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AS MIL VOZES DE HILDA HILST Rico acervo da autora reserva material inédito com poesias, cartas e gravações de ‘conversas’ com espíritos, que inspiram um documentário EDUARDO SIMÕES/CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA (ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES)
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Hilda Hilst, jornal O Globo, 17 jan 2015

Apr 07, 2016

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gabriela greeb

Matéria sobre Hilda Hilst com destaque para o projeto "Hilda Hilst pede Contato", capa do caderno Prosa, jonal O Globo (17 janeiro 2015)
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Page 1: Hilda Hilst, jornal O Globo, 17 jan 2015

AS MIL VOZES DE HILDA HILSTRico acervo da autorareserva material inédito com poesias,cartas e gravações de ‘conversas’ com espíritos, que inspiramum documentário

EDUARDO SIMÕES/CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA (ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES)

Page 2: Hilda Hilst, jornal O Globo, 17 jan 2015

2 l O GLOBO l Prosa l Sábado 17 .1 .2015

Uma obraem contatoDocumentário em fase de finalização usa gravações deixadas por Hilda Hilst na Casa do Solcomo pista para compreender sua vida, seus escritos e sua inconformidade com a morte

Construída por Hilda Hilst há cinquentaanos nos arredores de Campinas, aCasa do Sol se mantém como uma es-pécie de arquivo orgânico da obra daescritora, poeta e dramaturga, morta

em 2004. Planejada nos mínimos detalhes comoum espaço de criação, a grande residência se con-funde com a sua vida e a sua obra. De lá, não pa-ram de sair surpresas. Facetas raras da autora, co-mo poemas infantojuvenis e outros em línguas es-trangeiras, acabam de ser descobertas e podemaparecer em livro em breve. Entre os achados, estáainda uma correspondência inédita com o artistaplástico Mora Fuentes, amigo e responsável pelacriação do Instituto Hilda Hilst, com previsão depublicação até o final do ano pela Editora Bibliote-ca Azul — que acaba de lançar “Pornô chic”, reuni-ão dos escritos eróticos da escritora, e publicará nosegundo semestre uma edição com sua poesiacompleta. Mas o acervo reserva um outro segredo,pista indispensável para compreender o quebra-cabeça hilstiano. São suas misteriosas “conversas”com vozes do além, registradas em mais de 100horas de gravações, que estarão no centro do do-cumentário “Hilda Hilst pede contato”.

Nos anos 70, depois de ter se mudado para a Ca-sa do Sol, Hilda começou a gravar sinais de rádiotentando se comunicar com amigos e parentesmortos, fenômeno conhecido como transcomuni-cação instrumental. Ela seguia os experimentos docientista suíço Friedrich Jurgenson, que exploravao “ruído branco”, chiado eletromagnético emitidono espaço entre duas estações de rádio. Hildaacreditava que esse som abafado escondia vozesde entidades incorpóreas. “Contato, contato, Hildaquerendo saber de seus amigos da outra dimen-são”, dirigia-se a escritora aos espíritos, esperandopor uma resposta que chegava em palavras inau-díveis para a grande maioria das pessoas, mas sufi-cientemente claras para ela.

PACTUAÇÃO COM O CÓSMICOA cineasta Gabriela Greeb adquiriu o direito des-sas gravações e as transformou no leitmotiv de seudocumentário, em fase de finalização. A voz deHilda é o fio condutor da narrativa, que usa ima-gens raras do arquivo pessoal da autora, encontra-das em cinquenta rolos inéditos de película Super8 com registros de situações cotidianas na Casa doSol, e algumas cenas ficcionais realizadas dentroda moradia com a atriz Luciana Domschke (nopapel de Hilda). Elemento importantel do filme, otrabalho de som ficou a cargo do premiado francêsNicolas Becker, de filmes como “Gravidade” e“Batman begins”. Já a fotografia é assinada peloportuguês Rui Poças, que trabalhou no longa “Ta-bu”, de Miguel Gomes.

— A questão das fitas é o argumento para abordara vida e a obra de Hilda, mais do que um tema em si— explica Gabriela. — É como se o filme todo esti-vesse gravado nestas fitas, uma realidade que se re-pete, em círculos, a casa e suas histórias. Na verda-de, tudo passa pela Casa do Sol, que se transformanum receptáculo de sons. A ideia é inverter esta si-tuação original das gravações: aqui seria Hilda, jáimortalizada, que busca contato com os vivos. Estedispositivo permite que o filme seja narrado na pri-meira pessoa, na voz da poeta.

Para a cineasta, Hilda tinha “uma necessidadegigante” de comunicação; como vivia isolada naCasa do Sol, com poucos leitores, optou por co-municar-se com os espíritos.

— Ela não se conformava com a morte; desde cri-ança, não entendia como era possível que as coisasmorressem, terminassem — lembra Gabriela. —Hilda buscava comprovar de maneira científica aimortalidade da alma. Passou a estudar física quân-

tica no final de sua vida, ficou muito amiga do físicoMario Schenberg, com o qual passava horas discor-rendo sobre temas como “luz interdita”, entre outrosassuntos. Estava se preparando para ir para Mar-duk, planeta para onde, segundo ela, iam algunsmortos, aqueles que haviam constituído uma alma.

Em uma reportagem do “Fantástico” de 1979,Hilda abriu sua casa e mostrou suas experiênciaspara o programa. Pela primeira vez, parte de suasgravações vieram a público — e voltaram ao es-quecimento desde então. Pelo menos na reporta-gem, o conteúdo das fitas está longe de mostraralgo conclusivo; é provável que a exibição em umprograma de grande audiência, em horário no-bre, tenha aumentado ainda mais a fama de “lou-ca” e “hermética” da autora junto ao público. Naentrevista, Hilda admite que nem mesmo algunsde seus amigos físicos levavam a sério a sua ob-sessão pelas vozes.

— O que a Hilda diz durante o contato com osmortos é o mais interessante, pois as vozes respon-dem apenas “sim”, “hildinha”, ou pequenas coisasque realmente nunca sabemos se são elas que di-zem ou se somos nós que ouvimos — especula Ga-briela. — Esse espaço ínfimo e infinito entre o queuma pessoa fala e o que a outra pessoa ouve. O fil-me se localiza neste espaço, talvez. O imaginário, aliteratura.

O fascínio pelo oculto é um fator essencial naobra de Hilda. A visão de uma bola de fogo em1967, e de vários discos voadores nos anos seguin-tes, serviram como um catalizador de sua escrita(segundo um de seus amigos, especialista em OV-NIs, as aparições a teriam “energizado”). “Sinto quetenho uma afinidade, uma vontade de pactuaçãocom algo que eu desconheço, mas que faz parte docósmico”, disse ela, em uma entrevista de 1986. “Euacho que o meu caminho é sempre esse, o desejo

de me irmanar com o inatingível para ver se descu-bro o sentido do que é existir”. Um vislumbre de suarelação com o inatingível também está nas trocasde cartas com Mora Fuentes. Batizada como “Car-tas aos pósteros” e nunca antes publicada, a corres-pondência é uma das novidades preparadas pelaBiblioteca Azul em 2015.

— Hilda e Mora escreviam pensando mais no lei-tor do que numa forma de comunicação entre eles— diz a editora Ana Lima Cecílio. — Parece um de-senvolvimento de um novo gênero, um pouco co-mo a Hilda fez nas entrevistas: criar um persona-gem, desenvolver uma linguagem própria para ascartas, que não é nem a da poesia, nem a da prosa,nem a do teatro.

As novidades não param por aí, já que o Insti-tuto Hilda Hilst, responsável pela preservaçãoda Casa do Sol, começou em janeiro um inven-tário do arquivo, que prevê o cadastramento, ahigienização e a digitalização de textos, entre-vistas e imagens. Segundo Daniel Fuentes, filhode Mora e presidente do instituto, obras valiosasdeverão vir à tona. Em prosa, ele destaca a des-coberta de trechos de prosa datilografados quese assemelham a um diário. Já na poesia, há ver-sos para o público infantojuvenil (um deles es-crito para o próprio Daniel Fuentes), imprová-veis poemas em inglês e alemão, e ainda paródi-as de outros poetas, como Adélia Prado e Ferrei-ra Gullar.

— São poemas que ela escreveu para gozar ou-tros poetas — detalha Fuentes. — É um trabalhofenomenal de linguagem, e engraçadíssimo. l

EXPERIÊNCIAS

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DA AUTORA

COM O OCULTO

BOLÍVAR TORRES

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Receptáculo de sons. Cena do documentário filmado na Casa do Sol, com a atriz Luciana Domschke no papel da escritora. Abaixo, a diretora Gabriela Greeb com o rolo das fitasFERNANDO DONASCI

Desde criança,Hilda não entendiacomo era possívelque as coisasmorressem.GABRIELA GREEBDiretora do documentário ‘Hilda Hilst pede contato’

NA WEBVÍDEOoglobo.com/cultura/livrosOuça gravações inéditas das

experiências de Hilda Hilst com os espíritos