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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2829. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE A RAINHA MORTA INêS DE CASTRO O Amor e a Inveja segundo António Vieira
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h - Suplemento do Hoje Macau #81

Mar 13, 2016

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 12 de Abril de 2013
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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2829. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

A rAinhA mortAinês de cAstro

O Amor e a Inveja segundo António Vieira

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António vieirAo Amor e A invejA

todo o Amor é imAginárioOs hOmens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam; ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem esti-ma vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são per-feições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade: cuidais que amais perfeições Angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo os homens não amam o que cuidam que amam. Donde também se segue, que amam o que verda-deiramente não há; porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina, e não é, não o há no mundo.

As QuAtro ignorânciAs do AmAnteQuAtrO ignOrânCiAs podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor. Ou porque não se conhecesse a si: ou porque não conhecesse a quem amava: ou porque não conhecesse o amor: ou porque não conhecesse o fim onde há-de parar, amando. se não se conhecesse a si, talvez empregaria o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. se não conhecesse a quem amava,

talvez quereria com grandes finezas a quem havia de aborrecer, se o não ignorara. se não conhecesse o amor, talvez se empenharia cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. se não conhecesse o fim em que havia de parar, amando, talvez chegaria a padecer os danos a que não havia de chegar se os previra. 

o Amor vulgArPintA-se O AmOr sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega à idade de uso de razão. usar de razão, e amar, são duas coisas que não se juntam. A alma de um menino, que vem a ser? uma vontade com afectos, e um entendimento sem uso. tal é o amor vulgar. tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso os mesmos Pintores do Amor lhe vendaram os olhos. e como o primeiro efeito, ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem, que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância: e quantas partes tem de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, é amante; quem ama, porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem, ignorando, ofendeu, em rigor não é delinquente; quem, ignorando, amou, em rigor não é amante. 

AmAr ou ser AmAdo?Que é O Que mais deseja e mais estima o amor: ver--se conhecido ou ver-se pago? é certo que o amor não pode ser pago, sem ser primeiro conhecido; mas pode ser conhecido, sem ser pago. e considerando dividi-dos estes dois termos, não há dúvida que mais estima o amor e melhor lhe está ver-se conhecido que pago. Porque o que o amor mais pretende, é obrigar; o co-nhecimento obriga, a paga desempenha. Logo muito melhor lhe está ao amor ver-se conhecido que pago; porque o conhecimento aperta as obrigações, a paga e o desempenho desata-as. O conhecimento é satisfação do amor próprio; a paga é satisfação do amor alheio. na satisfação do que o amor recebe, pode ser o afecto interessado; na satisfação do que comunica, não pode ser senão liberal. Logo, mais deve estimar o amor ter segura no conhecimento a satisfação da sua liberalida-de, que ver duvidosa na paga a fidalguia do seu desin-teresse. O mais seguro crédito de quem ama, é a con-fissão da dívida no amado; mas como há-de confessar a dívida, quem a não conhece? mais lhe importa logo ao amor o conhecimento que a paga; porque a sua maior riqueza é ter sempre individado a quem ama.  Quando o amor deixa de ser credor, só então é pobre. Finalmente, ser tão grande o amor que se não possa pagar, é a maior glória de quem ama: se esta grandeza se conhece, é glória manifesta; se não se conhece, fica escurecida, e não é glória. Logo, muito mais estima o amor, e muito mais deseja e muito mais lhe convém a glória de conhecido, que a satisfação de pago. 

Excertos de Sermões

Quem ama, porQue conhece,

é amante; Quem ama,

porQue ignora, é néscio.

assim como a ignorância

na ofensa diminui o delito,

assim no amor diminui

o merecimento. Quem,

ignorando, ofendeu, em

rigor não é delinQuente;

Quem, ignorando, amou,

em rigor não é amante.

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E quando os homens são de tal condição, que cada um quer tudo para si, com aquilo com que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes três. o mesmo nos sucede. nunca tantas mercês se fizeram em Por-tugal, como neste tempo; e são mais os queixosos, que os con-

tentes. Porquê? Porque cada um quer tudo. nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê, perdem-se muitos. Se Cleofas fora português, mais se havia de ofen-der da a metade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra metade,

que lhe deu a ele. Porque como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer cousa que se dá aos outros, cuida que se lhe rou-ba. Verdadeiramente, que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal: por isto mais, do que por nenhum outro empenho.  (...) Em nenhuns reis do mundo se

vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações es-tranhas, foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos com satisfação de-les, foi impossível, que nenhum

rei pôde acomodar, nem com fa-cilidade, nem com felicidade ja-mais. Mais fácil era antigamente conquistar dez reinos na Índia, que repartir duas comendas em Portugal. Isto foi, e isto há-de ser sempre: e esta, na minha opinião, é a maior dificuldade que tem o governo do nosso reino.

Em Portugal cada um QuEr tudo

a InvEja é a EsPada QuE maIs corta

a InvEja não tEm Passado

a lusItânIa

Lançar a MELhor carta na baralha talvez é treta de jogador; esconder com indústria o com que melhor se pode ga-nhar, nunca foi consequência de perder. que importa que no jogo seja o rei a me-lhor carta, se talvez porque as espadas são trunfo, não faz a figura vaza? a inveja é a

espada que mais corta, e está esta carta de espadas levantada, desde que no jogo da fortuna se levantaram sujeitos. Esconder, pois, a melhor figura, será a melhor pru-dência para que ganhe a seu tempo. (...) Encobrindo a terra seus metais e ocultan-do o mar suas pérolas, granjeia em nossa

estimação maiores admirações. o mesmo coral, que por baixo da água é buscado pelo seu valor, quando já descoberto, pa-rece que, de corrido, se torna vermelho. É melhor que luzir em todo o tempo, o luzir somente a tempo; assim se enganam os olhos da inveja, e assim se concilia nos

ânimos a estimação. destes temperilhos necessita a fortuna, para se conservar sem-pre próspera, e de tal maneira que, como o seu curso é em roda, e no esférico não há primeiro nem último lugar, pode o último vir a ser o primeiro, e o primeiro vir a ser o último. 

aInda não tendes advertido, que a in-veja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos presentes aos passados? os olhos da inveja são como os do Sacerdote heli, dos quais diz o Texto sagrado, que não podiam ver a luz do Templo, senão depois que se apagava:  Oculi ejus caligave-

rant, nec poterat videre lucernam Dei, antequam extingueretur. Enquanto as luzes são vivas, cada reflexo delas é um raio, que cega os olhos da inveja: porém depois que elas se apagaram, e muito mais se se metem largos anos em meio, então abre a inve-ja, como ave nocturna, os olhos; então

vê o que não podia ver: então venera e celebra essas mesmas luzes, e levanta sobre as Estrelas seus resplendores. Por isso disse com grande juízo S. Zeno Ve-ronense, que todo o invejoso é inimigo dos presentes, e amigo dos passados:  In omnibus se inimicum praesentium ser-

vat, amicum vero pereuntium. os mes-mos que agora amam, e veneram tanto a Santo antónio, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas, que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua Pá-tria, as haviam de escurecer e aniquilar. 

a TErra MaIS ocidental de todas é a Lusitânia. E porque se chama ocidente aquela parte do mundo? Porventura por-que vivem ali menos, ou morrem mais os homens? não; senão porque ali vão morrer, ali acabam, ali se sepultam e se escondem todas as luzes do firmamento. Sai no oriente o Sol com o dia coroado de raios, como rei e fonte da Luz: sai a Lua e as Estrelas com a noite, como tochas acesas e cintilantes contra a escuridade das trevas, sobem por sua ordem ao Zé-nite, dão volta ao globo do mundo res-plandecendo sempre e alumiando terras e

mares; mas em chegando aos horizontes da Lusitânia, ali se afogam os raios, ali se sepultam os resplendores, ali desapare-ce e perece toda aquela pompa de luzes.  E se isto sucede aos lumes celestes e imor-tais; que nos lastimamos, Senhores, de ler os mesmos exemplos nas nossas his-tórias? que foi um afonso de albuquer-que no oriente? que foi um duarte Pa-checo? que foi um d. João de Castro? que foi um nuno da Cunha, e tantos outros heróis famosos, senão uns astros e Planetas lucidíssimos, que assim como alumiaram com estupendo resplendor

aquele glorioso século, assim escurecerão todos os passados? Cada um era na gra-vidade do aspecto um Saturno, no valor militar um Marte, na prudência e diligên-cia um Mercúrio, na altiveza e magnani-midade um Júpiter, na Fé, e na religião, e no zelo de a propagar e estender entre aquelas vastíssimas Gentilidades, um Sol.  Mas depois de voarem nas asas da fama por todo o mundo estes astros, ou indí-getes da nossa nação, onde foram parar, quando chegaram a ela? um vereis priva-do com infâmia de governo, outro preso, e morto em um hospital, outro retirado

e mudo em um deserto, e o melhor livra-do de todos, o que se mandou sepultar nas ondas do oceano, encomendando aos ventos levassem à sua Pátria as últi-mas vozes, com que dela se despedia: In-grata patria non possidebis ossa mea.  Vede agora se eu tinha razão para dizer, que é natureza ou má condição da nossa Lusitânia não poder consentir que luzam os que nascem nela. E vede também se podia Santo antónio deixar de deixar a Pátria, sendo filho de uma terra onde não se consente o luzir, e tendo-lhe mandado Cristo que luzisse: Sic luccat lux vestra. 

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ANTÓNIO PATRÍCIODA CONSCIÊNCIA DA MORTE AO SENTIDO DA VIDA -III

Pedro Baptista

De méDico a DiplomataApercebemo-nos de que o curso da Es-cola Médico-Cirúrgica terá sido mais uma busca de profissão, ou de posição, do que propriamente a expressão de uma vocação. Enquanto estudava, as preocu-pações do jovem Patrício dividir-se-iam entre a produção da sua obra literária, em particular a poética, o convívio com o seu grupo de amigos pareado com os ajustes de contas com os inimigos que fazia jus, espontaneamente, em colec-cionar, e os estudos médicos, sendo que as partes que o interessavam prendiam--se muito mais com as problemáticas so-ciais e humanas do que com as cirúrgi-cas, no que, como alvitramos, seria apa-drinhado pelos positivistas instalados em força na ciência médica portuense (Júlio de Matos e Ricardo Jorge), em-bora “O Positivismo” já tivesse cessado a publicação em 1882 e possamos dizer que já não se encontrava na fase áurea. Não vislumbrando grande espaço, nem grande futuro, no campo da psiquiatria ou da psicologia social, Patrício tratou de aprontar a vida profissional em outra perspectiva, que lhe agradava porque ti-nha a ver não só com viajar no seu mar de paixão e perdição, onde poderia ter sido comandante de um navio, como com o desejo de permanente vogar ima-ginando a sucessiva atracagem a novos portos onde, como deixou escrito, o ar-tista sempre se sente renascer… sempre pode lembrar-se de viver… não se es-quecer de viver…É assim que com o apoio de José de Al-poim e o estímulo e apadrinhamento de Guerra Junqueiro, António Patrício, nem sempre um modelo de diplomacia segundo as más-línguas, tentou a car-

reira diplomática, prestando provas no Ministério dos Negócios Estrangeiros para Cônsul em 15 de Dezembro de 1909. Embora os resultados tivessem sido publicados em Fevereiro de 1910, só entraria efectivamente na carreira di-plomática após a implantação da Repú-blica, com a nomeação para o consulado de Cantão. Porém, antes de seguir para Cantão, por ser considerado um homem de confian-ça da República foi-lhe confiada uma missão especialmente difícil, que de-sempenharia com enorme sucesso e que assim marcaria o início da sua carreira diplomática. Tratou-se de impedir na Galiza, mais propriamente na Corunha, um desembarque de armas destinadas aos monárquicos de Paiva Couceiro que, perseverando nas tentativas sub-versivas, procuravam constantemente organizar incursões armadas contra a República, praticamente desde a sua proclamação, entrando mesmo por duas vezes no território nacional, em 1911 e 1912, mas sem sucesso. Uma das razões desse insucesso foi a falta de poder de fogo, resultando do trabalho abnegado e inteligente do jovem diplomata repu-blicano, ao impedir o desembarque do armamento para as forças subversivas.Patrício chegou a Cantão em plena re-volução republicana vitoriosa no Sul da China, dirigida pelo Dr. Sun Yat-sen, em Dezembro de 1911 e aí permaneceu até Outubro de 1913, data em que a sua vontade de viver o levou a ser transfe-rido para Manaus, como castigo pelo envolvimento amoroso com uma jovem de 18 anos, Lídia Carvalho, filha de uma poderosa família portuguesa radicada em Hong Kong, o que lhe valeu um processo disciplinar e a destituição do cargo que ocupava.De Cantão, em 1912, escreve a Ramiro

Mourão, a quem tinha dedicado “O Vei-ga”, dando-lhe conta de que estava a es-crever a peça de teatro «Pedro, o Cru», que terminaria no ano seguinte, mas que seria publicada apenas em 1918. Nessa carta prediz que quando publicasse a peça, os críticos agrupados nas comis-sões paroquiais da literatura nacional, num repentino memorial, glorificariam a “Castro” de António Ferreira unica-mente para o apodarem de imbecil…

peDro, o cruTomando como partida o ambiente mí-tico e proverbial da justiça rasa e cer-ce do rei Pedro I, “Pedro, o Cru” é uma peça sobre a realidade e a dor que dela imana, contra e com quem Pedro baila, dias e noites afins e sem fins, galgando os montados de aldeia em aldeia, fa-zendo ribombar os seus gritos festivos e gargalhadas feéricas, talvez medonhas, indiferente ao séquito que atrás de si se arrasta, rastejando, derreado, esfomea-do, incrédulo e estupefacto, enquanto o rei espera a hora, o momento sacro de inverter a história, de reverter o destino e de refazer a realidade conforme a sua vontade decisória e justicialista, expres-sa na dimensão do seu ser que é a da sua paixão, da sua tragédia e da sua sede de justiça que é também sede de sangue.Jurou ao pai contra quem tinha com-batido, no acordo de paz, perdoar aos matadores, mas não perjurará porque a sua fé é no amor e na justiça e só perju-ra o que jura em nome do que acredita e não cumpre. Perjuraria talvez se não cumprisse o amor na justiça…Capturados os matadores, com a ha-bilidade das grandes determinações, logra extorquir-lhes e fazê-los vomitar em cena os pormenores das pretensas razões de Estado que os levaram ao cri-me, pouco mais do que o combate entre

grupos ou partidos rivais na corte, todos eles arvorando-se nas mais ponderosas causas. Os irmãos de Inês, os galegos Castros, conspiravam e constituíam-se em partido, influenciavam perigosa-mente Pedro, era preciso salvar o reino, não havia outra solução; malgrado as reticências, depois de muito insistirem, conseguiram convencer o rei e foram eles próprios a ensanguentar as suas espadas com a morte de Inês e de to-dos os seus filhos, numa manhã em que Pedro tinha partido para uma montaria. Fizeram-no pelo reino. Só porque Inês está morta é que Pedro pode ser bom rei, atira-lhe Pêro Coelho. E remata: - “Vós tendes a saudade e o reino a vida. É convosco e com Deus. Não é comigo”.Segue-se o festim justicialista. Estão lá, como em toda a peça, os ingredientes do ultra-romantismo, do decadentismo, e naturalmente do simbolismo, mas a peça é muito mais do que isso, a dimen-são da dor de Pedro e a forma como a projecta, na encenação, uma autêntica gastronomia orgiástica da justiça, em um cerimonial antropofágico de inima-ginável dinâmica trágica, a ultrapassar qualquer rotulagem. A orgia sanguino-lenta é tão ilimitada como a extensão infinda da dor e do grito do amador in-conformado com a história, com a rea-lidade feita, com a ideia de uma morte contra a vida, ou vice verso! A partir daqui, na encenação, sobretu-do se na linha de Artaud, que só apa-receria umas décadas depois empurrado por Dada e pelos sobre-realistas, tudo é possível! A explosão cénica da cruelda-de catártica, expressão, todavia, do mais puro lirismo, é tal, que o enredo se arre-pia e murcha. É o homem contra o des-tino, é o homem mudando o homem, é a vida penetrando na morte e tomando-a para si, tornando-a uma continuidade,

A RAINhA MORTA

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não em outro mundo, mas neste mesmo onde tudo se realiza fisicamente, sensi-tivamente, carnalmente. Uma continui-dade física. Um amor também carnal… Simbólico? Sim, mas o que não é sim-bólico, ou mesmo apenas só simbólico? Não sabemos que interesse terá, procu-rar na dramaturgia mundial, clássicos ou modernos, um alinhamento deste Pri-meiro Ato, mas para quem se comprazer nesse tipo de classificações, será árdua a etiquetagem sem ablações redutoras…Patrício referiria várias vezes que a mor-te fazia parte da vida, mais, que a morte era o sal da vida como põe o heteróni-mo C.F. a dizer…É neste sentido que, diremos que, com o Segundo Ato, não se saberá determi-nar se a peça se desenrola sobre o lajedo da conimbricense Santa Clara ou se na escuridão das suas catacumbas a que se acederá pelo fundo das sepulturas, como a de Inês que Pedro escava com a suas próprias mãos, até tocar o corpo com sete anos de depósito e a trazer de novo para a vida, ressuscitando-a, na presença dos bispos da região, da madre superio-ra, das freiras, do séquito, dos filhos. Vida e morte misturam-se em uma só, porque o amor e a saudade fazem Pedro partilhar a sua vida com a morte. Não é lá a actual residência de Inês? E trazê--la, de lá para cá, não será o mesmo do que ser ele a caminhar para a morte? E que tem? Quem é quem para estabelecer uma fronteira, para retirar a amada ao amador através de uma linha meramen-te circunstancial, histórica e, em todo o caso, inaceitável para quem autentica-mente ama?Porque a sua vida, partilha-a com a mor-te. Nenhum rei ousou a violação da mor-te, porque nenhum rei amou como ele. O amor e a morte, a morte integrante da vida, apenas um outro continente da vida que, pelo amor, se consegue alcan-dorar…Inicia-se o saimento para Alcobaça – nada de toque a finados! , nada de car-pideiras!, o que se celebra é uma res-surreição! – num percurso ladeado de círios que ocupa todo o Terceiro Ato. Se o drama de Patrício ultrapassa por todos os lados o simbolismo, já quan-to ao saudosismo, ao invés, verifica-se um aprofundamento, um enraizamento e um alargamento, porque essas são as autênticas águas do nascimento literário do autor – as da “Renascença portugue-sa”, foi nelas que aprendeu a nadar, a na-vegar, a vogar, senão mesmo a voar nos mares das noites mais tempestuosas com as oceânides e as águias marinhas…Sim, que também este Pedro saudoso tem, na mão de Patrício, na determina-ção de superar a própria condição de homem, um sabor a übermensch, pro-fundamente nietzschiano…“Saudade, saudade/ és todo o sentir./ eu tenho saudades/ do bem que há-de vir”.Saudade do futuro…Para Pedro, a caminho de Alcobaça, aquela “é a noite em que a saudade se faz carne”, e o céu a chorar “é a saudade que

voa sobre o mundo”. Como se a saudade que une o passado com o futuro, tam-bém unisse a morte com a vida, Tana-tos com Eros, como notou Bittencourt1, glosando a equação clássica de George Bataille2, entre a morte e o erotismo. “O meu reino é o reino da saudade”, pro-clama, enquanto o povo nota que se “abrem as covas” e “anda a morte no ar correndo o reino” o que só pode ser “um milagre de Deus”. “Eu sabia que quando Inês se erguesse, seria assim a noite. Não to disse?... Na noite das nossas bodas, das supremas, eu sabia que o amor e a morte se beijariam como dois irmãos. É esta, é esta a minha noite. A noite em que a saudade se fez carne!...” “Noite de Inês e de Pedro! Oh minha noite!”Sim, sublinha com acuidade Bittencourt, seguindo Bataille, “a morte numa conflu-ência erótica com a vida”, a tensão entre a vida e a morte a surgirem como “uni-dade entre o sensual e o espiritual”3.Em Alcobaça, para o Quarto e derradei-ro Ato, o estupor é intenso mas contido! Rei é rei e este particularmente temível! A estátua de pedra de Inês que é de oiro, com a coroa que a faz rainha, envolta no baldaquino que a faz santa, porque Pedro a canonizou na sua dor! Chega o saimento, frades entoam o De Profundis, Pedro impõe-lhes o toque a noivado nas suas bodas. A coroação será no dia seguinte. Pedro pode ficar a sós com Inês como ficava há sete anos atrás… Patrício retoma o elemento iniciático já inserido no epílogo de “O Fim”. Profere Pedro: “O nosso amor, amor, ainda era pouco, só abraçado à morte ele inicia; só a Saudade revela, sabe a Deus”. “Mil vezes sofri na minha carne a tua morte”, “deixei de ver o sol”, “a brancura de flor da tua pele era luz da minha solidão”, mas um dia apare-ceu ““Alguém” que era da morte e era da vida”, “E eu vi a Saudade ao pé de mim”. “ Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês. Por isso sabes toda a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade…”Como Pascoaes viria a afirmar, a propó-sito da peça, logo a seguir à sua publica-ção, em conferência proferida na Cata-lunha, “O homem só vê nitidamente o que perdeu; só possui em absoluto o que perdeu. E por isso, as trevas da morte re-velam melhor a pessoa amada que todo o sol que a iluminou durante a vida! A morte roubou-lhe o que é efémero e transitório, a aparência, mas a Sauda-de revelou-lhe a eterna aparição, a sua pessoa integral e essencial. A sombra da Morte que nos esconde, esvai-se ante a Saudade que nos mostra”4.

1 Bittencourt, Roberto Nunes – Escrita de Eros e Tanatos no teatro de António Patrício. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2011.2 Bataille, George – L’ Erotisme. Paris: Minuit. 1957.3 Idem, ibidem.4 Pascoaes, Teixeira – Os Poetas lusíadas. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987. P. 75.

Eu sabia quE

quando inês sE

ErguEssE, sEria

assim a noitE. não

to dissE?... na noitE

das nossas bodas,

das suprEmas,

Eu sabia quE o

amor E a mortE

sE bEijariam como

dois irmãos. É Esta,

É Esta a minha

noitE. a noitE Em

quE a saudadE sE

fEz carnE!...” “noitE

dE inês E dE pEdro!

oh minha noitE!”

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a história de inês e de Pedro

foi levada aos Palcos em

centenas de óPeras durante

os séculos Xviii, XiX, XX e

já XXi. entre nós, o cinema,

logo em 1910, e bailado, em

1916, com almada negreiros.

em 1942, henry monterlant

recriou o tema em frança.

em 1996, james mac millan

estreou uma Peça sobre

o tema no festival de

edimburgo; em 2001, no

Porto, a comPanhia

escocesa de óPera trouXe a

Peça de mac millan; e em 2003,

em coimbra, foi recreada

a versão oitocentista de

giusePPe Persiani.

Mestre António em breve começaria a talhar o túmulo para o emparceirar para sempre na mesma vida que a de Inês, na-quela igreja a quem alguém que mirava chamou o “coração de Deus”.A tragédia de Pedro e Inês teve profunda repercussão no imaginário popular por-tuguês e na literatura portuguesa, par-ticularmente com o tratamento que lhe deu Camões, em quatro estrofes de os “Lusíadas”, com a inserção no “Cancio-neiro geral” de Garcia de Resende e com a nossa única tragédia quinhentista que foi “A Castro” de António Ferreira.“A Castro”, prontamente traduzida para o inglês, ainda no Século XVI, além de ser a nossa primeira tragédia, foi uma das primeiras a nível do renascentismo euro-peu, supomos poder afirmar mesmo que a segunda, a seguir à “Laura”de Petrarca. Como observou Maria Leonor de Sousa, que estudou o impacte do fenómeno ine-siano nos tempos e nos espaços, “todas as épocas nela encontraram interesse, cada inovação fez a sua escola”.5

Traduzida em inúmeras línguas desde há seculos, a história de Pedro e de Inês foi e é também tema de grande repercussão mundial, contada e recontada pelos mais diversos ângulos e instrumentos sendo, como notou a citada autora, “um caso in-vulgar de interpenetração da crónica e da literatura” acontecendo que, ao tratá-la, “os historiadores mais objectivos tornam-se poetas”6, o que, incidindo sobre a versão de Patrício, apetece nominar de fenómeno de transubstanciação na Saudade, na sen-da da fusão do sensual com o espiritual, do carnal com o metafísico, que ocorre nesta feérica investida introspectiva. Metafísico sim porque todo o sentimento saudoso implica um pensamento metafí-sico, muito mais quando ele se consubs-tancia na fusão poética do físico e do mental, abolindo qualquer demarcação entre uma vida corporal e uma vida espi-ritual, sendo que a primeira vai vivificar em a segunda, tomá-la a tal ponto de a fazer como que se fosse a primeira, eis a dialética impregnante desta conquista de imortalidade com o homem, através do milagre português da saudade, a re-juntar finalmente o Alfa e o Ómega dos semitas, seguindo o Princípio e o Fim de Heráclito…O maior impacte europeu da história de Inês e de Pedro revelou-se, no entanto, no facto de ser levada aos palcos em cen-tenas de óperas, em particular na Itália, mas um pouco por todo o mundo, du-rante os séculos XVIII, XIX, XX e já XXI. Compreende-se intuitivamente a apetên-cia do tema pelo canto e pela ópera, tan-to em toda a Europa como em Portugal, onde ocorreram numerosos espectáculos com o tema, que também foi vertido en-tre nós, para o cinema, logo em 1910 e, para o bailado, em 1916, com Almada Negreiros.

5 Sousa, Maria Leonor Machado de - Inês de Castro um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70. 1987.6 Idem, ibidem.

Em 1942, Henry Monterlant recriou o tema em França com grande repercussão sob o título de “La Reine morte”.Mais recentemente, em 1996, James Mac Millan estreou uma peça sobre o tema no Festival de Edimburgo; em 2001, no Porto, a Companhia Escocesa de Ópera trouxe ao Coliseu a peça de James Mac Millan; e em 2003, em Coimbra, foi re-creada a versão oitocentista de Giuseppe Persiani.

Poesia e dramaturgiaQuanto à peça de Patrício, bastante dis-tante, em todos os aspectos, da “Castro” de Ferreira, ou não fosse de um tempo completamente diferente, sabemos que o seu texto foi a base do libreto da ópera musicada por Ruy Coelho em 1927, no São Carlos, apresentada “segundo a peça de António Ferreira adaptada pelo poeta António Patrício”, e de novo levada ao palco, em termos semelhantes, em 1953. Nada de estranhar ou que, pelo menos, fizesse muito estranhar José Régio para quem a peça é “verbalmente espetacu-lar”, sendo que “é na oratória, no canto, na pura declamação” que a palavra ga-nha “um prestígio, um valor de comuni-cabilidade, uma acção (sim, uma acção, porque nem só no sentido folhetinesco pode ser tomada esta palavra!)” tendo “o poder de reduzir os auditores a es-pectadores”, chamando à palavra com esse poder espetacular ou teatral”7. As-sim se faz o lugar da poesia no teatro, bem como assim se expressa o poeta dramaturgo!Nada como o ambiente finissecular do decadentismo simbolista, para permitir esse acesso do poeta à declamação do diálogo dramático. E todavia, a poesia em cena, sobretudo das falas de Pedro, é totalmente diferente das poesias de Patrício, de métrica clássica e rigorosas rimas… O que há de comum é o ritmo impresso nas falas retóricas (mais espe-cificamente do que a simples prosa po-ética), ora no montante do paroxismo apocalíptico de quem conseguiu virar radicalmente o mundo e o homem na união carnal da vida com a morte, ora na proclamação da bem aventurança da chegada a Portugal, pátria de Orfeu, rei-no da Saudade, onde todo o passado está no presente e delineia o futuro, da rainha finalmente ressurecta, para voltar a fundir a sua pele de cor de luar com a de Pedro nas noites ininterruptas da osmose da vida com a morte.Nada de espantar quando o autor é um poeta, dir-se-ia, porque um poeta sê--lo-á, marcantemente, em toda a acti-vidade literária que, mutatis mutandis, só será o que é, porque tem a lavra de um poeta. Só que não é verdade. Se aceitamos que se diga que Patrício é fundamentalmente um Poeta - expres-são com um sentido genérico lato - e se, como veremos, a sua obra drama-

7 Régio, José - Sobre o Teatro de António Patrício. Estrada Larga, 2. Orientação e Organização de Costa Barreto. Porto: Porto Editora, s/d.

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túrgica é a de um poeta que se põe em cena a soprar as falas a cada um dos personagens, não se pode dizer que os textos de “Serão Inquieto” sejam o que são, porque são da autoria de um po-eta. São-no porque são da autoria de um escritor, no caso, na condição de contista. No sentido formal, estrita-mente literário, nada há de poético em “Serão inquieto”. Muito mais haverá de filosófico! Já no sentido geral, alarga-do, simbólico do que coloca a estesia acima de tudo na sua relação com o mundo e consigo mesmo, então toda a obra literária e toda a vida de António Pires Patrício é marcado pelo ferrete, hoje diremos ADN, de Poeta oceâni-co, português do Porto!O mesmo, aliás, se aplica a Régio, em relação ao qual, alguns amigos especial-mente aplicados na solicitude reveren-cial, conspiraram no sentido de o ajudar a “não o deixar desviar-se da poesia”, o lugar onde ele se realizaria tão comple-tamente que seria irrepartível com qual-quer outra forma de expressão onde vies-se a perder tempo e talento… Mas não só Régio, além da poesia, também escreveu teatro – com pouco de comum com Pa-trício, de resto, embora fosse seu devota-do admirador – como foi um dos maiores romancistas portugueses do século do Século XX, nomeadamente com os cin-co volumes de “A Velha casa”, que não foram sete, oito, nove ou dez, porque quem se lembra de acabar abruptamente com as coisas belas que os homens cons-troem ou não tem qualquer sensibilidade ou se compraz em impedir a humanidade de deter e de fruir os resultados comple-tos das obras do génio. Ora Régio para escrever “A Velha casa” precisava tanto de ser poeta, ou seja de ter escrito os “Poemas de Deus e do Diabo” como Ca-milo para escrever “A Doida do Candal” ou Aquilino “A Casa grande de Romari-gães”. Não precisava! Mas, dir-se-á, mes-mo assim, Régio era fundamentalmente um Poeta! Aceitaríamos mais facilmente a asserção com Patrício, sobretudo pelo seu teatro, do que com Régio. Régio só não é também um poeta, além de roman-cista e de dramaturgo (para não falarmos do ensaísta), porque dois ou três rótulos à volta do mesmo frasco onde se encatra-fiam as pessoas é já complexidade a mais para a avidez de arrumação da mediania dominante e consumidora, bem como para as sucessivas escolásticas que vão preenchendo as instituições educativas com sabência acrítica.A estreia em palco de teatro da tragédia de Patrício, “Pedro, o Cru”, só viria a ocorrer em 1971, com uma encenação de Jorge Listopad, na Casa da Comé-dia, que veio a ser transmitida pela RTP em 1974. Anos volvidos, em 1982, Carlos Avilez encenou a peça que levou à cena no Te-atro Nacional D. Maria II, para cujo ca-tálogo contou com um texto de António Braz Teixeira intitulado “O Mito de Inês de Castro no teatro português”.

(continua)

1. A malta às vezes espanta-se. A malta às vezes indigna-se. A malta às vezes.

2. A malta é às vezes. De outras vezes a malta não é. De outras vezes.

3. De outras vezes é fezes. De outras vezes não fazes. De outras vezes as fezes fedem.

4. Nem  tudo  o que fede  é  peixe  podre. Um peixe  que fede  é  um peixe reprodutor. Um peixe que não fede é um católico old fashion. …

5. A Maria Teresa Horta papa prémios. Agora foi  o D. Dinis. A Maria Teresa Horta não papa coelho. A Maria Teresa Horta só papa massas.

6. O Herberto  Helder  não  papou  o prémio  Pessoa. O Herberto  Hel-der não papou a massa. Descubra as sete diferenças. Tem o resto da vidinha.

7. “A morte saiu  à rua  num dia assim, naquele  lugar  sem nome para qualquer fim.” Qualquer semelhança é pura coincidência.

8. Desgosto quem escorraça o escritor que não leu nunca. Desgosto quem adula  o escritor  que não  leu nunca. Desgosto  quem não  leu nunca. Desgosto quem finge.

9. Eles  andem  por aí. Ai, eles  andem  por aí. Eles  são  a praga  viral das mentes mentecaptas.

10. O Papa sorri. O Papa não sorri. O pecador quer bula. O Tozé cabula. Tudo  tem o seu  preço. O do sorriso  papal ronda  um milhão  de euros (directamente depositados no Banco Ambrosiano Veneto).11. O Poder é venal. Se lhe der nas veias, vale, se não, azevedo. Belmiro. & quejandos. Trabalhadores por conta de outrem. Nós. Fedidos.

12. M. Relvas  & R. Rodrigues  formaram  uma sociedade  anónima  de irresponsabilidade ilimitada. Não há mais alvarás disponíveis.

13. O Jornal de Letras Artes e Ideias queria passar a chamar-se Jornal de Letras Artes e Ideias. O Tribunal Constitucional declarou inconstitucional a pretensão, por uma questão de equidade.

14. Ou há moral ou comem os patrões. Ou há patrões a mais. Ou a menos. A moral comem-na eles. Sempre. E o resto.

15. A Leya quer comer a Porto Editora. A Porto Editora quer comer a Leya. Que se casem (ou assim). Esperamos que o enlace não produza descendência.

16. Rui  Nunes, José Amaro  Dionísio, João Barrento, Jerónimo  Pizarro, Manuel Gusmão: reforços de Inverno do Benfica.

17. «É preciso não confundir o género humano com o Manuel Germano.»

18. Um cão celeste mija contra que árvores?

19. O aforismo  é  a qualidade  de quem possui  certificados  de aforro: hipótese 1; O aforismo é a qualidade de quem vem de fora: hipótese 2.

20. Se perguntarem por mim não estou.Carlo

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Os animais fazem falta e não apenas em Macau. Aqui nota-se mais a ausência de-les. Olhamos em redor e encontramo-nos rodeados de gente e mais gente, de todos os tamanhos, cores e feitios, bem como de grandes arranhas que desafiam os céus. Os animais onde estão? Foram excluídos, por-que não há espaço para eles. No entanto, são fundamentais para a nossa existência e sobrevivência. Diz-se que quando as abe-lhas desaparecerem, num cenário que os insecticidas aproximam, estaremos a um pulinho de pardal do fim do nosso mundo.A nossa civilização começou pela mistu-ra entre gente e bichos. Os chineses, por exemplo, são os Descendentes do Dragão, mas o primeiro titã, que deu origem à raça humana, nasceu de um grande ovo, como os pássaros, que pouco têm a ver com a gripe das aves, aviadas em humanas acções plenas de consequências. Os animais, antes de surgirem as máquinas, ajudavam-nos muito, por exemplo os bois, os búfalos e os cavalos na agricultura. Em sociedades agrícolas, como a chinesa era,

Búfalo ou Boi?seria impossível viver sem eles. Além dis-so, como esquecer o papel desempenhado pelos cavalos nas artes da guerra e do co-mércio?Tenho saudades desses tempos. Os bois e os búfalos por tradição na China são muito respeitados devido à sua imensa capacidade de trabalho. Por isso quem tra-balha como uma besta, faz no País do Meio de boi e de cavalo (zuo niu zuo ma 做牛做馬). Os bois aguentam tudo e mais o que vier, são formidáveis. Assim há uma expressão na gíria chinesa equivalente ao nosso: é bestial! Em chinês: é muito boi (hen niu 很牛)!Quem não se recorda dos cowboys america-nos e dos grandes filmes que inspiraram? A quem os chineses, tal como os portugue-ses, chamam vaqueiros (niuzai 牛仔), mas os chineses vão até às últimas consequências e às calças de ganga chamam as calças do vaqueiro (niuzaiku).O boi é uma das maiores bestas de carga de que há memória, a sua carga é tão imensa

que se serve de ponto de comparação para bêbados. Estes bebem como bois (niu yin 牛飲). E, na visão dos chineses, não são muito dotados para as artes, especialmente para as musicais. É bem conhecida a história proverbial Tocar piano para um boi (duiniu--tanqin 對牛彈琴). Quem se entretiver a dar música a bois, escolheu a audiência er-rada, porque está a deitar pérolas a porcos.Enfim não há respeito pelos bois! – Diria S. Francisco, ressuscitando depois de es-cutar a história proverbial. Num aparte, oxalá o novo Papa faça jus ao nome que transporta. Os chineses fazem justiça aos grandes olhos do boi, quando emprestam às janelas o seu nome (niu yan chuang 牛眼窗), ou quando observam, muito certeiramente, a sua teimosia. O nosso teimoso como um burro tem o corresponde chinês de teimoso como um boi. Pode dizer-se, acrescento, que a teimosia, vista do ângulo da persistência, conduziu a uma bela história de amor. Não fosse o vaqueiro tão persistente e hoje não havia

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Ecos naturalistas AnA CristinA Alves*

Búfalo ou Boi?duas estrelas no firmamento, mas apenas uma. Conhecem a história? Passa-se entre um vaqueiro e uma tecedeira (niulang yu zhinü 牛郎與織女), tendo o boi do vaqueiro desempenhado um papel fulcral nos acontecimentos. Ele permitiu ao rapaz voar para o Céu em busca da amada, a melhor tecedeira que alguma vez existiu no firmamento. Ela era tão habilidosa que o palácio imperial celestial não pôde abrir mão dos seus serviços, por isso teve de re-gressar à esfera divina. Como, entretanto, casara na terra com um simples vaqueiro, foi o boi, também ele divino, quem sacri-ficou literalmente a pele, para que o rapaz pudesse voar em busca da sua amada. Actu-almente, vivem todos no Céu: ele é a Estre-la Altair, aquela que voa, na língua árabe, sendo em Chinês a Estrela do Boi (Nilang Xing牛郎星). Ela é a Estrela Vega, a mais brilhante da constelação de Lira, ou como lhe chamam os Descendentes do Dragão, a Estrela da Tecedeira (Zhinü Xing 織女星 ). No zodíaco Chinês, o boi e o búfalo são

nomes intermutáveis. Assim, uns nasceram sob o signo do boi (niu 牛), outros consi-deram-se debaixo da alçada o búfalo (shui niu 水牛). Do ponto de vista filosófico e literário, há vantagem em ser-se do signo búfalo, por um lado, sofre-se menos, não há histórias de amor complicadas, e a carga, que este animal de trabalho não consegue evitar, parece mais leve, quando encarada sob o prisma filosófico. O búfalo é associado à Primavera, ao início de um novo tempo e a Laozi (老子), o fundador da nova filosofia taoísta.O grande filósofo, que, de acordo com o historial Sima Qian (司馬遷), viveu entre os séculos VII e VI a. C no Reino de Chu (楚國), foi guarda-livros dos Arquivos His-tóricos Reais. Deveras incomodado com a corrupção que grassava à época, resolveu emigrar. Serviu-lhe de transporte rumo à fronteira um búfalo. Aí foi encorajado pelo guarda da fronteira, Yin Xi (尹喜), a regis-tar o seu pensamento filosófico. E assim nasceu o Clássico do Caminho e da Virtude (

《道德經》), obra fundamental na filoso-fia chinesa.O facto de um pedaço do caminho terreno de Laozi ter sido percorrido com o auxí-lio de um búfalo, pode ter contribuído nas mentes mais filosóficas para o bom nome deste animal, que nas interpretações menos humanas e mais naturalistas se encontra fir-memente associado à Primavera, a melhor de todas as estações para os chineses, e não só, também para todos os espíritos amoro-sos e ecológicos.O búfalo é então uma besta de carga com algum encanto, pois pode contribuir para rasgar caminhos e desenhar saídas. Por último, aceitando que não é permitido à condição humana escapar ao trabalho, há uma certa margem de escolha, entre o boi e o búfalo.

* A autora lecciona nos Mestrados de Tradução e de Língua e Cultura do Departamento de Português da Universidade de Macau

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d e p r o f u n d i s

Pedro Lystmanna revolta do emir

A quem não incomodar o modo promís-cuo como um lounge se abre ao resto de um hotel, esta é uma escolha sensata para quem se quiser abandonar a uma escolha certa de uma piccola abundância de alco-óis e comidas. A esta permanência fal-tarão apenas algumas das inconfessáveis promessas que um bar, menos exposto ao exterior, tradicionalmente acumula. A um lounge faltará o perigo e a sedução noctur-na, certamente a intimidade. Quem é que já ouviu falar de uma briga de lounge?Faltará também um elemento essencial à frequência de um bar ao fim de tarde que é uma impertinência e que pode levar es-tas linhas para um lugar completamente diferente - o balcão. Poder-se-á este ar-tigo perder por uma consideração sobre balcões? Seria difícil, dada a escassez, em Macau, de bares em que pudemos usufruir deles com entusiasmo. Noutro tempo se falará deste lugar essencial se, entretanto, se não se interpuser uma pro-pensão vegetal para a divagação.Só há, que me lembre, 3 lounges de hotel decentes em Macau, o do Hotel Manda-rin, o do Banyan Tree e o do Hotel Oku-ra. Este último permite algo que os outros não. Este é o único que tem um balcão. Não se tratando nenhum deles do lounge do Hotel Hi, em Nice, em todos eles se pode praticar com êxito o relaxe físico, condição que a própria palavra amável e preguiçosamente sugere.Muitas vezes este relaxe permite-se não em hotéis mas em lugares onde se prestam serviços públicos, em empresas privadas, aeroportos, bancos, museus,

espaços comerciais ou edifícios adminis-trativos (o Reichtag, em Berlim). O prin-cípio é o mesmo, a indução de conforto e a oferta, por vezes muito limitada, de comes e bebes.Os lounges são próprios para sentar e passar umas horas incógnito a ler e a be-bericar. Além disso, a probabilidade de ser abordado por um chato, num lounge, é muito menor do que num bar porque sobre aquele se não estendem algumas das liberdades mais incomodativas que se praticam neste.É Sábado. Tenho comigo o melhor jor-nal de fim de semana do mundo e não revelo onde resolvo dedicar à dissolução esta tarde de Saturno, mas é um lounge em tons terra onde se oferecem 4 escolhas de vinho branco a copo.Num número recente deste mesmo jornal figura um artigo que, não contendo qual-quer referência a Macau, pode ser lido enquanto catálogo das atrocidades que subjazem à construção que no território se tem praticado (sem que haja qualquer excepção que ultrapasse esta regra). Decidiu o governo de Singapura abrir um casino. Contíguo a esta estrutura de jogo decidiu criar-se um complexo vegetal de tais dimensões que me não atrevo sequer a nomeá-lo.Robin Lane Fox está impressionado. E se Robin Lane Fox está impressionado, eu estou impressionadíssimo. Lane Fox, FRSL, é um ilustrado etoniano e oxonia-no com extensa obra publicada nas áre-as da história da antiguidade, do grego, da literatura latina e da história primiti-

va do islão. Tem-se revelado, como este vosso dedicado serviçal, um inimigo fe-roz de gnomos de jardim. É o articulista de jardinagem do Financial Times, e os certamente fidelíssimos leitores da sua contribuição semanal sabem que nada abaixo da excelência lhe suscitaria os elogios que resolveu dispensar ao que em Singapura se está a fazer em torno de um hotel/casino. Já em Fevereiro se abandonara a um en-cómio sentido ao Jardim Botânico de Singapura num artigo intitulado The Kew of the east. Os que têm o privilégio de por Kew Gardens ter passeado, ou os que lembram com languidez o conto de Vir-ginia Woolf, sabem que a comparação seria impraticável se a magnificência não fosse equivalente. É o jardim mais visi-tado do mundo. Atrai mais de 4 milhões de visitantes por ano. É gratuito e é uma volúpia tropical.Agora há um casino. É o Marina Bay San-ds, e o governo decidiu investir 1 bilião de dólares de Singapura (sim, S$1bn, mais de 6 biliões de patacas) numa lou-cura vegetal quase operática que deve parte da sua existência a esse casino. Em Janeiro de 2006 foi lançado concurso para o seu desenho e construção. Foram apreciados, por um júri internacional e idóneo, mais de 70 projectos, oriundos de 24 países. Chama-se a este exercício ter ousadia e visão – contribuir para a qualidade de vida dos habitantes da cidade enquanto se prossegue uma verdadeira ideia de fu-turo com implicações globais: Singapura

será um exemplo para o mundo, a primei-ra grande metrópole jardim dos trópicos (pobre Hong Kong), um projecto susten-tado e que contará entre os seus lucros com lucros igualmente económicos, um locus amoenus delicioso no interior de uma cidade moderna e de vida intensíssima a todos os níveis. É uma visão com algu-ma antiguidade e não se esgotará neste projecto.Um dos seus capítulos consiste num con-junto de “super árvores”, enormes estru-turas de betão e metal que em breve esta-rão cobertas de trepadeiras, bromeliáceas e flores. A ousadia parte da imaginação delirante de Andrew Grant. Que este te-nha ganho inspiração para esta obra ao ver a animação japonesa Princess Mononoke diz tudo sobre o universo fantástico que em Singapura se pretende criar. Duas gi-gantescas estruturas, duas super-estufas, protegem dois universos vegetais dife-rentes: a Cloud Forest reproduz um qua-dro de perpétuas neblinas de montanha, a Flower Dome uma cobertura vegetal de tipo mediterrânico. Os Heritage Gardens oferecem uma história vegetal e humana de Singapura. Há jardins de inspiração malaia, chinesa, indiana e colonial onde se celebra a diversidade e a riqueza da sua herança. E há muito mais. Não tenho dú-vidas, mesmo a meio do quarto Chablis, que a partir daqui esta cidade se consti-tuirá cada vez mais como um exemplo triunfal. Que funcione como contrapon-to ao projecto cultural que ocupará, em Hong Kong, espaço generoso em Ko-wloon.

O Vergel e O canteirO

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t e r c e i r o o u v i d o

Keiji Haino, Jim O’Rourke e Oren Ambar-chi estão de regresso com um quarto disco do que se apresenta como “minimalismo sagrado e rock dos homens das cavernas”, uma tradução bastante livre da música experimental que aqui se explora de forma mais ou menos intrépida.

“Now While It’s Still Warm Let Us Pour In All The Mystery” consiste em seis temas gra-vados na actuação anual do trio (ritual que se cumpre há quatro anos) no “club” Super De-luxe, em Tóquio, poiso de eleição da trupe “avant-garde” da capital japonesa. Num dos temas - qual, não descortino -, a Wire diz que se junta em palco o mestre do improviso Eiko Ishibashi para “tocar copos de vinho” e, no que toca a excentricidades, estamos conversados, porque os três quartos de hora do disco pas-sam mornos, ligeiros e sem bizarrias de sobres-saltar. Não se desse o caso de sabermos quem são os protagonistas, arriscar-se-ia apodar de “normal” este disco com lançamento oficial agendado para Abril. Dando-se o caso de o estimado leitor ignorar as três identidades, se-gue-se uma breve e infinitamente incompleta síntese.

Guitarrista de excepção, Keiji Haino é uma das presenças mais constantes e importantes das últimas três décadas de música experimen-tal e improvisada no Japão. No All Music Gui-de, dizem que descrever o que o japonês faz à guitarra como “tocar” é “terrivelmente insu-ficiente”.

Sobretudo graças ao trabalho com os Sonic Youth e os Wilco, Jim O’Rourke é o nome mais badalado do trio. Actualmente a residir no Ja-pão, o norte-americano é a eminência parda global do universo da música alternativa, o “elo perdido” que convive naturalmente com as faunas de todos os extremos (do jazz ao rock, da electrónica ao minimalismo clássico), ten-do assinado, em nome próprio, uma mão cheia de discos que lhe reservaram lugar no panteão dos melhores escritores de canções.

O australiano Oren Ambarchi, virtuoso da bateria e da guitarra, é um convicto divulgador da música experimental no país natal através do festival “What is Music?”, ao mesmo tem-po que se entretém a gravar para as mais im-portantes editoras do universo vanguardista. Descendente de judeus sefarditas do Iraque, é um assíduo colaborador da Tzadik, a editora de John Zorn. Entre a laboriosa actividade que leva a cabo conta-se, ainda, a gestão da Black Truffle, a editora que lança o disco em que vol-ta a trabalhar com Keiji Haino e Jim O’Rourke.

Disco de diferentes sensibilidades estéticas, “Now While It’s Still Warm...” arranca em to-

próximo oriente Hugo Pinto

ada morna, com os três músicos em regime de contenção. Ao terceiro tema, “Only the Winding ‘Why’ Expresses Anything Clear-ly”, o contador da electricidade dispara. O seguinte, “A New Radiance Springing Forth from Inside the Light”, depois de furiosas mas controladas descargas eléctricas, estabelece um “groove” pegajoso que evoca a espécie de funk desconjuntado dos Can, lembrança acentuada pela voz de Haino, entre a cle-mência e o colapso. O registo vocal do japo-nês, histriónico e dado a múltiplas inflexões, confunde-se amiúde com os osciladores que O’Rourke vai manipulando na sombra, mas, quando se faz ouvir, serve sempre de ponto de referência e encantamento.

Ao longo do disco, em vez de, como nou-tras músicas, nos fixarmos no virtuosismo dos instrumentistas ou nas redondilhas complexas das harmonias, somos levados antes a pres-

tar atenção a detalhes, tons, sons, efeitos e improvisos que a cada momento nos prome-tem algo que nunca tínhamos ouvido. Mas, apesar do entrosamento do trio e de um pu-nhado de bons momentos, “Now While It’s Still Warm...” nunca apaga verdadeiramente a sensação de estarmos perante um trabalho em que a insipidez ocasional se sobrepõe ao resto, nem de que, em conjunto ou individu-almente, Keiji Haino, Jim O’Rourke e Oren Ambarchi podem fazer (porque já fizeram) mais e melhor. Venha a próxima noite Super Deluxe. Menos morna, se faz favor, e mais misteriosa.

“Now While It’s Still Warm Let Us PourIn All The Mystery”Black Truffle, 2013Keiji Haino/Jim O’Rourke/Oren Ambarchi

Mistériosde uMa noite Morna

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metrópolis

Nos dias 23 e 24 de Março, o público que lo-tou o Concert Hall do Centro Cultural de Hong Kong levantou-se dos seus lugares e transformou esta habitualmente composta sala do Festival de Artes de Hong Kong numa festa! Porque é com-pletamente impossível ficar indiferente a Goran Bregovic, à sua fabulosa Weddings and Funerals Orchestra e ao contagiante prazer que o músico tem em recordar às pessoas a alegria da vida e, mais especificamente, da música cigana. Bregovic abriu o serão com o tema “Lullaby” que foi crescendo e desenvolvendo-se à medida que os vários membros da orquestra se foram lenta-mente juntando a si em palco. O agrupamento é uma espécie de “gumbo” dos Balcãs, tendo como ingredientes um quarteto de cordas (violinos, viola e violoncelo), guitarra eléctrica, metais (trompetes, saxofone, clarinete, glockenspiel e trombones), um coro masculino de seis elemen-tos (3 tenores, 1 barítono e 1 baixo), percussão e goc e duas cantoras búlgaras, vestidas a rigor. Cada executante teve a oportunidade de mostrar não apenas um virtuosismo espantoso no seu instrumento mas também grande teatralidade e presença em palco. Bregovic usou com mestria o amplo palato de sons à sua disposição. O número de abertura permitiu a cada novo som apresentar--se individualmente e fazer-se ouvir, até atingir gradualmente um poderoso tutti. Outros temas focaram-se inteiramente em apenas uma peque-na componente, como o quarteto de cordas. A variedade parecia interminável à medida que Bre-govic foi mostrando diferentes combinações de timbre e textura, como em “In the Death Car”, “That man”, “Backseat of my car”, “Mesecina”, “Gas gas”, “Kalashnikov” e “Tango”, como se esti-véssemos a ouvir a banda sonora do mais alegre casamento balcã de todos os tempos. Os momentos mais memoráveis foram aqueles em que os vocalistas estiveram no centro do pal-co. O coro masculino cantou hinos ricos e poli-fónicos. A este coral associou-se frequentemente uma cantora solista, que cantou num tom pode-roso e natural que se elevava sobre os seus homó-logos. A capacidade de Bregovic se concentrar e desfrutar das possibilidades de cada parte do gru-po foi demonstrada várias vezes e todos tiveram o seu momento para brilhar. Do programa fizeram parte bastantes canções calmas e canções sobre a tristeza e a perda, que Bregovic descreve como a parte mais fúnebre do seu repertório, as quais proporcionaram um exce-lente contraste com o conjunto de canções ale-gres e se contaram entre as partes mais belas do espectáculo. Contudo, o programa reencontrou sempre o caminho para a música alegre e enérgi-ca de dança e o entusiasmo dos executantes pelo que estavam a tocar era tão contagiante que fez o público saltar das cadeiras e dançar várias vezes. As ovações de pé foram tantas que se tornaram impossíveis de contar e o público não deixou

Goran Bregovic e a Orquestra de Casamentos e Funerais sair do palco sem tocar nada mais nada menos que oito encores, que prolongaram este espantoso concerto bem para além das dez e meia da noite. Goran Bregovic e a Weddings and Funerals Orquestra tocaram maravilhosamente, cantaram magnificentemente e mostraram a um público convencional como se faz uma festa a sério! Há 25 anos, Goran Bregovic formava-se em Fi-losofia. Aos 62 anos, a sua figura elegante dá-lhe ainda um aspecto jovem, embora, diz, tenha sido salvo do triste destino de ensinar o Marxismo por se ter tornado famoso “literalmente numa sema-na”, como líder do maior grupo de rock jugosla-vo, Bijelo Dugme (Botão Branco). Embora não seja de ascendência cigana, Bregovic era já um entusiasta da música cigana de metais dos Balcãs, quando foi abordado por Emir Kusturica para escrever um tema para o seu filme Time of the Gypsies, de 1988. Bregovic viria a produzir para o realizador mais dois temas premiados e ainda uma série de álbuns de rock cigano de grande su-cesso, óperas pop, incluindo um Carmen cigana, oratórias, poemas cantados e mesmo jingles pu-blicitários. Embarcou também no que parece ser uma intermitente e interminável digressão mun-dial dos melhores festivais e salas de concertos do mundo. A actual digressão, que teve início no dia 8 de Março e da qual o concerto no HKAF fez parte, está teoricamente ligada ao lançamento do novo álbum de Bregovic, “Champagne for Gypsies”, um álbum repleto dos metais boémios que são imagem de marca da sua Weddings and Funerals Orchestra, toques do mais moderno pop cigano urbano manele, ritmos galopantes e um elenco rico de vocalistas, incluindo quatro membros do combo gitane francês de rumba Gypsy Kings, Eugene Hütz (dos Gogol Bordello) da Ucrânia, EUA e Brasil, Florin Salam da Roménia e Seli-na O’Leary, o espantoso novo talento irlandês. Com este álbum - em cujo texto surgem referên-cias à dívida da sociedade para com uma curiosa selecção de ciganos: Django Reinhardt, Madre Teresa, Elvis Presley, Ronnie Wood, Adam Ant, que terão todos, segundo Bregovic, ascendência cigana – o músico pretende recordar às pessoas o que a cultura cigana deu ao mundo, em reacção à grande pressão que os ciganos (Roma) têm vindo a sentir em toda a Europa. Como refere Bregovic na capa do disco, “os ciganos não são um proble-ma deste mundo; eles sempre foram um dos seus talentos. Com este disco, brindo ao seu talento, que inspirou compositores através dos séculos”. A digressão - que infelizmente deixou Macau de fora -, inclui ainda actuações em Adelaide, Mel-bourne, Brugges, Bruxelas, Istambul, Viena, Neu-chatel, etc. Planos para o futuro incluem mais uma ópera, uma versão para beber e dançar de Orfeo, enco-mendada por um festival italiano, embora devido ao caos político daquele país ninguém saiba se ainda haverá verbas…

t e r c e i r o o u v i d o

Goran Bregovic encerra 41º HKAF Festa à sérvia

Michel Reis

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metrópolis Tiago Quadros*

Esta Estrutura de betão armado e tijolo fica situada no Parque de Alta Tec-nologia de Pukou, em Nanjing. Trata-se do Centro de Pesquisa Animal de Nanjing, obra concluída em 2003, por Zhang Lei. O arquitecto chinês explica que a relação en-tre os pátios e as outras partes deste edifício “faz lembrar a organização espacial dos jar-dins tradicionais chineses”. Seis escadas lo-calizadas num corredor com a altura de dois pisos estabelecem as ligações entre as dife-rentes partes do complexo. As clarabóias estão dispostas de modo a permitir que os “investigadores se reúnam e comuniquem nos espaços públicos”. Ao descrever a sua filosofia de concepção, Zhang Lei refere que “a arquitectura é um processo associa-do a quase todos os aspectos da vida so-cial contemporânea. Todavia, pode ser tão abstracta como a delimitação espacial mais fundamental, confrontando-se com todos os problemas básicos que tem de solucio-nar em termos de capacidade de adaptação e ajudando-nos a estabelecer uma ordem visual específica neste mundo caótico. O princípio básico que deve nortear a con-cepção é a resolução de problemas com o modo de construir mais lógico e directo, dando resposta aos requisitos de adaptação com materiais e métodos de construção vulgares e tentando exibir a expressivida-de plástica dos materiais empregues. Esta poderia ser uma estratégia de trabalho apli-cada à construção maciça, decorrente do rápido desenvolvimento urbano na China, assim como uma forma de melhorar o con-trolo sobre o consumo de recursos huma-nos disponíveis”. O ritmo e a abrangência do desenvolvimen-to económico na China contemporânea, estimulam as melhores e as piores expres-sões arquitectónicas. A principal novidade e a mais apaziguadora também, é o apare-cimento de uma nova geração de autores. Embora este projecto não tenha nada em

O que está para ládO cOntempOrâneO?

comum com a marca imponente de muitos dos projectos de arquitectura actualmente em curso na China, faz referências subtis à tradição da fábrica. Entre interrupções e desvios, Zhang Lei evoca um passado dis-tante ao mesmo tempo que procura intuir o presente. Falo de uma tradição interiorizada que se revela na certeza de uma pacificação face à experiência vivida. O projecto para o Centro de Pesquisa Animal de Nanjing decorre de uma implantação rigorosa. Mas essa é a origem matricial que se desvanece no lugar de projecto, na sua forma dese-

nhada. A obra é (sempre) mais. É o recorte primordial de “cheios” e “vazios”, sombras e superfícies, imaginário que Zhang Lei inte-grou, de certo, no decurso da sua estadia na ETH, em Zurique. Dir-se-ia que este pro-jecto é rígido na sua aparência mas minima-lista na sua essência. Nesse sentido, a sua abstracção consome-se na experiência vi-vida, humanizada e transponível, de Zhang Lei. E aqui há lugar para muitas respirações controversas: do nível espacial e das gran-des aberturas exasperadas.Zhang Lei nasceu em 1964, na Provincia de

Jiangsu, cuja maior cidade é Nanjing. Entre 1981 e 1985, estudou arquitectura no Insti-tuto de Tecnologia de Nanjing, tendo mais tarde concluído a pós-graduação na ETH, em Zurique (1992-93). Em 2000 estabele-ceu-se a título individual, tendo fundado o Atelier Zhanglei, que conta hoje com cerca de 14 arquitectos. Desde 2000 que Zhang Lei é Professor de Projecto na Universida-de de Nanjing, tendo também ensinado na ETH e na Universidade de Hong Kong. Entre os seus maiores projectos, destacam--se: Dormitório para estudantes, Escola de Língua Estrangeiras de Nantong, Nantong (1998-99); Atelier de cerâmica da Universi-dade Normal de Nanjing (2001); Dormitó-rio Taoyuan 02, Universidade de Nanjing, Nanjing (2001-03); Escritórios da Cons-trutora Xinhua, Xinhua (2002-03); Centro de Pesquisa Animal, Nanjing (2002-03); Residência para os funcionários do Institu-to de Tecnologia de Dongguan, Dongguan (2002-04) e a Casa No. 4, CIPEA, Nanjing (2005-06); entre outros.Como diz Eduardo Prado Coelho: “Po-demos ser tentados a saltar etapas, e tal-vez não haja alternativa para isso, mas não podemos deixar de tentar recuperar o que havia de positivo e de enriquece-dor nas etapas que foram saltadas: por-que doutro modo perdemos em todos os tabuleiros.”1 Entre várias narrativas, o ar-quitecto chinês recupera o piloti da histó-ria da arquitectura. E com ele, o drama e a emoção de quem sabe fazer perguntas. O que está para lá do contemporâneo?

1 - PRADO COELHO, Eduardo, (2004). Situações de Infinito, Porto: Campo das Letras, p. 12.

*Arquitecto, Mestre em Cor na Arquitecturapela Faculdade de Arquitectura da UniversidadeTécnica de Lisboa

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gente sagrada José simões morais

寿星 Chegamos por fim à última das três estelares di-vindades, Shou Xing ligado à Longevidade.Em tempos ancestrais, as pessoas chamavam Shou Xing a uma das estrelas situ-ada no Pólo Sul, mais preci-samente à estrela do Velho (Nan Ji Lao Ren Xing, 南极老人星, conhecida no oci-dente por Canopus).Esta estrela, Nan Ji Lao Ren Xing, é muito brilhan-te e pode ser vista durante muito tempo e por isso, as pessoas relacionam-na com longa vida e assim conheci-da por Shou Xing.Já há longo tempo, os chi-neses tinham em grande consideração Shou Xing e usando o Céu para adivi-nhar o futuro, quando esta estrela não se conseguia ver acreditavam vir a caminho uma guerra.Em 256 a.C., o rei Zhuang do reino Qin conseguiu acabar com o domínio real dos Zhou, destruindo-lhes a autoridade imperial e logo de seguida fez sacrifícios a Shou Xing. Ao conquistar toda a China, Shi Huang Di ordenou a construção de um templo para oferecer sacrifícios a Shou Xing na sua capital Xianyang, como Sima Qian regista no ca-pítulo Tian Guan Shu, das “Memórias Históricas” (Shi Ji).No mesmo livro, mas no capítulo Feng Chan Shu há a referência a Shou Xing como sendo Nan Ji Lao Ren Xing e se conseguirmos ver essa estrela sem dificulda-de, quer dizer que o mundo está a salvo de guerras. Por isso era necessário construir o templo a Shou Xing para ter mais Fu (Felicidade) e

Shou (Longa Vida). Assim o imperador mandou cons-truir mais templos a Shou Xing, para que o país e ele próprio tivessem paz e uma longa vida.Já no livro “Han Shu Li Yi Zhi” está escrito que o im-perador Han, Ming Di, fez uma grande cerimónia de sacrifícios a Shou Xing e deu uma enorme festa con-vidando todas as pessoas idosas do país com mais de 70 anos. No banquete, para além de dinheiro ofereceu aos idosos um bastão onde no topo estava uma rola (banjiu) que representava comer com segurança, boa saúde e longa vida. Quem tinha este cajado represen-tava o imperador e numa história encontrada no “Li-vro de Bambu”, está descri-to ter um sujeito em Gansu batido num idoso que tinha um bastão e por isso foi condenado à morte, pois foi como se tivesse agredido o imperador.A imagem do deus da Lon-gevidade (também conhe-cido por Lao Shou Xing, ou Shoulao) é de um ido-so representado de pé, ou montando uma corça, tem a cabeça calva, a testa sa-liente com a mesma forma da do pássaro mitológico crane (he) e uma longa bar-ba branca. Segura na mão esquerda um bastão com cabeça de dragão (que na dinastia Ming veio substi-tuir a cabeça do bastão usa-da desde a dinastia Han), onde pende uma cabaça e tendo na mão direita um pêssego onde está um cra-ne (pássaro mitológico). Pêssego e o pássaro crane são dois símbolos de lon-gevidade.

Shou Xingdivindade estelar da longevidade

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Huai NaN Zi 淮南子 O LivrO dOs Mestres de Huainan

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L e t r a s s í n i c a s

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o corpo de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extractos fundamentais, efectuada a partir do tex-to canónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

A Via da liderança não é para fazer, mas para não fazer.

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 42

Se deixarmos a água fluir no sentido descendente, ninguém a poderá travar; mas para a fazer seguir o sentido ascendente será necessário um engenheiro. Como tal, quando o embe-lezamento predomina, a substância é ocultada; quando os ardilosos são espertos, os probos são bloqueados.A virtude pode ser usada para cultivo próprio, mas não pode ser usada para tornar os outros violentos. A Via pode ser usada para governo próprio, mas não pode ser usada para fazer os outros desordeiros. Mesmo que se tenha a capacidade dos sábios, numa época inoportuna de violência e caos podemos utilizá-la para nos mantermos intactos, mas não podemos utilizá-la para chamar a nós a liderança.

* * *

A Via da liderança não é para fazer, mas para não fazer. O que significa não fazer? Significa que os inteligentes não agem segundo o seu posto, que os benevolentes não dão segundo o seu posto e que os corajosos não são violentos segundo o seu posto. A isto se pode chamar não fazer.

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Quando a liderança é estabelecida par unificar o povo, se a liderança for consistente, haverá ordem, mas se a liderança for inconsistente haverá desordem.

tradução de Rui cascais ilustração de Rui Rasquinho

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