescam/ O cio da cigana.” (1.1.9-10)
269 “stablish and maintain the play’s balance between the transcendentalism of the love-affair and the all-too-apparent sensuality”
270 “contrasting Cleopatra temperamentally with Antony.”
271 “Não houvesse mulher além de Fúlvia, teria recebido realmente um golpe, e o caso merecia lamentos.” (1.2.157-158) O jogo de palavras se perde na tradução.
272 “Quem me dera/ No topo de Basã urrar mais alto/ Que o rebanho chifrudo.” (3.13.132-134)
273 “Me afundo em lama e, na cabeça, chifres./ Brinca, menino; brinca a mãe e eu/ Brinco também, mas em papel tão sórdido/ Que as vaias matam;”(1.2.184-187)
102
“groping for trouts in a peculiar river”275 com que Pompeu descreve o “crime” de
Cláudio em Medida por medida.
O Pastor, ao encontrar Perdita abandonada, apressa-se em julgar o ato
sexual que a engendrou: “this has been some stair-work, some trunk-work,
some behind-door-work. They were warmer that got this than the poor thing is
here.”276 (III.iii.72-74). Um personagem que introduz certa dose de obscenidade
é Autólico: “...summer songs for me and my aunts/ While we lie tumbling in the
hay”277 (4.3.11-12); aunt aqui significa “prostituta”, e to tumble sugere a cópula.
Mesmo Perdita incorre em leve obscenidade ao falar sobre o craveiro
mesclado, os “bastardos da natureza”.
A tempestade é uma peça de pouca impropriedade vocabular. “Afora
[um] meio-oculto embate entre licenciosidade e controle, tal como simbolizado
[nos personagens] Caliban e Ferdinand, a obscenidade tem pouco espaço em
A tempestade.”278 (p.155). Esse embate se concretiza na tentativa de estupro
de Miranda por Caliban antes da ação da peça (“I had peopled else/ This isle
with Calibans”279; I.ii.350), e no empenho de Próspero para que Ferdinand e a
filha não apressem a consumação do casamento (“Look thou be true; do not
give dalliance/ Too much the rein”280; 4.1.56-57). Na mascarada apresentada
por Próspero, é peculiar que Ceres (deusa da fertilidade) seja convidada,
274 “o vizinho pescou em lago seu.” (1.2.193)
275 “Andar pescando trutas em um rio muito especial.” (1.2.69)
276 “É coisa de escada, ou de baú, de detrás da porta: estavam mais quentes ao fazê-la do que a coitada está agora.” (3.3.68-70)
277 “No verão, pra minha tia,/ Quando rolamos no chão.” (4.3.11-12)
278 “Apart from this half-hidden struggle between licence and control as symbolised in Caliban and Ferdinand, bawdy has little to do in The Tempest.”
279 “E se não me impedisse eu populava/ A ilha de Calibans..” (1.2.359-360)
280 “Seja fiel; não conceda às carícias/ Rédea mui solta;” (4.1.52-53)
103
enquanto Vênus e Cupido ficam de fora. Para Colman, esta peça é a prova de
que Shakespeare “progressivamente perdeu o interesse no uso de lubricidade
como um simples arranca-gargalhadas”281 (idem).
Sobre Henrique VIII, Colman se contradiz. Apesar de dizer que a
indecência é periférica, e que, afora quando a carnalidade é imputada a
Wolsey, a obscenidade não penetra a trama, restringindo-se aos pequenos
papéis, o autor defende que
Ao reviver... a tradição da peça histórica elisabetana, Shakespeare ou Fletcher
recaíram facilmente nos usos de obscenidade que notamos em tais obras
como Henrique VI, contribuindo para a caracterização de figuras principais e
para a vulgarização dos vulgares.282 (p.156)
Há questionamentos que podem ser feitos ao trabalho de Colman. Sua
classificação das peças em grupos tem bastante sentido prático, mas pode
levar a distorções como ver “um senso de tolerância” (sexual) em A
tempestade, ou juntar na mesma categoria peças tão díspares nesse quesito
quanto Rei João e Henrique IV parte II. No que se refere às peças-problema,
vimos que cada uma das três recai em um grupo distinto; entretanto, como
mostraremos nos capítulos seguintes, há marcadas semelhanças. De qualquer
forma, The dramatic use of Bawdy in Shakespeare tem o mérito de abordar o
tema de uma perspectiva crítica, para além dos glossários que cuidam de
palavras descontextualizadas, e segue relevante até hoje.
281 “progressively lost interest in the use of lubricity as a simple laughter-raiser.”
282 “In reviving... the tradition of the Elizabethan chronicle play, Shakespeare or Fletcher has slipped easily into the uses for bawdy that we noted in such works as Henri VI, contributing to the characterisation of leading characters and to the vulgarisation of the vulgar.”
104
Capítulo 3: Troilus e Créssida
Here is such patchery, such juggling, and such knavery:
all the argument is a whore and a cuckold...”
(2.3.63-64)
Um enigma genérico, Troilus e Créssida é apresentada como peça
histórica no frontispício de ambas as versões (ou estados) do in-quarto de
1609283, ao passo que a epístola anônima adicionada ao segundo estado (A
never writer to an ever reader; New Cambridge Shakespeare, p.73) elogia a
peça como uma comédia; no Folio de 1623, planejou-se sua inclusão dentre as
tragédias, seguindo Romeu e Julieta, terminando-se por enxertá-la entre as
peças históricas e as tragédias. As tentativas de descrevê-la incluem “sátira
cômica” e “sátira trágica”.
A tradição homérica da Guerra de Troia, chegada a Shakespeare pela
tradução de George Chapman (1559-1634) dos sete primeiros livros da Ilíada,
e indiretamente pelo filtro medieval de Geoffrey Chaucer (c.1340-1400), John
Lydgate (c.1370 – 1451), William Caxton (1421-1491) e Robert Henryson
(c.1425 – c.1500), serve de matéria prima para um drama sombrio e cáustico,
filosófico e hermético, engraçado e obsceno. Os heróis homéricos se engajam
em comportamentos ridículos – em especial os gregos, uma vez que os
ingleses se associavam a Troia através de um mítico fundador Brutus,
descendente de Enéias. Nesse contexto, o amor malfadado dos personagens-
título – uma criação de Benoît de Ste. Maure (séc. XII) – é facilitado pelo
alcoviteiro-mor, Pandarus – pander passou a denominar alcoviteiro na língua
inglesa, a partir do século XV – para ser desfeito por uma transação de guerra
em que Créssida é entregue aos gregos, tornando-se amante de Diomedes.
Na primeira seção deste capítulo, será feita uma breve revisão da
fortuna crítica sobre a peça. A segunda seção traz a abordagem crítica da
obscenidade em Troilus e Créssida por E.A.M. Colman, em The dramatic use
283 The Historie of Troylus and Cresseida; The Famous Historie of Troylus and Cresseid. (New Cambridge Shakespeare, p. 236-237)
105
of Bawdy in Shakespeare (1974). A última seção busca explorar o conteúdo
sexual cômico da peça através do léxico, usando como ferramenta principal o
glossário de Gordon Williams, Shakespeare’s Sexual Language (1997). O
humor sexual da peça será confrontado com as teorias do humor apresentadas
no primeiro capítulo e com a análise do humor sexual de G. Legman, quando
possível.
3.1 Crítica
A introdução da edição New Cambridge Shakespeare (2003, por
Anthony B. Dawson) defende que Troilus e Créssida (1601) desapareceu dos
palcos logo após escrita, o que teria permitido ao autor da epístola anônima
incluída no segundo estado da edição in-quarto de 1609 postular que a peça
“nunca [fora] desgastada pelo palco”284. A peça teve pouca atenção da crítica e
raras encenações; sua reabilitação se deu no século XX, quando não apenas a
personagem de Créssida ensejou muitos estudos pela crítica feminista, mas
também o que se costumava apontar como defeitos da peça, segundo ele,
a fragmentação estrutural e temática, a instabilidade de personagem, o tom
frequentemente amargo ou irônico, a incongruidade inovadora de combinar
romance com sátira ou heroísmo com pomposidade, o apelo ao grotescamente
físico em meio a idealismo altaneiro.285 (p.5),
passou a apelar a um público afeito às “incertezas, ironias, e inconclusividade
de romances modernistas ou teatro do absurdo”286 (p.3). De fato, George
Bernard Shaw (1856 – 1950) havia dito do conjunto das peças-problema que
284 “never staled with the stage”
285 “The structural and thematic fragmentation, the instability of character,the frequently bitter or ironic tone, the edgy incongruity of marrying romance to satire or heroism to bombast, the appeal to the grotesquely physical in the midst of high-flying idealism...”
286 “uncertainties, ironies, and open-endedness of modernist novels or absurdist drama.”
106
“‘em tais peças impopulares tais como Bom é o que acaba bem, Medida por
medida, e Troilus e Créssida, temos [Shakespeare] pronto e disposto a
começar no século XX, se ao menos o XVII o permitisse’.”287 (apud Muir &
Wells, eds., p.126).
Dawson destaca em Troilus e Créssida que “o fracasso e a fraqueza
humana são seu tema, e seu tom multivocal combina ceticismo corrosivo, sátira
espirituosa, lirismo idealizado, premonição profética, humor coloquial,
especulação filosófica, e retórica política verborrágica.”288 (p.1). Sobre a
questão do gênero, diz ele que:
A peça continuamente se aproxima da tragédia – por exemplo, no dilema de
Créssida, a dor de Troilus, e a morte de Heitor – mas nunca vai até o fim nesse
caminho. E, embora seja frequentemente muito engraçada, especialmente no
modo como faz troça e diminui ambos heróis e amantes, ela certamente não é
uma comédia no sentido usual.289 (p.4)
O editor é claro ao dizer que Troilus e Créssida “tem sempre e obstinadamente
se recusado à categorização...”290 (p.1) John Dryden (1631 – 1700), no período
da Restauração291, reescreveu a peça de modo a torná-la uma tragédia
287 “’in such unpopular plays as All’s Well, Measure for Measure and Troilusand Cressida we find [Shakespeare] ready and willing to start at the twentieth century if the seventeenth would only let him’.”
288 “Failure and human weakness are its subject, and its multi-voiced tone combines corrosive sceptcism, witty satire, idealised lyricism, prophetic foreboding, chatty humour, philosophical speculation and windy political rhetoric.”
289 “The play keeps gesturing towards tragedy – for example, in the dilemma of Cressida, the pain of Troilus, and the death of Hector – but it never goes the whole way there. And, though it is often very funny, especially in the way it mocks and deflates both heroes and lovers, it is certainly not a comedy in the usual sense.”
290 “has always and steadfastly refused categorisation...”
291 Volta da monarquia sob Charles II, após a Commonweath de Oliver Cromwell (1653 – 1658), em 1660. Os teatros, que haviam sido fechados, são reabertos.
107
romântica convencional. Dawson enfatiza os “paralelos estruturais” (p.13) que
compensam a assimetria e a descontinuidade da peça, o primeiro sendo a
polaridade entre amor e guerra, que determina as duas tramas relacionadas
entre si, a da guerra de Troia e a do amor entre os personagens-título. Há
também personagens paralelos; Helena e Créssida “são um caso em questão:
ambas são emblemas de guerra; cada uma delas muda de lado...”292 (p.14);
também é o caso de Heitor e Aquiles, principais guerreiros de cada campo,
com Ajax sendo confrontado com ambos; outro paralelismo é entre Troilus e
Diomedes, rivais pelo amor de Créssida, aquele ingênuo e cavalheiresco, e
este arrogante e agressivo. Pandarus e Tersites são os comentadores de cada
lado, com o primeiro tendo maior influência na trama; “cada um é um voyeur e
um cínico, embora Pandarus tenha uma rósea veia romântica também, o que
evita que ele seja tão incisivo e devastadoramente reducionista quanto sua
contraparte grega.”293 (p.16); ambos figurarão proeminentemente na análise do
humor sexual. Sobre Créssida, Dawson salienta (p.27) o caráter tradicional de
sua traição, e a enorme atenção crítica que a personagem passou a despertar,
explicada pelo surgimento da crítica feminista e pela própria natureza
enigmática da troiana. Shaw via em Créssida “‘a primeira mulher verdadeira de
Shakespeare’”294, mas por muito tempo ela foi diminuída como uma libidinosa
oferecida. Para o editor, a fala desinibida de Créssida sobre sexo não é prova
de experiência prévia, pois a ela também recorrem personagens como Pórcia e
Beatriz.
O artigo de Michael Jamieson, The Problem Plays, 1920 – 1970: a
retrospect (Muir & Wells, eds. p.132-35) ressalta que Troilus e Créssida não
teve entusiastas tão cedo quanto as outras duas peças-problema, destacando
a visão de J.C. Maxwell (1831-1879), de que Troilus e Créssida é “‘a mais
292 “are a case in point: both are tokens of war; they each change sides...”
293 “Each is a voyeur and a cynic, though Pandarus has a maudlin romantic streak as well, which keeps him from being as sharp-eyed and devastatinglyreductive as his Greek counterpart.”
294 “’Shakespeare’s first real woman’...”
108
isolada das Peças do Meio”295, enquanto Medida por medida e Bom é o que
acaba bem compartilham certo parentesco, com fontes italianas e truques-do-
leito (bed-tricks) em suas tramas. Jamieson também aponta que Wilson Knight
(1894 – 1985), em Wheel of Fire, elabora uma tese segundo a qual Troilus e
Créssida opõe “’intuição’ e ‘emoção’ (os troianos) [a] ‘intelecto’ e ‘razão’ (os
gregos).”296 Caroline F.E. Spurgeon (1869 – 1942) estudou as imagens de
Shakespeare em Shakespeare’s Imagery and What It Tells Us, e detectou em
Troilus e Créssida imagens recorrentes de comida e doença. A metáfora do
preparo de um bolo para a união sexual, usada por Pandarus, e inúmeras
menções a doença vindas tanto de Pandarus quanto de Tersites serão vistas
adiante.
Una Ellis-Fermor (1894 – 1958), defendendo a peça como um
testemunho da ordem, apesar da afirmação do caos, foi repreendida por Harley
Granville-Barker (1887 – 1946), por não “‘distinguir entre as melhores peças de
Shakespeare e as piores’”297 (p.133). O.J. Campbell, em Comicall Satyre and
Shakespeare’s Troilus and Cressida, relaciona a peça com as sátiras de Ben
Jonson (1572 – 1637) e John Marston (1576 – 1634), e condena os amantes
por sua luxúria. Brian Morris defendeu o status de tragédia para a peça em The
Tragic Structure of Troilus and Cressida, reclamando que as peças-problema
“‘foram forçosa e desigualmente emparelhadas’.”298 (p.134). Quanto ao gênero,
Jamieson salienta que o que ele chama de “‘peça de enigmas’ continua sendo
vista como comédia, sátira cômica, tragédia, e sátira trágica.”299 (p.134).
295 “most isolated of the Middle Plays”
296 “’intuition’ and ‘emotion’ (the Trojans) and ‘intellect’ and ‘reason’ (the Greeks).”
297 “to distinguish between Shakespeare’s better plays and his worse.”
298 “’have been forcibly and unequally yoked together’.”
299 “‘play of puzzles’ continues to be seen as comedy, ‘comicall satyre’, tragedy, and tragic satire.”
109
Para a crítica mais recente, recorremos a Harold Bloom e A.D. Nutall. O
primeiro, em seu Shakespeare: the invention of the human (1998), faz uma
observação em referência ao título de seu livro, que designa a profundidade
psicológica dos personagens, a qual estaria ausente das peças-problema: “a
arte de caracterização de Shakespeare retira-se de Troilus e Créssida...”300
(p.330) e não há interioridade
nas comédias problemáticas de Troilus e Créssida, Bom é o que acaba bem, e
Medida por medida... Troilus e Tersites, Helena e Parolles, Isabella, Ângelo,
Duque Vicentio, e Barnardine – todos esses abundam em complexidades
psíquicas, mas se mantêm opacos para nós, e Shakespeare não diz quem e o
que eles realmente são.301 (p.331)
Bloom conclui dizendo que “magnífica em linguagem, Troilus e Créssida não
obstante se retrai do maior dom de Shakespeare, sua invenção do humano.”302
(p.344).
O crítico norte-americano é duro com ambos os personagens-título; na
verdade, com todos os personagens, exceção feita talvez a Tersites, o qual
“fala pela peça, se não por Shakespeare”303 (p.328) e é “um niilista, mas
[também] o único personagem na peça que realmente tem um senso de valor
intrínseco ultrajado.”304 (p.332). Sobre Troilus, ele diz que, apesar do fato que o
príncipe troiano “engaja nossas simpatias”, ele é “fátuo, dado à auto-
300 “...Shakespeare’s art of characterization withdraws itself from Troilus and Cressida...”
301 “...in the problematic comedies of Troilus and Cressida, All’s Well That Ends Well, and Measure for Measure... Troilus and Thersites; Helena and Parolles; Isabella, Angelo, Duke Vincentio, and Barnardine – all of these abound in psychic complexities, but they keep themselves opaque from us, and Shakespeare will not tell us who and what they truly are.”
302 “Magnificent in language, Troilus and Cressida nevertheless retreats from Shakespeare’s greatest gift, his invention of the human.”
303 “...speaks for the play, if not for Shakespeare...”
304 “...a nihilist, but... the only character in the play who truly has an outraged sense of intrinsic value.”
110
comiseração, amante do amor mais do que de Créssida, e ferozmente
confuso...”305 (p.332), além de “vaidoso e mimado”306 (p.333). Diz ainda Bloom
que “Troilus é para o amor o que Heitor é para a guerra, Ulisses para questões
de Estado, Aquiles para a supremacia agonística: são todos impostores, maus
atores.”307 (p.333) e que “o próprio Troilus talvez seja o personagem menos
interessante da peça.”308 (idem). Sobre Créssida, Bloom se alinha com a
corrente crítica que a retrata em consonância com a avaliação que Ulisses dela
faz: uma libidinosa oferecida: “Créssida combina com Troilus muito bem, ela é
do estilo dele, e do estilo de Diomedes também, e de todos aqueles que virão
após Diomedes.”309. O crítico relativiza um ataque que podia ser muito direto,
mas o faz ainda assim: “se padrões normativos pudessem ser aplicados a
qualquer um nesta peça (e não podem), então Créssida é uma puta, mas quem
não é em Troilus e Créssida?”310 (p.334).
Se Bloom considera que há em Troilus e Créssida “algo da aura de
Hamlet”311 (p.327), e vê no conjunto das peças-problema uma “exuberância
negativa, quase como se uma fusão de Hamlet e Falstaff houvesse escrito
essas peças”312 (p.339), para A.D. Nutall, em Shakespeare the Thinker (2007),
“Hamlet é o autor de Troilus e Créssida – ou, pelo menos, Troilus e Créssida é
305 “fatuous, self-pitying, in love with love rather than with Cressida, and fiecely confused...”
306 “...vain and spoiled...”
307 “Troilus is to love what Hector is to war, Ulysses to statecraft, Achilles toagonistic supremacy: they are all impostors, bad actors.”
308 “Troilus himself may well be the plays’s least interesting character.”
309 “Cressida suits Troilus very well, she is her style, and the style of Diomedes also, and of all those who will come after Diomedes.”
310 “...if normative standards could apply to anyone in this play (and they can’t), then Cressida is a whore, but who isn’t, in Troilus and Cressida?”
311 “Something of the aura of Hamlet...”
111
a peça que Hamlet poderia ter escrito.”313 (p.205) Trata-se de uma peça que
“deixa um gosto amargo na boca”, e na qual “as imagens são tão repulsivas
que o riso é por elas morto.” 314 (p.206). Panadarus, para Nutall, é “uma figura
de horror”, e a espirituosidade de Tersites, “não mais sociável como a
espirituosidade deve ser”, não passa de “coprofagia mental.”315 (idem). O crítico
salienta o caráter genérico peculiar da peça:
herói e heroína são mantidos (sem remorso algum) vivos no fim, e assim um
requerimento primário da tragédia não é cumprido. Também não temos a
grandiosidade própria da tragédia. Ao mesmo tempo, no entanto, não temos
nada da felicidade própria da comédia.”316 (pp.206-207)
É registrado o fato de que nesta peça – escrita possivelmente para
representações particulares nas escolas de Direito (Inns of Court), e portanto
para a “nata intelectual” de Londres –
Shakespeare é mais intelectual, mais tecnicamente filosófico... do que em
qualquer outra [peça]. Ao mesmo tempo, ele apresenta tal atividade mental
exagerada como uma patologia... [...] Em Troilus e Créssida, o mundo todo está
doente com inteligência.317 (p.207)
312 “negative exuberance, almost as though a fusion of Hamlet and Falstaff had written these plays.”
313 “Hamlet is the author of Troilus and Cressida – or, at least, Troilus and Cressida is the play Hamlet could have written.”
314 “...leaves a sour taste in the mouth.”; “The imagery is so disgusting that the laugh is killed by it.”
315 “...a figure of horror...”; “...no longer sociable as wit should be...”; “mental coprophagy.”
316 “...hero and heroine are left (remorselessly) alive at the end, and so oneprimary requirement of tragedy is not met. Nor do we have the grandeur proper to tragedy. At the same time, however, we have none of the happiness proper to comedy.”
317 “...Shakespeare is more intellectual, more technically philosophical...than in any other. At the same time he presents such exaggerated mental activity as a pathology... [...] In Troilus and Cressida the
112
Outras observações feitas sobre a peça incluem a de que ela representa “um
retrato maneirista, conscientemente medievalista, da antiguidade clássica.”318
(p.207) e também a de que a peça “não tem um início natural, nenhuma grande
conclusão natural na morte. O mundo que ela retrata é fraturado, caótico,
indefinido.”319 (p.210)
Nutall concorda com Bloom quando diz que “as pessoas da peça não
têm nada da rica humanidade daquelas em outras peças. Aqui funciona, pelo
menos desta vez, a ideia de L.C. Knights de que o personagem dramático
começa e termina com o que vemos.”320 (p.211). Nutall aponta como
consequência deste “experimento de Shakespeare em retirar [a] rica
humanidade das pessoas da peça”321 (p.217) a falta de acabamento no trecho
em que Heitor muda de posição na discussão sobre continuar ou não a guerra:
“Apenas Troilus e Créssida, das peças de Shakespeare, não contém
“personagens de amor”, como definiu John Bayley em seu livro com esse título
em 1960. Quando o poeta não ama seus personagens, sua atenção
vagueia.”322 (idem). Entretanto, o crítico registra que “mesmo nesta peça, os
personagens não são de todo ocos”323 (p.219); ainda que a despedida do casal-
whole world is sick with intelligence.”
318 “...a consciously medievalized, mannered picture of classical antiquity.”
319 “...has no natural beginning, no natural grand conclusion in death. The world it depicts is fractured, chaotic, indefinite.”
320 “...the persons of the play have none of the rich humanity of those in other plays. Here, for once, L.C. Knights’s idea that dramatic character begins and ends with what we see, holds.”
321 “...Shakespeare’s experiment in withdrawing rich humanity from the persons of the play.”
322 “Troilus and Cressida aloneof Shakespeare’s plays contains no ‘characters of love,’ as John Bayley defined in his book of that title in 1960. When the poet does not love his characters, his attention will wander.”
323 “...even in this play the characters are not completely hollow.”
113
título na manhã seguinte à noite de amor, quando comparada à de Romeu e
Julieta, pareça “sem vida”, o “temor sub-trágico, ignóbil, de Troilus [“Be thou but
true of heart”324] é uma das coisas que salvam Troilus e Créssida de ser ela
mesma uma obra de arte fria e abstrata.” (p.220)
3.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman
Colman agrupa Troilus e Créssida com Hamlet, Rei Lear, Otelo Timon de
Atenas, Péricles e Cimbeline – peças nas quais a obscenidade reflete uma
repulsão sexual. Ele vê em Troilus e Créssida uma zombaria do ideal de amor,
e avalia que, na peça, “a função da obscenidade é agir como agente
depreciador”325 (p.117). O autor observa que "quanto mais os amantes se
esforçam para tornar suas ações transcendentais, mais mundanos e físicos o
serviço de um alcoviteiro mostra-os serem”326 (p.117-18).
Pandarus, “em grande medida menos respeitável que seu original em
Troilus and Criseyde, de Chaucer”327 (p.118), no momento cheio de tensão em
que Troilus recebe a carta de Créssida, enumera “o que os elisabetanos
tomariam como sendo sintomas venéreos:”328(idem) “A whoreson phthisic, a
whoreson rascally phthisic so troubles me, [...] and I have a rheum in my eyes
too and such an ache in my bones...”329 (5.3.101-04). Segundo o autor,
324 “Amor, seja fiel seu coração...” (4.4.57)
325 “the function of bawdy is to act like a belittling agent.”
326 “The more the lovers strain to make their actions transcendental, the more earthbound and physical the office of a procurer shows them to be.”
327 “a great deal seedier than his original in Chaucer’s Troilus and Criseyde.”
328 “what the Elizabethans would have taken to be venereal symptoms:”
329 “Um filho-da-puta tísico, um safado filho-da-puta a me afligir, [...] tenhocatarro nos olhos e tanta dor nos ossos...”. (5.3.101;103-104) A tradução de Bárbara Heliodora é falha; “uma tísica filha-da-puta” é mais preciso.
114
O mal-estar generalizado que Pandarus descreve podia de fato advir da sífilis
em sua prolongada fase secundária, assim como os olhos lacrimejando e
juntas doloridas podiam ser sintomas da irite e da artrite às vezes associada
com a gonorreia em estágio avançado.330 (idem)
Quanto a Créssida, Colman observa que, se logo que ela surge temos a
impressão de uma moça liberada e experiente (“...If I cannot ward what I would
not have hit, I can watch you for telling how I took the blow, unless it swell past
hiding and then it’s past watching.”331; 1.2.228-30), quando ela se entrega a
Troilus, “nada poderia estar mais longe da calma auto-possessão de uma
biscate experiente.”332 (p.119).
My lord I do beseech you, pardon me –
‘Twas not my purpose thus to beg a kiss;
I am ashamed – O heavens, what have I done?
For this time will I take my leave, my lord.333
3.2.117-20
Segundo ele, não há nada que sugira que tais hesitações sejam fingidas,
advindo na verdade de “inocência residual”. Ocorre que Créssida é uma
personagem célebre por sua opacidade, e é difícil decifrar a verdade sobre ela.
A edição New Cambridge Shakespeare traz a nota 20n: “Novamente, a decisão
330 “The general malaise that Pandarus describes could in fact arise from syphilis in its lenghty secondary phase, just as the watering eyes and achingjoints could be symptoms of the iritis and arthritis sometimes associated with gonorrhoea in an advanced stage.”
331 “Se eu não puder guardar o que não quero atingido, você, meu guarda, é que vai ver como fico, a não ser que eu fique tão inchada que não se possa mais esconder ou guardar.” (1.2.237-240)
332 “nothing could be further from the cool self-possession of a practiced tart.”
333 “Eu imploro, senhor, que me perdoe:/ Não foi minha intenção pedir um beijo./ Estou vexada. Céus! Que fui fazer?/ Peço licença, senhor, por agora.” (3.2.122-125)
115
repentina de Créssida de ir embora parece derivar tanto de ansiedade quanto
de estratégia”334. Já Kenneth Muir, no artigo Troilus and Cressida (in Muir &
Wells, eds. p. 99), se alinha com o personagem Ulisses, vendo-a como uma
“daughter of the game” (prostituta); ele avalia que para que o comportamento
de Créssida na sua entrega aos gregos fosse plausível, “Shakespeare precisa
sugerir nas cenas iniciais que ela é um tanto coquete”335. Colman percebe no
tratamento de Créssida o mesmo procedimento adotado com Júlio César:
apresentar deles retratos positivos e negativos; Créssida é então uma “criação
caleidoscópica” (p.120): a perfeição vista por Troilus no início, a perfídia vista
por ele no fim, a luxúria vista por Ulisses, e muitas mais – a crítica feminista,
por exemplo, enxerga nela uma jovem astuta negociando sua delicada posição
em um mundo hostil.
Sobre Tersites, Colman diz que seu “incansável comentário enfatiza
uma relação entre apetite sexual e a sórdida e cansativa Guerra de Troia”336
(idem). Sua célebre frase, “all the argument is a whore and a cuckold”337
(2.3.64) é secundada por inúmeros gracejos dirigidos a Helena como adúltera e
a Menelau como corno. É fácil aderir a seu cinismo vendo Helena flertar com
Pandarus e um Heitor desarmado morto pelo mesmo Aquiles a quem poupara
a vida. No fim da peça, a língua de Tersites se volta contra ele mesmo: “ I am a
bastard too, I love bastards! I am bastard begot, bastard instructed, bastard in
mind, bastard in valour, in everything illegitimate...”338 (5.8.7-9), o que, somado
334 “Again, Cressida’s sudden decision to leave seems to derive from both anxiety and strategy.”
335 “Shakespeare has to suggest in the early scenes that she is something of a coquette.”
336 “tireless comentary emphasises a relationship btween sexual appetite and the sordid, tired Trojan war.”
337 “A questão toda trata exclusivamente de um cornudo e uma puta:” (2.3.63-67) Na tradução, a ordem entre “puta” e “cornudo” é invertida.
338 “Sou bastardo, também: amo os bastardos. Fui gerado bastardo, criado bastardo, sou bastardo de mente, bastardo na coragem, ilegítimo em tudo.” (5.7.15-17)
116
ao epílogo de Pandarus sobre doença venérea, dá à peça uma nota final “nem
tanto de total repulsão sexual como de apenas uma futilidade doente.” (p.120-
21). Colman defende que não se pode promover a visão de Tersites à voz da
peça, nem reduzir as motivações dos amantes à mera luxúria.
Colman às vezes esboça raciocínios que não persegue até o fim, ou não
esclarece a contento. Nas linhas da canção de Pandarus no encerramento da
peça (“Full merrily the humble-bee doth sing/ Till he has lost his honey and his
sting,”339; 5.11.40-41), que se refere ao esgotamento sexual, por idade ou
doença venérea, o autor enxerga uma ilustração das limitações para o amor
mencionadas por Troilus, naquilo “que poderia ser o lema para boa parte da
peça”340 (p.118):
“This is the monstrosity in love, lady, that the will is infinite and the execution
confined, that the desire is boundless and the act a slave to limit.”341 (3.2.69-71).
Voltando ao trecho, o autor afirma que é “na definição desse limite, e não na
destruição do ideal de amor em si mesmo, que a obscenidade cumpre um
papel importante.”342 (p.121). Não fica claro como isso se dá. O que Colman
parece dizer é que a peça apresenta o mundo real que as comédias românticas
sempre negaram: o amor é passível de traição e o desejo é passível de
doença, e esse é um sentido possível para a frase: há limitações para o ato de
amar. Outro sentido se refere à potência sexual, que limita o ato mesmo sendo
o desejo infinito: esse sentido é secundário, configurando obscenidade não
intencional (espécie de double entendre), a qual Créssida capta e retoma:
339 “A abelha canta alegre sua canção/ Até perder seu mel e seu ferrão;” (5.10.41.42)
340 “which could be the motto for much of the play...”
341 “Essa é a monstruosidade no amor, senhora: a vontade é infinita, mas aexecução confinada; o desejo sem limites, enquanto os atos são escravos dolimite.” (3.2.72-74)
342 “in defining that limit, rather than in trying to destroy the love-ideal itself, that bawdy plays a major part.”
117
“They say all lovers swear more performance than they are able...”343 (3.2.72-
73). Troilus, de quem dificilmente se poderia esperar obscenidade, apenas se
referia à convenção cavalheiresca de prometer coisas impossíveis às amadas,
estabelecendo um conflito entre um desejo infinito e um ato limitado.
3.3 O humor sexual de Troilus e Créssida
Para explorar o conteúdo sexual com intenção cômica em Troilus e
Créssida, usaremos a edição da New Cambridge Shakespeare e o glossário de
Gordon Williams, Shakespeare’s Sexual Language (lembrando que as palavras
em negrito indicam um verbete). Como já mencionado, os trechos citados
acompanham nota com a tradução de Bárbara Heliodora. Isolaremos as piadas
sexuais por personagem, por conveniência, mas sem deixar de relacioná-las à
trama.
Dos protagonistas (ou, talvez, casal-título, uma vez que a trama de amor
é menos proeminente que as cenas de guerra), Troilus é confessadamente
ingênuo (“I am true as truth’s simplicity/ And simpler than the infancy of
truth.”344; 3.2.149-50), e entusiasta do ideal de amor cavalheiresco, do qual a
peça faz troça, e a pouca obscenidade que sai de sua boca é sempre da
variedade não intencional, percebida por outros personagens e/ou pela plateia,
ao passo que Créssida se sente à vontade em fazer gracejos de natureza
sexual. Essa desenvoltura, além de linhas dúbias (“You men will never tarry”345,
dita na despedida de um encontro sexual; 4.2.17) levam à especulação sobre a
experiência sexual prévia de Créssida. Talvez em parte por isso, Shaw a visse
como “a primeira mulher verdadeira de Shakespeare” (cf.p.96). De qualquer
343 “Dizem que todo amante jura mais desempenho do que é capaz...” (3.2.75)
344 “Sou verdadeiro com verdade simples,/ Mais simples que a infância da verdade.” (3.2.154-155)
345 “Vocês homens nunca ficam.” (4.2.16)
118
forma, suas brincadeiras não precisam ser tomadas ao pé da letra, e esse
segue sendo apenas um dos mistérios acerca da personagem.
Na cena que precede o encontro sexual, Pandarus brinca sobre a
potência sexual de Troilus, que responde sem perceber nem a obscenidade do
alcoviteiro, nem a sua própria.
PANDARUS...Be true to my lord; if he flinch chide me for it.
TROILUS You know now your hostages: your uncle’s word and my firm
faith.346
3.2.88-90
As palavras chaves aí são flinch e firm; a primeira, to flinch, assume dois
sentidos: ao ostensivo, de “vacilar, deixar de agir”, se soma o de “falhar
sexualmente”, o que influencia a apreensão da segunda, firm (firme) como
aludindo à ereção. A edição da Cambridge registra a insinuação sexual de
flinch, enquanto Williams registra flinch (“abster-se de bebida ou sexo”347) e
firm (“inquebrantável, brincando com dureza fálica”348). Ambos são casos do
que Freud chamava (III-j) double entendre, o duplo sentido de natureza sexual
(cf.p.32), que é um caso particular do que ele chama. “(III-i) duplo sentido
propriamente dito ou jogo de palavras”, pois “é possível... fazê-las expressar
dois significados diferentes”, e “nenhuma violência é feita às palavras”. Já
Bergson se referia a esse fenômeno como interferência de séries aplicada ao
cômico de palavras, ambos sendo verdadeiros jogos de palavras (e não
trocadilhos), pois “tira-se proveito apenas da diversidade de sentidos que uma
palavra pode assumir, em sua passagem do sentido próprio ao figurado”
(cf.p.24). Será certamente o caso de boa parte do humor sexual analisado
adiante, como é o de uma palavra que não tem seu duplo sentido registrado
346 PANDARUS - “Seja fiel ao meu senhor: se ele andar mal, pode repreender a mim. TROILUS Agora já sabe quem são os seus reféns: a palavra de seu tio e a minha fé inabalável.” (3.2.91-94) Os jogos de palavra se perdem na tradução.
347 “abstain from drink or sex.”
348 “unshakable, with quibble on phallic hardness.”
119
por Williams ou Dawson, mas é sugestiva o bastante: em “How were I then
uplifted!349” (3.2.148), uplifted pode se referir à exaltação emocional ou, nos
parece, à ereção, em mais uma obscenidade não intencional, reforçada pelo
contexto de uma relação sexual iminente.
A outra instância de obscenidade vinda de Troilus poderia ser
intencional, se aceitarmos que a desilusão de testemunhar a traição de
Créssida alterou radicalmente sua visão de mundo. É no momento em que
rasga a carta de Créssida (5.3.110-11): “My love with words and errors still she
feeds,/ But edifies another with her deeds.”350, onde to edify (edificar) e deeds
(atos) ganham sentidos sexuais, respectivamente de “provocar tumescência”351
(edify) e “ato sexual” (deed, lembrando que to do carregava sentido de
cópula). A frase passa a significar que Créssida, com seus atos (sexuais)
provoca ereções em Diomedes. A edição da Cambridge registra, mais uma vez
abstratamente, uma possível “implicação sexual” de edifies (111n). O
mecanismo de humor é o jogo de palavras verdadeiro, descrito acima,
especificamente um double entendre.
Créssida tem uma espirituosidade aguda, de forte conotação sexual, que
se manifesta principalmente em suas conversas com o tio Pandarus (1.2), e na
noite do encontro sexual com Troilus (3.2), mas também na manhã seguinte
(4.2) e mesmo em sua entrega aos gregos ela faz brincadeiras obscenas, como
será visto adiante. Pandarus, elogiando Troilus a uma Créssida que se finge
desinteressada, pergunta a ela:
PANDARUS ...Do you know a man if you see him?
CRESSIDA Ay, if I ever saw him before and knew him.352
(1.2.55-57)
349 “Como isso me exaltaria!” (3.2.153)
350 “Ao meu amor só dá termos baratos,/ Mas ao outro eleva com seus atos.” (5.3.109-110)
351 “provoke tumescence.”
120
Sua resposta abre uma possibilidade de interpretação sexual através do verbo
to know (conhecer), que podia implicar o chamado sentido bíblico: “travar
conhecimento carnal”353 (know) com alguém. É mais um double entendre, ou
jogo de palavras sexual. A edição da Cambridge registra que esta linha
estabelece “uma longa série de jogos de palavra obscenos”354.
Outro exemplo de humor sexual de Créssida na mesma cena é apenas
possível: “I had as lief Helen’s golden tongue had commended Troilus for a
copper nose.”355 (1.2.92-93). Williams registra em nose (2) que “a cartilagem do
nariz era carcomida pela sífilis, produzindo... mutilações”, e que “sifilíticos às
vezes escondiam sua deformidade com um nariz metálico”, mas defende que
“ela provavelmente tem o nariz vermelho dos beberrões em mente.”356
Assumindo que seja esta uma referência às consequências da sífilis, ela
pertence a um grupo numeroso tanto em Troilus e Créssida como em Medida
por medida, e mesmo em Bom é o que acaba bem, em que se brinca com os
retalhos de veludo usados para cobrir tanto cicatrizes honrosas quanto
complicações sifilíticas (4.5.75, 81)357. O mecanismo de humor, no sistema de
Freud, é a “omissão como forma de alusão” (cf.p.34), pois, ao omitir a causa do
352 “PANDARUS ...Você reconhece um homem quando o vê?; CRÉSSIDA Claro, se o encontrar e já o conhecer.” (1.2.57-59) O jogo de palavras se perde na tradução.
353 “have carnal acquaintance with.”
354 “a long series of bawdy puns...” (57n)
355 “Para mim isso é o mesmo que a língua dourada de Helena elogiar Troilus por ter nariz vermelho.” (1.2.95-96)
356 “the gristle of the nose was undermined by pox, producing... mutilations”; “syphilitics sometimes concealed their disfigurement with a metal nose”; “she probably has the drunkard’s red nose in mind.”
357 “LAVACHE – O madam, yonder’s my lord your son with a patch of velvet on’s face. [...] But it is your carbonadoed face.” (4.5.75-76;82); Ai, senhora, lá vem seu filho com um remendo de veludo no rosto. [...] Mas deixa a cara retalhada. (4.5.77;83)
121
nariz de cobre, ela faz justamente uma alusão à doença, que, entende-se,
implica a Helena também.
Lembremos que Caroline Spurgeon viu na peça imagens de alimentação
e doença. Esta próxima instância se liga à alimentação. Depois que Pandarus
fala em “the spice and salt that season a man”358, Créssida responde
espirituosamente: “Ay, a minced man, and then to be baked with no date in the
pie, for then the man’s date is out.”359 (1.2.218-19). Ela brinca com os sentidos
“data”, “tâmara” e “pênis” para date, e também “picado” e “efeminado, ou
mesmo emasculado” para minced, diz Williams (date), explicando que “o
homem está tanto fora da torta vaginal quanto fora de moda”360. Em Bom é o
que acaba bem, Parolles em seu ataque à virgindade, defende que “Your date
is better in your pie and your porridge than in your cheek;”361 (1.1.135-36), o que
poderia significar “é melhor um pênis na vagina do que a idade no rosto”, mas
nem Williams nem a edição da New Cambridge Shakespeare de Bom é o que
acaba bem registram intenção obscena. Trata-se de um double entendre
articulado em várias palavras (date, pie, minced).
Ainda na mesma cena, Créssida também faz menção direta à
experiência sexual; se apenas brincava ou se dizia a verdade é questão de
interpretação. Grande fonte de duplos sentidos sexuais, a imagem aqui é de
esgrima.
PANDARUS You are such a woman – a man knows not at what ward you lie.
CRESSIDA Upon my back to defend my belly, upon my wit to defend my wiles,
upon my secrecy to defend mine honesty... [...] If I cannot ward what I would not
358 “as ervas e o sal que temperam o homem...” (1.2.225-226)
359 “Ah, sim, um picadinho de homem; para depois ser assado, sem passas dentro da torta, senão as dele passam pra fora.” (1.2.227-228)
360 “the man is both out of the vaginal pie (DSL) and out of date.”
361 “A passa fica melhor na torta e no mingau do que na cara.” (1.1.141-142)
122
have hit, I can watch you for telling how I took the blow, unless it swell past
hiding and then it’s past watching.362
1.2.220-23; 228-230
A edição da Cambridge esclarece que ward se refere à “postura de defesa na
esgrima”363, acrescentando que há, sem dúvida, uma “provocante sugestão
sexual”364, mais uma vez deixando de especificar qual seria. Outra nota salienta
que “upon my back to defend my belly” é “um modo estranho, talvez irônico, de
Créssida defender sua castidade, mas seu comentário pode ajudar a explicar
seu comportamento mais tarde, quando ela chega ao campo grego.”365. Sobre
o segredo como proteção da castidade, Dawson entende que Créssida se
refere ao mesmo tempo ao segredo para manter “uma reputação de castidade”
e à independência pessoal, que lhe permitiria conservar a própria castidade. Já
swell past hiding se refere explicitamente a uma gravidez visível. Williams
define swell (inchar): “exibir sinais abdominais de gravidez”366, mas não registra
esta ocorrência; em secret (2), diz que “o segredo, de acordo com a tradição
da courtoisie, é uma necessidade para o amante adúltero”367 (ou
pretensamente casto?). A passagem toda então diz que Créssida teme ter sua
362 “PANDARUS – Você é uma mulher tão esquisita, que homem algum descobre onde está a sua guarda. CRÉSSIDA – Nas minhas costas, para defender meu ventre; no meu espírito, para defender minhas manhas; no meu segredo, para defender minha honestidade... [...] Se eu não puder guardar o que não quero atingido, você, meu guarda, é que vai ver como fico, a não ser que eu fique tão inchada que não se possa mais esconder ou guardar. (1.2.229-233; 237-240)
363 “posture of defence in fencing (OED sb 8);”
364 “teasing sexual suggestion.”
365 “An odd, perhaps ironic, way for Cressida to defend her chastity, but herremark might help explain her behaviour later, when she arrives in the Greek camp.”
366 “show abdominal signs of pregnancy.”
367 “Secrecy, according to the tradition of courtoisie, is a necessity for the adulterous lover.”
123
vida sexual ativa revelada ao descobrir-se grávida. Os mecanismos de humor
operando são os duplos sentidos ocorrendo para ward (postura defensiva,
posição sexual?) e blow (golpe, penetração) e a comicidade da metáfora sobre
esgrima. Para Freud, uma analogia é cômica quando compara coisas
extremamente diferentes, resultando em degradação (cf.p.29); mesmo
imaginando ser a esgrima algo então valorizado e o sexo algo visto, em uma
cultura repressora, como baixo, não parece valer aqui a máxima de Freud, pois
não há degradação. Mas vale outra: a de que piadas obscenas geralmente têm
técnica muito fraca, seu apelo vindo apenas da temática reprimida.
Chegada a cena que antecede a noite de amor, Créssida se mostra
encabulada, e vimos que Colman acredita em sua sinceridade; mas isso não a
impede de seguir usando de humor obsceno. Quando Troilus a tranquiliza,
garantindo a ela que “in all Cupid’s pageant there is presented no monster”368,
ela responde “Nor nothing monstrous neither?369” (3.2.63-65), o que Williams
(monster, 2) entende ser uma alusão a pênis (um de dimensões monstruosas,
aparentemente). É um caso de alusão por omissão, como visto acima, e
também o que se chama innuendo (insinuação), outra técnica muito produtiva
no humor sexual.
Em uma passagem já discutida na seção anterior (cf.p.103), Créssida
capta uma possibilidade de obscenidade não intencional vinda de Troilus (“ that
the desire is boundless and the act a slave to limit”), levando o assunto da
realização de tarefas impossíveis para a performance sexual:
They say all lovers swear more performance than they are able, and yet
reserve an ability that they never perform, vowing more than the perfection of
ten and discharging less than the tenth part of one.370 (3.2.72-75)
368 “no espetáculo do amor nenhum monstro é apresentado.” (3.2.66-67)
369 “Nem nada monstruoso?” (3.2.68)
370 “Dizem que todo amante jura mais desempenho do que é capaz, mas mesmo assim reserva uma capacidade que jamais executa: juram mais que a perfeição de dez, executam menos que a décima parte de um.” (3.2.75—78)
124
A edição da Cambridge registra (72n, 74n) o sentido sexual para performance
e, em mais uma evasiva, os “sentidos sexuais/ fisiológicos explícitos”371 para
discharging (sentido ostensivo: realizando, executando). Williams define
discharge como “emitir sêmen”372, e performance como “capacidade
sexual”373, mas a passagem está registrada em ability: “potência sexual”,
acrescentando que “Créssida é cínica”374 [sobre o desempenho dos homens]. A
passagem pode ser lida como uma reclamação quanto a amantes falastrões,
impotentes e com pífias ejaculações. É mais um caso de double entendre.
Na cena da manhã seguinte, é a vez de Troilus ver sentido sexual em
uma fala inocente de Créssida: “My lord, come again into my chamber./ You
smile and mock me as if I meant it naughtily.”375 (4.2.37-38). A comicidade da
passagem advém de um duplo sentido para chamber: “quarto” (ostensivo), e
“vagina” (metafórico). Já o verbo to come poderia significar ter um orgasmo,
mas a única instância desse uso registrada por Williams é em Muito barulho
por nada (come). Parece-nos bastante convincente a proposição de que esse
significado opera aqui; o sentido obsceno então seria “ejacule na minha vagina
novamente”. Trata-se de mais um double entendre, da variedade não-
intencional. Compare com Hamlet: “Man delights not me – no, nor woman
neither, though by smiling you seem to say so.”376 (2.2.269-71)
Na cena em que é entregue aos gregos (4.5), Créssida parece muito à
vontade. Produções alinhadas com a crítica feminista veem seu
371 “explicit sexual/ physiological meanings;”
372 “emit semen.”
373 “sexual capacity.”
374 “sexual potency. Cressida... is cynical:”
375 “Meu senhor, é melhor voltar pro quarto./ Sorri julgando que nisso há malícia.” (4.2.35-36) O jogo de palavras se perde.
376 “O homem não me deleita – não, nem a mulher, embora o seu sorriso pareça dizê-lo.” (2.2.293-295)
125
comportamento como defesa de uma vítima fragilizada de um estupro coletivo
(os comandantes a beijam apenas, mas to kiss podia ser eufemismo para
“copular”, e o significado paira sugestivamente sobre a cena); essa
interpretação considera a fragilidade da posição de Créssida, filha de um
traidor e sobrinha de um alcoviteiro, enviada a um campo grego
exclusivamente masculino. Entretanto, a corrente majoritária da crítica, por
muito tempo, ao ver em Créssida uma oferecida, enfatizou as brincadeiras que
ela troca com os gregos. Em uma delas, zomba do mais célebre corno da
Antiguidade; jogando com os significados de odd (“ímpar”, aparecendo, na
ordem, como ”estranho”, “singular”, e ”solteiro”) e even (“par”, aparecendo
como ”quites”), Créssida e Menelaus têm o seguinte diálogo:
MENELAUS An odd man, lady? Every man is odd.
CRESSIDA No, Paris is not, for you know ‘tis true
That you are odd and he is even with you.
MENELAUS You fillip me o’th’head.377
4.5.42-45
Ao dizer que Menelau e Páris estão quites, Créssida enfatiza que não o estão:
Páris roubou a mulher de Menelau. Williams salienta que a cabeça (head) é
“na psicologia do corno, uma área de sensibilidade ou vulnerabilidade”378. As
técnicas empregadas são o innuendo (insinuação) e a ironia, correspondendo à
descrição de Bergson (cf.p.25): “[enunciar] o que deveria ser [ou seja, que os
dois estão quites, o que não é verdade,] fingindo-se acreditar ser precisamente
o que é.” Ulisses ainda comenta, de maneira mais explícita; retomando o
“piparote” que Menalau alega receber na cabeça, diz o rei de Ítaca: “It were no
match, your nail against his horn.”379 (4.5.46).
377 “MENELAU – Ímpar, senhora? Somos todos ímpares. CRÉSSIDA – Páris não é, pois sabe que é verdade,/ Que ficou ímpar pr’ele ficar par. MENELAU –Me atingiu a cabeça” (4.5.42-45)
378 “in the psychology of cuckoldry, an area of sensitivity or vulnerability.”
379 “É luta desigual, unha com chifre.” (4.5.46)
126
Em três ocasiões, brinca-se com o sentido de “copular” para o verbo to
do. Créssida, em seu solilóquio em que confessa o amor a Troilus, explica sua
recalcitrância: “Things won are done, joy’s soul lies in the doing.”380 (1.2.246),
significando ostensivamente que a fase da conquista é importante, e
secundariamente que a felicidade está no ato sexual. Na cena da manhã
seguinte, Pandarus aproveita a ocasião de explorar a comicidade do verbo em
seu sentido sexual:
CRESSIDA Go hang yourself, you naughty mocking uncle!
You bring me to do, and then you flout me too.
PANDARUS To do what? To do what? Let her say what I have brought you to
do?381
4.2.26-29
Mais adiante, quando o idílio do casal fica ameaçado de virar tragédia com a
entrega de Créssida aos gregos, Enéias pergunta por Troilus a Pandarus, e o
sentido cômico de to do ainda ecoa na resposta: “Here? What should he do
here?”382 (4.2.50). Todos são exemplos de double entendre.
Continuamos, pois, com o personagem Pandarus. Na cena inicial, ele
cumpre ante Troilus uma função análoga à de Mercúcio ante Romeu,
zombando do amor cavalheiresco com uma boa dose de realismo cínico. Sua
comparação da corte amorosa com a preparação de um bolo é uma das
imagens de alimentação apontadas por Spurgeon. Diz ele “...he that will have a
cake out of the wheat must tarry the grinding [...] tarry the bolting [...] tarry the
leavening [...] the kneading, the making of the cake, the heating of the oven and
380 “A ganha, foi-se; a busca alegra a vida.” (1.2.257) O jogo de palavras seperde na tradução.
381 “CRÉSSIDA – Vá se enforcar, meu tio debochado! O senhor me estimula... e aí fica fazendo pouco de mim! PANDARUS – Estimulei a quê? A quê? Quero ver ela dizer a quê. A que foi que eu a estimulei?” (4.2.25-27)
382 “Aqui? E por que haveria de estar aqui?” (4.2.47) O jogo de palavras se perde na tradução.
127
the baking;”383 (1.1.14-15; 17; 19; 22-24). Williams define cake como “mulher
em sua capacidade sexual”384, e oven como “vagina ou útero”385. Esta é uma
analogia chistosa que, pode-se defender, de fato promove uma degradação: o
amor cavalheiresco, supostamente nobre e elevado, é comparado a algo
considerado chão e corriqueiro.
Pandarus é vítima de uma tirada obscena, culminação de uma série de
gracejos espirituosos, todos eles de cunho linguístico, vindos do criado de
Páris. O tratamento recebido por Pandarus evidencia a baixa estima que ele –
assim como Tersites no lado grego – merecia em seu meio.
PANDARUS ...I will make a complimental assault upon him, for my business
seethes.
SERVANT Sodden business? There’s a stewed phrase indeed!386
3.1.34-37
A comicidade neste caso reside numa técnica de humor muito comum, mas
que não foi registrada por nenhum dos teóricos vistos no primeiro capítulo: o
mal-entendido deliberado. O criado faz de “meu assunto ferve” uma referência
à sífilis (sodden), reforçando ainda a obscenidade com stewed (cozida), uma
vez que stew significava também bordel.
Na mesma cena, em que Helena é apresentada como lasciva e frívola,
Pandarus canta uma de suas canções obscenas:
[sings] Love, love, nothing but love, still love, still more!
383 “Quem quiser bolo de trigo tem de esperar até ele ser moído [...] Sim; mas não que separassem o joio do trigo [...]Sim, mas precisas esperar o fermento crescer. [...] ainda fica faltando sovar a massa, fazer os bolos, esquentar o forno, e assar;” (1.1.14-15; 19; 21-22)
384 “woman in her sexual capacity.”
385 “vagina or womb.”
386 “PANDARUS –...hei de fazer um assalto de loas, pois meu assunto está efervescente. CRIADO – O assunto está aferventado: nunca vi frase mais ensopada!” (3.1.35-37)
128
For O love’s bow
Shoots buck and doe.
The shaft confounds
Not that it wounds
But tickles still the sore.
These lovers cry, O, O, they die,
Yet that which seems the wound to kill
Doth turn ‘O, O’ to ‘ha ha he’,
So dying love lives still.
‘O, O’ a while, but ‘ha ha ha’
‘O, O’ groans out for ‘ha ha ha’ – Heigh-ho!387
3.1.99-110
A edição da Cambridge aponta que
A canção é bem deliberadamente imprópria; que ela se articule sobre um
número de jogos de palavras sexuais atende tanto ao voyeurismo de Pandarus
quanto à sensualidade langorosa de Helena. O amor e a caça eram
frequentemente ligados metaforicamente em canções da Renascença, através
de imagens de perseguição e dos ferimentos feitos pela seta de Cupido. Aqui, a
seta tem óbvias implicações sexuais.388 (99-110n)
O glossário de Williams nos ajuda a entender algumas passagens: em love’s
bow, bow (arco) aponta para “vulva (contraparte da seta fálica)”389; já em “the
387 “Amor, amor, só o amor, sempre e mais o amor!/ Seu arco, com força,/ Atinge cervo e corça;/ Mas a flecha não fere/ Com o golpe que desfere,/ Porém aumenta a dor./ Amantes gritam ‘Ai!’ eles morrem!/ Mas o que quase mata a ferida/ Transforma-se em ‘Ai! Socorro!’/ Pois morrendo o amor tem vida./ É oh um pouco, e ai, ai, ai!/ O oh só geme por ai, ai, ai! E viva!” (3.1.102-113) Os sentidos sexuais se perdem na tradução.
388 “The song is quite deliberately naughty; that it turns on a number of sexual puns suits both the voyeurism of Pandarus and the languorous sensuality of Helen. Love and hunting were often linked metaphorically in Renaissance lyrics through images of pursuit and the wounds made by Cupid’s arrow. Here, the arrow has obvious phallic implications.”
389 “vulva (counterpart of the phallic arrow).”
129
shaft... tickles still the sore” shaft é exatamente a “seta fálica”, e sore (ferida),
“vulva”. As referências à morte são, na verdade, à chamada pequena morte, o
orgasmo (die: “chegar ao orgasmo”390). Já vimos no capítulo anterior (cf.p.75)
que a letra O carregava conotações sexuais também, associada ao sexo da
mulher. As onomatopeias de Pandarus sugerem um ato sexual, também.
Trata-se de uma metáfora cômica convencional no período (caça/sexo), e mais
uma vez não há a degradação prevista por Freud.
Na cena em que os amantes se unem, o alcoviteiro também usa, como
era de se esperar, de obscenidade, da sutil à mais explícita. Pandarus usa uma
expressão, come and see the picture: “Come, draw this curtain and let’s see
your picture.”391 (3.2.41-42), que parecia ser uma espécie de código para
encontros sexuais, aparecendo também em As alegres comadres de
Windsor392; Williams ressalta o costume de “ocultar sob cortinas quadros
preciosos ou indecentes”393. A comicidade aqui, tênue, reside numa metonímia
entre um quadro escondido e um encontro furtivo; nenhum dos autores
analisados debateu a comicidade da metonímia. Quando o tio de Créssida fala
“...so, so, rub on and kiss the mistress” (3.2.43), a alusão é ao jogo de bowls,
com significado possível de “[exercer] contato ou fricção sexual”394 para to rub,
e lembrando que to kiss (no jogo, “tocar levemente”) podia ser um eufemismo
para fazer sexo, e que mistress (a bola pequena) podia significar “amante”.
Temos aqui uma metáfora cômica, sem degradação.
390 “experience orgasm.”
391 “Vamos, afaste esta cortina, para que possamos ver sua imagem.” (3.2.42-43)
392 “MISTRESS QUICKLY – Ay, forsooth; and then you may come and see thepicture, she says, that you wot of.” (2.2.69-70); “Isso mesmo, e que então o senhor poderá vir e ver o retrato o senhor sabe do quê...” (2.2.60-61)
393 “curtaining precious or salacious pictures.”
394 “sexual contact or friction.”
130
Quando Troilus se diz privado de palavras, Pandarus joga com os duplos
sentidos para deed (“ato/coito”) e activity (“comportamento/desempenho
sexual”): “Words pay no debts, give her deeds; but she’ll bereave you
o’th’deeds too, if she call your activity in question.”395 (3.2.48-49). Williams traz
deed (“ato sexual”396) e activity (“assunto sexual”397). A edição da Cambridge
aponta um triplo jogo de palavras em deeds: ações, consumação sexual e
documentos legais (48n), e glosa a segunda sentença como “destituí-lo de
desempenho sexual também, se puser sua virilidade à prova... O chiste é uma
visão maliciosa da exaustão sexual masculina e da presumida inexauribilidade
das mulheres”398 (48-9n). G. Legman, em seu Rationale of the Dirty Joke – an
Analysis of Sexual Humor, registra que parte do humor sexual se centra na
suposta insaciabilidade da mulher. O autor esclarece que, uma vez que o
humor sexual reflete apenas o ponto de vista masculino (cf.p.47), essa noção
de que “as mulheres não podem ser satisfeitas sexualmente, e que não há
sentido em tentar”399 se explica por uma resistência à dominância pela mulher.
Comentando uma piada que insinua a insaciabilidade das ruivas, ele observa
que a mulher “de repente se torna a ruiva demoníaca (como Judas), a
devoradora, ou comedora de homens, quando ela pede a satisfação natural do
orgasmo que o homem NÃO PRETENDE se incomodar em dar a ela”400 (p.357,
395 “Palavras não pagam dívidas: dê-lhe ações; porém ela também o deixará sem ação, se provocar sua atividade.” (3.2.50-51) O jogo de palavras se perde na tradução.
396 “sexual act.”
397 “sexual business.”
398 “deprive you of sexual prowess as well. if she puts your virility to the test... The joke is a sly glance at male sexual exhaustion and the presumed inexhaustibility of women.”
399 “women cannot be satisfied sexually, and that there is no sense trying.”
400 “suddenly becomes the demonic red-head (like Judas), the devoradora, or eater of men, when she asks for the natural satisfaction of the orgasm that the man DOES NOT INTEND to bother to give her.”
131
ênfases no original). Vimos também que, na Inglaterra elisabetana, as
mulheres eram reputadas mais lascivas do que os homens (cf.p.57).
No fim da cena, quando os três aceitam os papéis cristalizados pela
tradição literária (“‘As true as Troilus’” , “‘As false as Cressid’”, “let all pitiful
goers-between be called... panders”401; 3.2.162; 176; 180-181), Pandarus
reconhece seu papel de alcoviteiro, e dirige-se primeiro aos amantes e em
seguida à plateia. Não há propriamente uma piada ou uma técnica por trás da
passagem, apenas o apelo de uma fala libidinosa.
PANDARUS Amen. Whereupon I will show you a chamber with a bed, which
bed, because it shall not speak of your pretty encounters, press it to death,
away! [Exeunt Troilus and Cressida]
And Cupid grant all tongue-tied maidens here
Bed, chamber, pander, to provide this gear.402
3.2.185-189
Williams registra press, “alusivo a um corpo sobre o outro em congresso
sexual”403, e que prensar até a morte era a pena para quem ficasse mudo sob
acusação (como é o caso da cama). A imagem da cama pressionada é usada
também por Ulisses, para se referir a Aquiles e sua relação com Patroclus, sem
qualquer intenção cômica: “The large Achilles, on his pressed bed lolling,”404
(1.3.163).
Na cena da manhã seguinte à noite de amor (4.2), Pandarus faz uma
piada explicitamente anatômica, mas cujo sentido preciso ainda causa
401 “’Verdadeiro qual Troilus’”; “’Tão falsa quanto Créssida’”; “que todo patético alcoviteiro seja chamado... Pandarus...” (3.2.167; 181; 185-186)
402 “Amén. Quando então lhes mostrarei um quarto com uma cama, cuja cama, para que não fale de seus galantes encontros, devem amassar até a morte. Vão./ E às moças tímidas traga Cupido/ Cama, quarto, e um Pandarussabido.” (3.2.191-195)
403 “allusive of one body upon another in sexual congress.”
404 “O vasto Aquiles, rolando na cama,” (1.3.162)
132
dificuldades. Provocando os amantes “Ha, ha! Alas, poor wretch, ah, poor
chipochia! Has’t not slept tonight? Would he not, a naughty man, let it sleep? A
bugbear take him!”405 (4.2.32-34). Embora o sentido geral esteja claro,
Pandarus dá a entender que os dois fizeram amor toda a noite, a palavra
chipochia causou perplexidade. Dawson nos esclarece (32n) que o editor Lewis
Theobald (1688 – 1744) concluiu que a palavra não pertencia a língua alguma
e a emendou como capochia, de capochio, “simplório”, em italiano. Mas o
dicionário de italiano de John Florio (1553 – 1625), A World of Words, definia
capocchia como “’prepúcio do membro privado de um homem’”406. Williams,
cujo entendimento é de que a palavra se refere ao órgão masculino, aponta em
capocchia que em toscano a palavra significa “a cabeça de uma bengala”407 e
cita a definição de Florio (prepúcio) como embasamento. A razão, no entanto,
nos parece estar com Dawson, e a explicação por ele aceita é a de que a
palavra vem de che poccia; poccia dell’amore figura em dois dicionários como
“a vulva de uma mulher”. Shakespeare teria deixado de entender a expressão
como uma interjeição (que xoxota!) e uma sinédoque (órgão sexual pela mulher
toda), e inventado assim uma única palavra que denota especificamente a
vagina. Assim, não é a Créssida que Troilus não teria deixado dormir, mas a
suas partes sexuais. Há também em operação uma brincadeira com os
sentidos fraco e forte de naughty: “levado” e “libidinoso”; o primeiro leva à
menção do bicho-papão, o segundo prossegue as provocações sexuais. É
outra instância sem uma técnica forte para ampará-la, dependendo do tabu
anatômico (talvez exatamente por ele Shakespeare tenha inventado uma
palavra supostamente italiana).
A partir do infortúnio do casal unido por Pandarus, inicia-se a decadência
do troiano, e suas aparições praticamente se resumem a queixas sobre a
405 “Ah, ah! Que pena, coitadinha! Ah, pobre capochia! Não dormiu esta noite? Será que ele, mau menino, não a deixou dormir? Que o bicho-papão oleve!” (4.2.30-32) Uma nota define capochia como ‘simplória, em italiano’, perdendo o sentido sexual.
406 “’foreskin of a man’s priuie member’” (grafia não modernizada)
407 “the knob of a stick.”
133
doença venérea. Aqui, a única comicidade que pode ser extraída de menções
aos efeitos negativos da busca do prazer é a racionalização apontada por
Legman (cf.p.49): ao tratar um tema que é fonte de ansiedade de forma não
séria, nos eximimos de encarar as ameaças concretas. Na cena em que Troilus
recebe a carta de Créssida, Pandarus reclama da tísica e do catarro nos olhos,
como visto na seção anterior (cf.p.101): “A whoreson phthisic, a whoreson
rascally phthisic so troubles me, [...] and I have a rheum in my eyes too and
such an ache in my bones...”. Williams reforça o que Colman mencionara, em
rheum (catarro): “confusão de nomenclatura resulta em esta palavra ser usada
para sífilis ou um de seus sintomas.”408; de phthisic (tísica), ele diz que
significa “deterioração dos pulmões”, mas que “soa como um eufemismo para
sífilis” na boca de Pandarus; e em bones (ossos) lemos que eles são “sujeitos
a danos severos pela sífilis”.
Ao alcoviteiro é dada uma espécie de epílogo, em que volta a se dirigir à
plateia. Mas, se a norma de prólogos e epílogos shakespearianos é buscar a
simpatia dos espectadores, em Troilus e Créssida, Pandarus se dirige aos
frequentadores do teatro, ao menos parte deles, como cafetões, a quem
promete legar suas doenças. Em uma fala que inicia logo após ser rechaçado
por Troilus (5.11.35), ironicamente chamando a rejeição de “A goodly medicine
for my aching bones”409, Pandarus reclama da paga recebida pelos traidores e
alcoviteiros, canta uma canção obscena sobre a perda da capacidade sexual
(vista na seção anterior, cf.p.103), e termina a peça com as seguintes linhas:
Good traders in the flesh, set this in your painted cloths:
As many as be here of panders’ hall,
Your eyes, half out, weep out at Pandar’s fall.
Or if you cannot weep, yet give some groans,
Though not for me yet for your aching bones.
Brethren and sisters of the hold-door trade,
Some two months hence my will shall here be made.
It should be now, but that my fear is this:
408 “Confusion of nomenclature results in this being used for syphilis or oneof its symptoms.”
409 “Que bom remédio pra dor nos meus ossos!” (5.10.35)
134
Some gallèd goose of Winchester would hiss.
Till then I’ll sweat and seek about for eases,
And at that time bequeath you my diseases.410
5.11.44-54
O significado de “negociantes de carne” é bem claro: são aqueles da “guilda de
Pandarus”, aqueles do “negócio de guardar a porta” – alcoviteiros e
proxenetas. Pandarus atribui àqueles espectadores que compartilham seu
ofício a dor nos ossos e os maus olhos dos sifilíticos, diz que teme que uma
“prima de Winchester” (ver capítulo anterior, cf.p.70) venha a “vaiar” seu
testamento (alegando um filho, talvez), e que vai buscar o tratamento por
sudorese para a sífilis, enquanto não é chegada a hora de legar suas doenças
aos “negociantes de carne” na plateia (ver sweat, trader, groans, e
doorkeeper).
Seguimos com personagens cujo uso de indecência é menos numeroso,
antes de debater a copiosa contribuição de Tersites ao tema. Ulisses faz uma
avaliação de Créssida, na cena em que ela é rendida aos gregos, que envolve
metáforas cômicas as quais, mesmo fracas como técnicas de comicidade,
poderiam suscitar risos, agora e então, por expressar uma condenação
misógina contra a mulher desejável e disponível.
Fie, fie upon her!
There’s language in her eye, her cheek, her lip,
Nay her foot speaks, her wanton spirits look out
At every joint and motive of her body.
O these encounterers, so glib of tongue,
That give a coasting welcome ere it comes,
And wide unclasp the tables of their thoughts
To every ticklish reader. Set them down
For sluttish spoils of opportunity
410 “Bons negociantes de carne, eis o que devem botar em seus cartazes:/ Quem for do sindicato de Pandarus/ Derrame ora por mim seus prantos raros;/ Quem não puder chorar pode gemer,/ Ao menos porque os ossos vãodoer./ Meus irmãos que de amores são o prólogo,/ Meu testamento chega logo, logo./ Só não é hoje por medo que saia/ De algum bordel nojento uma vaia./ Pois suo até alívio eu encontrar,/ E a quem minha doença hei de legar.” (5.10.45-55)
135
And daughters of the game.411
4.5.54-63
Na fala de Ulisses, Williams aponta que language “alude à linguagem
corporal de desejo e provocação”412, enquanto accost se refere a “engajar-se
sexualmente”413, e daughter of the game a “prostituta”. G. Legman observa
em Rationale of the Dirty Joke (p.331) que “o ódio sexual... parece ser a
emoção básica na maior parte das piadas sobre relações sexuais”414, e debate
a mulher dominante, a verdadeira ansiedade por trás da censura (p.352):
...é óbvio que o menor impulso no sentido da igualdade sexual, dentro ou fora
da cama, será interpretado na mulher como impulso no sentido da dominância
e uma afronta a um certo tipo de homem, geralmente um aprisionado em
sentimentos de sua própria inferioridade.415
Assim, o humor que lida com a condenação do comportamento sexual
feminino advém do medo masculino da perda de sua posição de poder.
Essa explicação também vale para Helena, em cuja ambiguidade entre
“tema de honra e renome” (quando descrita por Troilus) e uma frívola coquete
(quando em cena) reside boa parte da ironia da peça. Ela faz três gracejos
obscenos. Quando Pandarus se refere a uma “coisa” que ela tem, Helena
411 “Mas que vergonha!/ Ela fala com os olhos, rosto, lábios.../ Até com o pé; se mostra sensual/ Nas juntas e meneios de seu corpo./ Essas já chegamcom conversa fácil,/ Já vão caçando antes de caçadas,/ E deixam ver o escrito em suas mentes/ Como rameiras de oportunidade,/ Escoladas no jogo.” (4.5.54-63)
412 “alluding to the body language of desire and provocation.”
413 “engage sexually.”
414 “sex hate [...] seems to be the basic emotion in most jokes about sexualrelations.”
415 “...it is obvious that the slightest urge toward sexual equality, in or out of bed, will be interpreted in the woman as an urge towards dominance and an affront to a certain type of men, usually one enmeshed in his own feelings of inferiority.”
136
explora a possibilidade sexual da palavra (“pênis”), e a sinédoque de “amante
como falo”416 (thing):
PANDARUS My niece is horribly in love with a thing you have, sweet
queen.
HELEN She shall have it, if it be not my Lord Paris.417
3.1.84-86
As técnicas de comicidade empregadas são o mal entendido deliberado e o
duplo sentido sexual ou double entendre. Em seguida, Helena responde com
uma tirada obscena a Pandarus, quando ele diz que Páris e Créssida “estão de
mal” (are twain, literalmente “são dois”): “Falling in after falling out might make
them three.”418 (3.1.88), e a espirituosidade aí reside no paralelismo entre
falling in e falling out (“ir para a cama” e “ter uma discussão”), classificando-se,
na teoria de Freud como “múltiplo uso do mesmo material: com leve
modificação” (cf.p.31). Mais adiante, Helena diz que Pandarus está “In love,
i’faith, to the very tip of the nose”419 (3.1.111). Williams vê em nose (nariz) um
“deslocamento de pênis”420. Helena está comentando a canção cantada por
Pandarus (cf.p.113), que seria, segundo sua sugestão, mais de lascívia do que
de amor. Trata-se de um innuendo (insinuação). Páris então explica que o
“amor” de Pandarus provém de comer apenas pombos (“nothing but doves”), e
Williams ressalta que esses são os “pássaros de Vênus” (dove). Aqui ocorre
uma degradação cômica da tradição da Antiguidade: os pombinhos do amor
viram a dieta de um degenerado.
416 “lover as phallus”
417 “PANDARUS – Minha sobrinha está loucamente apaixonada por uma coisa que a senhora tem, doce rainha. HELENA - Ela a terá, senhor, desde que não se trate de Páris meu senhor.” (3.1.87-89)
418 “Dois de bem depois de estarem de mal podem virar três.” (3.1.91)
419 “Amando, eu vejo, até a ponta do nariz.” (3.1.114)
420 “penis displacement”
137
Enéias tem uma passagem que pode ser interpretada como
obscenidade (de autor, mas não necessariamente de personagem): “The
Grecian dames are sunburnt, and not worth the splinter of a lance .”421 (1.3.283-
84). Aqui, lance (lança) tem forte caráter fálico como “longa arma de
estocar”422, em mais um duplo sentido. Por fim, dois personagens mais têm a
chance de caçoar de Menelau. Um dele é Heitor, que, em visita ao campo
grego, provoca: “Your quondam wife swears still by Venus’ glove.”423 (4.5.179),
aludindo ao adultério de Vênus com Marte, e brincando com o sentido sexual
para glove, “vagina”, dessa forma atribuindo uma “contínua orientação
vaginal”424 a Helena. O outro é Patroclus, na cena da entrega de Créssida:
MENELAUS I had good argument for kissing once.
PATROCLUS But that’s no argument for kissing now,
For thus popped Paris in his hardiment,
And parted thus you and your argument.425
4.5.26-29
Aqui opera um double entendre em torno da palavra argument, que é usada
significando “tema, razão” (NCS, 26n) por Menelaus e como “argumento”
primeiramente, e logo após como “vagina” (argument) por Patroclus. Aqui, o
sentido de cópula para to kiss é reforçado (cf.p.110), trata-se de um eufemismo
cômico. Já hardiment, que significa ostensivamente “impetuosidade”, surge
como insinuação de dureza fálica (hard), em ambos um jogo de palavras (pun)
e um innuendo. O verbo to pop também transmite uma ideia de coito, como já
421 “Que as gregas são morenas que não valem/ Uma lança partida.” (1.3.282-283)
422 “long thrusting weapon”
423 “Sua ex-mulher usa a luva de Vênus...” (4.5.178)
424 “...continuing vaginal orientation.”
425 “MENELAU – Outrora tive causa pra beijar. PÁTROCLO – Não há motivo para beijo, agora./ Intrometeu-se assim Páris fogoso,/ E assim o separou da sua causa. (4.5.26-29) O duplo sentido se perde na tradução.
138
foi comentado no capítulo anterior sobe Mercúcio e sua imagem da “poppering
pear” (cf.p.75).
Tersites, no campo grego, com seus comentários mordazes, veio a ser
confundido, em produções do século XX, com a voz da peça. Anthony Dawson
(p.16) enfatiza que ele é apenas uma voz em uma peça multivocal. Como o
personagem age de forma destacada, quase sem qualquer impacto na trama,
convém apresentar suas invectivas ferinas não sequencialmente como
vínhamos fazendo, mas por temas. O grande leitmotif de Tersites é a
condenação da luxúria, que podemos exemplificar com frases suas como “Fry,
lechery, fry!426” (5.2.56), na qual o verbo “queimar” (fry) implica “arder em
desejo ou (implicitamente) com sífilis”427, ou “Nothing but lechery – all
incontinent varlets!428” (5.1.88-89), em que incontinent significa “que cede ao
apetite sexual”429 (ver capítulo anterior, cf.p.60).
Iniciaremos com as instâncias em que sua censura recai sobre a
personagem Créssida. Na cena crucial em que Troilus presencia a intimidade
de sua amada com Diomedes, acompanhado de Ulisses, e todos sendo
observados por Tersites, Ulisses – cuja avaliação da troiana já vimos – faz uma
brincadeira com a leitura musical, insinuando a licenciosidade da jovem: “She
will sing any man at first sight.”430; Tersites complementa, seguindo com duplos
sentidos do campo semântico da música: “And any man may sing her, if he can
take her clef: she’s noted.”431 (5.2.9-11). Recorrendo ao glossário de Williams,
426 “Queima, luxúria, queima.” (5.2.55)
427 “scorch in lust, or (implicitly) with pox”
428 “É tudo só pouca vergonha; e eles todos são uns crápulas incontinentes!” (5.1.87-88)
429 “yielding to sexual appetite.”
430 “Ela canta sua canção para qualquer homem, à primeira vista.” (5.2.9)
431 “Como qualquer homem pode cantá-la, se acertar seu tom; já é conhecida.” (5.2.10-11) Os duplos sentidos se perdem na tradução.
139
descobrimos que clef, que ostensivamente significa “clave”, assume aqui um
sentido figurado de “vulva” – há um trocadilho com cleft, “rachada”; noted, que
brinca com notas musicais, dá a ideia de “notório(a) (como corno ou puta)”,
enquanto to sing (cantar) claramente aponta para “copular com [alguém]”. O
mecanismo de comicidade é mais uma vez o duplo sentido.
Mais adiante, quando Créssida pronuncia a pergunta “...what would you
have me do?”432, dirigida a Diomedes, Tersites fornece sua resposta: “A juggling
trick – to be secretly open.”433. (5.2.23-24). A edição da Cambridge (24n)
registra um duplo significado para a frase; um, seguindo Williams (juggling,
trick, open), apontaria para a cópula (“abrir seus locais privados em
segredo”434), enquanto o outro tem relação com a caracterização de Créssida
(a qual já vimos descrita como uma coquete, cf.p. 102): “ser tímida e audaz ao
mesmo tempo”435, daí o truque de malabarismo. Aqui operam o innuendo
(insinuação) e o paradoxo entre secret e open. Propp descreve o paradoxo
como “sentenças em que o predicado contradiz o sujeito, ou a definição o que
está para ser definido” (cf.p.43), mas não prevê o paradoxo em uma unidade
sintática menor, como é o caso, em que o paradoxo surge entre nome e
determinante, aproximando-se de um oximoro.
Quando Créssida pede a Diomedes que não a visite mais, o comentário
de Tersites parte do entendimento de que ela atiça o desejo do grego com
artimanhas: “Now she sharpens, well said, whetstone!”436 (5.2.74). A
comparação de Créssida com uma pedra de amolar é uma metonímia cômica.
É bom lembrar que “gume” (edge) era também uma metonímia cômica, para
ereção, Tersites atribuindo, assim, a Créssida o poder de provocar uma ereção.
432 “...o que quer que eu faça?” (5.2.23)
433 “Um malabarismo: ser fácil em segredo.” (5.2.24) A tradução preserva apenas um dos sentidos.
434 “open up your private places in secret,”
435 “be modest and bold at the same time.”
436 “Está mais afiada, e o provoca.” (5.2.73)
140
Em diálogo com Ulisses, Troilus jura combater Diomedes, e a tirada de
Tersites é “He’ll tickle it for his concupy.”437 (5.2.176). O sentido é obscuro.
Williams traz em concupy: “concupiscência, talvez com um jogo com
‘concubina’”438, e em tickle, “aludindo a atividade sexual”439. Dawson aponta
que tickle poderia significar “provocar” ou “castigar”, e a frase toda poderia ter
três sentidos: (1) Troilus será provocado à violência por sua puta; (2) Troilus
castigará Diomedes por conta de sua puta; e (3) Diomedes será punido pela
concupiscência. Dois fatos importantes foram ignorados por ambos, no entanto.
Concupy poderia ser uma combinação de possivelmente concupiscence, mas
mais provavelmente concubine, com a palavra occupy, que carregava forte
conotação sexual à época, de “possuir sexualmente”440 (occupy). E o fim da
fala de Troilus pode ajudar a esclarecer esse sentido: com sua retórica
pomposa, ele compara o furacão a sua espada apta caindo sobre Diomedes
(“my prompted sword/ Falling on Diomed”441; 5.2.173-174). A esgrima era uma
fonte de gírias sexuais, e sword (espada) era uma das mais comuns; o
determinante prompted também é sugestivo, podendo ser entendido como
indicativo de ereção. Isso explicaria por que o objeto de to tickle é it (prompted
sword), e não him (Diomedes). Teríamos, então, como uma nova possibilidade
de sentido, uma insinuação de que Diomedes vai estimular a “espada apta” de
Troilus no lugar (for) de sua concubina, Créssida. É preciso dizer que um
homoerotismo latente nas cenas com os guerreiros – em especial Aquiles em
seu relacionamento com Patroclus e em sua rivalidade com Heitor – foi
reforçado em mais de uma produção nos anos sessenta do século passado,
como a de John Barton para a Royal Shakespeare Company em 1968. O
motivo é retomado em Coriolano (1609), em que o protagonista tem uma
latente atração homossexual recíproca com o inimigo Túlio Aufídio. As técnicas
437 “Vai beliscá-lo pela concubina.” (5.2.174)
438 “concupiscence, may play on concubine.”
439 “alluding to sexual activity.”
440 “possess sexually.”
441 “espada/ Caindo em Diomedes.” (5.2.172-173)
141
de comicidade operando são o duplo sentido em prompted sword, o innuendo
(insinuação) em tickle it, e o que Freud chamou de “condensação com
formação de palavra composta” (cf.p.30) em concupy.
Ao se encontrarem no campo de batalha Troilus e Diomedes, lá está
Tersites para disparar seus comentários, e incitar os dois lados insultando
Créssida: “Hold thy whore, Grecian! Now for thy whore, Trojan!”442 (5.4.20), e
mais adiante se refere a ambos como “the wenching rogues”443 (5.4.28),
chamando-os de putanheiros (wench, “prostituta”). Aqui não há técnica de
comicidade, apenas apelo a vocabulário considerado impróprio.
Outro tema de piada que não escapa a Tersites é a convenção do corno
e dos chifres. Em dois momentos ele faz troça de Menelaus: primeiro quando o
chama de “primitive statue and oblique memorial of cuckolds” e “both ass and
ox”444 (5.1.50; 54), e mais adiante, quando Menelau confronta Páris no campo
de batalha, e Tersites novamente incita os dois lados (ver acima): “The cuckold
and the cuckold-maker are at it! Now bull, now dog! ’Loo Paris ’loo! Now my
double-horned Spartan! ’Loo Paris ’loo! The bull has the game: ware horns,
ho!”445 (5.8.1-3). Williams enfatiza que bull se refere a “corno”. As referências
alternadas a touro e cão evidenciam uma alusão aos espetáculos de bear- e
bull-baiting (em que cães atacavam um urso ou touro, conforme fosse o caso),
que ocorriam em Southbank, perto do Globe. No que se refere a chifres, assim
como ocorre com doença venérea, o humor a respeito funciona como uma
racionalização de uma ansiedade (masculina, como sempre). Como vimos no
capítulo anterior (cf.p.64), a traição feminina era vista com muito maior
gravidade do que a masculina.
442 “Defenda a sua puta, grego! E agora a sua, troiano!” (5.4.21)
443 “safados mulherengos” (5.5.29-30)
444 “estátua original e memorial indireto dos cornos”; “tanto asno quanto touro” (48-49; 52-53)
445 “Agora lutam o corno e o corneador. Ataca, touro! Avança, cão! Pega, Páris, pega! Como é, meu espartano de cornos duplos! Pega, Páris, pega! O touro está ganhando: cuidado com os chifres!” (5.7.9-11)
142
Tersites faz algumas menções a doenças venéreas, mas ao contrário de
Pandarus, que reclama delas em si mesmo, e as lega aos proxenetas, Tersites
as deseja a todos. Mais uma vez, o apelo cômico da doença venérea vem da
racionalização de uma ameaça real. “Lechery, lechery, still wars and lechery,
nothing else holds fashion – a burning devil take them”446 (5.2.191-193). Para
Williams, burn aqui “alude aos efeitos da doença venérea”447. Em “Now the dry
serpigo on the subject, and wars and lechery confound all.” (2.3.65-66), a
palavra serpigo também indica doença venérea, significando “[uma de] várias
doenças de pele que se alastram, incluindo sífilis”448. Tersites reserva uma
virulência especial para tratar da sodomia:
Now the rotten diseases of the the south, the guts-griping, ruptures, catarrhs,
loads o’gravel in the back, lethargies, cold palsies, raw eyes, dirt-rotten livers,
wheezing lungs, bladders full of imposthume, sciaticas, lime-kilns i’th’palm,
incurable bone-ache, and the rivelled fee-simple of the tetter, take and take
again such preposterous discoveries.449 (5.1.17-22)
Mais uma vez a dor nos ossos é citada como sintoma da sífilis; Williams, em
bone ache, destaca que a doença “causava muita dor por destruir a medula
óssea”450. Há outra menção a este fato, quando Tersites condena todos os
gregos por fazer “guerra por uma boceta” (2.3.14-16): “After this, the
vengeance on the whole camp! Or rather the Neapolitan bone-ache, for that
446 “Luxúria, luxúria, sempre guerras e luxúria! Tudo o mais sai de moda. Pois que um demônio em chamas leve todos eles!” (5.2.190-192)
447 “alluding to the effects of venereal disease.”
448 “various creeping skin diseases, including pox.”
449 “Pois que agora todas as podres moléstias do sul, os tormentos das tripas, as rupturas, catarros, cargas inteiras de pedras nas costas, letargias, paralisias gélidas, olhos remelados, fígados podres de sífilis, pulmões que assobiam, bexiga apostemada, mãos escamadas, dor sem cura nos ossos, bolhas podres de alto a baixo, cubram e recubram tais perversões grotescas!” (5.1.16-21)
450 “caused much pain as it destroyed the bone-marrow.”
143
methinks is the curse depending on those that war for a placket.”451 A sífilis,
atribuída aqui a Nápoles, “assim nomeada a partir do sítio de Nápoles”452
(Neapolitan bone-ache), era conhecida também como doença francesa: “a
associação da doença com a França se fixou depois da invasão de Nápoles
por Carlos VIII da França em 1494, quando ela se espalhou rapidamente
através da Europa”453 (malady of France). Não surpreende que os ingleses da
modernidade nascente identificassem as doenças venéreas como “doenças do
sul”. O restante da praga de Tersites se refere a sintomas da sífilis ou a ela
atribuídos, como é o caso de tetter (“termo para erupções pustulosas, às vezes
atribuído à sífilis e seus sintomas”454), ou sciatica (“sífilis. Confusão patológica
de dor ciática com várias outras doenças provocava uma confusão de
nomenclatura correspondente.”455) , que também figura em Medida por medida
(1.2.47)456. A palavra preposterous significa, segundo Williams, “invertido ou
antinatural (como a ortodoxia elisabetana considerava a homossexualidade)”457,
e carrega “óbvias colorações sodomíticas”458, para Dawson (22n).
451 “E a seguir, vingança contra todo o acampamento deles – espalhando muita venérea dor de ossos napolitana; pois creio ser essa a única maldição que merecem todos aqueles que fazem guerra por uma boceta.” (2.3.15-18)
452 “so named after the siege of Naples.”
453 “The disease’s association with France was fixed after the French Charles VIII’s investment of Naples (1494), when it spread rapidly throughout Europe.”
454 “term for pustular eruptions, sometimes applied to pox or its symptoms.”
455 “syphilis. Pathological confusing of sciatica with various other diseases caused a matching confusion of nomenclature.”
456 “1 GENTLEMAN How now, which of your hips has the most profound sciatica?
457 “inverted or unnatural (as Elizabethan orthodoxy considered homosexuality to be).”
458 “obvious sodomitical overtones”
144
A profusão de males direcionados aos homossexuais vista acima vem
logo após o reproche de Patroclus por Tersites:
THERSITES ...Thou art said to be Achilles’ male varlet.
PATROCLUS Male varlet, you rogue, what’s that?
THERSITES Why, his masculine whore.459
5.1.14-17
Nenhum significado aqui necessita de clarificação, Tersites é bem direto; mas
ele mesmo já havia feito uma insinuação no segundo ato: “I will hold my peace
when Achilles’ brach bids me, shall I?”, onde brach significa “cadela, puta”460.
Não há nada propriamente cômico na censura de Tersites a Patroclus por sua
homossexualidade, mas, como já discutimos, a própria menção a temas tabu
pode suscitar riso. Também está em jogo a racionalização de um tema que só
pode ser tratado em forma de galhofa, por gerar ansiedade. G. Legman faz, em
No Laughing Matter: Rationale of the Dirty Joke Second Series (1975, p.98),
uma observação já datada, mas ainda relevante, que talvez explique parte do
apelo do humor sobre (e geralmente contra) homossexuais:
Como já foi mostrado, a pessoa normal [sic] ou heterossexual se preocupa
muito com o segredo e o mistério do mundo homossexual, e com o fato de que
ele não tem realmente modo algum de estar certo de que seu melhor amigo
super-viril não se revelará um homossexual na viagem de pescaria ou caça a
que possam ir juntos, e talvez “estuprá-lo” homossexualmente quando um ou
ambos estiverem sob o poder do sono ou do álcool de aliviar inibições. [...] Em
um nível mais baixo e mais nervosamente privado, está o medo maior: que a
pessoa mesma se revelará homossexual! Ou, pelo menos, não conseguir
resistir uma sedução homossexual.461 (ênfase no original)
459 “TERSITES - ...dizem que você é o criadinho de Aquiles. PATROCLUS – O criadinho, safado? O que é isso? TERSITES – Ora, a sua puta masculina.” (5.1.13-16)
460 “bitch.”
145
Assim, a motivação para fazer troça da homossexualidade viria mais do medo
de sucumbir a ela do que de uma desaprovação moral (o que se alinharia à
visão de Bergson de riso como “corretivo social” voltado a “restringir a
excentricidade”; cf.p.20).
Alguns gracejos de Tersites envolvem sêmen. Brigando com Ajax, diz
que ele “Has not so much wit [...] As will stop the eye of Helen’s needle...”462
(2.1.70; 72), o que não faria muito sentido sem considerar que, conforme
Williams, wit designava “sêmen”, enquanto eye surge carregado de conotação
anatômica (“vagina”). A frase passa a dizer que Ajax não tem esperma o
bastante para satisfazer a Helena. Tersites também faz imputação semelhante
a Agamêmnon: “...one that loves quails, but he has not so much brain as
earwax.”463 (5.1.47-48). Brain, que pode ser sinônimo de wit (“inteligência”),
também é usado para conotar sêmen, lembrando Williams que “ambos são
brancos”, e que uma “tradição da Antiguidade [entendia] que sêmen é matéria
cerebral descendo pela medula espinhal até os testículos”464 (brain).
Reforçando o sentido sexual, temos a palavra quails (codornas), que designava
“prostituta” (quail). Assim, o general grego gosta de uma puta, mas também lhe
falta esperma. Na mesma fala, quando Tersites diz que seria diversas coisas
461 “As has already been shown, the normal person or heterosexual is worried about the secrecy and mystery of the homosexual world, and by thefact that he has really no way of being sure that his super-virile best friend will not turn out to be homosexual on the hunting- or fishing-trip they may go on together, and perhaps ‘rape’ him homosexually when one or both of them are under the inhibition-releasing powers of sleep or alcohol. [...] At a further and more nervously private level down, is the even greater fear: thatone oneself will turn out homosexual! Or at least, not able to resist a homosexual seduction.”
462 “Não tem cérebro bastante... [...] Para tapar o buraco da agulha de Helena...” (2.1.71;73) Os duplos sentidos se perdem.
463 “...gosta de codornas, mas tem menos cérebro que cera nos ouvidos;” (5.1.46-47)
464 “...ancient belief [...] that semen was brain matter descending through the spinal marrow to the testes.”
146
antes de ser Menelau, uma delas é “...a herring without a roe...”465 (5.1.56), e
Williams também vê referência a sêmen em roe: “propriamente ova de peixe,
mas transferida para o domínio humano”, explicando que “a ova do arenque
pode ser removida durante o processo de cura”466. Todos estes casos são
exemplos de double entendre. A anatomia masculina também é tema de um
duplo sentido, quando Tersites fala em “the devil Luxury with his fat rump and
potato finger...”467 (5.2.55). Williams vê em potato uma metáfora para “pênis”.
Em sua condenação da luxúria, Tersites pode se tornar um moralista chato,
mas seu humor cáustico define bem a Guerra de Troia: “all the argument is a
whore and a cuckold.” (2.3.64).
Percebemos pela análise numérica (ver anexos) que a técnica de humor
mais produtiva468 em Troilus and Cressida foi o double entendre, ocorrendo 26
vezes; os que mais a empregaram foram Pandarus (7), Tersites e Créssida (6).
Em seguida veio o innuendo, com 13 instâncias, das quais 6 vieram de
Pandarus, 3 de Créssida e 2 de Tersites. Essas duas técnicas sozinhas
responderam por 56% do total de empregos de todas as técnicas, e a terceira
mais empregada, alusão por omissão, foi usada apenas 7 vezes, seguida de
metáfora (6), mal-entendido deliberado (4), obscenidade não-intencional e
obscenidade em geral469 (3), e metonímia (2). As seguintes foram usadas
apenas uma vez: jogo de palavra expliorando a polissemia, uso do mesmo
material com leve modificação, eufemismo, trocadilho, paradoxo, condensação
com formação de palavra composta.
465 “...um arenque sem ova...” (5.1.55)
466 “properly fish-sperm, but transferred to the human domain [...] the herring’s roe may be removed during curing...”
467 “o demônio Luxúria, com seu traseiro gordo e seus lascivos dedos de batata...” (5.2.54-55)
468 Algumas piadas podem contar como duas técnicas diferentes.
469 Apelo a linguagem sexualmente sugestiva sem técnica detectada.
147
Debruçando-nos sobre os temas que as piadas abordam (ver anexos), é
possível ver que o ato sexual foi o mais comum, ocorrendo 9 vezes, Pandarus
sendo o que mais se valeu dele, com 5 piadas, Créssida tendo 3 e a última
vindo de Helena. Logo após vem o tema da doença venérea, usado em 7
piadas, sendo 4 de Pandarus, 2 de Tersites e 1 de Créssida. Piadas sobre
conduta ou reputação sexual surgiram 7 vezes, mesmo número daquelas sobre
a anatomia feminina. Já a ereção foi explorada 3 vezes, mesmo número de
homoerotismo e sêmen. Os temas de desempenho sexual, conquista e traição
(a figura do corno) figuraram duas vezes. Os seguintes temas surgiram apenas
uma vez: dimensão peniana, orgasmo, encontro sexual, cafetinagem, e
reprodução.
Se Colman defende que em Troilus e Créssida o humor sexual tem as
funções de “agente depreciador” e de definir os limites para o ato de amar
(cf.p.100), essas proposições são mais importantes para o espaço dramático470,
e buscam ver o papel da obscenidade ante o enredo e os personagens. Se
mudarmos o ponto de vista para o espaço cenográfico ou teatral471, e tentarmos
imaginar qual era o apelo do conteúdo sexual da peça para os frequentadores
do Globe Theatre, podemos concluir, com a ajuda, mesmo que um tanto
anacrônica, das análises de Legman acima, que as piadas sexuais de Troilus
and Cressida, além de “agentes depreciadores”, apelam a um tempo em que a
ideologia patriarcal é dominante: o humor expressa os temores representados
pela mulher sexualmente ativa, pela possibilidade de se ver traído no
casamento, e pela ameaça constante da doença venérea – e é preciso rir para
desvalorizá-los.
470 “...espaço construído pelo espectador ou leitor para fixar o âmbito da evolução da ação e dos personagens...” PAVIS, p.135
471 “...espaço em cujo interior situam-se público e atores durante a representação.” PAVIS, p.132
148
Capítulo 4: Bom é o que acaba bem
Bless our poor virginity from underminers and blowers-up!
Is there no military policy how virgins might blow up men?
(1.1.107-108)
Ao contrário de Troilus e Créssida, há razoável consenso de que Bom é
o que acaba bem (1603) é uma comédia, ainda que diferente o bastante das
comédias românticas características de Shakespeare até a virada do século
XVII para merecer os epítetos de “sombria” ou “problema” – há elementos
trágicos, como guerra e morte, o casamento é imposto a um dos protagonistas,
e o suposto final feliz é apenas sua resignação de sinceridade duvidosa.
A peça é uma adaptação da história de Giletta de Narbona, narrada por
Giovanni Boccaccio (1313 – 1375) em seu Decamerão472. Shakespeare, que
tivera acesso ao trabalho de Boccaccio indiretamente, através da tradução de
William Painter (1540? – 1595), em seu The Palace of Pleasure, transforma
uma história de cunho folclórico e sabor de conto de fadas – uma trama de
ascensão social pertencente à tradição da “moça engenhosa” (“clever wench”)
– em uma peça de rica caracterização. À narrativa principal, de como a filha de
um médico (Helena, na peça), apaixonada por um jovem conde (Bertram),
obtém sua mão em casamento como prêmio por curar o rei da França,
devendo depois cumprir exigências impostas pelo esposo recalcitrante para ser
aceita definitivamente, o dramaturgo acrescenta personagens como a
Condessa, mãe de Bertram e Lafeu, um velho lorde, um bobo (Lavache), e um
soldado fanfarrão que acompanha Bertram (Parolles), e cuja exposição
determina a trama secundária.
Na primeira seção deste capítulo, buscaremos fornecer um sucinto
panorama da fortuna crítica sobre a peça. Recorreremos novamente ao
trabalho de Colman, na segunda seção, para registrar sua abordagem crítica
da obscenidade em relação a Bom é o que acaba bem. Na derradeira seção,
472 A obra é estruturada em dez jornadas de dez contos cada. A história de Giletta corresponde ao nono conto da terceira jornada.
149
mais uma vez, o conteúdo sexual com intenção cômica da peça será
escrutinado com a ajuda do glossário de Williams. Cumpre ressaltar que há
muito conteúdo sexual sem intenção cômica, como é o caso do truque-do-leito,
definido por Marliss C. Desens em The Bed-Trick in English Renaissance
Drama como “um encontro sexual [que] ocorre no qual pelo menos um parceiro
desconhece a real identidade do outro parceiro.”473 (p.11). Apesar de figurar
com proeminência em Bom é o que acaba bem, e reaparecer, de maneira
secundária, em Medida por medida474, por não configurar humor sexual, o
recurso fica de fora do escopo deste trabalho.
4.1 Crítica
Bom é o que acaba bem é uma peça que recebeu muitas avaliações
negativas. Nicholas Brooke (1924 – 1998) inicia seu artigo homônimo sobre a
peça (in Muir and Wells, eds.; p.10) salientando que “a peça... nunca parece de
fato funcionar”475, enquanto R.L. Smallwood, no mesmo volume (The Design of
‘All’s Well That Ends Well’, p.26), opina que a peça “não é uma obra
inteiramente bem sucedida”476. Em defesa da peça, o editor G.K. Hunter (The
Arden Shakespeare, 1959, p.xxix) argumenta que “a crítica de Bom é o que
473 “...a sexual encounter occurs in which at least one partner is unaware ofthe other partner’s true identity.”
474 Alexander Legatt, em Introdução à edição da New Cambridge Shakespeare, aponta que “críticos inferem a ordem de composição de acordo com qual peça parece a eles apresentar o tratamento mais refinado.”, acrescentando em nota que “[o primeiro editor, Russell] Fraser... vê Bom é o que acaba bem como um tratamento mais refinado e cético do recurso, sugerindo que Shakespeare o está olhando pela segunda vez. G.K. Hunter, na edição da Arden, 1959, toma as peças na outra ordem, vendo ‘um ligeiro desenvolvimento e clarificação’ do motivo em Medida (p.xxiv).”; (“...critics infer the order of composition according to which play seems to them to present the more refined treatment.”; “Fraser... sees All’s Well as a more refined and sceptical treatment of the device, suggesting Shakespeareis taking a second look at it. G.K. Hunter, in the Arden edition, 1959, takes the plays in the other order, seeing ‘a slight development and clarification’ of the motif in Measure (p.xxiv).”)
475 “...the play... never quite seems to work.”
150
acaba bem falhou... em não prover um contexto no qual as genuínas virtudes
da peça podem ser apreciadas”477. O mesmo editor apontou, à época, que
“Bom é o que acaba bem não é uma peça que é frequentemente lida ou
encenada, e nas raras ocasiões em que é ouvida ou vista, não parece dar
grande prazer generalizado”478 (idem). É verdade que E.M.W. Tillyard, em seu
já mencionado trabalho sobre as peças-problema, (Shakespeare’s Problem
Plays, 1950, p.90) admite nunca tê-la visto nos palcos, e se questiona se os
juízes que condenam a peça o fizeram, acrescentando: “suspeito que funcione
muito melhor encenada do que lida”479. Para ele, “é um consenso que Bom é o
que acaba bem é de certa forma um fracasso”, mas esse fracasso “é
interessante e é complicado: é bem válida a tentativa de defini-lo”480.
Em sua introdução à edição da New Cambridge – editada originalmente
por Russell Fraser – Legatt ressalta a diferença entre a narrativa de Boccaccio
e a peça de Shakespeare: “enquanto os personagens de Boccaccio têm os
sentimentos básicos requeridos para motivar a história, e não mais, os de
Shakespeare são mais refinados e complexos...”, e conclui que “uma história
abrupta, linear, com caracterização mínima se tornou uma peça rica, complexa
e difícil.”481 (p.2). Legatt debate a tradição do truque-do-leito e, também, aquela
476 “...is not an entirely successful work.”
477 “...’criticism of All’s Well has failed, for it has failed to provide a context within which the genuine virtues of the play can be appreciated’.”
478 “All’s Well that Ends Well is not a play that is often read or performed, and on the rare occasions when it is seen or heard it does not seem to give much general pleasure.”
479 “...I suspect it acts far better than it reads.”
480 “It is agreed that All’s Well is in some sort a failure.”; “...it is interesting and it is complicated: well worth the attempt to define.”
481 “...while Boccaccio’s characters have the basic feelings required to motivate the story, and no more, Shakespeare’s are more rounded and complex...”; “A brisk, straightforward story with minimal characterization has become a rich, complex and difficult play.”
151
do soldado fanfarrão, encarnada por Parolles, que remonta à comédia na
Grécia, com a figura do Alazon, e em Roma, com o Miles Gloriosus, de Plauto,
sendo Bobadill, personagem de Every Man in his Humour, do contemporâneo
Ben Jonson (1572 – 1637), na Inglaterra, também citado como exemplo da
convenção. Observa-se, no entanto, que “Shakespeare nunca usa o tipo sem
dar a ele uma inflexão.”482 – citando o caráter metateatral de Ancient Pistol
(Henrique IV I e II), a riqueza de ingredientes de Sir John Falstaff, dos quais o
soldado fanfarrão é apenas um, e a dignidade que Armado (Trabalhos de amor
perdidos) e Parolles adquirem ao fim de suas peças (pp.3-4). Por fim, outra
convenção que é assimilada à peça é aquela dos “maridos pródigos e abusivos
e [das] esposas que muito sofrem e muito perdoam”483, as chamadas
“Griseldas”484. O uso desse motivo poderia ser problematizado, uma vez que
Helena age, de certa forma, como uma voraz caçadora-de-maridos, e Bertram
nunca se casou por livre e espontânea vontade.
A história da recepção crítica da peça passa pela apreciação de Parolles
como personagem cômico pelo rei Carlos I (1600 – 1649) – que adicionou à
peça, na cópia real do Second Folio (1632)485, o título alternativo Monsieur
Parolles – a qual “ecoou através da crítica do século XVIII.”486 Nicholas Rowe
(1674 – 1718), editor, diz de Parolles em 1709: “‘tão bom quanto qualquer coisa
do tipo em Plauto e Terêncio.’”487 (p.11). Samuel Johnson (1709 – 1784)
celebremente opinou: “‘não posso reconciliar meu coração a Bertram; um
482 “Shakespeare never uses the type without giving it a twist.”
483 “...abusive prodigal husbands and long-suffering, forgiving wives.”
484 Personagem feminina famosa desde a época medieval por sua paciência, obediência e devoção ao marido (heroína de um do conto de Chaucer, “The Clerk’s Tale”, em The Cantebury Tales, 1387-1400).
485 Segunda edição da obra dramática de Shakespeare, após o First Folio organizado por John Heminges e Henry Condell em 1623.
486 “...was echoed throughout eighteenth century criticism.”
487 “‘as good as any thing of that type in Plautus or Terence’.”
152
homem nobre sem generosidade e jovem sem verdade... [e que, quando
acusado,] defende-se por falsidade e é liberado para a felicidade.’”488 (idem).
Vários críticos, como ele, perceberam “uma série de desconexões, entre o que
esperamos de Bertram e o que ele é, entre o que ele merece e o que ele
obtém.”489. No período romântico, a crítica de Samuel Taylor Coleridge (1772 –
1834) recai sobre Helena, que, apesar de merecer o epíteto de “a personagem
mais amável de Shakespeare”, não seria muito delicada, e o dramaturgo teria
necessitado construir sua imagem positiva através dos elogios de outros
personagens. Outros críticos, como Nathan Drake (1766 – 1836), tinham uma
avaliação muito positiva dela: “‘Helena, a romântica... deve excitar em todo
peito sensível um alto grau de simpatia [por seu] sofrimento paciente...
modéstia e beleza... humildade... ternura de coração’.”490 (p.12). Tanto Johnson
quanto Coleridge sentiam na peça uma “habilidade em provocar uma resposta
dividida.” (idem). Fato é que “se o século XVIII achou em Parolles um tipo
cômico cativante, o início do século XIX achou em Helena uma heroína
sentimental.”491 (idem).
Desde o final do século XIX e durante boa parte do século XX, a peça
perdeu a estima da crítica.
A inconsistência dos personagens, o aspecto desagradável do truque-do-leito e
da comédia em geral, a imodéstia da heroína – tudo isso era demais para os
palatos do fim da era vitoriana, e os gostos do início do século XX sentiam-se
488 “‘I cannot reconcile my heart to Bertram; a man noble without generosity and young without truth... defends himself by falsehood and is dismissed to happiness.”
489 “...a set of disconnections, between what we expect of Bertram and what he is, between what he deserves and what he gets.”
490 “’Helen, the romantic... must excite in every feeling bosom a high degree of sympathy... patient suffering...modest and beauty... humility... tenderness of heart’.”
491 “If the eighteenth century found in Parolles an engaging comic type, theearly nineteenth found in Helena a sentimental heroine.”
153
similarmente ofendidos. A admiração de Bernard Shaw pela peça (ele via
Helena como uma de suas heroínas) não encontrou muitos ecos.492 (p.12)
A tendência crítica em meados do século XX era buscar a “unidade orgânica de
uma obra de arte, geralmente em padrões de linguagem em torno de um
tema”493 (idem), e a peça não parecia fornecer tal unidade. W.W. Lawrence, em
seu Shakespeare’s Problem Comedies (1931), tentou encaixar a peça na
tradição da “moça engenhosa” (“clever wench”), mas não notou em
Shakespeare um esforço em segui-la. Acrescenta Legatt que outros críticos
que buscaram “elementos de romance na peça geralmente encontraram um
choque entre romance e realidade constrangedora, um choque que acham
frustrante ou interessante de acordo com suas próprias expectativas críticas.”494
(idem). Mais para o fim do século XX, considerações estéticas cederam a vez à
exploração de “condições sociais e valores ideológicos incrustrados na
[peça].”495 (idem).
Recorrendo mais uma vez ao artigo de Michael Jamieson, The Problem
Plays, 1920 – 1970: A Retrospect (in Muir and Wells, eds., pp.127-29),
descobrimos que Bom é o que acaba bem foi considerada, na edição New
Cambridge (1929), “a peça mais negligenciada do cânone pelos editores”496.
Arthur Quiller-Couch (1863 – 1944) a considerava “‘uma das piores de
492 “The inconsistency of the characters, the unpleasantness of the bed-trick and of the comedy generally, the immodesty of the heroine – all these were too much for the late Victorian palates, and early twentieth-century tastes were similarly offended. Bernard Shaw’s admiration of the play (he saw Helena as a Shavian heroine) did not find many echoes.”
493 “...organic unity of a work of art, usually in patterns of language around a theme...”
494 “romance elements in the play have generally found a clash between romance and awkward reality, a clash they find frustrating or interesting according to their own critical expectations.”
495 “...social conditions and ideological values imbedded in it.”
496 “...the most neglected play in the canon by editors...”
154
Shakespeare’”497, e preferia a história de Boccaccio. O artigo cita o trabalho de
M.C. Bradbrook (1909 – 1993), Virtue is the True Nobility, que defendia que a
peça apresenta “um debate moral sério sobre ‘a questão de sangue e sucessão
versus valor nativo’”498. Houve uma tendência de tentar estabelecer a unidade
da peça, entre os anos cinquenta e sessenta do século XX, cujas tentativas
incluíram “o complexo Idade/Juventude/Regeneração... [ou] deslindar as
imagens (incluindo as eróticas)”499; no período, “a defesa de Bertram foi
acompanhada de um enegrecimento de Helena, exposta como tendo faltas
cômicas correspondentes às deles, tão agressiva quanto ele é esnobe, ou tão
sensual e predatória quanto a Vênus de Vênus e Adônis.”500. Duas visões
mostram como podem divergir as interpretações de Bom é o que acaba bem:
Barbara Everett, editora da edição New Penguin Shakespeare (1970), vê o tom
da peça como “‘maduro, sutil, assustador’, e ‘sóbrio’ e ‘elegíaco, mais do que
saturnal’.”501; já R.A. Foakes (1923 – 2013), em Shakespeare: from satire to
celebration (1971), é da opinião de que “a tonalidade... é governada por...
figuras como Parolles e Lavache, que nos persuadem... de estarmos em um
mundo cômico.”502
497 “’one of Shakespeare’s worst.’...”
498 “...a serious moral debate on ‘the question of blood and descent versus native worth’.”
499 “...the Age/Youth/Regeneration complex... teasing out the imagery (including the erotic)...”
500 “The defence of Bertram has been accompanied by a blackening of Helena, shown up as having comic faults to match his, as aggressive where he is snobbish, or as sensual and predatory like the Venus of Venus and Adonis.”
501 “‘mature, subtle, haunting’, and ‘sober’ and ‘elegiac rather than saturnalian’.”
502 “the tonality... is governed by... figures like Parolles and Lavache, who persuade us... we are in a comic world’.”
155
Reagindo às críticas negativas recebidas pela peça, Harold Bloom
(1998) postula que “em proporção a seus reais méritos dramáticos e literários,
Bom é o que acaba bem permanece a comédia mais injustiçada de
Shakespeare...”503 (p.345). Ele aponta que a peça “é de fato tão cáustica, a seu
modo cortês, quanto Troilus e Créssida e Medida por medida; mesmo o título
da peça carrega um amargor sofisticado.”504 (p.346), e salienta que, sendo
Bertram uma nulidade – “um esnobe de cabeça oca e nada mais”505 – Helena e
Parolles são os personagens mais importantes da peça e “a compartilham
como opostos, se não bem poderosos opostos”506 (p.350). Sobre Parolles, o
“falso soldado cujo nome aptamente significa ‘palavras’... [e que é] um canalha
esplêndido”507 (p.346), Bloom diz que
Parolles é o centro espiritual de Bom é o que acaba bem, o emblema da
causticidade que subjaz suas superfícies corteses. O amargor da peça está
condensado no voto de sobrevivência de Parolles após sua exposição e
ruína.508 (p.349)
Quanto a Helena, é registrada a admiração de George Bernard Shaw
“como uma mulher agressiva, pós-Ibsenista, [ressalvando que] Helena tem
pouco riso nela, e assim não é muito [característica de Shaw]. Ela é formidável
503 “In proportion to its actual and literary merits, All’s Well That Ends Well remains Shakespeare’s most undervalued comedy...”
504 “...is quite as rancid, in its courtly way, as Troilus and Cressida and Measure for Measure; even the play’s title carries a sophisticated bitterness.”
505 “...an empty-headed snob and nothing more...”
506 “...share it as opposites, if not quite mighty opposites...”
507 “...the fake soldier whose name aptly means ‘words’... splendid scoundrel...”
508 “...Parolles is the spiritual center of All’s Well That Ends Well, the emblem of the rancidity that underlies its courtly surfaces. The play’s bitterness is condensed into Parolles’s vow to survive after his exposure and ruin.”
156
de fato, bem perto de monomaníaca em sua fixação [por] Bertram”509. Bloom
faz uma leitura psicológica da peça, de acordo com a qual o amor de Helena é
determinado pelos fatos de que “Bertram... é o que Helena desejava ser, um
filho autêntico de sua mãe de criação, [e simboliza] ambos os pais perdidos, o
dele e o dela.”510 (p.349). O crítico opina que
a peça protege Helena de nosso ceticismo ao apresentar sua monomania em
dimensões heroicas. [...] Apenas os heróis-vilões rivalizam com Helena [na
determinação e no atingimento de suas metas] – Richard III, Iago, Edmund,
Macbeth – e eles todos são no fim mortos ou arruinados.511 (p.355)
Uma observação sobre Bertram merece destaque, e se relaciona com sua
conduta sexual: “O único elemento autêntico em Bertram é o desejo por glória
militar, uma vez que mesmo quando é um mulherengo isso parece mais um
apêndice de seu comportamento de soldado do que uma busca em si
mesma.”512 (p.350). Sobre Lavache, Bloom tem infelizmente virtualmente nada
a dizer, e de maneira mais ampla o crítico deixa de avaliar o papel do humor
sexual na peça.
Para A.D. Nutall (2007), Bom é o que acaba bem “é uma estranha fusão
de cinismo e idealismo”513 (p.249), na qual Shakespeare, como fará novamente
509 “...as an aggressive, post-Ibsenite woman, Helena has little laughter in her, and so is not very Shavian. She is formidable indeed, well-nigh monomaniacal in her fixation upon... Bertram.”
510 “Bertram... is what Helena longed to be, the authentic child of her fostermother... both lost fathers, his and hers.”
511 “The play protects Helena from our skepticism by presenting her monomania in heroic dimensions. [...] Only the hero-villains rival Helena – Richard III, Iago, Edmund, Macbeth – and they all at last are slain or undone.”
512 “The only authentic element in Bertram is his desire for military glory, since even his womanizing seems more an adjunct of his soldiering than a quest in itself.”
513 “...is a strange fusion of cynicism and idealism.”
157
em Rei Lear, “está deliberadamente expondo a ‘falta de adaptação’ entre o
conto-de-fadas e a vida real”514 (p.248).
Sobre o diálogo da virgindade, Nutall observa que “com notável
franqueza Parolles confronta uma dificuldade ética que tem se espreitado pela
cristandade por séculos”515, e que “a forma [de seu] discurso sobre a virgindade
espelha aquela do discurso de Falstaff sobre a honra...”516 (p.250) na primeira
parte de Henrique IV, concluindo que, como se trata de uma “comédia de
casamento” – e o casamento é supostamente o fim da virgindade – “a lógica
profunda da peça apoia Parolles.”517
Falando sobre o encerramento da peça, quando Bertram aceita enfim
Helena, mas em termos condicionais (“If she, my liege, can make me know this
clearly,/ I’ll love her dearly, ever, ever dearly.”518 5.3.305-306), Nutall aponta que
“esperamos ouvir sobre como Bertram veio a se arrepender de sua rejeição a
Helena, tornou-se lentamente ciente de quanto a amava, como preparação
para este momento. Não há dúvida de que Shakespeare poderia facilmente ter
feito isso, tivesse ele o desejo. [...] Mas aqui ele trabalha contra a lógica natural
da comédia.”519 (p.252)
514 “...is deliberately bringing out the ‘lack of fit’ between fairy-tale and real life.”
515 “With remarkable directness Parolles confronts an ethical difficulty that has been lurking in Christianity for centuries.”
516 “The form of Parolles’s speech on virginity mirrors that of Falstaff’s speech on honour.”
517 “...the play’s deep logic backs Parolles.”
518 “Senhor, se ela diz só a verdade,/ Eu hei de amá-la para a eternidade.” (5.3.305-306)
519 “We expect to be told how Bertram came to repent of his rejection of Helena, became aware slowly of how much he loved her, as preparation for this moment. There is no question but that Shakespeare could easily have done this had he wished to. [...] But here he works against the natural logic of the comedy.”
158
Quanto à duplicação da palavra ever (sempre), Nutall e Bloom discordam:
enquanto para o primeiro “sentimos [aí] um calor incipiente”520 (idem), o
segundo suspeita da ênfase, vendo “pelo menos um ‘sempre’ demais”521
(p.356).
4.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman
Na divisão de Colman, Bom é o que acaba bem figura em um grupo
heterogêneo juntamente com Romeu e Julieta, O mercador de Veneza, As
alegres comadres de Windsor e Noite de Reis, caracterizados pelo fato de que
a obscenidade “ajuda a colocar grandes temas em perspectiva” (cf.p.74).
Lembramos que o autor delimita os grupos a partir da função exercida pela
obscenidade, e separa cada uma das peças-problema em um grupo distinto,
embora o início do século XVII, quando elas foram escritas, seja marcado por
peças em que a obscenidade surge como índice de repulsão sexual, como
Hamlet, Rei Lear e Troilus e Créssida.
Para o autor (pp. 88-91), na peça, “a obscenidade é posta em marcha
como parte de uma combinação temática intrincada.”522 Observa-se que “linhas
que em qualquer das comédias iniciais de Shakespeare teriam sido piadas
obscenas encontram-se agora em um contexto sexual sério, e assumem um
tom correspondentemente sério.”523 É o caso tanto das trocas de anéis quanto
do próprio truque-do-leito: “como ocorrerá novamente em Medida por medida,
um recurso basicamente farsesco é tornado inteiramente não-farsesco pela
natureza e pelos propósitos dos personagens que o empregam.”524 Entretanto,
o Bobo e Parolles garantem uma dose de indecência à peça, ilustrando uma
520 “...we sense an incipient warmth...”
521 “...at least one ‘ever’ too many.”
522 “...bawdy is put to work as part of an intricate thematic combination.”
523 “lines that in any of Shakespeare’s early comedies would have been bawdy jokes find themselves now in a serious sexual context, and they take on a correspondingly serious tone.”
159
“tendência crescente de Shakespeare de manter seus personagens obscenos
à parte, e em contraste marcado com um grupo de falantes que são raramente,
ou nunca, obscenos.”525
A parte de Helena na obscenidade – seu diálogo com Parolles sobre a
virgindade, na cena de abertura – que parece contrariar o princípio da
separação de personagens, deve ser entendida tendo em vista “a progressão
do dramaturgo, ainda que pouco linear e sistemática, rumo a uma investigação
cada vez mais profunda de questões morais.”526 Colman aponta os jogos de
palavra sexuais-militares da passagem a seguir (citações sempre da edição da
New Cambridge):
PAROLLESAre you meditating on virginity?
HELENA Ay. You have some stain of soldier in you: let me ask you aquestion. Man is enemy to virginity; how may we barricado it against him?
PAROLLES Keep him out.
HELENA But he assails, and our virginity, though valiant, in the defenceyet is weak. Unfold to us some warlike resistance.
PAROLLES There is none. Man, setting down before you, will undermine youand blow you up.
HELENA Bless our poor virginity from underminers and blowers-up! Isthere no military policy how virgins might blow up men?
PAROLLES Virginity being blown down, man will quicklier be blown up.Marry, in blowing him down again, with the breach yourselves made, you loseyour city.527
(1.1.98-111)
524 “...as will happen again in Measure for Measure, a basically farcical device is rendered entirely non-farcical by the nature and the purposes of the characters who employ it.”
525 “...Shakespeare’s growing tendency to hold his bawdy characters apart from, and in sharp contrast with, a group of speakers who are rarely if ever bawdy.”
526 “...the dramatist’s progression, however unsteady and unsystematic, into the ever deeper investigation of moral questions.”
160
O autor salienta que o trecho tem impacto sobre as duas tramas: a perda
calculada da virgindade por Helena e a perda do status de soldado por Parolles
– mas deixa de comentar que se aplica ainda mais ao ataque de Bertram à
virgindade de Diana. Através de ambas as tramas, “a peça lança uma luz de
questionamento sobre ideias convencionais sobre honra”528, como a
associação entre honra feminina e castidade.
Lavache é comparado a Feste, de Noite de Reis, ambos clowns
profissionais cuja obscenidade seria em parte material de livros-de-piadas, “o
tipo de coisa que podemos imaginar [o ator] Robert Armin (c. 1563 – 1615)
representando diretamente para a plateia”529:
As fit as ten groats is for the hand of an attorney, as your French crown for your
taffety punk, as Tib’s rush for Tom’s forefinger, as a pancake for Shrove
Tuesday, a morris for May-day, as the nail to his hole, the cuckold to his horn,
as a scolding quean to a wrangling knave, as the nun’s lip to the friar’s mouth,
nay, as the pudding to his skin530. (2.2.16-21)
527 PAROLLES – Meditas sobre a virgindade? HELENA – Sim. O senhor tem certas marcas de soldado: permita-me uma pergunta. O homem é inimigo da virgindade. Como podemos armar barricadas contra ele? PAROLLES – Mantendo-o longe. HELENA Mas ele ataca; e nossa virgindade, mesmo valente, é fraca em suas defesas. Revele-me algum tipo de resistência guerreira. PAROLLES – Não existe. O homem plantado à sua frente há de solapá-la e explodi-la. HELENA – Que Deus abençoe nossa pobre virgindade contra os solapadores e os estouradores! Será que não há alguma manobra militar para que as mulheres possam explodir os homens? PAROLLES – Quando a virgindade explode, fica mais provável o homem expandir-se; e para fazê-lo explodir e murchar é justamente a fenda em sua muralha que afaz perder a cidade. (1.1.97-111) Ver seção seguinte para duplos sentidos perdidos na tradução.
528 “...the play throws a questioning light on conventional ideas of honour.”
529 “...the kind of thing that we can imagine Robert Armin playing straight to the audience:”
530 “Como dez moedas para a mão de um advogado, como uma coroa francesa para um vadio enfeitado, aliança de corda para a mão do pastor, panqueca para Quinta-Feira Santa, dança para o Dia de Maio, prego para seu buraco, cornudo para seus chifres, lábio de freira para boca de frade; oupudim para sua pele.” (2.2.17-21)
161
Mas a atuação do Bobo nem sempre é tão inconsequente. São apresentados
dois exemplos do que o autor chama clowning antitético, “uma versão alargada,
da arraia-miúda, de incidentes na trama principal, e seu efeito, seja
conscientemente planejado por Shakespeare ou não, é alertar-nos para
questões éticas”531. Um deles seria a audiência em que Lavache pede a
aprovação da Condessa para seu casamento com Isbel, contrastada com a
audiência obtida por Helena com o Rei:
LAVATCHI do beg your good will in this case.
COUNTESS In what case?
LAVACHE In Isbel’s case and mine own.532
1.3.16-18
O outro seria sua banalização do adultério, cujo cinismo, segundo o autor, faria
um paralelo com aquele de Bertram:
for the knaves come to do that for me which I am a-weary of. He that ears my
land spares my team, and gives me leave to in the crop. If I be his cuckold, he’s
my drudge533. (1.3.33-36)
Lavache segue sendo um espelho cômico para acontecimentos sérios
da trama principal. Enquanto a Condessa lê a carta do filho, ele se diz afetado
pelo contato com a corte:
I have no mind to Isbel since I was at court. Our old lings and our Isbels
a’th’country are nothing like your old ling and your Isbels a’th’court. The brains
531 “...a broadened, low-life version of incidents from the main plot, and its effect, whether consciously planned by Shakespeare or not, is to alert us to ethical issues.”
532 “BOBO – Só peço bons olhos para o meu caso. CONDESSA – Que caso é esse? BOBO – O nosso caso, o de Isbel e o meu.” (1.3.17-19) Ver próxima seção para duplo sentido perdido na tradução.
533 “...os safados aparecem para me ajudar no que já me cansa. Quem ara minha terra poupa meus bois, e ainda me deixa aproveitar a safra; se me faz cornudo, me serve de criado,” (1.3.35-38)
162
of my Cupid’s knocked out, and I begin to love, as an old man loves money,
with no stomach534.(3.2.10-13)
Mais adiante na mesma cena, o Bobo comenta a fuga de Bertram de modo
obsceno: “your son will not be killed so soon as I thought he would... if he run
away, as I hear he does. The danger is in standing to’t; that’s the loss of men,
though it be the getting of children.”535 (3.2.34-36), e “o resultado é uma
elevação da tensão emocional”536, pois as piadas do Bobo só aumentam o
desconforto da Condessa. Para Colman, “Shakespeare está desenvolvendo a
complexa técnica com a qual ele mais tarde empregará humor obsceno para o
papel do Bobo em Rei Lear.”537
Outro foco de obscenidade detectado por Colman é o interrogatório de
Parolles. Primeiro ele acusa a Dumaine: “I know him. ‘A was a botcher’s
prentice in Paris, from whence he was whipped for getting the shrieve’s fool
with child, a dumb innocent that could not say him nay.”538 (4.3.155-157), e
Bertram tenta interroper o interrogatório temendo a exposição de sua própria
conduta sexual, o que de fato viria a acontecer, mesmo que através do
“espelho distorcido” do mentiroso Parolles: “...for I knew the young count to be
a dangerous and lascivious boy, who is a whale to virginity, and devours up all
534 “Nem pensei mais em Isbel depois que fui para a corte. Nossos bacalhaus e nossas Isbéis do campo não são nada perto de vossos bacalhaus e vossas Isbéis da corte. O bestunto do meu Cupido acabou, e começo a amar como um velho ama dinheiro, sem as tripas.” (3.2.10-13)
535 “seu filho não será morto tão logo quanto eu pensava... se ele fugir, como ouvi dizer que fugiu, seu perigo é ficar ereto; é a perdição dos homens, embora seja o que faz crianças.” (3.2.32-34)
536 “the result is a heightening of emotional tension.”
537 “Shakespeare is developing the complex technique with which he will later employ bawdy humour for the Fool’s part in King Lear.”
538 “Conheço: era aprendiz de um alfaiate barato em Paris, de onde foi expulso por botar barriga numa idiota do lugar, uma pobre inocente incapazde dizer não.” (4.3.150-52)
163
the fry it finds.”539 De certa forma, é antecipada a exposição total da hipocrisia
de Bertram. Conclui Colman que “mais uma vez, tornou-se a função dramática
da obscenidade dirigir a atenção do público para questões de valor subjacentes
ao drama.”540
4.3 O humor sexual de Bom é o que acaba bem
A peça Bom é o que acaba bem tem uma relação sexual como central à
trama, e ao sexo é dado tratamento tanto sério quanto cômico. Atendo-nos a
este último, muito do conteúdo sexual, incluindo o truque-do-leito, ficará sem
comentário. Como aponta Legatt em sua introdução à edição da New
Cambridge,
Os personagens de alta posição social podem falar de virtude e herança como
os ingredientes que fazem um ser humano. É preciso Parolles e Lavache para
insistir que o sexo é uma parte importante da mistura. Parolles faz com que
Helena fale a respeito; e [o sexo] forma o centro de muitas das brincadeiras de
Lavache.541 (p.31)
Sendo Parolles e Lavache os maiores empregadores de humor obsceno,
optaremos, desta vez, por apresentar primeiramente os personagens menos
importantes nesse respeito, para então passarmos aos dois. Lafeu, um lorde da
casa de Roussillon, tem uma parte interessante das piadas sexuais da peça,
pois seu comentário dá à cura do Rei por Helena um matiz sexual. Legatt
ressalta essa sugestão:
539 “...pois eu sabia que o jovem conde é um rapaz perigoso e devasso, uma baleia para a virgindade, que engole todos os peixinhos que encontra.”(4.3.178-80)
540 “Once again it has become the dramatic function of bawdy to direct the audience’s attention to questions of value underlying the drama.”
541 “The high-life characters may talk of virtue and inheritance as the ingredients that make a human being. It takes Parolles and Lavache to insistthat sex is an important part of the mix. Parolles gets Helena to talk about it;and it forms the center of much of Lavache’s fooling.”
164
Shakespeare acrescenta a Boccaccio um surpreendente, aparentemente
irrelevante, componente de sexualidade na cura do Rei por Helena. Além da
oferta [de Helena] de ser caluniada como uma rameira, há sugestões na
linguagem de que Helena está restabelecendo não só a saúde geral do Rei,
mas sua potência.542 (idem)
Ao apresentar ao Rei a possibilidade da cura através da heroína, Lafeu é
sugestivo:
[...] I have seen a medicine
That’s able to breathe life into a stone,
Quicken a rock, and make you dance canary
With spritely fire and motion, whose simple touch
Is powerful to araise King Pippen, nay,
To give great Charlemain a pen in’s hand
And write to her a love-line.543
2.1.68-74
Nicholas Brooke, em seu artigo All’s Well That Ends Well (in Muir and Wells,
eds., p.19), defende que “exatamente qual é o sentido de Rei Pepino as notas
não nos dizem, mas um sentido obsceno é bastante óbvio.”544 Williams aponta
o sentido de pênis para pen (caneta), mas não registra esta ocorrência. O Rei
parece se interessar: “What her is this?”545 (2.1.74), e mais adiante se refere à
cura proposta como “special nothing” (2.1.88), que pode ser apenas um termo
542 “Shakespeare adds to Boccaccio a surprising, seemingly irrelevant, undercurrent of sexuality in Helena’s curing of the King. Besides her offer to be traduced as a strumpet, there are suggestions in the language that Helena is restoring not just the King’s general health but his potency.”
543 “Tenho um remédio/ Que é capaz de fazer viver a pedra,/ Pulsar a rocha, e o senhor dançar,/ Com fogo e movimento; que tem força/ Até pra levantar o Rei Pepino,/ Fazer tomar da pena Carlos Magno/ Pra declarar-se a ela.” (2.1.68-74)
544 “Exactly what the point of King Pippen is the notes don’t tell us, but a bawdy sense is fairly obvious.”
545 “Que ‘ela’ é essa?” (2.1.74)
165
de desdém ou uma referência ao sentido de “vagina” para nothing. Mais
adiante, Lafeu aponta para a peça que analisamos no capítulo anterior, ao dizer
“I am Cressid’s uncle,/ That dare leave two together...”546 (2.1.93-94),
comparando-se ao alcoviteiro arquetípico, Pandarus. Na cena em que o Rei
ressurge curado, Lafeu comenta: “Why, your dolphin is not lustier.”547 (2.3.24).
Williams registra em dolphin que lustier significa “mais vívido”, mas “uma ideia
secundária de energia sexual restaurada é sugerida.”548. Poucas linhas adiante,
seu comentário é mais uma vez ambíguo: “Lustique, as the Dutchman says; I’ll
like a maid the better whilst I have a tooth in my head. Why, he’s able to lead
her a coranto.”549 (2.3.36-37). A técnica de comicidade presente em todas essas
instâncias é o innuendo, quando um conteúdo, sexual no caso, é apenas
sugerido implicitamente. No caso de lustier e lustique, opera também um duplo
sentido entre as ideias de vivacidade e desejo carnal. As menções a danças
(canary, coranto) também sugerem uma metáfora cômica entre a união dos
pares no bailado e na cópula.
Uma frase desse último trecho citado aponta para outro tema do humor
sexual vindo de Lafeu, sua própria virilidade perdida: “I’ll like a maid the better
whilst I have a tooth in my head.”, que antecipa outra frase similar: “My mouth
no more were broken than these boys’,”550 (2.3.54) a qual expressa o desejo de
ser como os jovens dentre os quais Helena deve escolher um marido. Williams
registra ambas as frases em tooth (2), salientando que a palavra é “usada
como dente de potro... literalmente uma das primeiras dentições de um cavalo,
546 “... sou Pandarus,/ E ouso deixá-los juntos.” (2.193-94)
547 “Ora, nem o seu delfim é mais saudável;” (2.3.24)
548 “more lively”; “a secondary idea of restored sexual energy is hinted at.”
549 “Lustique, como dizem os holandeses. Gostarei ainda mais das moças enquanto tiver fraco por doces. Ora vejam, ele é capaz de guiá-la numa dança.” (2.3.36-38) A sugestão sexual se perde na tradução.
550 “Pra ter sorriso como o desses jovens,” (2.3.55) A sugestão sexual se perde na tradução.
166
simbolizando então desejos juvenis nos velhos.”551. A edição da New
Cambridge registra para tooth (37n) o sentido de sweet tooth (for girls), ou
“queda por doces (por garotas)”, e a segunda frase é glosada (54n) como “se
eu ainda fosse tão sexualmente vigoroso quanto [os rapazes]”552. O mecanismo
de humor é o innuendo, e pode-se perceber também uma alusão a conteúdo
proverbial553 que é operada por omissão. Há uma leve obscenidade no
comentário sobre os jovens que Lafeu acredita rejeitarem Helena: “...I would
send them to th’Turk to make eunuchs of.”554 (2.3.80-81). Mais adiante na
mesma cena, Lafeu em sua altercação com Parolles, usa mais uma vez de
espirituosidade de cunho sexual, e mais uma vez se refere à perda da potência
sexual:
PAROLLES My lord, you do me most insupportable vexation.
LAFEW I would it were hell-pains for thy sake, and my poor doing eternal;
for doing I am past, as I will by thee, in what motion age will give me leave.555
2.3.213-15
Aqui, o verbo to do ganha, além do sentido ostensivo de “provocar
aborrecimento” (continuando o uso por Parolles), conotações de cópula,
conforme visto no capítulo anterior (cf.p.111), de modo que Lafeu deseja que
sua virilidade fosse eterna (“my poor doing eternal”), mas reconhece ter
passado sua hora (“for doing I am past”).
551 “used as colt's tooth... literally one of a horse's first set of teeth so symbolizing youthful desires in the old.”
552 “If I were still as sexually vigorous as.”
553 Tilley C525 (Williams stump)
554 “...os mandaria aos turcos, para que os fizessem eunucos.” (2.3.80-81)
555 “PAROLLES – Senhor, o senhor me cobre do mais insuportável vexame. LAFEU – Quem dera, para o seu bem, que fossem chamas do inferno a minha pobre contribuição eterna; quanto a cobrir, já passei da idade, e passarei pelo senhor com a pressa que a velhice me permitir.” (2.3.214-17) O sentido sexual é parcialmente preservado.
167
Na mesma discussão com Parolles, Lafeu, comentando seu vestuário
afetado, dá a ele uma sugestão, no mínimo, esdrúxula: “Thou wert best set thy
lower part where thy nose stands.”556 (2.3.231-232). Mais uma vez vemos nariz
e pênis associados, como no gracejo de Helena em Troilus e Créssida
(cf.p.120); Gordon Williams registra em nose: “deslocamento de pênis”557. Aqui
não há mais comicidade do que a referência ao tabu anatômico. Lafeu faz uma
derradeira tirada obscena, em um momento de tensão, que é o das revelações
na última cena da peça. Quando Diana muda sua versão sobre ter dado a
Bertram o anel (aquele que o Rei deu a Helena, que o deu a Bertram, que
acreditava recebê-lo de Diana), Lafeu comenta: “This woman’s an easy glove,
my lord, she goes off and on at pleasure.”558 (5.3.267-68). Williams registra para
glove (luva) o sentido de “vagina”, apontando que, nesta ocorrência, “as
implicações físicas são claras”559, e remete a easy (fácil; folgada, aqui),
“sexualmente complacente”560. Como vimos no capítulo anterior (cf.p.115),
parte do humor sexual se debruça sobre a mulher sexualmente ativa, com um
viés de condenação moral. As questões éticas envolvidas, mesmo importantes,
não serão tratadas neste trabalho.
Um personagem que também é uma espécie de comentador, e se refere
às aventuras sexuais do jovem conde Bertram com certa ironia, é um dos
irmãos Dumaine (Nobre 2), ficando no limiar da comicidade, mas merecendo
uma breve menção. Quando Bertram está supostamente usufruindo dos
favores sexuais de Diana, e é aguardado para o interrogatório de Parolles,
Dumaine comenta: “He hath perverted a young gentlewoman here in Florence,
of a most chaste renown, and this night he fleshes his will in the spoil of her
556 “Seria melhor que plantasse sua parte inferior onde está o seu nariz.” (2.3.233-234)
557 “penis displacement.”
558 “Ela é luva folgada, senhor; entra e sai com a maior facilidade.” (5.3.268)
559 “The physical implications are clear...”
560 “sexually compliant.”
168
honour...”561 (4.3.13-15). A edição da New Cambridge (14n fleshes his will)
aponta a metáfora de caça: “[Bertram] recompensa e assim estimula sua
lascívia (como cães e falcões são... alimentados com um pedaço da carne do
animal que caçaram)”562. Já Williams aponta dois sentidos para will, o de
“genitais, usualmente pênis” (2), e aquele de “desejo carnal”563, enquanto to
flesh (3) teria o sentido de “atingir o coito”564, a frase passando então a ser uma
menção indireta à penetração. A passagem em performance precisaria de
alguma ênfase gestual para ser interpretada como uma piada, mas exibe uma
metáfora cômica (sexo/caça) e um duplo sentido para will (lascívia/pênis). O
uso da palavra spoils (espólio) continua a associação entre sexo e guerra, que
está presente em Troilus e Créssida e no diálogo sobre virgindade entre Helena
e Parolles, visto na seção anterior e também mais adiante.
O mesmo personagem, algumas linhas à frente, é irônico sobre a razão
que retém o conde: “Not till midnight; for he is dieted to this hour.”565 (4.3.25). A
edição da New Cambridge aponta (25n) que a brincadeira está “continuando
residualmente o jogo em [4.3.14] com alimentação e caça”566; Williams
identifica em diet (2) a convenção de “sexo como comida”, e indica a
possibilidade do trocadilho entre hour e whore (visto em Como quiserem, cf.
p.81)567. O trocadilho parece improvável, pois o personagem já fez uma
avaliação positiva de Diana. Aqui opera, em dieted, um innuendo.
561 “Ele perverteu uma jovem cidadã aqui em Florença, de conhecida castidade, e esta noite ele destrói com seu corpo a honra dela...” (4.3.10-11) A metáfora da caça se perde na tradução.
562 “rewards and so stimulates his lust (as hounds and hawks are... fed witha piece of meat from the animal they have hunted down).”
563 “genitals, usually penis.”; “carnal desire.”
564 “achieve coitus.”
565 “Não senão depois da meia-noite, hora até a qual está comprometido.” (4.3.22-23)
566 “continuing residually the play at 14 on eating and fleshing.”
169
A mesma Diana, donzela florentina cortejada por Bertram, também tem
sua parte na obscenidade, com a espirituosidade a serviço da defesa da
castidade. Quando Bertram garante que a ama, ela brinca com os sentidos da
palavra to serve:
BERTRAM I was compelled to her, but I love thee
By love’s own sweet constraint, and will for ever
Do thee all rights of service.
DIANA Ay, so you serve us
Till we serve you; but when you have our roses,
You barely leave our thorns to prick ourselves,
And mock us with our bareness.568
4.2.17-19 (ênfases adicionadas)
Se em “you serve us” a palavra se refere à convenção cavalheiresca, para “we
serve you”, a edição da New Cambridge aponta em serve (18n) o sentido de
“gratificar (sexualmente)”569, enquanto Williams define serve como “oferecer
serviço sexual”570, e rose, na mesma linha, como “donzela, hímen”571. Opera aí
um uso paralelo de dois significados de um termo (serve) e pode-se enxergar
na espirituosidade de Diana a técnica do ladrão roubado, na qual “captamos
uma metáfora, uma frase, um raciocínio, e os voltamos contra quem os faz ou
poderia fazê-los, de maneira que tenha dito o que não queria dizer e que venha
a cair na própria armadilha da linguagem.” (cf.p.23). Na última cena,
567 O texto usado por Williams traz “dieted to his hour”, o que favorece a possibilidade de trocadilho.
568 “BERTRAM – Ela me foi imposta; a você amo/ Só por ordem do amor e, para sempre, Só a você eu sirvo. DIANA – Eu sei; nos servem/ Até servi-los; mas, colhida a rosa,/ Só ficam os espinhos pra ferir-nos,/ E rir-nos da nudez.”(4.2.15-20)
569 “gratify (sexually).”
570 “render sexual service.”
571 “maid, maidenhead.”
170
confundindo o Rei com seus rodeios, Diana garante: “By Jove, if ever I knew
man, ‘twas you.”572 (5.3.277). O uso do verbo conhecer no sentido “bíblico” foi
visto no capítulo anterior (cf.p.106). Aqui a comicidade é de situação – a
personagem brinca com fatos conhecidos pela plateia e desconhecidos pelo
personagem do Rei – e apenas o conteúdo é sexual.
Falemos agora sobre o soldado fanfarrão, Monsieur Parolles. Sua
primeira aparição, como já visto, é na conversa sobre virgindade com Helena, e
sua primeira linha é já um trocadilho sexual: “Save you, fair queen!”573 (1.1.94),
brincando com queen (rainha) e quean (impudica, meretriz). Como Colman
apontou, a primeira parte do diálogo (cf. p.139) gira em torno da imagem da
guerra de sítio para o ataque masculino à virgindade. E é Helena quem a
introduz: “Man is enemy to virginity; how may we barricado it against him?”574
(1.1.100-101). Williams registra barricado: “erguer defesa contra a entrada
(sexual)”575. Parolles prossegue: “Keep him out.”576 (1.1.102), e Williams glosa
out como “tendo a entrada vaginal negada”577. Quando ela insiste que ele lhe
indique alguma forma de resistência, ele garante que não há nenhuma: “Man,
setting down before you, will undermine you and blow you up.”578 (1.1.105-06).
A edição da New Cambridge aponta para setting down before o sentido de
“armar o cerco contra”579, e para blow you up o duplo sentido “explodi-la;
572 “E se conheço homem, é o senhor.” (5.3.277)
573 “Salve, bela rainha!” (1.1.93) O sentido sexual se perde.
574 “O homem é inimigo da virgindade. Como podemos armar barricadas contra ele?” (1.1.99-100)
575 “throw up defence against (sexual) entry.”
576 “Mantendo-o longe.” (1.1.101) O sentido sexual é perdido na tradução.
577 “denied vaginal entry.”
578 “O homem plantado à sua frente há de solapá-la e explodi-la.” (1.1.104-05) O sentido sexual se perde na tradução.
579 “laying siege to.”
171
engravidá-la.”580; Williams, também, em blow up (or down), observa que “pelo
menos parte do sentido de “explodir” aqui envolve o inchaço da gravidez.”581.
Helena, com ou sem intenção obscena, inverte a situação: “Is there no military
policy how virgins might blow up men?”582 (1.1.107-108). Parolles, em sua
resposta – “Virginity by being blown down, man will quicklier be blown up.
Marry, in blowing him down again, with the breach yourselves made, you lose
your city.”583 (1.1.109-111) – entende, ainda segundo Williams, o verbo blow up
como “[levar ao] orgasmo masculino”584, assim como blow down apontaria
primeiro para a detonação da cidade sitiada (“a garota deve atingir sua própria
explosão, assim confirmando seu status de mulher”585), e então para
“detumescência”. Detectamos ainda na frase os verbetes breach (“fenda
vaginal”586) e city (“cidade murada da castidade”587). Observamos no trecho
uma metáfora cômica (entre guerra e sexo, associação que reverbera na peça)
e alguns duplos sentidos sexuais: out, blow up, blow down, breach. A imagem
da guerra de sítio ecoa na voz de Helena, referindo-se a Diana, em “The count
he woos your daughter,/ Lays down his wanton siege before her beauty”588
(3.7.17-18).
580 “explode you; make you pregnant.”
581 “At least part of the sense of 'blowing up' here involves the swelling of pregnancy.”
582 “Será que não há alguma manobra militar para que as mulheres possamexplodir os homens?” (1.1.107-08) O sentido sexual se perde na tradução.
583 “Quando a virgindade explode, fica mais provável o homem expandir-se; e para fazê-lo explodir e murchar é justamente a fenda em sua muralha que a faz perder a cidade.” (1.1.109-111)
584 “male orgasm.”
585 “...the girl must achieve her own explosion, thus confirming her womanly status.”
586 “vaginal gap.”
587 “walled town of chastity.”
172
As falas de Parolles sobre a virgindade são extensas, e infelizmente não
podem ser reproduzidas neste espaço; alguns trechos selecionados serão
apresentados a seguir. “Virginity being once lost may be ten times found; by
being ever kept it is ever lost. [...] To speak on the part of virginity is to accuse
your mothers... [...] Virginity breeds mites, much like a cheese... [...] Within ten
year it will make itself two, which is a goodly increase, and the principal itself
not much the worse. [...] ‘Tis a commodity will lose the gloss with lying; the
longer kept, the less worth. Off with’t while ‘tis vendible. [...] ...and your virginity,
your old virginity, is like one of our French withered pears: it looks ill, it eats
drily.”589 (1.1.114-115; 119; 122-123; 127-128; 130-132; 136-137). É possível
perceber o teor machista dos comentários, nos quais a virgindade é comparada
a um queijo bichado, a uma mercadoria perecível, ou a uma pera ressecada. É
interessante a imagem de usura usada (“make itself two”, “the principal itself”),
e Williams aponta em usury que “a ligação satírica entre sexo e finanças tem
sua raiz em Aristóteles (Política I.10) e [na palavra grega] τόκος, usada para a
geração tanto de dinheiro quanto de filhos.”590. A passagem tem, de modo
geral, uma comicidade tênue, dependente da ansiedade que o tema possa
gerar, e provavelmente obtém menos risos hoje, quando a importância da
virgindade feminina é menor.
Mais adiante, na mesma cena, Parolles se despede de Helena com mais
duplos sentidos: “so thou wilt be capable of a courtier’s counsel and understand
588 “...O conde quer sua filha,/ Cerca sua beleza com cobiça,” (3.7.17-18)
589 “A virgindade, uma vez perdida, pode ser achada dez vezes; mas sendo guardada se perde para sempre. [...] Falar a favor da virgindade é acusar suas mães... [...] A virgindade gera ácaros, como o queijo. [...] Em menos de um ano ela se transforma em dois, o que é um bom aumento, sem que o principal não perca grande coisa com isso. [...] É mercadoria que perde o brilho se guardada; quanto mais tempo for guardada, menor o seu valor. Livre-se dela enquanto é vendável... [...] ...e a virgindade, a virgindade velha é como pêra francesa ressecada: é ruim de olhar e seca pra comer... “(1.1.116-17; 122; 130-32; 137-39; 142-43)
590 “The satirical link between sex and finance is rooted in Aristotle (PoliticsI.10) and the Gk τόκος, used of both breeding of children and money.”
173
what advice shall thrust upon thee; else thou diest in thine unthankfulness....”591
(1.1.181-82). Williams registra a frase em capable: “sexualmente apto(a)”592,
chamando a atenção para understand (“dar sustentação copulativa”593) e
thrust (“do movimento copulativo”594); counsel tem indiretamente uma sugestão
sexual através da expressão counsel-keeper (“prostituta ou cafetão”595). A
edição da New Cambridge aponta que (181n) “‘Capable’ também significa
“sexualmente apto(a)” e inicia uma série de jogos de palavra obscenos
continuando com ‘understand’, 'thrust’ e ‘diest’”596 (para o sentido de clímax
para morte, cf. p.114). A palavra understand aparecerá novamente, usada (ou
antes abusada) de outra maneira por Lavache.
Na cena em que Bertram é casado à força com Helena, Parolles o
encoraja a perseguir um destino militar, menosprezando o tempo gasto com
mulheres: “He wears his honour in a box unseen,/ That hugs his kicky-wicky
here at home,/ Spending his manly marrow in her arms,”597 (2.3.256-258). A
edição da New Cambridge registra em box unseen (256n) “uma alusão aos
órgão genitais femininos”598, enquanto Williams define box como “vagina”, e vê
591 “a fim de que se torne mais vulnerável às reflexões de um cortesão, e venha a compreender melhor o conselho que se projeta em sua direção; de outro modo há de morrer mal-agradecida...” (1.1.187-90) Os duplos sentidosse perdem na tradução.
592 “sexually able.”
593 “provide coital underpinning.”
594 “of coital movement.”
595 “whore or bawd.”
596 “’Capable’ also means ‘sexually able’ and begins a train of obscene quibbles continuing with ‘understand’, ‘thrust’ and ‘diest’...”
597 “Fica com a honra oculta em uma caixa/ Quem só abraça gostosura em casa, Mostrando que é viril só em seus braços,” (2.3.257-59)
598 “an allusion to the female sexual organs.”
174
kicky-wicky como “termo derrisório para esposa”599; o verbo to spend é
glosado na referida edição como “gastar, desperdiçar”600 e definido no glossário
(spend) como “alcançar o orgasmo”601, enquanto marrow (tutano) se refere,
ainda segundo a mesma edição, a “sêmen” e “energias viris”, e, também para
Williams (marrow), significa “sêmen (de acordo com a fisiologia antiga,
destilado da medula na espinha dorsal)”602. Vimos no capítulo anterior (cf. p.32)
que essa origem do sêmen remontaria até o cérebro. A passagem traz um
innuendo, e depende de duplos sentidos para box, spending e marrow.
Como apontado por Colman (cf. p.141), o interrogatório de Parolles é
fonte de obscenidades. Perguntado sobre as tropas do Duque de Florença, ele
implica metade da infantaria com as terríveis consequências da sífilis: “half of
the which dare not shake the snow from off their cassocks, lest they shake
themselves to pieces.”603 (4.3.141-42). Williams aponta que shake to pieces or
blow to pieces se referem a “desintegrar como resultado da sífilis”,
acrescentando algo que já pudemos constatar: “[t]ais imagens de
decomposição sifilítica são comuns ao longo do século XVII”604. Aqui opera um
innuendo e uma alusão por omissão.
Quando é encontrada em seu bolso sua carta a Diana, Parolles refere-se
a Bertram como “a foolish idle boy, but for all that very ruttish.” e “a dangerous
and lascivious boy, who is a whale to virginity”605 (4.3.178-79; 182-183). A
edição da New Cambridge glosa ruttish como “lascivo”, enquanto encontramos
599 “derisory term for wife...”
600 “Expending, wasting.”
601 “achieve orgasm.”
602 “semen (according to ancient phisiology, distilled from the marrow in the backbone).”
603 “metade das quais nem sequer sacode a neve do sobretudo só por medo de cair em pedaços.” (4.3.136-37)
604 “disintegrate as a result of syphilis”; “Such images of pox decay... are common throughout the C17.”
175
no glossário de Williams rut: “exitação sexual (originalmente em cervos)”606 (ver
Merry Wives of Windsor, 5.5.11), whale (“glutão sexual”607), e fry (3), “virgem”
(New Cambridge: “peixes pequenos”608).
O conteúdo de sua carta, lido pelo Intérprete (Soldado 1), traz duas
brincadeiras de teor sexual: “After he scores, he never pays the score.”609 e
“Men are to mell with, boys are not to kiss;610” (4.3.187; 191). A primeira se
aproveita dos dois sentidos para score: “marcar ponto (triunfo sexual)” e “conta,
despesa (no sentido de assumir responsabilidade)”; em Williams temos score:
“fazer uma conquista sexual; dívida sexual (brincando com o sistema de
manutenção de contas por talhas). [Bertram] nunca paga pelo favor sexual,
seja com casamento ou mais materialmente.”611. É uma brincadeira dependente
da polissemia. O segundo verso usa a palavra mell como “mexer (no sentido de
intercurso sexual)”612 (New Cambridge, 191n), ou “copular” (mell).
Falando mais uma vez sobre Dumaine (Lorde 2; ver seção anterior
cf.p.141), garante que “For rapes and ravishments he parallels Nessus.”613
(4.3.212-13), numa citação mitológica sobre o “centauro... que tentou estuprar
605 “um rapazote tolo e sem ter o que fazer, mas mesmo assim muito metido a conquistador.”; “...um rapaz perigoso e devasso, uma baleia para avirgindade...” (4.3.173-74; 178-179)
606 “sexual excitement (originally in deer).”
607 “sexual glutton.”
608 “small fish.”
609 “Nunca paga, depois de dar no couro,” (4.3.184) O sentido sexual é preservado, mas o jogo de palavras se perde.
610 “Durma com homem, que rapaz não serve.” (4.3.187)
611 “make sexual conquest; sexual debt (playing on the tally system of keeping accounts). [Bertram] never pays for the sexual favour, either in marriage or more materially.”
612 “meddle (in the sense of sexual intercourse).”
176
a mulher de Hércules, Djanira. Os centauros... figuram como um emblema da
luxúria.”614 (New Cambridge, 213n). A comicidade da passagem é basicamente
de situação – em alguns momentos com conteúdo sexual – e não de linguagem
(como é o caso da maior parte do humor sexual). A cena toda é um quiproquó,
no sentido proposto por Bergson e citado por Pavis (p.319): “‘uma situação que
apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, [...] aquele que lhe é
atribuído pelos atores [...] e o que lhe é dado pelo público”, pois Parolles julga
se encontrar entre os inimigos, enquanto os demais personagens e a plateia
compartilham do conhecimento da realidade.
No fim da peça, caído em desgraça, Parolles é trazido à conferência
com o Rei em que são forjadas as resoluções cômicas (precárias como elas
são); suas evasões quando questionado sobre a vida sexual de Bertram, e seu
encontro com Diana, são algo cômicas: “Tricks he hath had in him, which
gentlemen have.”; “Faith, sir, he did love her, but how?”; “He did love her, sir, as
a gentleman loves a woman.”; “He loved her, sir, and he loved her not.”615;
(5.3.237; 239; 241; 243), falas que revelam mais uma vez o machismo
naturalizado do contexto, pois assumem que o desejo carnal é normal nos
homens e condenável nas mulheres. Williams registra trick (2): “tendência à
luxúria”616. É explorada aqui a polissemia de to love, figurando nos sentidos de
“nutrir um sentimento de afeição” e “possuir sexualmente”, com o efeito da
equivocação – dizer duas coisas (aparentemente) opostas.
Lavache é, provavelmente, o Bobo mais obsceno de Shakespeare.
Quase o tempo todo em que está em cena, faz piadas sexuais. Já na terceira
613 “...quanto a raptos e estupros, ele é rival do centauro Nessus.” (4.3.206-207)
614 “...Centaur... who tried to rape Hercules’s wife Dejanira. The Centaurs... figure as an emblem of lust.”
615 “Faz umas brincadeiras, mas daquelas que os cavalheiros fazem.”; “Palavra, senhor, que a amou; mas como?”; “Ele a amou, senhor, como um cavalheiro ama uma mulher.”; “Ele a amou, senhor, mas não amou.” (5.3.235-35; 238; 240; 242)
616 “proneness to lechery.”
177
cena do primeiro ato, Lavache pede a bênção da Condessa para sua união
com Isbel, usando um double entendre: “I do beg your good will in this case. [...]
In Isbel’s case and mine own.” (1.3.16; 18). Williams define case como “órgão
sexual (jogando com diversos sentidos)”; se o sentido para o primeiro uso aqui
é “circunstância”, no segundo “o bobo brinca com os órgãos de ambos os
sexos... ‘mine own’ não apenas brinca com seu órgão, mas também se refere
de volta ao de Isbel, sugerindo que ele já foi apropriado para seu uso.”617 Mais
adiante, Lavache justifica pelo desejo carnal seu intento de se casar: “My poor
body, madam, requires it. I am driven on by the flesh, and he must needs go
that the devil drives.”618, o que é cômico pelo cinismo com que é tratada a
instituição do casamento; isso nos remete aos chistes cínicos delimitados por
Freud, como caso particular dos chistes hostis, “quando o insulto é dirigido não
a um indivíduo, mas a uma instituição prevalente” (cf. p.37). Williams identifica,
na frase “I have other holy reasons, such as they are”619 (1.3.25), um duplo
trocadilho em holy (“relativo ao buraco [hole] vaginal (jogando com
‘sagrado’)”620) e em reason (“proporciona um trocadilho com tumescência
(raising; cf. raise up)”621). A visão de Lavache sobre casamento e adultério é de
fato bem peculiar, como reflete esta passagem salientada por Colman e
retomada aqui em maior detalhe:
I am out a’friends, madam, and I hope to have friends for my wife’s sake. [...]
...the knaves come to do that for me which I am a-weary of. He that ears my
land spares my team, and gives me leave to in the crop. If I be his cuckold, he’s
my drudge. He that comforts my wife is the cherisher of my flesh and blood [...]
617 “...the clown plays on the organs of both sexes... and 'mine own' not only quibbles on his organ but also refers back to Isbel's, suggesting that it has already been appropriated to his use.”
618 “Meu pobre corpo, senhora, o necessita; sou empurrado pela carne, e quem o diabo empurra não pára.” (1.3.23-24)
619 “Juro que tenho outras, santíssimas, dentro de suas capacidades.” (1.3.26) Os trocadilhos sexuais se perdem na tradução.
620 “pertaining to the vaginal hole (with pun on 'sacred').”
621 “provides a pun on tumescence (raising; cf. raise up).”
178
ergo, he that kisses my wife is my friend. [...] [The puritan’s and the papist’s]
heads are both one: they may jowl horns together like any deer i’th’herd.”622
(1.3.30–43)
Aqui, Williams aponta friend (amigo) como “amante de ambos os sexos”623, e
que to ear, assim como to plough, (ambos significam arar) significa “manter
coito com [alguém]”624. Recorremos a Frankie Rubinstein, ávida descobridora
de trocadilhos, em A Dictionary of Shakespeare’s Sexual Puns and Their
Significance (1984), para definir land (terra) como “vulva, útero”, e esclarecer
que
Ele quer amigos para copular (ear), ser a parte da planta que contém sementes
(EAR) ou [seja, os] testículos para ele, e arar (ear) sua terra, [ou seja,] sua
mulher e sua vulva, assim poupando sua parelha (TEAM), i.e. um par (de
testículos), e seu despejo de sêmen (TEEM),.625 (p.143)
Na passagem, o verbo to kiss surge novamente como eufemismo para a
cópula (cf. p.106), assim como to comfort (confortar) é um eufemismo cômico
para “ministrar deleite ou prazer a [alguém]”626. A palavra drudge (serviçal,
peão) ganha a conotação de “um homem que labuta na cama de uma
622 “Fiquei sem amigos, senhora, e espero consegui-los graças a minha mulher. [...] ...os safados aparecem para me ajudar no que já me cansa. Quem ara minha terra poupa meus bois, e ainda me deixa aproveitar a safra; se me faz cornudo, me serve de criado. Quem conforta minha esposa preza meu sangue; [...] ...quem beija minha mulher é meu amigo. [...] [o puritano e o papista] têm a mesma cabeça; e podem se chifrar um ao outro como qualquer alce do rebanho.” (1.3.32-45)
623 “lover of either sex.”
624 “coit with.”
625 “He wants friends to ear (copulate – P), be the EAR (plant part containing seeds) or testes for him, and ear (plough – OED) his land, his wifeand her vulva, so sparing his TEAM, i.e. a pair (of testes), and his TEEM, outpouring (of semen).”
626 “‘minister delight of pleasure to’ (OED)”
179
mulher”627; e os chifres (horn) reaparecem como emblema dos cornos, e
destino comum a todos os homens. Além dos duplos sentidos (friend, kiss, ear,
land, team), opera o chiste cínico já mencionado. Lavache volta ao tema da
infidelidade conjugal na forma de canção: “Your marriage comes by destiny,/
Your cuckoo sings by kind.”628 (1.3.48-49). O cuco era outro símbolo para as
vítimas de traição, “por conta de seus hábitos criatórios”629 (cuckoo). A
Enciclopaedia Britannica (online) esclarece que os cucos não são os
enganados, mas os enganadores:
“O atributo pelo qual os cucos são mais conhecidos é o hábito de parasitismo
de ninhada... Ele consiste em por os ovos separadamente nos ninhos de certas
outras espécies de pássaros para serem incubados por pais adotivos, que
criam o jovem cuco.”630
Algumas passagens do trabalho de G. Legman, Rationale of the Dirty
Joke, se aplicam a esse motivo do marido complacente. Uma observação do
autor é a de que “a debilidade do marido, vis à vis o adultério da esposa, é a
característica mais desprezível atribuída a ele pelo folclore patriarcal”631 (p.731).
Ele enxerga, na origem do fenômeno da infidelidade, uma dissociação entre
casamento e amor, que “não foram considerados de modo algum conectados,
ainda mais de uma maneira sine qua non, até tão recentemente quanto o início
do século XIX...”632 (p.699). Acrescenta o autor, falando da suposta
627 “a man who labours in a woman’s bed.”
628 “Casamento é loteria,/ Cornudo já nasce feito.” (1.3.50-51)
629 “on account of its nesting habits.”
630 “The attribute for which the cuckoos are best known is the habit of brood parasitism... It consists of laying eggs singly in the nests of certain other bird species to be incubated by the foster parents, who rear the youngcuckoo.” (cuckoo)
631 “The husband’s acting weak, vis à vis the wife’s adultery, is the most contemptible characteristic alotted him by patriarchal folklore...”
632 “...marriage and love have not been considered to be in any way connected, let alone in a sine qua non basis, until as recently as the early
180
superioridade dos países ocidentais, onde os casamentos não são mais
arranjados: “a triste verdade é que a maior parte dos casamentos não são
contraídos no ocidente, ainda hoje [1968], por razões de amor romântico, mas
antes a partir de rude interesse próprio”633 (p.700): independência da família
para a mulher e serviço doméstico grátis para o homem, daí a suposta
inevitabilidade da infidelidade conjugal, aludida por Lavache. Esse personagem
anuncia sua intenção de ter “amigos” através de sua mulher, e vimos que essa
palavra pode ter a conotação de parceiro sexual. Isso abre uma possibilidade
interpretativa sobre o Bobo, se considerarmos que frequentemente, no campo
do humor sexual, o “marido aquiescente ou ‘wittol’ – um termo agora quase tão
obsoleto quanto ‘cuckold’ – [...] é tão comicamente incapaz que deve ser
representado como homossexual”634 (p.732). Na discussão da expressão
barber’s chair (abaixo), Williams sugere o ecletismo sexual do Bobo. No
trabalho de Legman, há toda uma classe de piadas que versam sobre a
poliandria: “Finalmente, o homem capitula. Já que sabe que a mulher não é fiel
a ele de qualquer forma, ele aceita sua posição como um marido entre muitos
‘prestando serviço’ à mesma mulher poliândrica.”635 (p.751). Lavache é apenas
cínico o bastante para antecipar-se e vislumbrar essa possibilidade desde o
início.
Na próxima cena em que surge, Lavache se jacta de sua resposta (“Oh,
Lord, sir!”) que serviria para qualquer pergunta que lhe fosse feita na corte, e
seu simile é o de uma cadeira de barbeiro, em “It is like a barber’s chair that fits
19th century...”
633 “...the sad fact is that most marriages are not undertaken in the West, still today, for reasons of romantic love, but rather out of crude self-interest.”
634 “The acquiescent husband or ‘wittol’ – a term now almost as obsolete as ‘cuckold’ – [...] is so comically impuissant that he must be played as homosexual.”
635 “Finally the man capitulates. Since he knows the woman is not faithful to him anyhow, he accepts his position as one husband among many ‘servicing’ the same polyandrous wife.”
181
all buttocks: the pin-buttock, the quatch-buttock, the brawn-buttock, or any
buttock.”636 (2.2.13-14). Achamos no glossário de Williams barber’s chair:
“proverbial637 para algo em uso comum” (common: “despudorado(a),
livremente acessível”638), defendendo Williams que Lavache “sugere com seus
jogos de palavra que está apto a todas ocasiões sexuais. Barber’s chair estava
em uso para prostituta nos dias de Shakesperare, e o catálogo de traseiros
antecipa o uso, algo posterior, de buttock [como] puta.”639. Lavache garante
que sua resposta é apropriada a qualquer pergunta, assim como uma lista de
coisas são apropriadas umas às outras (cf. p.140); algumas delas são: “your
French crown for your taffety punk” (2.2.16-17), onde French crown é uma
alusão à moléstia francesa: “sinal visível de sífilis na cabeça. Associações da
França com a doença estimularam a brincadeira com o nome inglês para a
moeda francesa chamada écu.”640, enquanto taffeta punk significa “prostituta
usando um vestido de material fino e sedoso, favoritos da profissão.”641. A
brincadeira, um duplo sentido, é entre o preço e a doença da prostituta (uma
coroa francesa). Já sobre “Tib’s rush for Tom’s forefinger” (2.2.17-18), aponta
Williams, em Tib: “puta. O nome é um apelido de Isabel... Comentaristas mais
recentes esperançosamente carregam rush ring (anel de junco) e forefinger
(dedo indicador) de significado obsceno.”642; ring (anel) “simboliza a castidade
636 “É como uma cadeira de barbeiro, que se adapta a todos os traseiros: traseiros gordos, traseiros rijos, qualquer traseiro.” (2.2.14-15)
637 (Tilley B73-4)
638 “whorish, freely available.”
639 “Proverbial for something in common use. [...] quibblingly suggests that he is fit for all sexual occasions. Barber’s chair was in use for whores in Shakespeare’s day; and the catalogue of buttocks adumbrates the use, a little later, of buttock = whore (DSL).”
640 “visible signs of pox on the head, French associations with the disease prompting a pun on the English name for the French coin called the écu.”
641 “prostitute wearing a dress of thin, silky material favoured by the trade.”
182
ou os órgãos sexuais de uma mulher”, enquanto finger é “alusivo a pênis”643.
Também apresenta uma ideia de cópula o trecho “...as the nail to his hole”
(2.2.19), enquanto “the cuckold to his horn” (idem) retoma a convenção dos
chifres. Sobre “as the nun’s lip to the friar’s mouth” (2.2.20), Williams observa,
em nunnery (convento, “alusivo a um bordel”) que “o anticlericalismo havia se
aguçado, convertendo-se em anti-catolicismo nos dias de Shakespeare”644
Lavache então afirma, discorrendo sobre sua resposta universal, que
“From below your duke to beneath your constable, it will fit any question.”645
(2.2.23-24), e Williams vê em constable um “jogo de palavra jocoso com cunt
(vagina)”646, que depende da reversão das sílabas: stablecunt. A Condessa não
se furta a participar da indecência, provocando seu Bobo sobre tamanho
peniano (para a reputação dos bobos, cf. p.77): “It must be an answer of most
monstrous size that must fit all demands.”647 (2.2.25-26); ou, ao menos, é o que
defende Williams em monster (2): “alusivo a pênis” – o mesmo uso ocorreria
em Troilus e Créssida (cf. p.157). Reforça esse sentido o entendimento
apontado para fit (servir, encaixar): “alusivo a coito”. Trata-se de um innuendo.
No fim da cena, Lavache ainda tem tempo para um chiste obsceno. Quando a
Condessa pergunta “...You understand me?”, ele responde “Most fruitfully. I am
642 “whore. The name is a pet form of Isabel... More recent commentators hopefully load rush ring and forefinger with bawdy significance.”
643 “symbolizes a woman’s chastity or sexual organ”; “allusive of penis.”
644 “anti-clericalism had sharpened into anti-Catholicism by Shakespeare's day.”
645 “Desde abaixo do duque até debaixo do policial, serve para qualquer pergunta.” (2.2.24-25) O sentido sexual se perde na tradução.
646 “jocular quibble on cunt.”
647 “Deve ser uma resposta de um tamanho monstruoso, para se adaptar atodas as perguntas.” (2.2.26-27)
183
there before my legs.”648 (2.255-256). A insinuação é mais uma vez a respeito
de tamanho peniano.
Quando volta da corte, Lavache está mudado, e queixa-se de que “Our
old lings and our Isbels a’th’country are nothing like your old ling and your
Isbels a’th’court.” (3.2.10-12; cf.p.141). Williams define ling como “puta, com
insinuações vaginais (ling é um bacalhau salgado, um prato popular)”649; e
lembra que a palavra salt (salgado) era associada a “libidinoso”650.Lavache
prossegue: “The brains of my Cupid’s knocked out, and I begin to love, as an
old man loves money, with no stomach.” (3.2.12–13; cf.p.141). A associação
entre cérebro e sêmen (cf. p.128) figura na passagem novamente, sendo o
Cupido sendo uma referência ao pênis personificado, a frase passa então a
ideia de “descarga seminal”651 (brain). Vimos na seção anterior (cf. p.158) a
brincadeira com os sentidos de standing to’t em “The danger is in standing to’t;
that’s the loss of men, though it be the getting of children.”: ou seja, “lutar
bravamente” e “ficar ereto (em referência ao pênis)”652 (stand).
Em uma passagem, Lavache conversa com Lafeu:
LAFEW Whether dost thou profess thyself – a knave or a fool?
LAVATCH A fool, sir, at a woman’s service, and a knave at a man’s.
LAFEW Your distinction?
LAVATCH I would cozen the man of his wife and do his service.
LAFEW So you were a knave at his service indeed.
LAVATCH And I would give his wife my bauble, sir, to do her service653.
4.5.18-23
648 “Compreendeu?”; “Muito frutiferamente. Vou chegar antes das pernas.”(2.2.57-58)
649 “whore, with vaginal overtones (ling is a salted cod, a popular dish).”
650 “lecherous.”
651 “seminal discharge.”
652 “to fight stoutly”; “to become erect (of the penis)”
184
A edição New Cambridge registra notas para service (19n): “com o
sentido de intercurso sexual.”654 e bauble (23n): “o bastão do Bobo... sugerindo
uma brincadeira obscena com ‘pênis’”655. Williams define service como “labor
ou dever sexual”656 e bauble como “pênis”. Falando sobre o diabo, Lavache diz
que “his fisnomy is more hotter in France than here”657 (4.5.30-31), o que
Williams registra como mais uma referência à sífilis (hot, 2). Também se
relaciona com a temível doença a brincadeira que Lavache faz com o retalho
de veludo que cobre o rosto de Bertram quando ele volta da guerra:
LAVATCHO madam, yonder’s my lord your son with a patch of velvet on’s face.
Whether there be a scar under’t or no, the velvet knows, but ’tis a goodly patch
of velvet. [...]
LAFEW A scar nobly got, or a noble scar, is a good livery of honour;
so belike is that.
LAVATCH But it is your carbonadoed face.658
4.5.75-81
A mesma edição anota que os retalhos (75n) eram “usados
imparcialmente para cobrir ferimentos honrosos e os carbonadoes ou incisões
653 “LAFEU – O que é que o senhor pretende ser – um safado ou um bobo? BOBO – Bobo para servir às damas, safado para os cavalheiros. LAFEU – E como os distingue? BOBO – Eu roubava a mulher do cavalheiro, senhor, e fazia o serviço dele. LAFEU – Então ia ser mesmo safado no serviço ao cavalheiro. BOBO – E à esposa eu dava meu bastão de bobo, senhor, para prestar-lhe serviço.” (4.5.17-23)
654 “With the sense of sexual intercourse.”
655 “The Fool’s staff... suggesting an obscene quibble on ‘penis’.”
656 “sexual labor or duty.”
657 “...sua fisionomia é bem mais quente aqui do que lá.” (4.5.30-31)
658 “BOBO – Ai, senhora, lá vem seu filho com um remendo de veludo no rosto; se tem cicatriz embaixo ou não, não sei; mas é um bom naco de veludo. [...] LAFEU – Uma cicatriz honrosamente obtida é boa libré de honra;é provável que se trate disso. BOBO – Mas deixa a cara retalhada.” (4.5.77-83) A alusão se perde na tradução.
185
que, se esperava, aliviariam a sífilis.”659. Williams registra em carbonadoed: “as
incisões dos barbeiros para aliviar os inchaços sifilíticos”660.
Inventariando as piadas sexuais (ver anexos – lembrando mais uma vez
que cada uma pode pertencer a mais de uma categoria), percebemos que as
técnicas mais usadas foram, assim como em Troilus e Créssida, o double
entendre (15 vezes) e o innuendo, (12), representando respectivamente 26% e
21% dos empregos totais. O double entendre é mais usado por Lavache e
Parolles (5 vezes), seguidos por Lafeu (4). Já o innuendo é mais usado por
Lafeu (5), seguido de Lavache (3) e Parolles (2). Alusão por omissão e
metáfora são recursos usados 6 vezes. O efeito cômico da polissemia surge 4
vezes. Trocadilhos e chistes cínicos aparecem 3 vezes, e são 3 também as
instâncias de obscenidade sem técnica identificável. O raciocínio falho é
empregado 2 vezes e surgem uma única vez os recursos de nonsense,
equivocação, charada e ladrão roubado.
No que se refere aos temas, observou-se que a virgindade – tema do
longo diálogo na cena inicial – figurou 9 vezes (18% do total), das quais 7 nas
falas de Parolles. O ato sexual aparece em 5 das piadas, sendo que Parolles e
Lorde 2 (Dumaine) têm 2 cada. Também são 5 (10% do total de empregos)
aquelas sobre conduta ou reputação sexual, Parolles sendo responsável por 4
delas. Potência sexual é o tema de 4 piadas, todas de Lafeu; e em igual
número foram aquelas sobre doença venérea, todas vindas de Lavache. São
em número de 3 as piadas que abordam a anatomia feminina, mesmo número
daquelas sobre conduta ou reputação sexual. As seguintes categorias
aparecem 2 vezes: anatomia masculina (em geral), dimensão peniana,
anatomia de ambos os sexos, sêmen, prostituição, casamento e traição (figura
do corno). O proxenetismo, a ereção, o homoerotismo, a virilidade e a
conquista são os temas de uma única piada cada.
659 “Used impartially to cover honourable wounds and the carbonadoes or incisions which were supposed to relieve syphilis.”
660 “the barber-surgeon's incisions to relieve syphilitic swellings.”
186
De modo geral, a peça problematiza – tanto quanto Troilus e Créssida,
mas num tom menos amargo – os ideais de honra e de amor romântico, e mais
uma vez a obscenidade tem nisso um papel crucial. O cinismo de Parolles
quanto à virgindade feminina, e aquele de Lavache quanto ao espectro do
adultério conjugal são talvez parte dos motivos por que a peça provocou
opiniões tão divididas, e foi rotulada como “problema”. O público à época
poderia ser levado a reflexões, tais como se a honra feminina reside de fato na
castidade, ou se os homens podem mesmo controlar a fidelidade feminina pela
intimidação, quando não fazem a si mesmos a mesma exigência. Os
espectadores mais rudes poderiam simpatizar com as grosserias de Parolles e
Lavache sobre o sexo feminino, mas os mais perspicazes enxergariam na peça
uma denúncia, mesmo jocosa, da hipocrisia da dominação patriarcal.
187
Capítulo 5: Medida por medida
...for the rebellion of a codpiece to take away the life of a man!
(3.2.100-101)
Tendo o sexo como um tema preponderante tanto na trama principal –
em que um governante propõe um suborno sexual a uma jovem religiosa que
tenta salvar o irmão, condenado por fornicação – quanto na secundária, que
envolve o submundo da prostituição em uma fictícia Viena que remete muito à
Londres do dramaturgo, e especialmente à área de Southbank, onde ficavam o
Globe Theatre e os bordéis, Medida por medida (1604) é repleta de linguagem
sexual, de cunho sério – mesmo trágico – e também cômico.
Tanto quanto em Bom é o que acaba bem, há um truque-do-leito no
enredo, e aqui também o tratamento dado ao recurso não busca suscitar risos,
ficando fora do escopo desta dissertação. Como apontado no capítulo anterior
(nota 473), há divergência quanto à ordem de composição dessas duas peças.
Além de enxergarmos como mais provável o uso do truque-do-leito
primeiramente como uma adaptação direta, e apenas depois como um
acréscimo secundário a outra trama, Medida por medida é também mais
relevante em termos de humor sexual, sendo reservada, de qualquer forma,
para o último capítulo.
Ao contrário de Bom é o que acaba bem, e assim como Troilus e
Créssida, as fontes de Medida por medida são múltiplas, e as diferenças entre
cada versão da história são muitas, não sendo pertinente a este trabalho
analisá-las em profundidade. Os principais autores dos quais Shakespeare
lançou mão foram Giovanni Battista Giraldi Cinthio (1504 – 1573), da mesma
tradição da novella de Boccaccio, e seu Hecatommithi (1565, de onde também
é extraída a trama de Otelo), e George Whetstone (1544? – 1587) , dramaturgo
elisabetano, e sua adaptação Promos and Cassandra (1578). No entanto, o
editor da edição da New Cambridge, Brian Gibbons, salienta (p.6) que a peça
“se baseia em materiais folclóricos de uma linhagem europeia comum e antiga:
são as histórias do magistrado corrupto e da barganha infame, do governante
disfarçado, e do parceiro de leito substituído”, materiais que o poeta inglês
188
conhecia das novelle de Bocaccio e seus seguidores, e “podia confiantemente
planejar combinar várias de tais histórias, ao modificar seus respectivos tom e
força.”661
Na primeira seção deste capítulo, buscaremos expor sucintamente as
reações da crítica à peça. Na seção seguinte, apresentaremos as impressões
de E.A.M. Colman em sua obra The dramatic use of Bawdy in Shakespeare,
para enfim explorarmos, na terceira e última seção, os usos cômicos da
linguagem sexual em Medida por medida, ajudados pelo glossário
Shakespeare’s Sexual Language, de Gordon Williams.
5.1 Crítica
Michael Jamieson, em seu artigo The Problem Plays 1920 – 1970 A
Retrospect (in Muir and Wells, eds., pp.129-132), mostra que as opiniões e
interpretações a respeito de Medida por medida são muitas – “[o] volume de
crítica sobre [a peça] desde 1930 quase rivaliza com aquele sobre Hamlet”662 –
e, às vezes, conflitantes. Ao passo que alguns críticos viram nela o mesmo
problema apontado em Bom é o que acaba bem, ou seja, o fato de que
“Shakespeare nunca reconciliou sua vívida caracterização... com o enredo
preexistente.”663, e Bernard Beckerman a considerasse “um experimento não
inteiramente bem sucedido em tragicomédia”664, ou ainda que Arthur Quiller-
661 “...is based on folk-tale materials of an ancient and common European stock: these are the stories of the corrupt magistrate and the infamous bargain, of the disguised ruler, and of the substituted bed-mate. [...] He could confidently plan to combine several such stories by modifying their respective tone and force.”
662 “The bulk of criticism on Measure for Measure since 1930 almost rivals that on Hamlet.”
663 “Shakespeare never reconciled his vivid characterization... with the pre-existing plot.”
664 “...a not entirely successful experiment in tragicomedy.”
189
Couch se perguntasse “‘O que há de errado com essa peça?’”665, houve quem
considerasse Medida por medida “‘uma das melhores peças’” (F.R. Leavis), ou
“‘uma das obras de arte mais perfeitas de Shakespeare” (J.C. Maxwell); por
fim, temos as opiniões aparentemente paradoxais de Mary Lascelles, “‘esta
ótima peça desigual’”, e J.W. Lever (editor da edição The Arden Shakespeare),
“uma obra-prima falha”666.
Algumas possibilidades de interpretação da peça merecem destaque. A
primeira é aquela que vê nela uma alegoria cristã, proposta por Wilson Knight,
em Measure for Measure and the Gospels (in The Wheel of Fire, 1930), estudo
no qual “aborda a peça como ‘uma parábola’ e ‘uma explicação estudada’ do
tema ‘Não julgais para não serdes julgados’. Knight achava que ela tendia ‘à
alegoria e ao simbolismo’...”667. Jamieson aponta ainda nos trabalhos de C.J.
Sisson e R.W. Chambers “a reabilitação pelo Establishment da peça como uma
obra de arte doutrinariamente cristã”668. Roy W. Battenhouse, em Measure for
Measure and Christian Doctrine of the Atonement (1946), foi mais além em sua
“interpretação alegórica extrema, com o Duque como o Lorde Incarnado...”669
Uma outra interpretação seria aquela que identifica o Duque Vicentio ao
novo rei – Jaime I ascendeu em 1603 – e vê na peça um estudo sobre o papel
da clemência na boa governança. Josephine Waters Bennett em ‘Measure for
Measure’ as Royal Entertainment, propõe a hipótese segundo a qual
“Shakespeare como autor-ator-diretor elogiava o rei Jaime, que está refletido
665 “‘What’s wrong with this play?’”
666 “‘one of the very greatest of the plays’; ‘this great, uneven play’; ‘a flawed masterpiece’”
667 “...approached the play as ‘a parable’ and ‘a studied explication’ of the theme ‘Judge not, that ye be not judged’. Knight found that it tended ‘towards allegory or symbolism’...”
668 “the Establishment’s rehabilitation of the play as a doctrinally Christian work of art.”
669 “extreme allegorical interpretation, with the Duke as Lord Incarnate...”
190
no Duque, a quem Shakespeare representava”670. Já Elizabeth Marie Pope, no
artigo The Renaissance Background of Measure for Measure (1949) defendia
que “a peça se ocupa com os deveres do Príncipe ou Governante e seu
privilégio de usar meios extremos para temperar a justiça com a clemência.”671.
Já a visão de M.C. Bradbrook em Authority, Truth, and Justice in
Measure for Measure (1941), “detectava uma estrutura de Moralidade
medieval672: ‘A Contenda entre Justiça e Clemência, ou Falsa Autoridade
desmascarada por Verdade e Humildade.’”673
Quanto aos personagens, o consenso parece ainda mais longe. O
Duque podia ser visto como “‘o profeta de uma ética iluminada’”674 (Wilson
Knight), ou “Lorde Incarnado” (R.W. Battenhouse), em seu aspecto cristão, mas
também como “Duque do palco” (W.W. Lawrence) ou “‘o-mais-que-Próspero”
(F.R. Leavis) – em referência ao modo como o protagonista de A tempestade
manipula a ação da peça. Sobre Isabella, na contagem de Warren D. Smith,
em 1962, “‘quatorze críticos elogiam sua nobreza na cena da prisão e treze...
acusam-na de desumanidade ante seu irmão’.”675. Para Wilson Knight, ela é
670 “Shakespeare as author-actor-director complimented King James, who isshadowed in the Duke, whom Shakespeare played.”
671 “the play is concerned with the duties of the Prince or Ruler and his privilege to use extraordinary means in tempering justice with mercy.”
672 A Encyclopaedia Britannica (online) define Moralidade como “um dramaalegórico popular na Europa, especialmente durante os séculos XV e XVI, noqual os personagens personificam qualidades morais (tais como caridade ouvício) ou abstrações (como morte ou juventude) e no qual lições morais são ensinadas.”; “Morality play, also called morality , an allegorical drama popular in Europe especially during the 15th and 16th centuries, in which the characters personify moral qualities (such as charity or vice) or abstractions (as death or youth) and in which moral lessons are taught.” (Morality play)
673 “detected a medieval Morality structure: ‘The Contention between Justice and Mercy, or False Authority unmasked by Truth and Humility.’”
674 “‘the prophet of an enlightened ethic’”
191
uma “santa autocentrada”, enquanto para Lawrence ela é “livre de culpa”676 e,
para Maxwell ela é livre de imperfeições “‘além daquela envolvida na limitação
das criaturas’”677. Ângelo, o vilão da peça, apesar de “exposto como um
puritano” por D.J. McGinn, desperta simpatias na crítica, sendo descrito como
“‘o sucesso admitido da peça’”678 (L.C. Knights), “moralmente ‘valendo quatro
Duques’”679 (A.D. Nutall), ou ainda “apresentado sensivelmente como um
protagonista trágico” por W.M.T. Dodds, e visto com simpatia por F.R. Leavis.
A visão de A.D. Nutall (2007) gira em torno das implicações teológicas
da peça, mas de um modo assaz curioso – talvez exigindo passos muitos
largos de nossa credulidade. Nutall se pergunta se Shakespeare teria
conhecido a teologia dos gnósticos, segundo a qual “a Trindade é uma família
disfuncional; o Filho é o antagonista do Pai” (p.264), e a serpente do Gênesis
simbolizaria Cristo. William Blake (1757 – 1827) e Christopher Marlowe (1564 –
1593), defende o crítico, eram familiarizados com essa crença. Shakespeare
poderia, então, ter sinalizado essa teologia ofítica (do grego ophis, serpente)
em Medida por medida e atribuído ambos os papéis – de pai opressor e filho
redentor – a Ângelo (p.269). Esse tipo de malabarismo crítico é perigoso,
porque pode levar a enxergar praticamente qualquer intenção por trás de uma
obra literária. É de se perguntar qual seria a reação de Shakespeare, caso
fosse possível reanimá-lo, ante tantas agendas secretas a ele atribuídas.
A crítica de Harold Bloom (1998), um entusiasta da peça, merece um
tratamento mais amplo. Diz ele:
a extraordinária Medida por medida pode ser vista como a despedida de
Shakespeare da comédia... [Ela] excede [as demais peças-problema] em
675 “‘fourteen critics praise her nobility in the prison scene and thirteen... charge her with inhumanity towards her brother’.”
676 “‘self-centred saint’”; “blameless”
677 “‘beyond that involved in craturely limitation’”
678 “ ‘the admitted success of the play’”
679 “morally ‘worth four Dukes’”
192
causticidade e parece purgar Shakespeare de qualquer idealismo residual que
Tersites e Parolles não haviam eliminado nele. (p.358)
Também é sua opinião que se trata de um “drama inacreditável, mas
persuasivo”, em que o dramaturgo,
empilhando afronta em cima de afronta, nos deixa moralmente sem fôlego e
imaginativamente desnorteados, como se fosse por fim à comédia em si
mesma, empurrando ela para além de todos limites possíveis, para além da
farsa, muito além da sátira, quase que além da ironia em seu mais selvagem.680
(p.359)
Também é dito que “nenhum outro trabalho de Shakespeare é tão
fundamentalmente alienado da síntese ocidental de moralidade cristã e ética
clássica...”681 (p.364). A conclusão do crítico é em termos superlativos: “Não
conheço nenhuma outra obra eminente de literatura ocidental que seja de
longe tão niilista quanto Medida por medida.”682 (p.380) – a peça “supera as
quatro Grandes Tragédias [Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth] como a obra-
prima do niilismo.”683 (p.363)
Seguem algumas observações de Bloom sobre os personagens. O
Duque Vicentio é duramente atacado como moralmente dúbio: “viciado em
disfarces, provocações sádicas e estratagemas desesperadamente dúplices”684
(p.370), e é ressaltado seu desejo por Isabela: “O desejo sadomasoquista de
680 “...unbelievable yet persuasive drama... piling outrage upon outrage, leaves us morally breathless and imaginatively bewildered, rather as if he would end comedy itself, thrusting it beyond all possible limits, past farce, long past satire, almost past irony in its most savage.”
681 “No other work by Shakespeare is so fundamentally alienated from the Western synthesis of Christian morality and Classical ethics...”
682 “I do not know any other eminent work of Western literature that is nearly as nihilistic as Measure for Measure.”
683 “...surpasses the four High Tragedies as the masterpiece of nihilism.”
684 “...addicted to disguises, sadistic teasings, and designs hopelessly duplicitous.”
193
Ângelo pela noviça é mais palpável do que a lascívia do Duque, mas a
diferença entre os dois é de grau, não de tipo.”685 (p.365). Sobre o desejo de
Ângelo, é citado Williams Empson: “‘a real ironia... é que a frieza dela, mesmo
sua racionalidade, é o que o excitou.’”686 (idem), e acrescido que seu “céu seria
um convento, onde ele pudesse servir de padre-confessor visitante (e
castigante)...”687 (p.366). Opina Bloom que “Lúcio, o flaneur é o jornalista da
Viena de Vicentio, e suas mentiras esbarram em verdades dolorosas”688
(p.371), e uma vez que ele é “o único personagem racional e dotado de
empatia nesta comédia do absurdo (exceto o soberbo Bernardino), parece
seguro assumir que seus constantes verbais contra o Duque falam por nós, a
plateia, e por Shakespeare...”689 (p.370). O prisioneiro que se recusa a ser
executado é considerado por Bloom “o centro imaginativo (e maior glória) de
Medida por medida.”690 (p.374), pelo fato de que
a ideia de ordem na Viena de Vicentio é no fim das contas uma ideia de morte;
Bernardino, recusando toda ordem, recusa-se a morrer, e Shakespeare apoia
685 “Angelo’s sadomasochistic desire for the novice nun is more palpable than the Duke’s lust, but the difference between the two is in degree, not in kind.”
686 “...‘the real irony... is that her coldness, even her rationality, is what excited him.’”
687 “...heaven would be a nunnery, where he might serve as visiting (and punishing) father-confessor...”
688 “Lucio the flaneur is the journalist of Vincentio’s Vienna, and his lies ringout some wounding truths.”
689 “...the only rational and sympathetic character in this absurdist comedy(except for the superb Barnardine), it seems safe to assume that his constant verbal assaults on the Duke speak for us, the audience, and for Shakespeare...”
690 “...the imaginative center (and greatest glory) of Measure for Measure.”
194
Bernardino, quando o Duque finalmente perdoa este assassino confesso.691
(p.375)
5.2 A abordagem crítica da obscenidade de E.A.M. Colman
Como já mencionado, Colman (pp. 144-147) agrupa Medida por medida
juntamente com peças mais tardias, nas quais a obscenidade introduz um
“senso de tolerância” – Antônio e Cleópatra (1606), Conto de inverno, (1610), A
tempestade (1611) e Henrique VIII (1612) – e não juntamente com suas
contemporâneas, caracterizadas pela náusea sexual – caso de Troilus e
Créssida. A razão para isso é que, mesmo se tratando de uma comédia
sombria, o “teor principal da obscenidade em Medida por medida é alegre”, e a
peça “inclui muito pouco da histeria que dá origem à obscenidade amarga.” 692.
É bem verdade que a heroína “uma vez ou outra, sem saber, admite o que hoje
reconhecemos como inversão sexual:”693 ao recusar a proposta de suborno
sexual de Ângelo, Isabela usa uma imagem de cunho sadomasoquista
(citações sempre da edição New Cambridge).
Th’impression of keen whips I’d wear as rubies,
And strip myself to death as to a bed
That longing have been sick for, ere I’d yield
My body up to shame.694
691 “The idea of order in Vincentio’s Vienna ultimately is an idea of death; Barnardine, refusing all order, declines to die, and Shakespeare seconds Barnardine, when Shakespeare has the Duke finally pardon this confessed murderer.”
692 “The main tenor of bawdy in Measure for Measure is cheerful.”; “includes very little of the hysteria that gives rise to embittered bawdy.”
693 “...once or twice, unknowingly admits to what we nowadays recognise as sexual inversion:”
694 “Ostentaria as marcas da chibata/ Quais rubis, me deitando pra morrer/ Como em leito sonhado, muito antes/ De dar meu corpo à vergonha.” (2.4.103-106)
195
2.4.101-104
Bloom (1998) brinca: “Se o Marquês de Sade tivesse sido capaz de escrever
tão bem, ele talvez pudesse ter tido a esperança de competir com isso...”695
(p.365).
Colman observa que “o lugar [da obscenidade] é, quase exclusivamente,
na sub-trama dos donos de bordel”696, muito embora ressalve que
Chegar a chamar [essa] parte da peça de uma trama é talvez sintetizá-la
inapropriadamente. Ela consiste antes de uma série de incidentes separados
entremeados entre os eventos principais da peça, mas envolvendo um grupo
específico de personagens – Lúcio, o cavalheiro dissoluto, Madame Japassada
e seu ajudante Pompeu, Espuma e dois outros cavalheiros (não nomeados), e
o policial adversário deles, Torto.697
Esses incidentes, no entanto, não são gratuitos, tendo a função de “dar
materialidade dramática à licenciosidade generalizada que os quatorze anos de
governo indulgente do Duque encorajaram.”698 E o exemplo dado de como
“Liberty plucks Justice by the nose”699 (1.3.30; notar a personificação de
conceitos característica das moralidades) é a cena (2.1) em que “Torto se
atrapalha com o caso contra Espuma e Pompeu”700. O autor poderia
695 “Had the Marquis de Sade been able to write so well, he might have hoped to compete with that...”
696 “...its place is, almost exclusively, in the brothel-keepers’ sub-plot.”
697 “To call the brothel-keepers’ part of the play a plot at all is perhaps to synthesize it unduly. It consists rather in a series of separate incidents interspersed among the main events of the play but involving a specific group of characters – Lucio the dissolute gentleman, Mistress Overdone and her man Pompey, Froth and two other (nameless) gentlemen, and their constabular opponent, Elbow.”
698 “...give dramatic body to the general licence that the Duke’s fourteen years of indulgent rule have fostered.”
699 “A liberdade abusa da justiça.” (1.3.29)
700 “Froth fumbles the case against Froth and Pompey.”
196
acrescentar que não apenas o comicamente incapaz Torto é feito de bobo, mas
Ângelo se retira exasperado e Éscalo libera os suspeitos com uma advertência,
seja por moderação ou por mero aturdimento.
Uma observação interessante feita por Colman é a de que embora
Pompeu
tenha de admitir, sob pressão do Duque, que sua ocupação como cafetão ‘does
stink in some sort’ (3.2.25; “algum fedor [esse modo de vida] tem”), a admissão
é duplamente atenuada – pelo fato de que o próprio Duque acabara de cumprir
o papel de alcoviteiro ao arranjar a trama do leito, e por Pompeu ter a
habilidade tradicional do bobo em sobreviver às indignidades e ver um lado
engraçado em quase tudo.701
Não muda muito a imprecisão da alegação de que o Duque já havia arranjado
o truque-do-leito; ele o havia mencionado a Isabela, apenas, mas a ordem dos
fatos é irrelevante: o Duke of dark corners702 (4.3.148), na expressão de Lúcio,
é de fato um alcoviteiro. O que Colman parece não perceber é que a própria
menção a mau cheiro é uma piada obscena de Pompeu, apontando para
odores que podem surgir em ambientes dados mais à fornicação do que à
higiene apropriada. Lúcio também é mencionado: se por um lado, para o autor,
ele é “desprezível”, sua resiliência de “brinquedo de mola” o faz um
“proponente da lubricidade agradavelmente divertido”703.
O autor conclui, então, que o diálogo obsceno “se torna tão ambivalente
quanto qualquer outra coisa na peça” – por um lado, “ele dá substância
dramática ao que para... Ângelo e Isabela são ‘filthy vices... abominable and
beastly touches’ (2.4.41 e 3.2.21)”, enquanto, por outro, “ele contrasta com o
701 “he has to admit, under pressure from the Duke, that his trade as a pimp ‘does stink in some sort’... the admission is doubly offset – by the fact that the Duke himself has just filled the role of pander in arranging the bed plot, and by Pompey’s having the traditional clown’s ability to survive the indignities and see a funny side to almost everything.”; “algum fedor [esse modo de vida] tem” (3.2.25)
702 “...duque de recantos escuros...” (4.3.149)
703 “despicable”; “jack-in-the-box”; “likably amusing proponent of lechery...”
197
segredo sombrio e com a ameaça da forma mais sutil de sexualidade
personificada por Ângelo.”704
5.3 O humor sexual de Medida por medida
Não é possível garantir, como Lúcio o faz ao Duque disfarçado, que “ If
bawdy talk offend you, we’ll have very little of it.”705 (4.3.163-164): Medida por
medida está entre as peças com mais piadas sexuais do cânone
shakespeariano (atrás apenas de As alegres comadres de Windsor e Henrique
IV parte II, em nossa contagem).
Assim como acontece com Pandarus e Tersites em Troilus e Créssida, e
com Parolles e Lavache em Bom é o que acaba bem, dois personagens,
Pompeu e Lúcio, têm a parte do leão do humor sexual em Medida por medida.
O que faremos, novamente, é apresentar as demais ocorrências de piadas
sexuais para depois abordar aquelas pelas quais os dois são responsáveis, e
estas serão – como aconteceu com as de Tersites – apresentadas por temas,
uma vez que, como Colman observou (cf.p.167), as cenas do submundo nem
chegam a configurar uma trama propriamente dita, nem têm impacto direto
sobre a ação principal da peça.
Julieta tem apenas uma aparição em cena, mas seu diálogo com o
Duque tem a propriedade de reafirmar a seriedade de seu enlace com Cláudio;
ela chega mesmo a se permitir um gracejo que confronta o tom moralizante do
falso frade:
DUKE Love you the man that wronged you?
JULIET Yes, as I love the woman that wronged him.706
2.3.24-25
704 “...becomes as ambivalent as anything in the play.”; “...it gives dramatic substance to what... for Angelo, for Isabella, are ‘filthy vices... abominable and beastly touches’...”it contrasts with the dark secrecy and menace of the subtler type of sexuality embodied in Angelo.”; “Pecado imundo!” (2.4.44); “...esses abraços nojentos de fera...” (3.221)
705 “Se conversa safada o ofende, nós nem vamos falar.” (4.3.166-167)
198
A jocosidade reside em usar o verbo to wrong – “fazer mal (geralmente a uma
mulher) através de estupro ou sedução”707 – no sentido oposto ao usual. É
possível enxergar na passagem aquilo que Freud chamou de (técnica VII) “Sim
pelo não, ou representação pelo oposto” (cf.p.34), uma vez que o que ela
realmente quis dizer quando admitiu que ambos fizeram mal um ao outro é que
nenhum dos dois o fez.
Assim como Diana, em Bom é o que acaba bem, fala de modo críptico
para confundir o rei sobre ter travado conhecimento carnal (know) com um
homem (cf.p.147), Mariana também o faz com o Duque na cena final de
Medida por medida. É o máximo de comicidade que é extraída do truque-do-
leito.
I have known my husband, yet my husband
Knows not that ever he knew me.
[...]
Angelo,
Who thinks he knows that he ne’er knew my body,
But knows, he thinks, that he knows Isabel’s.708
5.1.185-6; 199-201
Aqui surge, nas duas primeiras linhas, um aparente paradoxo, e é explorada a
polissemia de to know (no sentido usual de saber e naquele de conhecer
sexualmente) nas duas últimas.
A cafetina Madame Japassada, reclamando da diminuição de sua
clientela, alude ao tratamento da sífilis pela sudorese, como o faz Pandarus em
Troilus e Créssida (cf.p.118): “Thus, what with the war, what with the sweat,
706 “DUQUE – Amas o homem que lhe fez tanto mal? JULIETA – Como a mulher que também lhe fez mal.” (2.3.24-25)
707 “harm (uasually a woman) through rape or seduction.”
708 “Marido eu conheci, mas meu marido/ Não sabe ter jamais me conhecido.”; “...Ângelo,/ Que pensa ser estranho ao meu corpo,/ Mas acredita conhecer o de Isabel.” (5.1.188-189; 203-204)
199
what with the gallows, and what with poverty, I am custom-shrunk”709 (1.2.67-
69). Trata-se de mais uma alusão por omissão. Williams (sweat, 2) vai além,
sugerindo que a passagem “indica presumivelmente clientes sofrendo com
salivação – um assunto prolongado que poderia estragar a lida deles por
meses.”710
O policial Torto é mais um da tradição shakespeariana de oficiais
inaptos, como Dogberry em Muito barulho por nada e Tonto em Trabalhos de
amor perdidos. Uma fonte de humor em todos esses personagens é a
capacidade de usar palavras no lugar de outras, com efeito cômico, os
chamados “malapropismos” (cf.p.66). Torto, na cena em que leva Pompeu e
Espuma ante Ângelo e Éscalo, provoca confusão dizendo “respeitado(a)”
quando quer se referir a “suspeito(a)” (respected: “malapropismo para
suspected”), e Pompeu se aproveita disso para zombar dele:
ELBOW First, and it like you, the house is a respected house; next,
this is a respected fellow; and his mistress is a respected woman.
POMPEY By this hand, sir, his wife is a more respected person than
any of us all.
ELBOW Varlet, thou liest! Thou liest, wicked varlet! The time is yet
to come that she was ever respected with man, woman, or child.
POMPEY Sir, she was respected with him before he married with her.711
2.1.141-146
709 “E assim, com a guerra, e mais o suor, e mais a forca, e mais a pobreza,sinto-me como um trapo molhado.” (1.2.62-63) A opção por “trapo molhado” não parece fazer sentido.
710 “...presumably indicating clients undergoing salivation – a protracted business which could spoil their trading for months.”
711 “TORTO – Em primeiro lugar, se me permite, a casa é uma casa de respeito; depois, que esse sujeito é respeitoso; e que a patroa dele é uma mulher muito respeitosa. POMPEU – Eu juro, meu senhor, que a mulher dele é a mais respeitosa de todas. TORTO – Canalha, isso é mentira! Mentira, seucrápula! Ainda há de chegar o tempo em que ela será respeitada por todos. POMPEU – Senhor, ela tinha sido respeitosa com ele, antes dele casar-se com ela.” (2.1.144-151)
200
O malapropismo é uma forma de quiproquó, pois diferentes personagens têm
sua própria percepção dos acontecimentos. Torto, como Parolles quando caído
em “mãos inimigas”, engana-se quanto aos significados de palavras e
situações, e é ridicularizado por outros personagens e se tornam risíveis para a
plateia.
Em outro momento, Torto acusa Pompeu de ser um ladrão “...for we
have found upon him, sir, a strange pick-lock...”712 (3.2.14-15). Se a edição da
New Cambridge aponta que “um jogo de palavras obsceno também deve ser
suspeitado”713 (15n), Williams (picklock) afirma com segurança que a suposta
chave-mestra é, na verdade, um dildo (consolo): “O epíteto ‘estranho’ indica
que esta não é uma ferramenta dos arrombadores, mas uma apropriada a sua
própria ocupação.”714. Aqui, certamente, o objeto exibido em cena é
fundamental para a compreensão da piada. Também temos um quiproquó, pois
é explorada a diferença entre a percepção do personagem e da plateia (e
talvez demais personagens). Bergson e Propp discutem a comicidade
relacionada às profissões. Para este, são alvo especial aquelas que “não
requer[em] uma tensão mental especial, e toda atenção se dirige apenas às
suas formas exteriores” (cf.p.40).
Chegamos então ao momento de apresentar as piadas sexuais vindas
de Pompeu. O primeiro grupo versa sobre o ato sexual, e lida, quase sempre,
com relações ilícitas, ou, nos termos de sua imagem para o “crime” de Cláudio,
“groping for trouts in a peculiar river”715 (1.2.75). Gibbons registra “um innuendo
obsceno” e que a expressão significa “‘cometer um ato de sedução’”716,
enquanto Williams (groping for trouts in a peculiar river) a define como
712 “...pois encontramos com ele uma estranha gazua...” (3.2.14)
713 “A bawdy quibble is also to be suspected.”
714 “The epithet ‘strange’ indicates that this is no housebreaker’s tool but one appropriate to his own trade.”
715 “Andar pescando trutas em um rio muito especial.” (1.2.69)
716 “...a bawdy inuuendo”; “‘commiting an act of seduction’”
201
“fornicar”, observando que “fazer cócegas em trutas é pescá-las com uma
toque suave. Mas embora isso... sugira sexo manual, a presente instância
levou à gravidez.”717 (ver tickle, “alusivo a atividade sexual”). Nas linhas que
antecedem esse innuendo dependente de uma metáfora cômica, Pompeu
explora o significado de cópula para to do e o paralelismo com o sentido usual
de “fazer” para o verbo:
MISTRESS OVERDONE Well, what has he done?
POMPEY A woman.718
1.2.72-73
Aqui, a comicidade vem do duplo sentido para to do e do mal-entendido
deliberado por parte de Pompeu.
O personagem volta a brincar com esse uso para o verbo to do em duas
ocasiões. Na cena em que é levado a dar explicações a Ângelo e Éscalo sobre
a esposa de Torto, Pompeu joga com os sentidos sexuais tanto de to do quanto
de to come (“atingir o orgasmo”719, cf.p.110)
ESCALUS Come, you are a tedious fool, to the purpose: what was
done to Elbow’s wife, that he hath cause to complain of? Come
me to what was done to her.
POMPEY Sir, your honour cannot come to that yet.
ESCALUS No, sir, nor I mean it not.
[...]
ESCALUS ...Now, sir, come on: what was done to Elbow’s wife, once more?
POMPEY Once, sir? There was nothing done to her once.720
717 “fornicating”; “To tickle trout is to fish them with a soothing hand. But although this... suggests manual sex, the present instance has led to pregnancy.”
718 “JAPASSADA – Qual foi o crime dele? POMPEU – Uma mulher.” (1.2.66-67) O duplo sentido se perde na tradução.
719 “experience orgasm.”
202
2.1.103-107; 123-124
Aqui, o uso do verbo to do é diferente: em vez de transitivo (equivalendo a to
fuck – palavra tabu à época), ocorre como “fazer algo a alguém”, mas
sugerindo igualmente o coito. Operam aqui um duplo sentido para to come, um
innuendo no caso de to do, e um mal-entendido deliberado quanto a ambos. A
nota da edição da New Cambridge (107n) salienta que “Éscalo mostra em sua
resposta [“...I meant it not.”] que reconhece as brincadeiras obscenas em
‘come’ e ‘done’ em 104 e 105.”721
A outra piada de Pompeu com o verbo to do se aproveita do nome de
sua patroa Madame Japassada (Mistress Overdone, no original). Os nomes
dos personagens são uma fonte comum de comicidade em Shakespeare –
Falstaff (Henrique IV e As alegres comadres de Windsor), por exemplo, sugere
“cajado caído”, e portanto sua impotência. Ainda em Medida por medida, Kate
Keepdown (Catarina Come-Quieto) associa um prenome ligado a prostitutas
(Kate) à ideia de “manter-se deitada” (down: “da postura supina da mulher
para o coito”722), enquanto Abhorson (Bominaputa), nome do carrasco, é o que
Freud chamou de condensação com formação de palavra composta, pois
“comprime a ideia de que sua função o faz um bastardo repugnante”723
(abhorrent whoreson).
ESCALUS Hath she had any more than one husband?
720 “ÉSCALO – Você é um tolo cansativo. Vamos ao que importa: o que foi feito à mulher de Torto para que ela [sic] tivesse razão de queixa? Diga o que aconteceu com ela. POMPEU – Senhor, o meritíssimo não pode chegar logo até lá. ÉSCALO – E nem tinha essa intenção.”; “ÉSCALO – Agora, vamos:mais uma vez, o que houve com a mulher de Torto? POMPEU – Uma vez? Nunca se fez nada com ela uma vez.” (2.1.105-109; 125-126) Os jogos de palavras sexuais se perdem.
721 “Escalus shows in this reply that he recognizes the bawdy quibbling on ‘come’ and ‘done’ in 104 and 105.”
722 “of woman’s supine coital posture.”
723 “compresses the idea that his function makes him an abhoorrent bastard.”
203
POMPEY Nine, sir: Overdone by the last.724
2.1.172-173
O glossário de Williams explica em Overdone que a resposta de Pompey
“ostensivamente [significa] que ela tomou esse nome do nono marido”, ficando
claro que o sentido cômico é o de que a atividade sexual exagerada desse
último casamento a tornou “sexualmente debilitada”725. O que ocorre aqui é
mais uma vez o que Bergson chama de “interferência de séries” no domínio da
comicidade de palavras: dois significados coexistem na mesma frase; Freud
chama ao procedimento cômico (técnica II-c) “Múltiplo uso do mesmo material:
como um todo e suas partes”, que é quando “uma mesma palavra – o nome –
aparece usada de duas maneiras, uma vez como um todo, e outra vez
segmentada em sílabas separadas” (cf.p.31).
Duas das piadas de Pompeu têm temática anatômica. A primeira é
quando defende Espuma da acusação de fazer mal à esposa de Torto: “...his
face is the worst thing about him, [...] how could Master Froth do the
constable’s wife any harm?”726 (2.1.136-138). Williams chama a atenção para o
sentido insinuado de thing (2): “pênis” – significando a passagem então que o
membro de Espuma não oferece perigo. Éscalo, mais uma vez, parece captar o
sentido sexual, e concorda com o argumento: “He’s in the right, constable, what
say you to it?”727 (2.1.140). Merece comentário o nome de Espuma, que figura
no glossário (froth) associado a sêmen, ainda que o personagem não seja
mencionado. O outro chiste anatômico de Pompeu se refere à mulher,
724 “ÉSCALO – E ela teve mais de um marido? POMPEU – Nove, meu senhor,Japassada é do último.” (2.1.176-177) O jogo de palavras se perde na tradução.
725 “ostensibly meaning that she has taken this name from the ninth husband.”; “sexually debilitated.”
726 “...a cara é a pior coisa que há nele. [...] como poderia o Mestre Espumafazer qualquer mal à mulher do guarda?” (2.1.139-142) O duplo sentido sexual se perde na tradução.
727 “Ele tem razão, guarda; o que tens a dizer?” (2.1.143)
204
especificamente ao hímen, o qual é secundado – possivelmente – de outro
duplo sentido, não intencional, vindo de seu interlocutor, ainda referente ao
sexo da mulher:
PROVOST Come hither, sirrah; can you cut off a man’s head?
POMPEY If the man be a bachelor, sir, I can; but if he be a married man,
he’s his wife’s head, and I can never cut off a woman’s head.
PROVOST Come, sir, leave me your snatches and yield me a direct
answer.728
4.2.1-6
Williams aponta em head (3) que woman’s head se refere a maidenhead, ou
hímen (Pompeu seria incapaz de romper um), enquanto em snatch apenas
especula: “É tentador ver a [resposta] impaciente do delegado... continuando a
piada de forma não intencional. Mas indícios em apoio de snatch (jogo de
palavras) significando vagina datam do fim do século XVII... não do início.”729
Gibbons (5n) registra para a palavra apenas o sentido de quibble (jogo de
palavras), enquanto Rubinstein (1784) aponta duplo sentido sexual sem
reserva alguma. Além do duplo sentido, percebe-se o uso da técnica do
raciocínio falho.
Uma brincadeira de Pompeu se refere à reprodução, especificamente ao
fato de Cláudio ter engravidado Julieta:
MISTRESS OVERDONE What? Is there a maid with child by him?
POMPEY No, but there’s a woman with maid by him.730
728 “DELEGADO – Venha cá, rapaz. Sabes cortar cabeça de homem? POMPEU – Se for solteiro, sei sim, senhor; mas se for casado, ele é a cabeça do casal, e eu sou incapaz de cortar cabeça de mulher. DELEGADO – Vamos,moleque, deixe de de charadas e responda-me direito...” (4.2.1-4) Os duplossentidos sexuais se perdem.
729 “It is tempting to find the impatient provost's 'Come, sir, leave me your snatches, and yield me a direct answer' unintentionally continuing the joke. But supporting evidence for snatch (quibble) meaning vagina dates from the end of the C17 (DSL), not the beginning.”
730 “JAPASSADA – O quê? Ele emprenhou alguma donzela? POMPEU – Não; mas uma mulher vai ter uma donzela dele.”
205
1.2.76-77
Pompeu não fez mais que expor o paradoxo presente na expressão cristalizada
“maid with child” (donzela grávida), chamando Julieta de “mulher” e supondo
que a criança será uma menina – essa sim, donzela. Ver with child: “grávida”.
Sendo Pompeu empregado de um bordel, e “cafetão em tempo parcial”
(“parcel bawd”; 2.1.58), é natural que muitas de suas piadas se refiram ao
universo da prostituição. Quando as autoridades resolvem apertar o cerco e
derrubar todos os bordéis dos subúrbios, Pompeu reassegura a cafetina
Japassada: “Come, fear not you: good cousellors lack no clients.”731 (1.2.89). A
piada tem um duplo apelo: primeiramente, advogados e estudantes das Inns of
Court – escolas de Direito – formavam uma boa parte do público do Globe
Theatre; além disso, nos alerta Williams em counsel-keeper que counsellor
aqui brinca com cunt-seller (vendedor de vaginas), tratando-se de um
trocadilho.
Ao ser questionado sobre seu modo de vida, Pompeu se sai com um
sofisma: “If your worship will take order for the drabs and the knaves, you need
not to fear the bawds.”732 (2.1.200-202). Isso é justamente o que descreve
Bergson, falando da comicidade do absurdo: “Trata-se de uma inversão
especialíssima do senso comum. Consiste em pretender modelar as coisas por
uma ideia que se tem, e não as suas ideias pelas coisas.” (cf.p.26). Freud
chama ao procedimento “deslocamento ou raciocínio falho” (cf.p.33). Como
técnica de comicidade temos, assim, ao mesmo tempo um sofisma cômico e
uma instância de nonsense ou raciocínio falho. Pompeu defende diversas
vezes o ramo do sexo pago: “‘Twas never merry world since, of two usuries, the
merriest was put down...”733 (3.2.5-6). O elo entre sexo e usura já aparecera em
731 “Vamos, não precisa ter medo; para bons advogados nunca faltam clientes.” (1.2.82-83)
732 “Se Vossa Reverência der jeito nas putas e nos putos, não precisa se preocupar com os rufiões.” (2.1.206-207)
733 “O mundo nunca mais foi alegre, depois que, das duas usuras, a mais alegre foi proibida...” (3.2.5-6)
206
Bom é o que acaba bem (cf.p.149). Aqui ocorre uma alusão a uma associação
convencional à época, e como não é explicitado que uma das formas de usura
é a prostituição e a outra o empréstimo a juros, pode-se dizer que temos mais
uma vez uma alusão por omissão, conforme proposta por Freud.
Quando, na prisão, é alçado à condição de assistente de carrasco,
Pompeu usa de ironia para brincar com a discrepância entre a aceitação social
conferida à sua antiga ocupação e à nova: “Sir, I have been an unlawful bawd
time out of mind, but yet I will be content to be a lawful hangman ...”734 (4.2.12-
13). O carrasco oficial protesta que receber um cafetão como ajudante
desvalorizará seu mister (mystery, do latim ministerium, e não do grego
mysterium, “rito secreto”, conforme nota da New Cambridge), e Pompeu
novamente usa de um sofisma cômico com apelo nonsense: “Painting, sir, I
have heard say, is a mystery; and your whores, sir, being members of my
occupation, using painting, do prove my occupation a mystery”735 (4.2.28-30).
Como vimos no capítulo dois (cf.p.64), o uso de cosméticos era um traço
distintivo das prostitutas. Williams também registra paint: “alusivo a prostitutas”
e lembra que occupation remete ao uso sexualmente carregado de occupy,
“possuir sexualmente”736.
Para se referir aos prostíbulos, é usado várias vezes, e não só por
Pompeu, o eufemismo cômico house (“bordel”, ostensivamente “casa”) e suas
variações. Na prisão, o ex-cafetão diz que “I am as well acquainted here as I
was in our house of profession. One would think it were Mistress Overdone’s
own house...”737 (4.3.1-2). No primeiro ato, o havíamos visto anunciar que “All
734 “Senhor, faz muito tempo que sou cafetão ilegal, e fico bem contente de ser carrasco legal.” (4.210-11)
735 “Pintura, senhor, já ouvi dizer que é um mister; e as suas putas, senhor,sendo do meu ofício, usam a pintura pra fazer da sua ocupação um mistério.” (4.2.28-30) O jogo de palavras se perde na tradução.
736 “allusive of prostitutes.”; “possess sexually.”
737 “Sou tão conhecido aqui quanto era em nossos estabelecimentos de negócios; dava até para pensar que esta fosse a própria casa de Madame Japassada...” (4.3.1-3)
207
the houses in the suburbs of Vienna must be plucked down”, e que os bordéis
do centro “shall stand for seed...”738 (1.2.80; 83). Williams registra em suburbs
“distritos notoriamente de meretrício na Londres elisabetana e anterior...”739; já
em seed, esclarece que a palavra se refere a “sêmen [e que, se a frase é]
normalmente usada de uma planta não colhida para proporcionar sementes
para outra lavoura [...] fica claro que as atividades seminais do bordel estão em
mente.”740 Madame Japassada usa, no mesmo diálogo (1.2.85), o termo
“houses of resort”741, enquanto o policial Torto se refere a “common houses”742
(2.1.30), além de descrever o novo negócio de Japassada, após a destruição
dos bordéis, como uma hot-house743 (“bordéis frequentemente [se
disfarçavam] como casas de banhos”744), a qual ele desconfia que seja uma
“bawd’s house”745 e uma “naughty house”746 (2.1.60; 68; 69). A proclamação
determinando o fechamento dos bordéis é uma alusão tópica, referindo-se ao
episódio em que Henrique VIII,
em 13 de abril de 1546... livrou-se dos bordéis (stewes) de Southwark com uma
proclamação forçando o fechamento de todas as casas de prostituição dentro
738 “Todos os bordéis dos arredores de Viena têm de ser derrubados.”; “...ficam para semente...”
739 “notoriously brothel districts in Elizabethan London and earlier...”
740 “semen... normally used of a plant left unharvested to provide seed for another crop [...] it is clear that the seeding activities of the brothel are in mind.
741 “casas de tolerância” (1.2.78)
742 “casas de mulheres” (2.1.41)
743 “de banhos” (2.1.59)
744 “brothels frequently masquerading as bath houses”
745 “casa de cafetina” (2.1.68)
746 “casa muito safada” (2.1.69)
208
de seu reino... [A supressão de bordéis públicos] não parece ter resultado em
nenhuma diminuição notável da prostituição; de fato, muitos observadores...
acreditavam que as coisas haviam piorado antes do que melhorado como
resultado, não apenas no South Bank, mas na área metropolitana em geral... A
abolição dos bordéis licenciados em Southwark espalhou as prostitutas
residentes por toda Londres, tornando a supervisão delas mais difícil. Muitos
cafetões e prostitutas se mudaram para casas que vendiam... cerveja como
disfarce...747
Também era inevitável que o humor de Pompeu fosse “infectado” pelo
tema da doença venérea. No trecho em que tranquiliza a patroa quanto à
proclamação que fechava os bordéis, ele faz novamente uma alusão por
omissão: “you that have worn your eyes almost out in the service...”748 (1.2.92),
referindo-se aos efeitos – vistos em Troilus e Créssida (cf.p.101) – da sífilis
sobre os olhos (rheum, ver também service: “labor ou dever (sexual)”749).
Quando interpelado sobre as atividades da esposa de Torto no
estabelecimento onde trabalhava, Pompeu usa de circunlóquios para confundir
as autoridades, mas se permite um audaz innuendo indicando justamente as
atividades que ali se desenvolvem: “....this Mistress Elbow, being, as I say, with
child, and being great-bellied, and longing, as I said, for prunes...”750 (2.1.88-
90). Williams esclarece que ameixas cozidas (stewed prunes)
747 “On 13 Apr 1546... got rid of the bankside stewes of Southwark with a royal proclamation forcing the closure of all houses of prostitution within his realm... the suppression of public brothels... does not seem to have resulted in any notable diminution of prostitution; indeed, many observers... believed that things had gotten worse rather than better as a result, not just on the South Bank, but in the metropolitan area in general... The abolition of the licensed brothels in Southwark scattered many of the resident prostitutes about London, making supervision of them more difficult. Many bawds and prostitutes moved into houses that sold ale or beer as a cover...” (http://www.tudorplace.com.ar/Documents/prostitution.htm) 20/02/2016
748 “...você que quase já gastou seus olhos nesse tipo de serviço...”
749 “(sexual) labour or duty.
750 “...a Senhora Torto estava emprenhada e barriguda, e, como eu disse, com desejo de ameixas...” (2.1.89-91)
209
ficavam frequentemente disponíveis em bordéis, um prato às vezes
aparecendo em uma janela como um sinal cifrado (talvez jogando com stew
[significando] bordel). Elas eram vistas tanto como profiláticos contra a sífilis
quanto eram, assim como os bolos secos, usadas em prescrições para
sifilíticos...751
A brincadeira vai além ao associar “tamanho, formato, pele enrugada”752 da
ameixa cozida a testículos, pela menção a “two in the dish” e “cracking the
stones” (2.1.90; 95-96; ver stone, “testículos”). Outra alusão velada à temível
doença sexualmente transmissível surge em “...such a one, and such a one,
were past cure of the thing you wot of, unless they kept very good diet...753”
(2.1.99-100), onde “the thing you wot of” (“você sabe o quê”) é um eufemismo
cômico para sífilis e diet é um innuendo para “comida seca como parte do
tratamento para a sífilis” (diet).
Em outro momento, quando está sendo conduzido ao cárcere e encontra
Lúcio, Pompeu atribui a doença à patroa Japassada: “Troth, sir, she hath eaten
up all her beef, and she is herself in the tub.”754 (3.2.50-51). Quanto a beef,
Williams lhe atribui o sentido de “homem em sua capacidade sexual; pênis”755,
imputando atividade sexual demasiada a Japassada, enquanto Gibbons (50-
1n) cita a opinião de Evans756 de que a expressão “eaten up all her beef”
751 “...were often available in brothels, a dishful sometimes appearing in a window as a covert sign (perhaps punning on stew = brothel). They were regarded as prophylactics against pox and, like dried cakes, were used in prescriptions for syphilitics...”
752 “...size, shape, wrinkled skin...”
753 “...fulana e beltrana já não tinham mais cura daquela coisa que você sabe, a não ser que mantivessem muito boa dieta...” (2.1.100-102)
754 “Pra falar a verdade, senhor, ela já comeu tudo o que podia e agora está de molho.” (3.2.53-54) Os jogos de palavras se perdem na tradução.
755 “man in his sexual capacity; penis.”
756 The Riverside Shakespeare, ed. G. Blackmore Evans et al., 1974
210
significa “exauriu todas suas prostitutas”757. Há certamente um jogo de
palavras, apontado por ambos, em tub (banheira), jogando com um de seus
usos, salgar carne (beef), e outro, como “recipiente em que faziam os sifilíticos
suarem como parte de seu tratamento.”758. Lúcio, em sua resposta, cinicamente
naturaliza o destino das mulheres no ramo, cujos serviços ele mesmo aprecia:
“...it must be so. Ever your fresh whore and your powdered bawd, an
unshunned consequence; it must be so.”759 (3.2.52-54). Aqui, powdered bawd
se refere a “uma cafetina que passou pelo tratamento na banheira (tub) para a
sífilis”760 (não fica claro, mas aparentemente o tratamento envolvia algum tipo
de pó antisséptico). A brincadeira, esclarece Gibbons (53n fresh, 53n
powdered), é com a palavra fresh, “fresca”, como “jovem” e como o contrário de
“salgada”, em contraposição ao sentido de “conservada em sal” para
powdered, que ainda poderia se referir à pintura facial. Trata-se de um múltiplo
duplo sentido dependente da polissemia de fresh e powdered.
Passemos então à análise dos chistes sexuais vindos de Lúcio, o
debochado frequentador dos subúrbios e caluniador incontrolável. Para se
referir ao ato sexual, Lúcio tem um repertório de metáforas e eufemismos
cômicos, além de uma metonímia. No primeiro caso, recaem “a game of tick-
tack”761 (1.2.170) e “filling a bottle with a tundish”762 (3.2.147), ambas usadas
para minimizar a ofensa sexual pela qual Cláudio fora condenado. Williams
esclarece, sobre a primeira metáfora, que tick-tack significa “uma forma de
gamão, mas o método de manter o escore pondo pinos em buracos a torna
757 “...worn out all her prostitutes.”
758 “vessel in which syphilitics were sweated as part of their treatment.”
759 “...tem de ser. Toda putinha nova acaba marafona doente; consequência inevitável; tem de ser.” (3.2.55-56)
760 “a bawd who has taken tub treatment for pox.”
761 “...um joguinho de toma-lá-dá-cá.” (1.2.158) A metáfora sexual se perde na tradução.
762 “...entornar óleo de atum em uma garrafa.” (3.2.154) A metáfora sexualse perde na tradução.
211
uma apta figura para o coito.”763, ao passo que, na segunda, a palavra bottle
(garrafa) deve ser entendida como “vagina , ou útero” e tundish (“um funil com
um longo bico para inserção em uma abertura”764) se refere naturalmente a
“pênis”.
A metonímia cômica, também sobre a falta de Cláudio, se dá entre uma
parte do vestuário e seu conteúdo: “the rebellion of a codpiece”765 (3.2.100);
Williams aponta em codpiece que o termo significa “saco usado sobre a
abertura na frente das calças de um homem. Ostensivamente ele esconde,
mas com frequência parodia, o formato genital.”766, daí seu uso metonímico
como (2) “pênis”. Williams acrescenta que “uma figura de insurreição fálica
[constitui] um comentário apto sobre um regime moralista implacável”767, mas
rebellion parece ser um eufemismo para ímpeto sexual independentemente do
contexto: em Bom é o que acaba bem, o Lorde 1 (um dos irmãos Dumaine) diz:
“Now God delay our rebellion!”768 (4.3.17).
No campo dos eufemismos, temos “untrussing”769 (3.2.153), o qual
Williams esclarece (untrussing) que, se literalmente significa “desamarrar os
nós unindo o gibão e a calça”, insinua aqui “engajar-se em relação sexual”770; o
chiste se refere mais uma vez à união sexual de Cláudio e Julieta. Em dois
763 “a form of backgammon, but the method of scoring by placing pegs in holes makes it an apt coital figure.”
764 “a funnel with a long stem for insertion in an opening”
765 “...a rebelião de uma braguilha...” (3.2.104-105)
766 “bag worn over the opening at the front of a man's breeches. Ostensibly it conceals, but often parodies, genital shape.”
767 “a figure of phallic insurrection apt comment on a ruthlessly moralistic regime...”
768 “Que Deus nos proteja do mal!” (4.3.14) A insinuação sexual se perde na tradução.
769 “...se desabotoar.” (3.2.161)
770 “untying the points lacing hose to doublet.”; “engaging in sex...”
212
momentos, Lúcio usa o pronome it (“ato sexual”) para aludir à cópula: falando
do Duque, diz que “He’s now past it...” (3.2.155), insinuando o fim de sua vida
sexual ativa; e sobre si mesmo diz que “...one fruitful meal will set me to’t”
(4.3.145-146), sendo que Gibbons glosa set me to’t (146n) como “incitar-me a
cometer ato libidinoso”771 – aparentemente, acreditava-se que alimentar-se bem
favorecia a libido.
Na cena final, quando o episódio do truque-do-leito é, aos poucos,
revelado, o comentário jocoso de Lúcio recai sobre Mariana: o Duque pergunta
a Ângelo “Know you this woman?”, e Lúcio se intromete: “Carnally, she says.”772
(5.1.210-211). A piada gira em torno do uso eufemístico de to know, já visto,
mas a rigor o que Lúcio faz é pinçar e explicitar um significado apenas possível,
configurando assim um mal-entendido deliberado (ver know, carnal). Poucas
linhas adiante, Lúcio faz exatamente a mesma coisa – torce o sentido de uma
expressão empregada sem intenção sexual – duas vezes, quando Éscalo se
refere a Isabela:
ESCALUS ...Pray you, my lord, give me leave to question, you shall see how I’ll
handle her.
LUCIO Not better than he, by her own report.
ESCALUS Say you?
LUCIO Marry, sir, I think if you handled her privately she would sooner
confess, perchance publicly she’ll be ashamed.
[...]
ESCALUS I will go darkly to work with her.
LUCIO That’s the way: for women are light at midnight.773
5.1.269-276
771 “prompt me to commit lechery.”
772 “DUQUE - O senhor a conhece? LÚCIO – Carnalmente, diz ela.” (5.1.214-215)
773 “ÉSCALO - ...Por favor, senhor, permita que eu a interrogue; verás comohei de lidar com ela. LÚCIO – Não melhor do que ele, pelo que ela diz. ÉSCALO – Como assim? LÚCIO – Pela Virgem, senhor, creio que se lidar com ela em particular, ela confessará mais depressa. Talvez em público se sinta acanhada. [...] ÉSCALO – Hei de trabalhá-la secretamente. LÚCIO – isso! Pois as mulheres se iluminam à meia-noite.” (5.1.268-275) O jogo de palavras em light se perde na tradução.
213
Aqui o verbo to handle (lidar) é captado como possível eufemismo para “ser
íntimo com [alguém]”774, significando que Isabella, segundo ela mesma, havia
se deitado com Ângelo (embora Mariana já houvesse esclarecido a
substituição). Já o advérbio darkly, que Éscalo usou com o sentido de
“secretamente” (New Cambridge, 275n), é explorado por Lúcio no sentido
apontado por Williams em dark[ness], “que proporciona cobertura discreta
para atividade sexual”775, transformando work with her em mais um eufemismo
sexual, e levando ao uso ambíguo para light – a nota 276n da New Cambridge
diz: “Lúcio brinca com os sentidos de ‘brilhantes’ e ‘levianas’, implícitos também
em seus próprios nome e natureza.”776, enquanto Williams define light como
“libertino(a), pouco casto(a)”777.
Lúcio também usa alguns chistes para condenar o puritanismo de
Ângelo, e a maior parte deles enfatiza a ligação entre sexo e reprodução,
expondo o absurdo de perseguir um ato inerente ao ciclo vital. Os dois chistes
que não exploram essa associação sugerem uma fisiologia peculiar para o
substituto do Duque. O primeiro é “...Lord Angelo, a man whose blood/ Is very
snow-broth...”778 (1.4.57-58), e o segundo é “...it is certain that when he makes
water, his urine is congealed ice...”779 (3.2.96-97); Williams registra em blood:
“sede do apetite (de acordo com a teoria humoral, o temperamento sanguíneo
é o mais inclinado à devassidão)”780, enquanto ice traz: “associado à castidade
774 “be intimate with.”
775 “providing discreet cover for sexual activity.”
776 “Lucio plays on the senses ‘bright’ and ‘wanton’, implicit also in his own name and nature.”
777 “wanton, unchaste.”
778 “...Ângelo, homem cujo sangue/ É de pura neve...” (1.4.58-59)
779 “...o certo é que quando mija, sua urina congela...” (3.2.100-101)
780 “seat of appetite (according to the humours theory, the sanguine temperament is most inclined to venery.”
214
através de sua frieza”781. Percebemos nos dois casos “um detalhe [que] é
exagerado de modo a atrair atenção exclusiva” (cf.p.41), que é como Propp
descreve o mecanismo cômico da caricatura.
A Ângelo é atribuída, de modo irônico (ou seja, afirmando o oposto do
que se deseja enfatizar), uma origem assexuada: “They say this Angelo was
not made by man and woman after this downright way of creation...”; “Some
report a sea-maid spawned him, some, that he was begot between two stock-
fishes.”782 (3.2.91-93; 95-96). O glossário de William traz o verbete downright
way of creation, cuja definição é “cópula regular”783, enquanto em way temos
“vagina”, de modo que a expressão alude ao movimento descendente do feto
pelo canal vaginal, estabelecendo um duplo sentido para way (modo/vagina).
Aqui surge também a sereia como índice de assexualidade, e quanto a stock-
fishes, Williams (spawn) observa que “esses peixes secos sugerem alguém em
quem os fluidos naturais secaram.”784
Outra imagem usada por Lúcio, “a motion generative” (3.2.98) provoca
alguma dificuldade, e nos parece apropriada a emenda de Lewis Theobald
(1793): ungenerative, que, como indica Williams (generative, “capaz de se
reproduzir”785), “foi seguida na maior parte das edições posteriores”. A
expressão indicaria então, ainda segundo Williams, que Ângelo é um
fantoche786, não apenas com uma origem assexuada, mas infértil ele mesmo.
Trata-se ao mesmo tempo de uma ironia (busca-se insinuar que o substituto é
781 “associated with chastity through its coldness.”
782 “Dizem que esse Ângelo não foi feito por homem e mulher, segundo os hábitos da criação...”; “Dizem que foi desovado por uma sereia. Alguns, que foi concebido por dois bacalhaus secos.” (3.2.95-97; 99-100) O duplo sentido em downright way se perde na tradução.
783 “regular copulation.”
784 “these dried fish suggest someone in whom the natural juices are dried up.”
785 “capable of breeding”; “has been followed in most later eds [sic]...”
786 “(motion = puppet)”
215
um hipócrita, pois é de carne e osso e também sente desejo) e uma caricatura
(exagera-se sua continência até o absurdo).
Essa imputação de infertilidade a Ângelo é retomada em “This
ungenitured agent will unpeople the province with continency...”787 (3.2.148-
149), sugerindo que tanta perseguição à fornicação levará a uma diminuição da
população (ver ungenitured, “impotente ou castrado” e continency,
“moderação ou abstinência sexual”788). Para Lúcio, o puritanismo de Ângelo se
aplica até ao reino animal: “...sparrows must not build in his house eaves,
because they are lecherous.”789 (3.2.149-150). Williams esclarece que os
pardais (sparrow) eram “miticamente sagrados para Vênus, [e]
proverbialmente libidinosos”790. As duas últimas instâncias poderiam talvez
configurar caricaturas, pelo exagero, mas se parecem mais com
espirituosidade do que com comicidade, segundo a definição de Bergson:
“...certa disposição a esboçar de passagem cenas de comédia, mas esboçá-las
tão discretamente, tão leve e rapidamente, que tudo já esteja acabado quando
começarmos a nos aperceber dela.” (cf.pp.22-23).
Este insolente cidadão vienense tem ainda uma série de expressões
jocosas para se referir à reputação sexual do Duque, que ele acredita estar
longe, mas é seu interlocutor disfarçado em todas as ocasiões – estabelecendo
em cada uma dessas situações um quiproquó semelhante àquele vivido por
Parolles em Bom é o que acaba bem. Uma delas é “He had some feeling of the
sport, he knew the service.791” (3.2.104) – que é um innuendo (sport: “cópula”;
service: “labor ou dever (sexuais)”). Outra seria “...he’s a better woodman than
787 “...esse tal de seu representante capado vai despovoar a província com tanta castidade.” (3.2.155-156)
788 “impotent or castrated.”; “sexual moderation or abstinence.”
789 “Nem os pardais poderão ninho [sic] nos beirais da sua casa por serem muito libertinos.” (3.2.156-158)
790 “mythically sacred to Venus, proverbially lecherous (Tilley S715).”
791 “Tinha sensibilidade para esse tipo de esporte, conhecia o serviço.”
216
thou tak’st him for.”792 (4.3.151-152) – outro innuendo (woodman: “alguém
experiente no ofício de mulherengo”; wood: “lugar onde a caça sexual pode
ocorrer.”793). Na cena final, no auge de seu cinismo, Lúcio imputa suas próprias
calúnias sobre o Duque ao frade, que é de fato o Duque em pessoa – “And
was the Duke a fleshmonger... as you then reported him to be?”794 (5.1.329-
330; fleshmonger: “devasso”795) – e, logo antes de revelar-lhe a identidade,
diz: “Show your sheep-biting face...”796 (5.1.347), o que Williams (sheepbiting)
explica se referir a um innuendo para “perseguidor de putas”, retomando
mutton, “prostituta (comida sexual)”797, que ocorre em “The Duke... would eat
mutton on Fridays.”798 (3.2.154-155), também um innuendo (mutton é carne de
ovelha, sheep). Em outra passagem, Lúcio sugere que o Duque se rebaixava
até a abjeção por uma relação sexual: “Who, not the Duke? Yes, your beggar
of fifty: and his use was, to put a ducat in her clack-dish”799 (3.2.110-111); aqui
se observam duplos sentidos em clack-dish, “vagina (jogando com o pires de
pedinte, que era chacoalhado para atrair contribuições)”800 e ducat: “testículos”;
792 “Ele era muito melhor caça-saias do que o senhor pode imaginar.” (4.3.153-154)
793 “one experienced in the craft of wenching.”; “place where the sexual hunt may take place.”
794 “E era o duque um gigolô... segundo o que o senhor disse então que era?” (5.1326-327)
795 “lecher.”
796 “Mostre seu focinho de come-carneiro...” (5.1.344)
797 “prostitute (sexual food).”
798 “O duque... costumava comer carne às sextas-feiras.” (3.2.162) O duplosentido se perde na tradução.
799 “Quem não era assim, o duque? Sim, senhor, senhor mendigo cinquentão, e o hábito dele era depositar um ducado no pires de cada uma...” (3.2.114-117) A tradução erra ao atribuir beggar of fifty ao falso frade, e não às vítimas sexuais impingidas ao Duque.
217
Gibbons também registra (111n) que “o sentido obsceno é copular com ela”801.
Lúcio, como uma máquina de caluniar, lembra a discussão de Bergson sobre a
comicidade do autômato, além daquela sobre a comicidade de caráter: suas
faltas podem ser vistas como leves – a calúnia pode levar a consequências
trágicas, mas não o faz na peça – e não o tornam, como chegou a afirmar
Colman, desprezível. Na verdade, “rigidez, automatismo, distração,
insociabilidade, tudo isso se interpenetra, e em tudo isso consiste a comicidade
de caráter” (cf.p.26).
Lúcio, assim como Pompeu (cf.p.175) brinca com as palavras head e
maidenhead (cabeça e hímen), além de aludir à reputação lasciva de uma
classe profissional tipicamente feminina, a das leiteiras (como vimos em Os
dois cavalheiros de Verona, cf.p.67). Falando da ameaça que recai sobre a
cabeça de Cláudio, ele diz: “...thy head stands so tickle on thy shoulders that a
milkmaid, if she be in love, may sigh it off.”802 (1.2.153-154), e Williams
esclarece o duplo sentido (head, 3): “[head] pode indicar tanto a cabeça de
Cláudio quanto o hímen que o ardor da donzela faz perder-se com um
suspiro.”803
Também o submundo da prostituição, do qual Lúcio é frequentador, é
tema de suas piadas. Ele usa de uma expressão que é a um tempo um
eufemismo e uma dupla alusão para se referir às profissionais do sexo:
“...Pygmalion’s images newly made woman...”804 (3.2.40-41). Além de aludir à
história ovidiana de Pigmaleão, que dá vida a uma estátua feminina por quem
se apaixona, a expressão aponta, esclarece Gibbons (40-1n), para
800 “vagina (quibbling on begging-bowl, which was rattled to draw contributions.)”
801 “The bawdy meaning is ‘copulate with her’.
802 “...sua cabeça está tão vulnerável quanto honra de pastora apaixonada.” (1.2.141-142)
803 “...may indicate both Claudio’s head and the maidenhead which the maid’s ardour sighs off.”
804 “...imagens de Pigmaleão com alguma mulher feita recentemente...” (3.243-44)
218
o poema satírico indecente The Metamorphosis of Pygmalion’s Image (1598),
de [John] Marston: daí [a glosa de Edmond] Malone [1741 – 1812]... ‘Não há
uma cortesã, que tendo sido há pouco feita mulher (i.e. recentemente
corrompida) ainda retenha a aparência de castidade, e pareça tão fria quanto
uma estátua...?’805
Williams também registra Pygmalion’s image: “puta”. Um pouco adiante, na
mesma cena – aquela em que Lúcio encontra Pompeu sendo conduzido à
cadeia – o primeiro pergunta pela cafetina Japassada: “How doth my dear
morsel, thy mistress? Procures she still, ha?”806 (3.2.48-49) e por uma prostituta
específica: “Does Bridget paint still, Pompey, ha?”807 (3.2.70). No primeiro
trecho há um innuendo em morsel (“mulher como bocado sexual”; ver
procure: “prover uma mulher para fins imorais”808), enquanto no segundo a
insinuação fica por conta da já referida associação entre pintura facial e
prostituição (ver paint, “alusivo a prostitutas”).
Na cena final, quando Mariana diz que não é nem casada, nem donzela,
nem viúva, Lúcio não demora a se sair com mais uma de suas tiradas: “My
lord, she may be a punk, for many of them are neither maid, widow, nor wife .”809
(5.1.178-179). Tanto Gibbons (178n) quanto Williams registram o sentido de
“prostituta” para a palavra punk. Embora haja uma possibilidade aqui de mal
entendido deliberado, a frase constitui, mais uma vez, mais um dito espirituoso
ou witticism do que um chiste dependente de uma técnica de comicidade, até
805 “...the indecent satiric poem The Metamorphosis of Pygmalion’s Image by Marston (1598): hence, Malone suggests, ‘Is there no courtezan, who being newly made woman (i.e. lately debauched) still retains the appearance of chastity, and looks as cold as a statue...?
806 “Como vai o meu querido petisco, que é a tua amante? Continua, como sempre, cafetina? [mistress deveria ter sido traduzido como ‘patroa’ e não ‘amante’]
807 “Brígida continua pintando, Pompeu? Hã?” (3.2.73) [‘continua se pintando’ seria mais preciso]
808 “woman as sexual mouthful.”; “provide a woman for immoral purposes.”
809 “Senhor, quem sabe é puta; pois muitas delas não são nem donzelas, nem viúvas e nem esposas.” (5.1.181-182)
219
onde foi possível detectar. O mesmo vale para outro uso de punk por Lúcio,
para falar daquela que havia tido uma criança dele, Catarina Come-Quieto,
quando o Duque anuncia a intenção de casar os dois à força: “Marrying a punk,
my lord, is pressing to death, whipping, and hanging!“810 (5.1.514-515). Algumas
linhas antes, ele já havia implorado contra a sentença do Duque, referindo-se
ao momento em que tirou o capuz do falso frade, revelando-lhe a identidade:
“Your highness said, even now, I made you a duke: good my lord, do not
recompense me in making me a cuckold.”811 (5.1.507-509). É a única punição
recebida por algum personagem na peça, em que até um assassino confesso é
perdoado. Trata-se de um dito espirituoso que tem certa semelhança com a
técnica apontada por Freud (IV) “deslocamento ou raciocínio falho”,
caracterizada pelo “desvio do curso do pensamento, no deslocamento da
ênfase psíquica para outro tópico que não o da abertura.” (cf.p.33).
Anteriormente, no quarto ato, quando Lúcio admite que mentira ao
Duque sobre ser o pai da criança – sem saber que é justamente com o Duque
que está falando – ele usa uma metáfora ofensiva (de comicidade dependente
de valores machistas) para se referir a Catarina: “I was fain to forswear it, they
would else have married me to the rotten medlar.”812 (4.3.160-161). No capítulo
2, abordando Romeu e Julieta, já vimos o uso conotativo de medlar (nêspera,
Mespilus germanica), apontando para “mulher sexualmente disponível”.
Gibbons (161n) esclarece que havia “um jogo de palavras usual com ‘meddler’,
alguém que se entrega à atividade sexual”. O determinante rotten (podre), além
de indicar uma condenação moral, é apropriado pois se refere ao fato de que a
fruta (medlar) é “comida quando deteriorada até um estado tenro e polpudo”,
conforme refletido em um provérbio: “nêsperas não são boas até estarem
810 “Casar com puta, meu senhor, é morte/ Pior que açoite e forca.” (5.1.511-512, em verso)
811 “Ainda há pouco Sua Alteza disse que eu o fizera duque; meu bom senhor, não me recompense fazendo-me cornudo.” (5.1.504-506)
812 “...mas tomei o cuidado de negar, pois de outro modo eles me teriam casado com a droga da puta.” (4.3.162-163) A metáfora se perde na tradução.
220
podres”813. Williams vai além e observa em rotten uma sugestão de infecção
pela sífilis.
Há ainda os momentos em que Lúcio se refere explicitamente à doença
venérea, e eles estão concentrados na segunda cena do primeiro ato, que se
passa no estabelecimento de Japassada. As brincadeiras, além de
pertencerem a um contexto já distante, são de difícil tradução. Em diálogo com
dois cavalheiros não nomeados, Lúcio usa uma imagem que associa um deles
à orla de um tecido, a ele mesmo cabendo a comparação com o veludo; o outro
aproveita as possibilidades obscenas atribuídas à palavra (velvet: “alusivo à
sífilis”).
1 GENTLEMAN Well, there went but a pair of shears between us.
LUCIO I grant: as there may between the lists and the velvet.
Thou art the list.
1 GENTLEMAN And thou the velvet. Thou art good velvet: thou’rt a three-
piled piece, I warrant thee. I had as lief be a list of an English kersey as be
piled, as thou art piled, for a French velvet. Do I speak feelingly now?814
1.2.23-29
Aqui, além da alusão ao uso de “retalhos de veludo [para] cobrir
desfiguramentos resultantes da sífilis”, já comentado (cf.p.159), há um
trocadilho em piled – que se refere à constituição do veludo – sugerindo pilled,
“privado de cabelo pela sífilis”815, e por fim a associação da doença com a
França, também já vista (French crown, malady of France). A piada do 1º
Cavalheiro, que vira a comparação de Lúcio contra ele próprio, assemelha-se a
um dos recursos do espírito, o “ladrão roubado”: “Captamos uma metáfora,
uma frase, um raciocínio, e os voltamos contra quem os faz ou poderia fazê-
813 Tillyard M863
814 “1ºCAVALHEIRO – Ora, somos farinhas do mesmo saco. LÚCIO – Concordo; mas sempre há diferença entre saco de aniagem e saco de veludo. Você é a aniagem. 1ºCAVALHEIRO – É você o veludo, veludo do bom,de fio triplo, concordo; mas eu prefiro um simples tecido inglês saudável a certo tipo de veludo francês. Fui claro?” (1.2.23-28)
815 “velvet patches might cover the disfigurements resulting from pox.”; “deprivedof hair by syphilis.”
221
los, de maneira que tenha dito o que não queria dizer e que venha a cair na
própria armadilha da linguagem”, discutido por Bergson (cf.p.23).
Lúcio se aproveita da palavra feelingly (apropriadamente), a qual
entende – um mal-entendido deliberado – como uma menção às dores dos
sifilíticos, fazendo em seguida uma alusão – aponta Williams – a uma piada de
Montaigne “sobre um criminoso no cadafalso se recusando a beber após o
carrasco ‘por medo de pegar sífilis dele’”816: “I think thou dost, and indeed with
most painful feeling of thy speech. I will, out of thine own confession, learn to
begin thy health; but, whilst I live, forget to drink after thee.”817 (1.2.30-32).
Madame Japassada ganha de Lúcio uma nova alcunha, ligada a seu ofício:
“Behold, behold, where Madam Mitigation comes.”818 (1.2.35); Gibbons registra
(35n) que a denominação se deve ao fato de que ela “provém os meios para
apaziguar ou mitigar a concupiscência”819, enquanto Williams, em madam
(“cafetina”) ressalta que o verbo latino mitigo significa “domar, amolecer (i.e. os
pênis)”820. A conversa prossegue, tendo sempre como tema a doença venérea:
LUCIO ...I have purchased as many diseases under her roof as come to
–
[...]
2 GENTLEMAN To three thousand dolours a year.
1 GENTLEMAN Ay, and more.
LUCIO A French crown more.821
1.2.35-36; 39-41
816 “about a criminal on the scaffold refusing to drink after the hangman 'for feare hee shouldtake the pox of him' (Essaies 1. 323).”
817 “Falou, e fico contente com essa sua triste fala. Por sua própria confissão, vou começar a beber à sua saúde, mas enquanto estiver vivo, nunca mais bebo no mesmo copo que você.” (1.2.29-31)
818 “Lá vem a Madame Aliviante!” (1.2.33)
819 “provides means to appease or mitigate lust.”
820 “to tame or soften (i. e. penises).”
222
Observa-se aí um trocadilho entre dolours (dores) e dollars, estabelecendo,
junto à menção de French crown um “humor mais elaborado”, alusivo ao fato
de que “o dólar e a coroa eram a base do novo sistema introduzido por
mudanças radicais na economia europeia do século XVI.”822. Gibbons, por sua
vez, observa (41n) que French crown “brinca com a moeda... e com a calvície
causada pela sífilis, a ‘doença francesa’”.
1 GENTLEMAN Thou art always figuring diseases in me, but thou art full of
error: I am sound.
LUCIO Nay, not, as one would say, healthy, but so sound as
things that are hollow. Thy bones are hollow. Impiety has made a feast of
thee.823
1.2.42-46
A brincadeira aqui é entre sound como “livre da sífilis”824, saudável, e – nos
indica Gibbons (43n) – como “fazendo o barulho ressoante de coisas ocas...
[pois os] ossos são afetados nas fases secundária e terciária da sífilis.”825 Uma
associação, errônea, que já observamos em Troilus e Créssida (cf.p.126) entre
sífilis e dor ciática, reaparece, na pergunta do primeiro cavalheiro dirigida a
Japassada: “How now, which of your hips has the most profound sciatica?”826
(ver sciatica). A comicidade dessa última frase, e de muito desse diálogo,
821 “LÚCIO – ...As doenças que apanhei sob o seu teto chegam a... [...] 2ºCAVALHEIRO Umas três mil por ano. 1ºCAVALHEIRO – Mais que isso. LÚCIO– Mais uma coroa francesa.” (1.2.33-40)
822 “more elaborate humour...”; “Dollar and crown were the basis of the new system called into being by radical changes in the C16 European economy.”
823 1ºCAVALHEIRO – Você está sempre descobrindo doenças em mim, mas está completamente enganado; estou tinindo. LÚCIO – Sim, ninguém diria sadio, mas tinindo tanto quanto as coisas que estão ocas: seus ossos estão ocos; a impiedade fez um festim de você.” (1.2.41-45)
824 “free from pox.”
825 “giving off the resounding noise of hollow things... The bones are affected in the secondary and tertiary stages of syphilis.”
826 “Então, qual das suas ancas tem a ciática mais profunda?” (1.2.46)
223
depende da racionalização de um temor real representado pela doença
venérea.
Busquemos, por fim, no trabalho de Legman, No Laughing Matter –
Rationale of the Dirty Joke Series Two, algumas observações sobre os temas
de prostituição e doença venérea. O autor – escrevendo nos anos sessenta do
século passado – salientava que “o problema subjacente [à prostituição] é o
dinheiro”:
Quer se goste ou não, a prostituição de mulheres a homens – sob um disfarce
ou outro – é quase inevitável sempre que os homens ganharem e controlarem
as principais quantias de dinheiro, posição social e crédito, e outras vantagens,
sob o sistema patriarcal.827 (p.184)
No entanto, o autor especula sobre as origens da atividade:
A verdadeira origem social da prostituição foi, há uma boa chance, um
desenvolvimento ou degeneração dos deveres que tinham no templo as
sacerdotisas das religiões matriarcais que por longo tempo precederam
aquelas do patriarcado. [...] Como a essência do culto matriarcal é a
glorificação da fertilidade da natureza e dos seres humanos... as religiões
matriarcais envolviam e requeriam o ato do intercurso sexual como ato de
adoração, ‘dedicando’ cada um de tais atos à Magna Mater, Ishtar, Afrodite, ou
alguma outra deusa-fêmea.828 (p.190).
Falando sobre a impessoalidade “que torna a prostituição possível, e que
corretamente a define”, Legman aponta – e isso interessa diretamente à
análise de Medida por medida – que “a mentalidade folclórica não aprecia esse
estado de coisas, e faz todos os esforços para trazer a prostituta de volta,
mentalmente ao menos, à esplêndida posição e à glória perdida da suculenta e
827 “Whether one likes it or not, the prostitution of women to men – under one disguise or another – is almost inevitable so long as men earn and control the principal amouts of money, social position and credit, and other advantages, under the patriarchal system.”
828 “...in all likelihood, a development or degeneration of the temple duties of the priestesses of the matriarchal religions which long preceded those of patriarchy. [...] As the essence of matriarchal cult is the glorification of the fertility of nature and of human beings... the matriarchal religions involved and required the act of sexual intercourse as an act of worship, ‘dedicating’ each such act to the Magma Mater, Ishtar, Aphrodite, or some other female goddess.”
224
maternal Deusa-Mãe”, muito embora essa ilusão sempre sucumba e se admita
que “a real relação entre a(o) prostituída(o) e seu cliente é, e só pode ser, ódio
e exploração, expresso na forma sexual”829 (p.192, ênfase no original). Na
peça, as prostitutas não têm falas – Catariana Come-Quieto é apenas
mencionada – o que já é uma forma de representar, talvez ratificar, sua
opressão, mas há duas tendências que se opõem: uma – encarnada por
Pompeu – contesta a proibição do negócio do sexo apresentando-o como
inevitável e mesmo salutar, enquanto outra, materializada na presença de
problemas como geração de bastardos e doença venérea, evidencia os lados
negativos da atividade; o ódio mencionado por Legman se observa em Lúcio,
que vê em Catarina inicialmente uma fonte de prazer, e depois uma verdadeira
ameaça, quando se trata de lidar com a consequência materializada pelo
bastardo que foi gerado. A cafetina Japassada reflete a observação feita de que
a “‘Madame’ do prostíbulo aparece muito proeminentemente no humor
folclórico sobre prostituição, e parece claro que ela é o real foco do que resta
do lado de... sacerdotisa-mãe da profissão, enquanto se reconhece que as
funções sexuais residem inteiramente nas ‘garotas’.”830
Sobre o tema da doença venérea, Legman observa que “histórica e
logicamente, as piadas sobre doença venérea tomam muito de seu formato
especial da conexão entre doença venérea e prostituição.”831 (p.300). O autor
aponta a “opinião prevalente” sobre a disseminação da sífilis pela Europa, já
mencionada na análise de Troilus e Créssida (cf.p.126), que se relaciona com o
829 “that makes prostitution possible, and that correctly defines it.”; “The folk-mind does not enjoy this state of things, and makes every effort to bringthe prostitute back, mentally at least, to the splendid position and lost glory of the juicy and maternal Earth-Mother.”; “the real relationship between the prostitute and her (or his) client is, and can only be, hatred and exploitation,expressed in sexual form.”
830 “The whorehouse ‘Madam’ bulks very large in the folk-humor of prostitution, and it seems clear that she is the real focus of what remais of the... mother-priestess side of the profession, while the sexual functions are agreed to reside wholly in the ‘girls.’”
831 “Historically and logically, the jokes on the venereal diseases take muchof their special format from the connection between venereal disease and prostitution.”
225
sítio de Nápoles, acrescentando que a doença se espalhou “através de
marinheiros retornando da América com Colombo, provavelmente do Haiti.”832
(p.301). Legman observa que não há nada intrinsicamente sexual à sífilis ou à
gonorreia, além do
modo usual de transmissão, mas isso tem sido suficiente, nos últimos cinco
séculos, para criar uma conexão inevitável na mente folclórica não apenas
entre doença venérea e Vênus, mas também entre tais doenças e as mulheres
prostituídas que têm sido inquestionavelmente um elo principal em sua
transmissão. Que todas prostitutas que estão doentes receberam elas mesmas
a doença de clientes homens ‘inocentes’ é, obviamente, propositadamente
ignorado. (idem)
Com a invenção da penicilina por Alexander Fleming (1881 – 1955), a sífilis
pôde ser controlada, e hoje piadas como as de Medida por medida estão
defasadas, mas servem para mostrar “o registro histórico de qual a finalidade
social básica do humor sexual realmente é, em face a grandes forças sociais e
perigos como o medo de gravidez e doença.”833 Enquanto a religião ocidental
explora esses medos em sua obsessão com o pecado, o humor folclórico tem
feito o melhor para “fazer pouco desses medos precisamente ao brincar com
seus detalhes mais feios e assustadores...”834. Em Medida por medida, o risco
da gravidez indesejada é explorado tragicamente no enredo principal, e o risco
da doença venérea é explorado comicamente em piadas como as que vimos
acima.
Analisando as ocorrências de humor sexual em Medida por medida,
podemos perceber que a técnica mais usada foi o innuendo, num total de
quinze vezes. O duplo sentido ocorreu apenas oito vezes, e é possível
perceber uma variedade maior de técnicas – vinte e cinco ao todo – sendo
possível detectar algumas que não haviam surgido nas outras duas peças
832 “...through sailors returning from America with Columbus, probably fromHaiti.”
833 “the historical record of what the basic social purpose of sexual humor really is, in the face of great social forces and perils such as the fear of pregnancy and disease.”
834 “make light of these fears by jesting precisely with their ugliest and most frightening details...”
226
analisadas, como o sofisma e o raciocínio falho. O uso do eufemismo (nove) e
do mal-entendido deliberado (seis) também merece destaque. Quanto aos
temas, a reputação sexual figurou em dez dos chistes, e outros dez foram
sobre doença venérea, enquanto o ato sexual foi o assunto de oito deles, sete
vindo da boca de Lúcio, o mesmo se verificando naqueles sobre prostituição.
Pompeu usa onze técnicas diferentes, sendo o innuendo usado sete vezes,
enquanto Lúcio usa treze ao todo, recorrendo ao recurso citado sete vezes,
além de cinco vezes a eufemismos, quatro a mal-entendidos deliberados, e
mais quatro a duplos-sentidos. Os temas mais abordados por Pompeu são
reputação e cafetinagem (três, cada), e Lúcio tem sete chistes sobre o ato
sexual, sete sobre prostituição e seis sobre reputação.
O uso de humor sexual em Medida por medida por um lado põe em
relevo a exploração trágica do tema do sexo na trama principal – a questão da
regulação da intimidade, a gravidez de Julieta e o desejo doentio de Ângelo – e
por outro serve, como apontou Colman, para dar substância à licenciosidade
instaurada em Viena na trama secundária. Entretanto, pode-se mesmo dizer
que é difícil separar os tratamentos trágico e cômico do tema na peça. Há uma
mensagem ambígua no conjunto de piadas sexuais de Medida por medida,
afirmando, ao mesmo tempo, o sexo como uma força vital e como uma
possível ameaça à saúde e fonte de problemas não só pessoais como sociais.
Mesmo na subtrama dos donos e frequentadores de bordéis o tratamento do
sexo pode beirar o trágico, como é o caso do destino da cafetina Japassada e
do bastardo gerado entre Lúcio e Catarina Come-Quieto – ao menos antes de
ser legitimado pelo casamento. Ambos apontam para problemas sociais
relevantes do período, ou seja: ridendo castigat mores.
227
Conclusão
Esta dissertação foi empreendida com alguns objetivos em mente, e
após a pesquisa e o exame da bibliografia, a leitura atenta das peças, o
planejamento e a organização dos dados, e finalmente a escrita de cada um
dos capítulos, resta contemplar os resultados obtidos e avaliar o alcance das
expectativas, assim como o que foi descoberto que não era, de início, previsto.
O principal objetivo do trabalho é analisar o discurso do humor sexual
nas três peças de Shakespeare geralmente conhecidas como peças-problema
– Troilus e Créssida, Bom é o que acaba bem e Medida por medida – levando
em consideração os trabalhos mais importantes do campo chamado de teoria
do humor ou da comicidade. Primeiramente, portanto, faz-se necessário o
comentário a respeito da própria teoria do humor. E o que se pode concluir é
que, por mais influentes e respeitados que sejam os trabalhos de Bergson e
Freud – e Propp, em menor escala – ao fim e ao cabo, o ser humano tem ainda
explicações muito limitadas sobre o fenômeno do riso e aquilo que o provoca,
seja de modo deliberado – como é o caso das comédias estudadas – ou
espontâneo. O que há é uma coleção de observações, pertinentes, em sua
quase totalidade, apenas aos casos que o teórico tinha em mente, e por isso
não generalizáveis; pouco sistemáticas e dificilmente merecedoras do termo
“teoria”, no sentido de uma hipótese verificável, ou de uma classificação
taxonômica das piadas. Em alguns momentos, é fornecida uma explicação
para a comicidade de um recurso – digamos, um trocadilho, que explora a
similaridade de sons – sem explicar por que o recurso também pode ser
empregado sem efeito cômico, e o que diferencia os dois casos. Freud se
esforça em indicar o que torna uma metáfora cômica – a degradação – mas os
exemplos não corroboram sua proposta.
Ainda assim, e ainda que os autores não tivessem em mente sempre
textos teatrais, foi bastante satisfatória a análise do humor encontrado nas
peças, sendo possível reconhecer recursos expostos nas obras teóricas. Uma
observação feita por Freud, principalmente, pôde ser constatada, a de que o
humor sexual tem muitas vezes uma técnica pífia – e quem frequenta os
228
teatros pode perceber como o simples emprego de uma palavra chula pode
suscitar hilaridade. Os apontamentos de Legman, que se debruçou
especificamente sobre o humor sexual, complementam o enunciado de Freud,
deixando claro que o desafio – geralmente indireto – ao tabu sexual e a
racionalização de ansiedades latentes são, muitas vezes, os motores por trás
dessa vertente de comicidade.
Outra meta que o trabalho se propôs, ainda que de forma secundária, foi
apresentar o contexto no qual as obras foram escritas, ou seja, quais eram as
percepções sobre sexo prevalentes na Inglaterra da modernidade nascente.
Nesse aspecto, o resultado é reconhecidamente superficial. Em parte, porque
os registros que sobrevivem não permitem de fato o conhecimento dos hábitos
sexuais dos ingleses na virada do século XVII em seus detalhes, mas em parte
porque limitações de tempo e escopo não permitiram pesquisas mais
aprofundadas sobre assuntos específicos como homossexualidade ou doença
venérea. De qualquer forma, são expostos alguns temas que são importantes
para as peças, como a prevalência do patriarcado, os hábitos ligados à
prostituição e suas consequências, como as doenças venéreas e o problema
da geração de bastardos.
Também foi esboçado um panorama do uso de conteúdo sexual –
especialmente aquele de natureza cômica – em todo o cânone dramático do
poeta inglês. Trata-se de uma meta ambiciosa demais para desenvolver em
poucas páginas: as discussões não são obviamente exaustivas, e terminaram
por dever muito a um único autor – Colman; mas, ainda assim, cumprem um
papel importante de estabelecer um contexto para o recorte escolhido ante o
conjunto da obra dramática de Shakespeare.
Como vimos na Introdução, o próprio conceito de peça-problema é em si
um problema: há diferentes definições e mesmo outras peças que são
propostas como pertencentes ao grupo. O que o presente trabalho teria a dizer
sobre a questão? Antes de mais nada, que as classificações têm mais valor
didático e editorial – como uma forma de organizar as obras – do que estético-
literário: as peças se compõem aparentemente de “feixes” de preocupações
estéticas e temáticas, que não necessariamente correspondem às categorias
229
contingentes criadas pelos críticos ao longo do tempo. Por exemplo, se Medida
por medida tem parentesco com Bom é o que acaba bem pelo recurso a fontes
italianas e ao truque-do-leito, a temática da doença venérea e o senso de
corrupção podem ligá-la a Timon de Atenas, a qual também já foi proposta
como peça-problema. Ocorre que não apenas essa peça, mas também Hamlet,
Júlio César e Antônio e Cleópatra, que também já receberam o rótulo, são
indiscutivelmente tragédias, e não necessitam dessa classificação que é, no
fim, exclusiva: não sendo tragédias nem peças históricas, nem tampouco
comédias iniciais, comédias românticas ou romances, Troilus e Créssida, Bom
é o que acaba bem e Medida por medida recaem em um grupo problemático,
mas com alguns traços característicos, como temas sombrios, elementos
trágicos, preocupações éticas, morais e filosóficas.
E o que o estudo do humor sexual pode contribuir para caracterizar as
peças-problema? Idealmente, seria importante ampliar o estudo feito – em sua
análise de técnica e temática das piadas sexuais – a todas as peças do cânone
shakespeariano, ou ao menos às mais obscenas, para perceber o que é
característico deste grupo. Mesmo assim, pode-se afirmar com alguma
segurança que o uso de humor sexual é um dos elementos que unem as
peças-problema: na contagem de instâncias de humor sexual realizada por nós
na fase preparatória deste trabalho, as três peças figuraram entre as dez
primeiras colocações, de um total de trinta e oito peças – na prática, a
contagem final de piadas sexuais nas peças estudadas excedeu a projeção
inicial, de modo que a lista serve apenas como estimativa. Deve ser
reconhecido como limitação do trabalho o fato de que determinar a comicidade
de uma passagem, em especial para o público da época, não é uma tarefa
fácil. De qualquer forma, parece inegável – e esta dissertação se esforça em
deixar isso claro – que Shakespeare estava particularmente propenso a usar o
discurso do humor de temática sexual (assim como conteúdo sexual não
cômico, certamente) nestas três peças.
Os resultados, analisados quantitativamente (ver anexos), permitem
algumas conclusões. Como era esperado, Medida por medida, que, como já
dito, tem a temática sexual tanto na trama principal quanto na secundária, é,
das três, a peça com o maior número total de piadas sexuais, 62 ao todo. O
230
que se pôde perceber, no entanto, é que o discurso do humor sexual naquela
peça está quase totalmente concentrado em dois personagens, Pompeu e
Lúcio, que têm respectivamente 16 e 35 do total de piadas. Já Troilus e
Créssida, que dedica mais linhas aos heróis gregos e troianos e sua guerra
fratricida do que à trama de amor dos personagens-título, tem suas 48 piadas
sexuais detectadas distribuídas de forma que cinco personagens têm ao menos
três a eles atribuídas (Troilus, 3, Créssida, 10, Pandarus, 14, Tersites, 13 e
Helena, 3), e isso a faz, ao menos por esse critério, uma peça mais obscena
que Medida por medida. Em Bom é o que acaba bem, Lafeu – ao contrário do
que se imaginava inicialmente – é creditado com um número expressivo de
piadas obscenas: 8 de um total de 48 – mesmo total de Troilus e Créssida –
sendo as demais, com exceção de apenas 5, divididas entre Parolles (16) e
Lavache (17).
No que se refere às técnicas de comicidade, considerando que mais de
um recurso pode coexistir na mesma piada, e que nem sempre é possível ligar
determinado chiste a uma das técnicas previstas pelos teóricos – levando à
criação de categorias admitidamente artificiais como “obscenidade em geral” ou
“espirituosidade” – o que se pôde verificar é que o double entendre é o mais
utilizado: corresponde a 38% do total de empregos de todos os recursos em
Troilus e Créssida, e a 26% em Bom é o que acaba bem, enquanto no caso de
Medida por medida, são apenas 11%. Em seguida, observamos que o
innuendo tem uma prevalência de 14% em Troilus e Créssida, de 21% em Bom
é o que acaba bem e de 13% e Medida por medida. Verificou-se que Medida
por medida é a peça que usa a maior variedade de técnicas entre as três: um
total de 24, contra 14 em Troilus e Créssida e 16 em Bom é o que acaba bem.
Considerando as três peças em conjunto, temos que o double entendre
responde por 24% dos usos, enquanto o innuendo representa 17% do total. É
importante ressaltar que este levantamento de recursos cômicos se debruça
sobre o texto; há ainda a comicidade não verbal que o ator, mestre de seus
próprios recursos, adiciona às linhas que lhe cabem, com o uso de gestos e
objetos, por exemplo.
Já em relação aos temas abordados pelas piadas, mais uma vez as
categorias são difíceis de delimitar, e também é possível que uma mesma
231
ocorrência aponte para mais de um tema. Em Troilus e Créssida, os assuntos
mais prevalentes – de um total de 17 – foram o ato sexual (17%), a doença
venérea (13%) e por fim a anatomia feminina e a conduta/reputação sexual,
ambos com 11%. No que diz respeito a Bom é o que acaba bem, foram
detectados 19 temas, sendo os mais frequentes a virgindade (18%), o ato
sexual (10%), e enfim a potência sexual e a doença venérea (8% cada).
Medida por medida, a mais variada em técnica, mostrou-se a menos variada
em temas: apenas 12, figurando de forma mais proeminente a doença venérea
(18%), seguida do ato sexual e da prostituição (16% cada) e por fim da
conduta/reputação sexual (15%). Considerando as três peças, o ato sexual foi
tema mais usado (16%), seguido pela doença venérea (13%).
Assim, através da análise minuciosa do discurso do humor sexual nas
peças-problema – no sentido de um conjunto delimitável de sentenças,
extraídas das peças – e da investigação do discurso do humor sexual enquanto
prática social que gera tais sentenças – dentro e fora da atividade teatral – foi
possível com este trabalho não apenas produzir uma análise literária dentro da
temática e do corpus adotado, mas explicitar qual era o discurso do humor
sexual nesse período do teatro de Shakespeare, no sentido da ideologia
predominante, com implicações para questões como gênero e poder, regulação
da sexualidade, e o temor prevalente das patologias venéreas.
232
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Anexos
Lista Troilus e Créssida
Lista geral n personagem piada técnica(s) tema(s)
1 Troilus firm faithnão intencional, double entendre ereção
2 Troilus upliftednão intencional, double entendre ereção
3 Troilus edifiesnão intencional?, double entendre ereção
4 Créssida know double entendre ato sexual
5 Créssida noseinnuendo, alusão por omissão doença venérea
6 Créssida date double entendreanatomia masculina
7 Créssida past watching double entendre, metaforaconduta/reputação
8 Créssida monstrousinnuendo, alusão por omissão
dimensão peniana
9 Créssida performancemal entendido deliberado, innuendo desempenho
10 Créssida chamber
mal entendido deliberado, double
anatomia feminina
11 Créssida odd innuendo, polissemia corno12 Créssida doing double entendre ato sexual13
Créssida/Pandarus do what double entendre ato sexual
14 Pandarus do here double entendre ato sexual15 Pandarus cake metáfora, double entendre
ato sexual, conquista
16
Pandarus/Servant sodden
mal entendido deliberado, innuendo doença
17 Pandarus song metáfora, double entendre
ato sexual, orgasmo
18 Pandarus picture metonímia encontro sexual19 Pandarus bowls metáfora, double entendre ato sexual20 Pandarus activity double entendre desempenho21
Pandarus press alusão por omissão ato sexual
22 Pandarus chipocchia
tabu? innuendo, double entendre
anatomia feminina
2 Pandarus rheum innuendo doença venérea
237
324 Pandarus aching bones innuendo doença venérea25 Pandarus pander's hall innuendo cafetinagem26 Pandarus diseases innuendo doença venérea27 Ulisses daughters metáfora
conduta/reputação
28 Helena thing
mal entendido deliberado, double entendre, sinédoque
anatomia masculina
29 Helena falling in
mesmo material com leve modificação
ato sexual/ reprodução
30 Helena tip nose innuendo
anatomia masculina
31 Páris doves
alusão por omissão, degradação
conduta/reputação
32 Enéias lance double entendre
anatomia masculina
33 Heitor Venus' glove
innuendo, alusão por omissão
anatomia feminina
34 Patroclus argument
double entendre, eufemismo,innuendo
anatomia feminina
35 Ulisses/Tersites sing, clef, noted double entendre, trocadilho
conduta/reputação
36 Tersites secretly open innuendo, paradoxo
conduta/reputação
37 Tersites whetstone metonímia
conquista/cálculo
38 Tersites tickle it
innuendo, condensação-palavra composta homoerotismo
39 Tersites thy whore obscenidade geral
conduta/reputação
40 Tersites cuckold obscenidade geral corno41 Tersites burning alusão por omissão doença venérea
42 Tersites preposterous
alusão por omissão, innuendo
doença venérea, homoerotismo
43 Tersites
Neapolitan/placket alusão, double entendre
doença venérea, anatomia feminina
44
Tersites male varlet obscenidade geral homoerotismo
45 Tersites Helen's needle double entendre
anatomia feminina, sêmen.
46 Tersites earwax double entendre sêmen47 Tersites herring double entendre sêmen
240
Lista Bom é o que acaba bem
Lista geral
npersonagem piada técnica tema
1 Lafeu King Pippen innuendo potência
2 Lafeu Cressid's uncleinnuendo, alusão por omissão proxenetismo
3 Lafeu lustier/lustiqueinnuendo, double entendre potência
4 Lafeu tooth innuendo potência5 Lafeu doing double entendre potência
6 Lafeu lower part nonsense?anatomia masculina
7 Lafeu easy glove double entendre anatomia feminina
8 Lafeu taking updouble entendre, innuendo homoerotismo
9 Parolles all counts trocadilho virilidade10 Lorde 2 fleshes his will
double entendre, metáfora ato sexual
11 Lorde 2 dieted innuendo ato sexual12 Diana serve
polissemia, ladrão roubado conquista
13 Diana know charada virgindade14 Parolles
out, undermine, blow up double entendre virgindade
15 Parolles
up/down, breach, city double entendre virgindade
16 Parolles ever lost raciocínio falho virgindade17 Parolles cheese metáfora virgindade18 Parolles usury alusão por omissão virgindade19 Parolles commodity metáfora virgindade20 Parolles withered pear metáfora virgindade21 Parolles capable double entendre ato sexual22 Parolles box unseen, marrow double entendre
anatomia feminina, sêmen
23 Parolles shake to pieces
innuendo, alusão por omissão doença venérea
24 Parolles whale metáfora reputação/conduta25 Parolles score polissemia conduta2 Parolles mell, kiss innuendo, double virilidade
241
6 entendre27 Parolles Nessus alusão por omissão conduta28 Parolles tricks eufemismo conduta29 Parolles love polissemia, equivocação ato sexual30 Lavache case double entendre anatomia ambos31 Lavache devil drives cínico
casamento, lascívia
32 Lavache holy reasons cínico trocadilho anatomia ambos33 Lavache ears my land
cínico, double, raciocínio falho casamento, corno
34 Lavache cuckoo obscenidade geral corno35 Lavache barber's chair innuendo ecletismo36 Lavache french crown obscenidade geral
doença venérea, prostituição
37 Lavache Tib's rush innuendo anatomia ambos38 Lavache nun's lips obscenidade geral? anti-catolicismo39 Lavache constable trocadilho anatomia feminina40 Condessa monstrous innuendo dimensão peniana41 Lavache before my legs innuendo dimensão peniana42 Lavache old lings double entendre prostitução43 Lavache brains of my Cupid double entendre sêmen44 Lavache standing to't polissemia ereção45 Lavache fool or knave double entendre
anatomia masculina
46 Lavache more hotter alusão por omissão doença venérea47 Lavache velvet alusão por omissão doença venérea48 Helena barricado metáfora virgindade
242
Lista Medida por medida
Lista geral
npersonagem piada técnica(s) tema(s)
1 Julieta wrong sim pelo não castidade2 Mariana know charada, paradoxo, polissemia ato sexual3 Japassada sweat alusão por omissão doença venérea
243
4 Torto respected malapropismo reputação5 Torto picklock quiproquó objeto sexual6 Pompeu trouts innuendo ato sexual
7 Pompeu donemal-entendido deliberado, double entendre ato sexual
8 Pompeu done oncemal-entendido deliberado, innuendo ato sexual
9 Pompeu overdone todo e partes reputação10 Pompeu thing innuendo anatomia masc.11 Pompeu head double entendre, raciocínio falho anatomia fem.12 Pompeu maid w/ child paradoxo reprodução13 Pompeu counsellors trocadilho cafetinagem14 Pompeu
drabs and knaves sofisma, raciocínio falho cafetinagem
15 Pompeu two usuries alusão por omissão prostituição16 Pompeu unlawful bawd ironia cafetinagem17 Pompeu mystery sofisma, raciocínio falho cafetinagem18 Pompeu house eufemismo prostituição19 Pompeu eyes alusão por omissão doença venérea20 Pompeu prunes innuendo
prostituição, doença venérea
21 Pompeu tub double entendre doença venérea22 Lúcio powdered double entendre doença venérea23 Lúcio tick-tack metáfora ato sexual24 Lúcio bottle metáfora ato sexual25 Lúcio codpiece metonímia anatomia masc.26 Lúcio untrussing eufemismo ato sexual27
Lúcio it eufemismo ato sexual
28 Lúcio carnally
eufemismo, mal-entendido deliberado ato sexual
29 Lúcio handle
eufemismo, mal-entendido deliberado ato sexual
30 Lúcio work with her
eufemismo, mal-entendido deliberado ato sexual
31 Lúcio light double entendre reputação
244
32 Lúcio snow broth caricatura frigidez33 Lúcio ice caricatura frigidez34 Lúcio downright way ironia, double entendre
reprodução, frigidez
35 Lúcio
motion generative ironia, caricatura
reprodução, frigidez
36 Lúcio ungenitured espirituosidade, caricatura?
reprodução, frigidez
37 Lúcio sparrows espirituosidade, caricatura?
reprodução, frigidez
38 Lúcio sport quiproquó, innuendo reputação39 Lúcio woodman quiproquó, innuendo reputação40 Lúcio fleshmonger quiproquó, innuendo reputação41 Lúcio sheepbiting quiproquó, innuendo reputação42 Lúcio mutton quiproquó, double entendre prostituição43 Lúcio clack-dish quiproquó, double entendre prostituição44 Lúcio head double entendre anatomia fem.45 Lúcio Pygmalion alusão por omissão prostituição46 Lúcio morsel innuendo prostituição47 Lúcio paint innuendo prostituição48 Lúcio
maid, widow, wife
espirituosidade, mal-entendido deliberado prostituição
49 Lúcio
marrying a punk espirituosidade prostituição
50 Lúcio cuckold espirituosidade, raciocínio falho corno51 Lúcio rotten medlar metáfora prostituição52
1ºCavalheiro velvet
alusão por omissão, ladrão roubado doença venérea
53 Lúcio feelingly mal-entendido deliberado doença venérea54 Lúcio drink after thee alusão por omissão doença venérea55 Lúcio Mitigation innuendo, nomes cafetinagem56
2ºCavalheiro dolours trocadilho doença venérea
57 Lúcio French crown
jogo de palavras, alusão por omissão doença venérea
5 Lúcio sound mal-entendido deliberado doença venérea
245
859
1ºCavalheiro sciatica obscenidade em geral doença venérea
60 Abhorson nomes reputação61 Keepdown nomes reputação62 Overdone nomes reputação