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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2792. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE JORGE DE SENA CAMõES SEM CAMISA
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h - Suplemento do Hoje Macau #74

Feb 19, 2016

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 15 de Fevereiro de 2013
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PARTE inTEgRAnTE DO HOJE MACAU nº 2792. nÃO PODE SER VEnDiDO SEPARADAMEnTE

jorge de sena

camões sem camisa

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Desde sempre, como é na-tural, me interessou o estudo da poesia camo-niana. Camões é uma

grande figura de poeta, prestigiada por secular devoção e universal re-nome; e o encanto dos seus versos raro não terá atraído a curiosidade e o gosto de quem autenticamente — e até inautenticamente— pela poesia se interesse. Transitar desse deleite imediato para mais culto aprofun-damento é inclinação do espírito, que, se outra causa não houvesse, a própria categoria da obra camonia-na suscitaria. Percorridos, porém, os imensos desertos que a má retórica ou a erudição acumularam entre uma obra incerta mas admirável e a nunca de facto em si própria buscada per-sonalidade do autor, eis que interpre-tar essa obra, libertando-a de fáceis paráfrases; buscar-lhe a originalidade e não o circunstancial de seus as-pectos; determinar-lhe, portanto, o intrínseco valor e os estranhamente sempre actuais motivos da sua pere-nidade — são prementes exigências da cultura nacional e da consciencia-lização universal que toda a cultura implica. Não será tempo de ultrapas-sar, em nome da própria natureza da obra de Camões e da possível reper-cussão do seu extraordinário pensa-mento, esses desertos imensos? De não considerar mais que como meios os oásis, que os há valiosos, de ho-nesta, necessária e indispensável de-dicação? Cumprindo o que a poesia de Camões aguarda há séculos, não é nosso dever perder-lhe o medo (ou ganhar-lhe...), e penetrá-la, não para pôr novas hipóteses, mas para mos-trar o que ela nem sequer oculta? Por isso este ensaio se subintitula «de revelação da dialéctica camoniana»; por isso aceitei a honrosa incumbência de falar de Ca-mões, que esta conferência era.Sei que sobre este estudo cairá o silêncio de quantos, com responsabilidades cultu-rais verídicas ou supostas por eles ou ou-tros, nada de novo têm feito pela poesia de Camões. Ê muito agudo em Portugal, nas coisas da cultura, o sentido da proprieda-de, e toda a gente possui baldios, que não explora, ou prados que cultiva consuetudi-nariamente; explorar uns ou produzir me-lhor nos outros é, pois, como que forragear na seara alheia... E os que nada possuem senão os grandes métodos de produção,

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Jorge de Sena

mundo em pedaços repartida». Em tantas e tão variadas comemorações, centenários, cortejos e conferências, sempre se fala da Fé e do Império, da independência e da Raça, da glória e da sabedoria, do que de facto possuí-mos e da árvore das patacas que ainda julgamos possuir, mas, raras vezes, ou só acidentalmente, se fala de um poe-ta, um grande poeta... Sabeis por que? Porque estamos afinal, gozosa e pro-vincianamente, deglutindo a satisfação de que ele tenha sido português. E em tantos e tão variados estudos e edições, fala-se de Petrarca e de geografia, de geologia, de etnografia, de antropo-logia, de astronomia, de zoologia, de meteorologia, da Infanta D. Maria; e é demonstrada à saciedade a noção idiota de que é surpreendente que um grande espírito seja naturalmente cul-to — e não se aponta, não se sugere, não se investiga nem se procura o que torna poeticamente excepcional, o que torna prodigiosamente viva e sempre actual a voz quinhentista desse grande espírito.Evocam-se o Trinca-Fortes e o cantor de Os Lusíadas para fins beneméritos de embófia cívica, fazendo-se parado-xalmente, de um poeta argutamente desesperado ou inconsequentemente malicioso ou musicalmente desilu-dido ou descaradamente satírico ou orgulhosamente sibilino — que são também aspectos seus — um mestre de boas maneiras, como se os poetas sofressem para maior prosperidade dos negócios, e isto com manifesto despre-zo pela leitura atenta dos seus versos, que são tudo o que nos resta dele, de um poeta tão obsessivamente subjecti-vo e tão alheiamente original que foi

possível efectuar-se, de duas maneiras, a escamoteação da sua pessoa e da respectiva originalidade: para o leitor comum, substi-tuídas pelo encanto dos conceitos —

Qual o quieto sono dos cansados,Debaixo de algua árvore sombria,Ou qual aos sequiosos e encalmadosO vento respirante e a fonte fria,Tais me foram teus versos delicados,Teu numeroso canto e melodia;E ainda agora o tom suave e brandoOs ouvidos me fica adormentando.

— e para o leitor patrioticamente interes-seiro, pela retumbância dita marmórea das suas oitavas. E, no entanto, poucos poetas

Ensaio dE rEvElação da dialéctica camoniana

esses, no silêncio esconderão a habitual consciência de traídos pais do filho que não fizeram. Não espero, portanto, que a minha tese venha a ser realmente discu-tida ou nobremente aceite. Perdoem-me e ao país, caso queiram, aqueles que estas observações não atingem, se o pessimismo delas os ofende. Mas também sei que, por todas estas razões, e anos passados, uma vi-são nova da poesia de Camões aparecerá aqui e ali, como coisa evidente que é, como coisa anónima que tudo mais tarde ou mais cedo vem a ser, como um verdadeiro lugar comum. Que essa comunidade igualmen-te seja de Camões e da cultura nacional é quanto basta.Da poesia (...) falemos (...).

Aristóteles — 1.* frase da Poética

Nos países de língua portuguesa e noutros culturalmente a eles ligados, tornou-se costume, oficialmente consagrado, utilizar um dia, o dia de Camões, para, a pretexto de celebrarmos a memória de um escritor e aventureiro do século XVI, chamado Luís de Camões, nos comemorarmos todos mutuamente.Sim, a verdade é esta: a coberto do renome que fizemos a um pobre poeta que o me-receu como poucos e o não teve, instituiu--se o dia da raça que não somos, porque o conceito de Raça é algo demasiado estreito para significar um povo que, à semelhan-ça de Camões, tem deixado «a vida pelo

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devanearam tanto como ele, e tão pouco por conta dos devaneios do leitor vindou-ro; sobretudo, raras obras nacionais foram jamais escritas com uma tão trágica e tão pura consciência do valor da dignidade humana, consciência serenamente feita da indignidade, da degradação e da miséria, que, não só literariamente, Camões parece ter sentido bem.É certo que pouco ou nada se sabe de con-creto acerca desse homem, cujo nascimen-to, cuja vida, cuja morte e cujos restos mor-tais são duvidosos, maravilhosamente duvi-dosos. O que é um convite à imaginação. E é certo que a sua vasta obra, à excepção de Os Lusíadas e de 3 ou 4 líricas, reunida ao acaso de colectâneas várias e póstumas, não oferece grandes garantias de autentici-dade, quer de autoria, quer da própria lição dos textos. O que é porta aberta para os desvelos eruditos. E ainda é mais certo ser muito difícil aproximarmo-nos, sem as ini-bições de um místico respeito, de uma figu-ra que, mais que um semi-deus, se tornou uma espécie de secção de abandonados na Alfândega, um depósito mortuário, não só das esperanças e amarguras dos quatro sé-culos nacionais que lhe passaram por cima, como dos outros quatro, acima dos quais, todavia, essa figura se houvera erguido.Por todas estas razões de respeito, de ex-ploração erudita, de incompetência e de oportunismo, mas também de verdadeiro sentimento nacional, os portugueses fize-ram de Camões o que nem os ingleses nem os italianos se atreveram a fazer de Shakes-peare ou de Dante, embora não devamos esquecer a diferença que vai da expressão acidentalmente histórica de um e de outro destes dois génios, à expressão voluntaria-mente épica, a que Camões, longa e tra-balhosamente, para escrever os milhares de versos do seu ambicioso plano, forçou, com tanto brilho, a sua inteligência de po-eta discreto, subtil, sempre vigoroso, mas sempre ou quase sempre entregue a, como ele diz:

Um não sei que, que nasce não sei onde,Vem não sei como, e doi não sei porque.

De facto, se a Divina Comédia foi um dos mais poderosos catalisadores do sentimen-to nacional italiano, foi-o principalmen-te por influência linguística, e porque, do sonho imperial e romano do Santo Impé-rio Germânico, a que medievicamente o Dante aderiu, era possível extrair, só na-cional, a Itália que ele visionara europeia e ecuménica. Mas a  Divina Comédia  é, principalmente, o poema da Idade Mé-dia, a justificação imaginosa e conclusiva do pensamento medieval (1), e, portanto, por sua própria natureza, mais um produto italiano da cultura europeia, que uma pro-jecção da Itália sobre a cultura do tempo. E por isso não poderia vir a ser, senão depois de filtrado pela história literária, um poema nacional. A glória política do Dante é de raiz literária, no melhor sentido da palavra, isto é, veio da cultura para a vida política, e não desta, ao acaso da imaginação, para a história literária.Também a situação de Shakespeare difere da de Camões. Shakespeare, apesar de ali-

camente concreta. É um engano supor-se que uma universalidade de Os Lusíadas lhe possa advir de ser esse poema consagrató-rio de uma prodigiosa aventura humana, que é um dos momentos da História Uni-versal, esse poema que Camões se propôs escrever. Nem a universalidade lhe advirá do facto de ter sido escrito por um homem de notável cultura humanística, irmão, pelo espírito e pela vida, de toda a Europa cul-ta do seu tempo. Sim: supor que o valor simbólico universalizável ao poema advirá, por virtude de esse humanista haver conse-

mentado pela grandeza nascente da Ingla-terra de Isabel I, apesar de ter escrito o ci-clo de peças da guerra das Duas Rosas, que é o antecedente doméstico e convulso da estabilização isabelina, evade-se, pela dra-maturgia e pelo barroquismo lírico, pelo que poderíamos chamar paradoxalmente a gratuidade poética do seu conhecimen-to do homem (2), a todas as tentativas de fixação histórica. Com ele, a única fixação histórica viável é o estudo esclarecedor e erudito das suas criações; e não há possi-bilidade de explicar-se pragmaticamente,

para fins políticos de sobrevivência nacio-nal, o sentido apesar de tudo tão inglês da sua obra.E, se compararmos o destino literário de Camões com o de Cervantes (3), de quem os espanhóis e o mundo fizeram autor de um símbolo, havemos de reconhecer que, para símbolo da natureza humana, e sob aquele aspecto em que é entendida a universalidade de tais símbolos, alguma ressonância falta à obra de Camões, que encontramos na obra de Cervantes, e que não é apenas resultado da criação romanes-

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guido criar, artisticamente, um importante documento do estado de espírito colectivo de então, é um bem intencionado engano, mas um engano. Sob esse aspecto, e por inelutável consequência do génio peculiar de Camões, o poema é bem menos docu-mental do que seria necessário. E, embora saibamos quanto, nessa época, a literatura defende cautelosamente, das iras inquisito-riais, a pele dos autores peninsulares, Ca-mões não é, de forma alguma, um cultor da liberdade de pensamento que hoje se atribui, com tão demasiada generosidade, a toda a Renascença (4). Não que, de fac-to, o não seja... se ele foi por excelência o poeta do pensamento em luta com os seus próprios laços—-mas não o foi como ad-miramos num Giordano Bruno, num Juan Luís Vives, num Nicolau de Cusa, mesmo num Francisco Sanches. A sua natureza po-ética circula em estranhos — já repararam? — estranhos vácuos da personalidade. A sua voz é alheia; e só a tradução, não das entrelinhas dos seus versos, mas das entre-linhas da sua elaboração criadora, nos dará, para satisfação plena da História, o homem do Renascimento que ele foi. Para símbo-lo ou para doutrina de vida, como sucedeu ao Quixote e respectivas consequências, é Camões demasiado poeta de uma dialécti-ca possessa das próprias possibilidades, en-quanto Cervantes o é apenas da permanên-cia da mesma dialéctica; e, para ressonância humana imediata, ou ressonância tornada imediata pela transfiguração cultural, é Ca-mões demasiado poeta do seu próprio gos-to de ser poeta.De resto, se a voz de Camões soa alheia, se repercute vácuos estranhos da perso-nalidade humana, reparemos que ela, por si própria, não é estranha, não é extrava-gantemente individualista, como a de um Bernardim Ribeiro. Reparemos que, poeta do arroubo lírico perante a existência do mundo, um Gil Vicente o é bem mais do que ele. E reparemos ainda em que, por exemplo, um Diogo Bernardes demonstra, a cada passo, um maior interesse lírico pe-las coisas concretas. Será que esse interes-se, em Camões, só se revela no plano da criação épica? Certamente que não — e bastaria observar a mal disfarçada conso-lação inconsciente, com que os eruditos extraem de Os Lusíadas os trechos mera-mente descritivos, objectivamente descriti-vos, para suspeitarmos de que toda a gente quer confundir a narração e as descrições habilmente literárias, que pululam no poe-ma, e aqueles trechos em que a linguagem se ajusta exactamente apenas à sugestão verbal, não amplificada para fins retóricos, de uma paisagem ou de um acontecimento.Estarei insinuando que Camões não é ver-dadeiramente, quando épico, um poeta épico? Não, não estou. É certo que, no sen-tido homérico, Os Lusíadas, quer por, à se-melhança do Paradise Lost, ser programáti-co, quer por, à semelhança da Eneida, não ser de elaboração civilizacional e popular, não constitui propriamente um poema épi-co, não obstante Camões ter conseguido lucidamente, e literariamente, a transposi-ção épica indispensável...: como A. Salga-do Júnior o demonstrou, em tempos, com a fina compreensão que uma segura erudição

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antes não perturba, que ilumina (5).Mas, creio eu, a transposição épica por Camões efectuada, não a confia Camões à imaginação, como Ariosto ou Tasso. Não só por ser programática a sua intenção; e não só por se cingir ele à narrativa histó-rica, embora ornada de episódios: é que as imagens de Camões não são imagens. Quando épico, a sua imagística é temática; quando lírico, a sua imagística é alegórica. Nunca, e é uma característica fundamental para o entendimento dos seus versos, as imagens camonianas são, por si próprias, significantemente expressivas.

Note-se que, no tempo de Camões, e por influência platonista, ou indirecta através de Petrarca, a imagem poética não possuía o mesmo significado que hoje. De certo modo, toda a poesia desse tempo é, para nós, de imagens temáticas ou alegóricas, se de imagens. A imagem aparece como um reforço retórico da narrativa — e é temá-tica — ou como figuração, que é descrita pelos habituais processos narrativos — e é alegórica, qual o próprio Camões critica:

(...) a Poesia, que cantouAté ‘qui só pinturas (6)

Sucede, porém, que esse reforço retórico, em Os Lusíadas, e essa figuração descrita pelos habituais processos narrativos, um e outra visam menos a sublinhar e a criar sugestiva correspondência de antinómicos estados de alma — o que é aliás de toda

esta poesia, filha longínqua do provença-lismo maniqueu (7) — do que a significar uma desesperada tentativa de intelectuali-zação conceptual das emoções do espírito perante si próprio:

Aqui o adivinhar e o ter por certoQue era verdade quanto adivinhava,E logo o desdizer-se, de corrido;Dar às cousas que via outro sentido,E pera tudo, enfim, buscar razões;Mas eram muitas mais as sem-razões.E essa intelectualização conceptual das emoções poéticas é curioso observar que se

opera, no Camões épico, através da refle-xão moralística sobre a natureza humana e o particular estado do país no seu tempo; e que, no Camões lírico, ainda quando esta mesma reflexão aparece, a intelectualiza-ção se operou através da vivência do puro estado poético, do que se chama às vezes «inspiração»:

não sei que me escreviaDentro n’alma, co’as letras da memória,O mais deste processo,Co’o claro gesto juntamente impressoQue foi a causa de tão longa história.Se bem a declarei,Eu não a escrevo, da alma a trasladei.

— como Camões afirma numa das suas mais belas canções, fazendo quase uma temerosa profissão de fé de automatismo surrealista... (8).

Se, em Os Lusíadas, encontramos profun-damente entrelaçados o narrador intencio-nal e hábil, o lírico das situações individuais e o moralista observador das situações co-lectivas, e entrelaçados no plano da cria-ção épica, mas segundo as determinações de uma natureza estruturalmente poética como foi a de Camões; se repararmos qual dos três aspectos leva em si maior veemên-cia pessoal; se recordarmos que o momen-to histórico é já o do regresso trágico da epopeia qual a amarga meditação moral do épico o comprovaria, caso a história o não soubesse há muito — o êxito de Os Lusí-adas, como poema épico, é um êxito, por contradição, de uma obra de último recur-so. E de facto, para a popularidade, a nar-ração amplificada e amplificadora das gló-rias nacionais valeu e vale no poema, por contraste, e porque, a cada passo, surgem aqueles trechos candentes de juízo final, como este:

No mais Musa, no mais, que a Lira tenhoDestemperada, e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda, e endurecida:O favor com que mais se acende o enge-nho,Não no dá a pátria, não, que está metida,No gosto da cobiça, e na rudezaDhua austera, apagada, e vil tristeza. (9)

ou este:

E ponde na cobiça um freio duro,E na ambição também, que indignamenteTomais mil vezes, e no torpe e escuroVício da tirania infame e urgente:Porque essas honras vãs, esse ouro puroVerdadeiro valor não dão à gente,Melhor é merecê-los, sem os terQue possui-los sem os merecer.

ou mais este:

E ainda Ninfas minhas não bastavaQue tamanhas misérias me cercassem:Senão que aqueles que eu cantando anda-va,Tal prémio de meus versos me tornassemA troco dos descansos que esperava,Das capelas de louros que me honrassem,Trabalhos nunca usados me inventaram,Com que em tão duro estado me deitaram.

trechos bem pouco épicos, bem pouco adequados à cantoria que a retórica balofa se esforça por extrair de Os Lusíadas, mas, apesar de tudo, épicos por contradição, na medida em que a pessoal revolta se des-prende dos seus próprios problemas e se arroga o direito, não de julgar e condenar, o que seria pouco e amarrado ao tempo, mas de desmascarar a situação colectiva. É neste mesmo sentido que a longa e cé-lebre fala do Velho do Restelo, em que se tem querido ver o Portugal da terra contra o Portugal dos mares, ou ainda o espírito de prudência contra o espírito de aventu-ra, ou até a cultura humanística contra os expedientes cesáricos, é principalmente a expressão—«com saber só d’experiências feito» — da «mísera sorte, estranha condi-ção»: a originalíssima irrupção, no plano da

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criação épica, do valor intrínseco e precá-rio da vida humana como tal (10), afirmado por um homem que, numa canção, enleva-do na angústia perene da sua meditação, afirma —

Não cuide o pensamentoQue pode achar na morteO que não pode achar tão longa vida.

Se lermos, mesmo com pouca atenção, as redondilhas, os sonetos, as éclogas, as odes, as elegias e as canções camonianas, e ainda o teatro, verificaremos que, à primei-ra vista, se resumem, da simples chocarrice ao mais elevado treno, a um monótono e incessante divertimento sobre as perple-xidades do amor não correspondido, do amor correspondido e depois esquecido, ou do amor impossível. Deste ponto inicial de vista, a poesia de Camões é já notável, pela graça maliciosa e melancólica, pela variedade puramente gratuita dos concei-tos analogicamente repetidos, por uma linguagem dúctil, e tão expressiva, que à própria elocução rítmica está confiada par-te do sentido, que assim transborda de uma fixação racionalizada e racionalizável, para o exercício constante que é a perseguição dialéctica.Tem-se dito e redito que Camões é um po-eta do amor, e, por extrapolação, que foi um grande amoroso. A sensualidade ao mesmo tempo impetuosa e lúcida, que os seus versos patenteiam, é, de facto, índi-ce de uma natureza tão apaixonada como sensual no mais físico sentido do termo, e uma certa displicência feminil, também por vezes evidente, é menos de um homem castamente delicado, que de um intelectu-alizado femeeiro. De resto, a célebre carta, em que são apreciadas, prosaica e entedia-damente, as «damas» da índia, será, acerca disto, um clarificante documento.Mas, se Camões tivesse sido e fosse apenas um poeta do amor, naquele sentido porno-gráfico, que uns lá vêem, ou no sentido abs-témico, para donzelas bem pensantes, que outros lá vêem igualmente, teria sido muito pouco, ou pelo menos não teria sido aquele pouco mais que o distingue da avalanche dos poetas que cantaram, com talento, os narizes, os olhos, e outras partes de várias criaturas mais ou menos cantáveis.É preciso ter em consideração que o pe-trarquismo renascentista, revivescência culturalista daquela intelectualização con-ceptual do formalismo cavalheiresco das «cortes de amor», que a poesia de Petrarca por sua vez já fora (11), é, como acontece sempre, mais do que uma escola literária, um modo de expressão. E também sempre as escolas literárias literatizam o que, nos criadores autênticos, é um método da cons-ciência criadora, um sistema convencional de representação da realidade como o inte-lecto a apreende. Mas o curioso é que, nos epígonos dessas escolas, naqueles em quem já a «literatura» se decompõe sob o influxo de novos modos de expressão, esse método pode vir a ser precisamente a consciência criadora.No tempo de Camões, morria o petrar-quismo, com a desaparição do ideal cava-lheiresco, para ficar apenas a «agudeza y

que comenta, é flagrantemente significati-vo (e Hegel e Marx teriam tido inveja, se o houvessem conhecido):

Assi que indo perdendo o sentimentoA parte racional me entristeciaVê-la a um apetite sometida;Mas dentro n’alma o fim do pensamento,Por tão sublime causa me diziaQue era razão ser a razão vencida.Assi que, quando a via ser perdida,A mesma perdição a restaurava;E em mansa paz estavaCada um com seu contrairo num sujeito. (15)

Desejo acentuar que estes fragmentos não serão ímpares na obra de Camões; se o são, são-no apenas por mais claramente que noutros pontos ser neles evidente a natu-reza dialéctica do génio camoniano, e su-blinho — génio abstracto (16), que reduz sempre as emoções a conceitos, conceitos que não são ideias, mas a vivência intelec-tual delas.Associada à sombra petrarquiana, uma outra sombra tem, mercê de uma tacanha exploração literata de pretensos filósofos de sebenta, impedido a descoberta do ver-dadeiro valor do génio camoniano: quero referir-me ao tão decantado platonismo de Camões — decantado brilhantemente por ele, e decantado estultamente por muitos estudiosos.Há uma obra do judeu português italia-nizado Leão Hebreu — os Diálogos de Amor—, a qual, como uma das mais senão a mais elevada expressão do neoplatonis-mo renascentista, nos permite avaliar epo-calmente o platonismo camoniano. Não interessa determinar se Camões leu ou não Leão Hebreu; poderia não o ter lido, nem sequer ter conhecido essa obra aliás então popularíssima entre os meios cultos, que a importância dela seria a mesma para nós: a de, até certo ponto, paralela expressão de um mesmo momento da cultura.Na obra de Leão Hebreu encontramos, levadas plotiniana - mente até ao amor re-cíproco da «suma formosura divina» e de uma «baixa e finita mente humana», a mes-ma subtil dialéctica do amor e do desejo (17), que, em Camões como noutros po-etas da Renascença, se complica de já mo-ribundo petrarquismo, e a mesma ascensão purificadora de um conhecimento que se vai tornando contemplação.Todavia, digamos francamente que o plato-nismo camoniano (e é tão nítida a solução de continuidade nas famosas estrofes de «Sobre os Rios» que quase toda a gente o tem notado) interrompe-se onde o cristia-nismo, ou mais exactamente o catolicismo escolástico, introduz as noções da graça e da revelação. E platonicamente, naquele sentido em que o post-franciscanismo filo-sófico reagiu contra a própria escolástica, poderia não o ter feito nesse ponto... Po-deria, se, de facto, o catolicismo português fosse tão franciscano quanto alguns lite-ratos, por reacção liberal, o têm sonhado (18). Desse ponto em diante, Camões, quando fala do amor que se torna divino, embora continue poeticamente sincero, é literariamente insincero para com o forma-

arte de ingenio», que mais tarde, Baltazar Gracian teorizará, muito significativa-mente chamando a Camões «el siempre agudo». O próprio Camões é, por vezes, lucidamente explícito acerca dessa trans-formação, nas suas reflexões de homem de acção sobre a inanidade da pura agitação guerreira, ou nas suas reflexões de poeta da visão fugidia —

— Por mais e mais que chame, não respon-des,E quanto mais te busco, mais te escondes.

O maneirismo camoniano (12), o seu pe-trarquismo, a sua lírica sistematicamente erótica — porque é sempre um caso de amor que aparece simbolizando a causa das perplexidades intelectuais do poeta—,

reduzem-se naturalmente àquilo que são: por um lado, domínio total dos recursos formais do tempo e sua exploração desen-freada, dentro dos cânones da noção de originalidade de então, que não impunham a rebusca de outra linguagem, mas a trans-formação individual do amador na coisa amada, neste caso o modo petrarquiano de versejar as emoções; por outro lado, uma vez que Camões, à medida que o aprofun-damos, nos vai aparecendo como um génio eminentemente dialéctico, esse maneiris-mo e esse erotismo são, hábil e tragicamen-te, a última possibilidade expressiva desse génio.Por que? — perguntar-me-ão. E eu respon-derei com uma pergunta. Como poderia ele, poeta fundamentalmente sensível ao contínuo ciclo dialéctico, exprimi-lo, sem lançar mão de metáforas, e metáforas cor-rentes, visto que —todos os seus versos o

confessam — lhe interessa menos o signi-ficado das ideias que a vida e morte delas? Claro que estamos percorrendo ao inverso, dos textos para a criação, o caminho que Camões percorreu da sensibilidade para a metáfora, e que descreve assim, magistral-mente:

Pode um desejo imensoArder no peito tanto,Que à branda e à viva alma o fogo intensoLhe gaste as nódoas do terreno mantoE purifique em tanta alteza o espíritoCom olhos imortaisQue faz que leia mais do que vê escrito. (13)Portanto — e é interessante esta conclu-são — aquilo que, em Camões, é forma-lismo da época, é paráfrase, ou é exercício

da aplicação dos seus dons à glosa de um mote, aquilo, enfim, que nele tem sido me-nos apreciado por menos «original», ou apreciado apenas em função da graciosida-de obtida, constituirá, como para poucos outros poetas, uma das raras portas para penetrarmos na sua consciência criado-ra, visto que, nesta, há um abismo entre a circunstância provocadora da emoção e a emoção expressa, entre os factos concre-tos e a lição dialéctica neles apreensível. A maneira como Camões altera o sentimento petrarquiano ou a interpretação que dá a um mote alheio ou próprio são preciosas chaves para a compreensão de um poeta cuja compreensibilidade, em que pese aos racionalistas estáticos, está implacavelmen-te menos no resíduo intelectual extractável dos seus conceitos, que na arquitectura conceptual dos seus versos (14). Este seu trecho, a par do que anteriormente citei,

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lismo convencional que adopta. Por que tema dizer o que pensa? Sim e não. Porque assim procede menos por temor das con-sequências para o seu físico social, que das consequências para a sua tão ansiosamente buscada e perdida paz moral. Apavora-o, e esse receio é manifesto em vários passos lí-ricos, não o perigo que sabe inerente à vida humana — e como o sabe!—, mas o aban-dono da condição humana a si própria, no espaço obscuro para além do conhecimen-to possível, quando nos desastres da vida a essa indiferença divina ele a pressente e suspeita e declara. E contudo, a sua própria criação poética, a sua própria vivência do fluir dialéctico do pensamento e da vida, e a sua consciência dramática do tempo perdido (que faz dele um magnífico Proust da Renascença, ou melhor, do Barroco, ou melhor ainda, do Maneirismo, como nem Shakespeare ou Miguel Ângelo o foram) lhe atenuam esse pavor, o reconciliam he-roicamente com a existência, lhe elidem a transposição a que não se atreve (19). Todo o maravilhoso final da canção «Vinde cá, meu tão certo secretário» representa este duplo processo —

Não conto tanto os males como aqueleQue, depois da tormenta procelosa,Os casos dela conta em porto ledo;Que inda agora a Fortuna flutuosaA tamanhas misérias me compele,Que de dar um só passo tenho medo.Já de mal que me venha não me arredo,Nem bem que me faleça já pretendo,Que pera mim não vai astúcia humana;Da força soberana Da Providência, enfim, divina pendo.Isto que cuido e vejo, às vezes tomoPera consolação de tantos danos.Mas a fraqueza humana, quando lançaOs olhos no que corre, e não alcançaSenão memória dos passados anos,As águas que então bebo e o pão que comoLágrimas tristes são, que eu nunca domo,Senão com fabricar na fantasiaFantásticas pinturas de alegria. (20)Que, se possível fosse que tornasseO tempo pera traz, com a memória,Pelos vestígios da primeira idade,E, de novo tecendo a antiga históriaDe meus doces errores, me levassePelas flores que vi da mocidade;E a lembrança da longa saudadeEntão fosse maior contentamento,Vendo a conversação leda e suaveOnde ua e outra chaveEsteve de meu novo pensamento, (21)Os campos, as passadas, os sinais,A fermosura, os olhos, a brandura,A graça, a mansidão, a cortesia,A sincera amizade, que desviaToda a baixa tenção, terrena, impura,Como a qual outra algua não vi mais...Ah! vãs memórias! onde me levaisO fraco coração, que inda não possoDomar este tão vão desejo vosso?No mais, Canção, no mais  (22);  que irei falando,Sem o sentir, mil anos. E se acasoTe culparem de larga e de pesada,— Não pode ser — lhe dize — limitadaA água do mar em tão pequeno vaso. (23)Nem eu delicadezas vou cantando

Co’o gosto do louvor, mas explicandoPuras verdades já por mim passadas.Oxalá foram fábulas sonhadas!

Repito — este trecho representa esse duplo processo, e documenta claramente como, por vias poéticas, a dialéctica platónica se transformou em outra dialéctica mais vasta, menos ou nada alegórica e mais concreta. Sem dúvida, repararam nos dois últimos versos:Puras verdades já por mim passadas.Oxalá foram fábulas sonhadas!Esta procurada perplexidade entre a verda-de e a ficção, que é a própria essência da criação poética, acentuo, viveu-a Camões com uma intensidade e uma lucidez, que fazem dele um dos mais estranhos poetas da poesia. Quanto há de misterioso, obs-curo, sibilino, na poesia de Camões, em grande parte provém daí, desse dualismo intrínseco da visão poética. E, num passo único na literatura universal, descreveu ele inigualavelmente, como já o fizera em «So-bre os rios» para os «cantares de amor pro-fano por versos de amor divino», o drama da hesitação fáustica, peculiar a todos os poetas que foram grandes por uma cons-ciência genial da estruturação dialéctica da representação do universo —

Ah falso pensamento, que me enganas!Fazes-me pôr a boca onde não devo,Com palavras de doudo, e quase insanas!Como alçar-te tão alto assi me atrevo?Tais asas dou-tas eu, ou tu mas dás?Levas-me tu a mim, ou eu te levo?Não poderei eu ir onde tu vás?Porém, pois ir não posso onde tu fores,Quando fores, não tornes onde estás.

Compreendeis agora a razão de Camões, sendo tão profundamente subjectivo, nos falar em voz tão estranhamente alheia, alheada. Um poeta que tudo incluiu em si próprio para, daquela região da perso-

NOTAS1. Entenda-se aqui «medieval» literal e epocalmente e não como apenas referindo-se à cristandade. A presen-ça muçulmana na Divina Comédia ficou demonstrada por Asin Palacios in La Escatologia Musulmana en la Divina Comédia, apesar da tempestade que a obra le-vantou.2. Ver nota A.3. Repare-se no doloroso paralelismo das vidas de am-bos.4. Aproximar este passo e o que se afirma na nota E.5. Antonio Salgado Júnior -«Os Lusíadas» e a Viagem do Gama - O tratamento mitológico duma realidade histórica - Porto, 1939.6. Note-se como não são estas «pinturas» as mesmas a que ele se refere noutro passo, citado a p. 28. Cf. nota F7. Ver nota B.8. Ver nota C.9. Todas as citações do épico são feitas do fac-simile da 1a. edição de Os Lusíadas, pois que aí se entende tudo o que os gramaticos tem conseguido que não seja entendido10. Ver nota D.11. Aproximar da referência ao «provençalismo mani-queu» feita a p. 21 e ver nota B.12. Entenda-se aqui, neste passo, maneirismo nos seus dois sentidos, que em Camões se sobrepõem: devoção a uma «maneira» ou afectação rebuscada, e «maneiris-mo», período artístico em que Camões é integrável.13. Note-se o que este último verso implica de progres-são dialéctica, transcendendo o petrarquismo aparente.14. Não deve esquecer-se nunca o fundamental contri-buto de Antonio Sérgio para a descoberta de um Ca-mões pensador profundo e dramático.15. Ver nota E16. Ou seja: em que se define o universal concreto he-geliano.17.  Uma admirável análise interpretativa desta mera dialéctica do amor e do desejo encontrar-se-á in «Luís de Camões» introdução, selecção e notas de José Ré-gio — Lisboa 1944.18. Ver nota F.19.  Poder-se-ia dizer, paradoxalmente, que é esta realização sempre ultrapassada do génio líri-co, que lhe confere, por contraste, o tom épico. 20. Ver nota F. 21.  Deverão aproximar-se este passo, a «mudança de vida» expressa em «Sobre os Rios» e a consciência — bem clara — da permanência abstracta da renovação dialéctica.22. Aproximar este «No mais, Canção» e o «No mais, Musa» citado a p. 22, cuja diferença documenta o ul-trapassamento lírico.23. Ver nota G.

NOTA ASem dúvida que não há, culturalmente, lugar mais co-mum e, ao mesmo tempo, mais deserto que o dizer-se da profunda ciência da humanidade, que Shakespeare patenteia. Essa profunda sabedoria do comportamen-to exterior e interior do homem, a acuidade com que Shakespeare evidencia o grau de lucidez, em cada si-tuação, das suas personagens — são, de facto, muito naturais características do seu génio dramático. Toda uma crítica, julgando-se a julgada humanística, auto-rizando-se, sem o saber, na tradição de menosprezo pela totalidade da obra shakespeareana, tem posto em relevo essa «ciência». Não é paradoxal nem injusto dar, porém, a uma crítica assim orientada tal filiação. O me-nosprezo por Shakespeare como ele é vem de mais lon-ge, e nasceu na própria Inglaterra, quando lá começou, em finais do século XVIII, a dealbar para o seu teatro um esboço de glória autêntica, que em escala menor, o lírico dos Sonetos e de Vénus e Adónis nunca deixara de ter. A cisão no entendimento latino ou latinizante de Shakespeare veio a consumar-se em França a par-tir da violenta querela dos «clássicos» e «românticos», dado que os primeiros, abrigados com o prestígio de Racine, Voltaire e a Enciclopédia chamavam bárbaro a Shakespeare, cujo teatro se não conformava com as normas ditas aristotélicas, e que os segundos defen-diam, inspirados pelo Sturm und Drang e o romantis-mo alemão, a liberdade da composição, que permitisse representar mais directamente a «vida». Apagada a querela com a vitória do Hernâni e a extinção gradual dos últimos «clássicos» é hoje evidente que nem uns nem outros tinham em conta (ou apenas lhes vinha por acréscimo) a natureza poética, isabelina, desse teatro que discutiam, embora não possam acusar-se o génio de Victor Hugo e a clara visão de um Gauthier de de-feituosa nesta compreensão que o romantismo intuiti-vamente tivera. E a crítica mais «científica», numa tra-dição racionalista alheia ao romantismo e à dialéctica originariamente romântica de Hegel, ao ir pondo em relevo o «humanismo» de Shakespeare, foi esquecendo ou ignorando os elementos líricos e épicos, e o puro jogo cénico (quer nas situações, quer na linguagem), que são uns e outro absolutamente típicos do teatro isabelino e jacobita de Kyd e Marlowe a Beaumont e Fletcher, e esquecendo ou ignorando, ainda mais im-

nalidade onde a personalidade se anula perante o que Hegel chamará o espírito objectivo, extrair a própria génese dessa consciência final. Não admira, em face de um fenómeno que culminou moder-namente, com Proust e Pirandello, na pluralização do eu e da expressão verí-dica desse eu dos moralistas, que já se tenha chamado pirandelliana à terrível cena cómica da perda da personalidade de «Sósea», na comédia Anfitriões.Inúmeros aspectos, também importan-tes ou acessórios dos indicados, ficaram, no decorrer deste estudo, por apontar. Outros, bem o sei, foram apontados e justificados com sínteses demasiado den-sas, para as quais me fiei da cultura dos leitores. Mas tinha de ser assim. Era ur-gente e oportuno autenticar a grandeza de Camões, uma grandeza por demais acriticamente adivinhada, literariamente concedida, e politicamente utilizada.Camões é, de facto, inesgotável; não só por ser grande como tantos outros, mas por ter sido, imparmente, o poeta da pró-pria essência da vida humana, do próprio drama do fluir do pensamento humano. Aí reside a sua originalidade; aí está o seu mérito de ser um dos mais excepcionais poetas de todos os tempos. A sua grande-za existe e impõe-se por si própria, tanto mais consoladoramente quanto suporta-mos, de hoje em dia, a sensação ridícula de vivermos num país de notabilidades às dúzias, às grosas, às carradas, tantas são as figuras e os factos comemorados quotidianamente, com frequência quase horária, ou uma culposa consciência de colocar um pouco de cevada no rabo do asno morto.Não vos biografei, imaginosa e eloquen-temente, a figura célebre, chorando a alma minha, nadando com o manuscrito de fora, lendo Os Lusíadas ao rei, ou me-tido numa gruta onde não cabe senão um anão. Não vos passeei pela Lusa Atenas, pela Lisboa do regresso das conquistas, pelo norte de África, onde se diz que ele ficou zarolho, ou pela Goa do Dr. Garcia de Orta e da Bárbara escrava. Não vos fiz o panegírico, a folha limpa do regis-to criminal e policial, desse homem que parece ter metido as mãos nas contas dos defuntos e ausentes. Não enalteci o seu patriotismo, que ele dispensa bem que lho enalteçam, e até consignou a esse respeito a própria opinião... Procurei mesmo fazer esquecer todo o romanesco sentimentalório e todo o patrioteirismo sebastianista com que o seu lídimo génio tem sido enxovalhado. Quis que vísseis, comigo, passo a passo admirados, quão extraordinário poeta ele é, para lá de uma maravilhosa linguagem, para lá da since-ra veneração que merece como mestre de um pensamento vital, como figura humana de rara nobreza intelectual, e até como autêntica glória nacional, bem maior e mais universal do que tem sido visto. Se o consegui, se por momentos foi a esse poeta que contemplastes, ao nosso maior poeta, a um dos maiores do mun-do, sentir-me-ei feliz. E concordarei até com... um dia de Camões.

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perdoavelmente, o próprio sentido evolutivo do te-atro shakespeariano, das «crónicas» a  The Tempest. Ora, a verdade é que, com um critério psicologístico, que se extasie perante a complexidade de Ricardo II ou de Hamlet, ou perante o encanto espiritual de Pórcia, não é possível o êxtase perante a fantasia simbólica de The Tempest. Com um critério naturalístico de vero-similhança estrita das situações e dos caracteres não é possível aceitar Cymbeline e The Winter’s Tale, lado a lado com Coriolanus eJulius Caesar. Com um critério de realismo da linguagem cénica, só é possível admi-rar, em Shakespeare, os intermédios de truões (e nem sequer o bobo do King Lear), soldados e populaça, vis-to que a linguagem de todas as outras figuras é redun-dantemente florida, ou, nos mais célebres solilóquios e nos mais belos diálogos, é poética e quase abstracta meditação das personagens sobre o seu próprio destino e a condição humana. Acentuemos que essa meditação ultrapassa, pois, o plano da introspecção, e impossibi-lita uma análise imediata, de que pudesse ter nascido qualquer teatro realista.De todos estes critérios, uns por cima dos outros a pretender-se humanísticos, tem sofrido a apreciação da obra de Shakespeare. E, quer humanística, quer simbo-lizante, quer apenas gramaticante, a crítica tem, por sua vez, sobre esta confusão, assentado os seus edifícios, vendo só ou não procurando ver epocalmente o sig-nificado, como expressão do humano, de formas tidas por «gongóricas», ornamentais ou de simples regressão medievalista da alegoria.Ora pode e deve falar-se da existência, através dos sé-culos da expressão literária, de tendências simbolistas, que não apenas do simbolismo como escola poética francesa... O conhecimento comparado das literaturas permite, a qualquer pessoa bem informada e bem in-tencionada, verificar a coexistência de poetas ou mes-mo prosadores de expressão primacialmente simbólica, e de outros, cuja expressão é, digamos, por contraste, naturalista. Claro que a expressão simbólica pode não ser redundante, ou redundantíssima pode ser a expres-são naturalista: ser prolixo não é bem o mesmo que ser «gongórico».Não foi para se divertirem à custa do leitor que um Maurice Scève, um John Donne, um Nerval, um Rim-baud, um Proclo, um Píndaro, um Horácio, um Gón-gora, um Miguel Ângelo, um Hõlderlin, um Rilke, um Maiakowsky, um Lorca (para exemplificarmos com diversas épocas e línguas) usaram de uma linguagem transposta, misto de redundância retórica e de secura expressiva. Foram, ainda quando intelectualistas, ho-mens mais sensíveis à complexidade e à riqueza da vida que no intelectual amesquinhamento dela; e a tal ponto assim o foram, que, levados por um discreto pudor do intelecto, atingiram por vezes um ascetismo e uma con-tenção expressivos, justamente mais raros nas efusões sentimentais ou nos raciocínios didácticos dos poetas sem imaginação universalizante. Notemos que, daque-les poetas, alguns, senão todos, implicam a existência do leitor culto, de gosto apurado e fina inteligência, capaz de apreciar a sobriedade que parece excesso, a sensibilidade sem cócegas na lamúria, o sereno e inteli-gente êxtase perante o universo e a condição humana, aquele e esta sentidos como um todo orgânico, har-monioso ou não, que seja a razão de ser da dignidade do homem. Nada disto — a imaginação simbólica e respectivas exigências — tem que ver, seja o que for, com a alegoria. A alegoria... esse recurso retórico, de que, por exemplo, o século XVIII e os primórdios ainda «clássicos» do século XIX, tão «iluminados», tão anti--medievais, tão racionais, usaram e abusaram, quer na literatura, quer nas artes plásticas, até aos derradeiros espasmos do mau gosto.No caso de Shakespeare, que estamos tratando, pode e deve, além disso, falar-se de um crescente simbolis-mo adensando a linguagem, libertando o jogo cénico, esvaziando psicologicamente as personagens, e que, em  The Tempest  e em outras peças das últimas épo-cas, chega à terrível obscuridade (não apenas devida à distância, no tempo, de pretéritas formas linguísticas) de versos admiráveis pela beleza formal e rítmica, debi-tados por figuras desprovidas de qualquer realidade au-têntica... E, no entanto, quão longe estamos da gratuiti-dade amável, aparentemente semelhante, das primeiras comédias!—porque tudo isso está servindo, agora, para cenicamente ser exposta uma visão poética do mundo, ou, também, o devaneio melancólico de um lúcido gé-nio que essa visão entristeceu. É, portanto, pelo menos paradoxal condenar Calderon, cujo Segismundo é bem de carne e osso a comparar com Próspero, Hermione ou Marina, e condená-lo em nome, afinal, de um certo Hamlet e de um certo Otelo.De resto, a complexidade das personagens renascen-tistas e post-renascentistas — qual é Camões — é uma complexidade menos psicológica do que de acuidade, humanisticamente natural, na percepção das virtuali-dades do homem e da sua situação em face das coisas e do destino. Além de que complexidade e subtileza não são bem o mesmo, e a subtileza tinha esplêndidos antecedentes literários medievais, senão na escolástica, pelo menos no provençalismo e no «dolce stil nuovo».

XVIème siècle, point de choix. On était chrétien en fait. On pouvait vagabonder en pensée loin du Christ: jeux d’imagination, sans support vivant de réalité. Mais on ne pouvait même pas s’abstenir de pratique. Qu›on le voulut ou non, qu›on s’en rendit compte nettement ou non, on se trouvait plongé dès sa naissance dans un bain de christianisme, d›ou on ne s›évadait même pas à la mort: car cette mort était chrétienne nécessairement, socialement, de par les rites auxquels nul ne pouvait se soustraire même s›il s›était révolté devant la mort, même s›il avait raillé et fait de plaisantin à ses derniers moments. De la naissance à la mort, toute une chaíne de céremonies, de traditions, de coutumes, de prati-ques se tendaient — qui toutes étant chrétiennes ou christianisées, liaient l’homme malgré lui, le tenaient oaptif même s’il se prétendait libre». «Le Problème de l’Incroyance au XVIème (La Religion de Rabelais)» — Lucien Febvre (pp. 362/3 l.a ed. 1942. N.° 53, de E. H.). NOTA GNão pode ser— lhe dize — limitada A água do mar em tão pequeno vaso.Sendo Camões, como parece ficar demonstrado, um peculiar poeta da própria poesia, da própria vida do poeta como tal, é interessante aproximar esta passagem de uma outra, de Hölderlin, por exemplo. Claro que a aproximação não visa a questionar sobre se Hölderlin teria lido Camões..., mas a fazer notar como a imagís-tica se relaciona com a atitude perante a vida e sua ex-pressão poética. Se há diferenças profundas entre am-bos os poetas, diferenças de época, de cultura, de visão do mundo, um e outro se debruçaram sobre a noção de diálogo íntimo e perene, que é uma das constantes do pensamento dialéctico. Ao diálogo de Apolo e Dióni-sos, luminosa verdade da chamada antiguidade clássica depois dos estudos de Nietzsche, sucedeu, complican-do-o, o diálogo — menos autêntico — do paganismo e do cristianismo. Camões e Hölderlin repercutiram esta dicotomia cultural, mais intensamente o poeta alemão. E é esclarecedor da posição camoniana observar que, enquanto para Hölderlin o vaso é demasiado frágil para conter a plenitude da revelação, em Camões o vaso é demasiado pequeno para conter a totalidade do dis-curso dialéctico, do interminável devir. A passagem de Hölderlin é a seguinte:«Os deuses... parecem pouco atentos ao facto de viver-mos, porque um frágil vaso nem sempre pode contê--los.... Só por momentos é que o homem suporta a divina plenitude. Um sonho desses momentos, eis por-tanto a vida.» No entanto, ressalvadas as diferenças de intenção (e a confusão subtil que Camões faz entre a vida e a canção que está escrevendo é um requinte que de oerto modo excede a metáfora «vaso» em Hölder-lin) também Camões ecoa, e, como agora é óbvio, mais profundamente, esta noção da perenidade aparente de certos momentos significativos, que são afinal os mo-mentos de consciencialização dialéctica.

que não só é efeito do espírito de diferentes épocas (e o sentido da post-renascença portuguesa não está assim tão longe de uma teologia dantesca). A «testemunha» camoniana vive, e, sendo de certo modo o único herói autêntico do seu poema épico, não é, por isso mesmo, um herói homérico. Enquanto o herói homérico actua segundo o prazer dos deuses e morre, a testemunha camoniana vive segundo «a mísera sorte, estranha con-dição», e não tem um Virgílio nem uma Beatriz que pela mão o conduzam. Mas, é curioso notar, os heróis de Os Lusíadas, propriamente as personagens do poe-ma, também essas não vivem no mesmo plano épico, e actuam com determinação e livre arbítrio, auxiliados pelos deuses. O que contribui, preciosamente, para es-clarecer a camoniana noção de livre arbítrio, auxiliados pelos deuses. Dir-se-ia que os deuses representam um papel de mediadores ou intercessores, mas, ao contrá-rio dos santos, do céu para a terra. NOTA EA lição desta passagem da canção Manda-me Amor que cante docemente é a da edição de Soropita (1595). A lição do Visconde de Juromenha (1861) é muito próxi-ma desta. Na edição de Domingos Fernandes (1616), a passagem aparece assim transcrita:

Depois de ter perdido o sentimento D’humano um só desejo me ficava, Em que toda a razão se convertia. Mas não sei quem no peito m’afirmava Que por tão alto e doce pensamento, Com razão, a razão se me perdia. Assi que quando mais perdida a via, Na sua mesma perda se ganhava. Em doce paz estava Com seu contrário próprio em um sujeito.

O sentido fundamental, como a partir da outra versão foi estabelecido neste ensaio, mantém-se. E, em todas as variantes da edição de 1616, são bastante nítidas as correcções ao gosto seiscentista, no sentido de uma afi-nação linguística, substituída a fraseologia escolástica, tão às vezes característica de Camões, por equivalentes conceptistas, com os quais é parafraseada, literalmente, a imagística camoniana.Quanto à edição de Lopes Vieira e J. M. Rodrigues, me-ritório fruto de melados amores pelo poeta, corrigindo--o e «embelezando-o», com manifesta incompreensão pela verdadeira qualidade da lírica camoniana, não vale a pena fazer-lhe referência. NOTA FDe resto, acerca deste problema da religiosidade camo-niana, não será de todo inútil meditar o trecho, a seguir transcrito, do eminente historiador Lucien Febvre, em que muito subtilmente está também posta a questão da liberdade da fantasia e da legitimidade dessa mesma li-berdade, numa época que é ainda a de Camões, e para uma Europa mais complexa que o nosso Portugal do re-gresso das conquistas:«Le christianisme, aujourd’hui, c›est une con-fession entre plusieurs autres: la plus importante de toutes à nos yeux d’Occidentaux — mais à nos yeux seulement. Nous le définissons volon-tiers comme un ensemble de dogmes et de croyances bien determinées, associées à des pratiques, à des rites dès longtemps définis. En quoi nous n›a-vons pas pleine-ment raison. Car, que nous le voulions ou non, le climat de nos sociétés occidentales est toujours, profondément, un climat chrétien. Autre-fois, ou XVIème siècle, à plus fort raison: le christia-nisme, c›était l›air même qu›on respirait dans ce que nous nommons l›Europe et qui était la chrétienté. Cétait une athmosphère dans quoi l›homme vivait sa vie, toute sa vie — et non pas seule-ment sa vie intellectuelle, mais sa vie professionelle quel qu›en fut le cadre. Le tout, automatiquement en quelque sorte, fatalement, indépendamment de tou-te volonté express d›être croyant, d›être oatholique, d›acepter ou de pratiquer sa religion...Car, aujourd’hui, on choisit. D’être chrétion ou non. Au

Mas toda a Renascença, pela pena dos seus poetas e fi-lósofos, se entrega, desde as especulações de Paracelso às canções camonianas, às consequências intelectuais e emocionais da posição humanística. Não admira, nem é regressivo, que essa acuidade haja culminado quer numa tipologia, de que é flagrante exemplo a obra de Ben Jon-son, quer uma simbolização de que são exemplares, ca-tolicamente um Calderon, e, até certo ponto com indi-ferença teatral em matéria de religião, um Shakespeare. Sem se compreender primeiro a importância dessas formas que, em Shakespeare e Calderon, tão belamen-te esplendem, não é possível compreender o iluminis-mo de Lessing, a doutrinação de Herder, o idealismo do Sturm und Drang, o naturalismo simbólico dos ro-mânticos alemães, que todos meditaram, por oposição ao classicismo afrancesado, os problemas sugeridos pela riqueza «gongórica» de um Shakespeare. E, sem ter compreendido isto, não é possível interpretar no seu verdadeiro valor para a arte, o sentido da reacção humanística e materialista de Feuerbach.É que, ainda à maneira dos enciclopedistas, continuam válidos um «bom senso» e uma «razão», afinal mais de Boileau que de Descartes. NOTA BO formalismo da poesia provençal, na literatura ibérica, alimenta os cantares de amor dos cancioneiros luso-ga-laicos; e ainda ecoa, aliás já complicado de petrarquis-mo, nas mais belas e sugestivas peças do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Camões teria, pois, duas revivescências culturalistas pelas quais aferir a mesma dialéctica, mas em grau diverso de desenvolvimento: a que repercute em quase todos os cantares da «medida velha», mesmo de um Sá de Miranda ou de um Bernar-dim Ribeiro, e o petrarquismo renascentista, que era da atmosfera de «modernidade» daquele tempo. Um certo conceptismo, um gosto da adjectivação contraditória, a substantivação dos qualificativos e a adjectivação dos substantivos: todo esse arsenal de graças da linguagem poética, que é uma elaboração linguística do intelec-tualismo sensual (ou sensualismo intelectualizado) da poesia provençal, encobre ou resulta, porém, dos cre-dos socio-religiosos que propiciaram o provençalismo. E os untinómicos estados de alma, por um lado, como por outro o anseio de pureza, de transcendentalização do amor sensual, não são mais que o reflexo — ainda que por via apenas literária — da heresia albigense, no seio da qual se desenvolve a poesia do «trobar clus»: um maniqueismo cátaro.Há que ter presente tudo isto para melhor se compre-ender como o chamado «petrarquismo» de Camões tinha muito antigos antepassados na literatura nacional em que se insere, exactamente como o «platonismo ca-moniano» é menos uma ascensão à Suma Beleza, que uma sublimação catara do desejo que tortura a «baixa e finita mente humana» e da donjuanesca insatisfação dos sentidos de um homem obsessivamente subjectivo, o que é, de resto, uma forma de interpretar, socio-lite-rariamente, a precessão plotiniana em Camões.De resto, uma certa sexualidade exacerbada, as remi-niscências do «trobar clus», o gosto do esoterismo: eis flagrantes e bem concordantes elementos daquele as-pecto de Camões, que, logo ao princípio (p. 17), defini: «orgulhosamente sibilino».Já vimos, porém, como a dialéctica camoniana arreba-ta desesperadamente para um outro plano de vivência o mysterium magnum, que é a sua natureza em face de outra Natureza. NOTA CÉ evidente que, tal como vai dito, isto não é mais que uma «boutade». Mas a verdade é que o platonismo do trecho citado, embora se aproxime da terminologia e da imagística correntes em toda a poesia de que a ide Camões é um aspecto, é transfigurado pela introdução de um elemento estranho, que é a própria consciência dialéctica de Camões. Introdução que se opera pela forma como funcionam, no trecho, «as letras da memó-ria» e o «translado» que o Poeta faz. Chamo temerosa profissão de fé ao confessado automatismo na transcri-ção de um pensamento cujo devir o possui.De resto, no final de «Sobre os rios», está dramatica-mente expresso o piedoso pânico da consciência camo-niana, ciente do demoníaco exercício dialéctico que a sua poesia havia sido. «Havia sido», se admitirmos que as célebres redondilhas são uma espécie de testamento espiritual. NOTA DA «contradição épica», assim revelada no discurso do Velho do Restelo, permite analisar, de um outro ponto de vista temático, a criação camoniana. Como Dante naDivina Comédia é figurante e ao mesmo tempo tes-temunha, assim Camões, não sendo senão episodica-mente personagem de Os Lusíadas, é, ao longo de todo o poema, a mesma testemunha (no sentido de quem assiste e de quem relata) que íntima e intelectualmente a si própria se conhece na obra lírica. Há, porém, en-tre os dois «testemunhos», uma diferença fundamental,

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承德Qufu AQui nAsceu confúcio

O velhO Confúcio, 孔夫子 Kong Fuzi em chinês, aqui veio nascer no distantíssi-mo ano de 551 a.C. A China como império unificado ainda não existia e Qufu (leia-se Chufu) era então um pequeno burgo do reino de Lu. Conta a lenda que o Mestre teve um nasci-mento original. Seu pai, Shu Lianghe, antigo magistrado ou juiz, contava já a respeitável idade de setenta anos quando o filho abriu os olhos para a vida. Shu era casado com uma mulher abnegada mas infeliz porque lhe havia dado nove meninas. Depois de tantas tentativas, faltava um rapaz para assegurar a descendência e honrar a memória do pai. Então a própria esposa comprou uma concu-bina com apenas quinze anos, de nome Yan Zhengcai que ofereceu como prenda para aquecer o leito e o velho marido. Nove meses depois Confúcio nascia, resultado da relação

entre o septuagenário e a donzela. Esta crian-ça iria influir e modelar o pensamento chinês nos vinte e cinco séculos vindouros.No século VI a.C., os diferentes reinos que retalhavam o vasto território a que hoje chamamos China ora se uniam, ora se com-batiam entre si e Confúcio haveria de pas-sar parte da sua vida viajando de estado em estado, tentando, com pouco ou nenhum sucesso, educar os príncipes e os podero-sos, transmitindo-lhes os bons princípios, a boa moral, a excelente arte de governar.Em tempos de espada, lanças e veneno, de supremos prazeres por detrás das cortinas de seda, quando o que mais valor tem é a prata e o ouro, como moralizar o príncipe e educar a sociedade?Confúcio reconhecia o fracasso das suas propostas e dizia:“Ainda não encontrei nenhum homem ca-paz de amar tanto a virtude como a beleza feminina.”Pertencia, de algum modo, a uma nova

categoria social em ascensão, detentora de muito do conhecimento e do saber, in-termediária entre a nobreza guerreira e os artesãos e camponeses. Tratava-se dos 士shi ou 文人wenren, homens de letras, que podemos traduzir por funcionários “letra-dos” ou mandarins e tão importantes fo-ram no funcionamento e organização do tecido social da China Imperial.Confúcio estudou, compilou e organizou os mais importantes textos literários já en-tão existentes, criou uma escola com cerca de três mil discípulos onde os seus alunos e seguidores aprendiam e procuravam dar corpo às ideias do mestre. Falava de justi-ça, rectidão, benevolência, da necessidade de se seguirem os ritos e a boa moral. Es-tabeleceu cinco relações, princípios, hie-rarquias, cinco modos de comportamento em sociedade. Assim:O soberano assumir-se-ia como exemplo de virtude e de amor pelo povo. O povo reconheceria as qualidades do príncipe,

seria leal e aceitaria de bom grado o poder do monarca. Do mesmo modo, os filhos submeter-se-iam à justa vontade dos pais, as esposas à vontade dos maridos, os ir-mãos mais novos à dos seus irmãos mais velhos, os amigos à vontade de outros amigos. Viveríamos numa sociedade qua-se perfeita, um mundo utópico em que os filósofos daoistas não acreditavam e por isso acusavam a doutrina de Confúcio de “hipocrisia.” Mas estas cinco relações, ou submissões acabariam por condicionar profundamente a sociedade chinesa, mo-delando comportamentos, ritualizando o quotidiano, criando imobilismos e silên-cios vinte vezes seculares.Na introdução, 4.5., da 大 学 Da Xue, a Grande Aprendizagem, obra didáctica e lu-minosa atribuída a Zengzi (504 a.C - 436 a.C.), discípulo de Confúcio, lê-se um inteli-gentíssimo texto que resume e recria alguns conceitos fundamentais do confucionismo. Refiro-me ao bom governo de um reino, a

António GrAçA de Abreu

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AQui nAsceu confúcio

boa organização da sociedade, o modo de aprender, pensar e viver. Passo a citar:“(…) Em tempos antigos para que a luz da virtude iluminasse todo o universo, começa-va-se por se pôr ordem no reino. Para se pôr ordem no reino, começava-se por gover-nar a própria casa, Para se governar a pró-pria casa, começava-se por se aperfeiçoar o próprio eu, para se aperfeiçoar o próprio eu, começava-se por se rectificar o coração, para se rectificar o coração, começava-se por procurar a intenção sincera, para se pro-curar a intenção sincera, começava-se por desenvolver o conhecimento. Quando os reinos se conhecem, a ordem, a grande paz espalha-se por todo o universo”. Tudo na via para a Da He大 和, a Gran-de Harmonia, e para a Da Tong 大 同, a Grande União entre a multidão das gentes debaixo do céu.Infelizmente, os homens desde o dealbar dos séculos têm sido menos bons do que Confúcio imagina, menos justos do que

o ser social em que confia. Os excelentes princípios, o estudo iluminam mas, desde sempre, quanta escuridão e maldade na ca-beça e no coração de tanta gente, podero-sos e fracos!...Visitei Qufu, a terra natal do Mestre, ape-nas uma vez, em Maio de 1980 e já nesses recuados anos quando a China se abria a uma necessária modernidade se sentia o respeito pela figura do Mestre. O confu-cionismo circula no sangue da China.Em Qufu, o templo que lhe é dedicado é magnífico, os pavilhões, as estelas em pe-dra, os jardins, alguns com mais de vinte séculos de idade, tudo paira envolto pela patine do tempo. No entanto, o patrimó-nio arquitectónico de Qufu sofreu imenso com a Revolução Cultural e a subsequente campanha contra Lin Piao e Confúcio, em 1973/74. Em 1980 já havia muita coisa res-taurada, as muralhas da cidade começavam a regressar à sua secular imponência, o grande complexo onde residiram os descendentes

do Mestre, 74 gerações da família Kung (de Kung Fuzi, Confúcio) voltavam a estar aber-tas ao público, com os interiores novamente pintados e decorados. Vale também a pena a visita ao cemitério dos Kung, um amplo espaço muralhado, oval, com milhares de ci-prestes, tumbas com muitos séculos e umas centenas de animais mitológicos. Aqui eram enterrados apenas os descendentes directos de Confúcio, uma espécie de nobreza here-ditária, a única existente ao longo de toda a História da China. Na altura, fiz as foto-grafias da praxe, inclusive diante do túmulo de Confúcio, acabadinho de restaurar, e de-ambulei à vontade pelos espaços dos mortos mais conhecidos do império.Qufu, situada na província de Shandong, a meio caminho entre Pequim e Xangai, é hoje um dos grandes pólos turísticos da China, sobretudo do imenso turismo inter-no, os milhões de pessoas que viajam e bus-cam os lugares onde a história se encontra com o modo chinês de olhar, sentir e estar

no mundo. E basta ir à net, ver fotografias recentes de Qufu, para comprovar como a cidade tem sido rejuvenescida e alindada.O grande poeta Du Fu (712-770), com Li Bai o maior poeta da China, no fim da sua atri-bulada vida escreveu estes versos, a con-cluir um poema enviado a um amigo.

Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?Sábio, salteador de estradas, todos regres-sam ao pó.Para quê tanta tristeza, tanto queixume?Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho.

Em Qufu, em Vila Velha de Ródão, numa cidadezinha do Alasca, vamos esconder uma lágrima e beber uns copos de vinho alentejano, um velho whisky escocês, uma excelente aguardente de sorgo chinesa, tudo em honra de Confúcio e dos simples ou rebuscados prazeres da vida.

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Poucos realizadores contemporâneos poderiam ter suscitado tanta curiosidade quanto ao seu futuro quanto Kim Ki-duk. Que tenha levado tanto tempo a ser res-peitado é incompreensível. Se filmes como Birdcage Inn, Bad Guy ou Address Unknown (aqui apreciado e admirado) podem ser produtos que dificilmente promovam estima junto de um público não coreano, é difícil de perceber como é que filmes como Samaritan Girl, Time ou 3-Iron não viram essa estima imedia-tamente estender-se sobre eles. A crueza que alguns deles contêm, no trato huma-no e no trato com os animais, também agastou algum público excessivamente correcto politicamente.Que tenha, ao invés, recolhido algum favor com um dos seus filmes mais bonitinhos e desinteressantes, Spring, Summer, Fall, Winter ... and Spring, é prova de que um cinema turístico (sim, este é um adjectivo que o desconsidera) tem um poder que os seus outros filmes, muito mais metálicos e agressivos, menos vegetais que aquele, não conseguiram congregar enquanto não fo-ram entendidos no seu conjunto. Pietà é mais um filme coreano com mães (ou melhor, sem mãe). Menos sentimen-tal que outros filmes coreanos recentes que sobre o mesmo se debruçam e infi-nitamente diferente dos muitos que no Japão se produziram ao longo da sua his-tória fílmica (ao ponto de terem criado um sub-género). É outro filme violento de uma sociedade que escolheu represen-tar essa violência no ecrã, uma violência que se manifesta domesticamente a vários níveis, sobre as mulheres, pela implacá-vel imposição de sucesso a todo o custo que recai sobre filhos e os homens da

casa, pelos jogos de poder doméstico que permitem às sogras todo o tipo de prepo-tências. A tudo isto se junta a violência de um país que ainda é essencialmente rural e que testemunhou num muito curto espaço de tempo, talvez como nenhum outro, uma ocupação, uma guerra muito traumática, duríssimas ditaduras militares e civis e um desenvolvimento económi-co e tecnológico conseguido num espaço de tempo curtíssimo. A Coreia do Sul é hoje um mar de cicatrizes, muitas delas por sarar, um tecido densíssimo de recri-minações, injustiças e incompreensões. O seu cinema, especialmente através de Kim Ki-duk, Park Chan-wook ou Bong Joon-ho, tem retratado estas tensões de um modo que nenhum outro, ao mesmo tempo que, pela primeira vez, com expo-sição e sucesso internacionais.Assim, este resulta em outro filme onde se cumpre obsessivamente um programa metódico de inflicção de dor, um outro filme em que se serve uma vingança fria à moda de Park Chan-wook. Pode dizer-se que este hábito criativo constitui hoje na Coreia um género próprio que entrou já numa fase de repetição.Pietà é, senão uma peça de grande pri-mor, um marco de maturidade. Não ten-do nada a provar, este filme tem o ritmo natural dos que caminham sem hesitação.Pietà continua o envolvimento claustro-fóbico de muitos dos filmes de Kim Ki--duk. Do barco em The Bow, do setting rural de Address Unknown ou do bairro podre e pobre onde a heroína é obriga-da a prostituir-se em Bad Guy (um filme muito doloroso, muito coreano, muito desconhecido). Este último e Pietà qua-dros implacáveis e brutalistas de uma face

coreana que os turistas não vêm, de um frio que não sentem, de um desconforto e de uma crueldade que não entendem. Os bairros pobres destes dois filmes, para lá de outros exemplos, são a imagem de uma chaga aberta que Kim Ki-duk filma metodicamente, em staccato, com paixão e sem compromissos. Neste seu último filme esta impressão endurece-se. As víti-mas do colector de dívidas, que é o cen-tro da história, vítimas que inspiram mui-to pouca compaixão, são pequenos pro-prietários de atravancadas lojas de metal, serralharias escondidas em ruas estreitas e obscuras (uma recriação do antigo bairro pobre de Cheonggyecheon?), atafulhadas de tubos, chapas e maquinaria que é uma representação da frieza (e do cheiro) das relações humanas que seria um pouco for-çada não fosse tão brutalmente bela. Este será, quero lembrar, um dos mais urbanos filmes deste autor, mesmo que se trate de uma cidade muito particular, labiríntica, silenciosa, suja e em vias de desapareci-mento. A cidade moderna e vibrante é ao lado, muito perto, mas não ali.Não há praticamente carros, apenas ruas estreitas, coelhos, galinhas, enguias e mu-lheres, e a cena que é filmada num bairro comercial com muitas pessoas contrasta obscenamente com o resto do tom do filme.Mas poder-se-á apontar a esta história uma falha. Kim Ki-duk não está a conse-guir libertar-se de si próprio. Poder-se-á ver envolvido numa teia de repetições De si próprio e de outros autores coreanos. Há também alguns efeitos banais que o limitam. Segue, de modo não muito ori-ginal, uma mecânica que o cinema core-ano tem exibido ao longo destes últimos 12 anos. O seu primeiro terço é muito

prometedor. O bloco central é estacioná-rio e não foge a alguns lugares comuns. Mas depois. Depois começa a reformular--se através de uma série de alterações de percurso que lhe permitem renascer e re-forçar a dolorosa rede de interacções que apresentara antes. Contudo, esta repeti-ção esquemática pode não ser vista como uma limitação mas como uma metálica su-blinha do desconforto que percorre este cinema. Este esquema, contudo, ameaça estar para ficar, bandeira de um ciclo do cinema deste país que parece estar a ter dificuldade em se renovar. Curiosamente, Pietà começa com uma cena de mastur-bação, que se repete. Funciona esta como imagem de uma falta mas não deixa de apontar para a incapacidade deste cinema em desbloquear-se que em cima se nota. Por fim, parece apresentar, para quem co-nhece o percurso deste mais interessante dos realizadores coreanos, poucas novi-dades. Se bem que no seu aspecto essen-cial permaneça a vontade de chocar, esta é menos solitária e pintada de tom um pouco mais comercial. O percurso deste autor coreano pode vir a assemelhar-se com o de outro autor de que foi nestas linhas recentemente apreciado a propósi-to de um filme recente e que da singula-ridade parece ter caído numa espécie de comercialismo de alta qualidade – Wong Kar-wai. No entanto, até Pietà, Kim Ki--duk permanece menos comprometido e livre mas perigosamente perto de resvalar para a descaracterização. Neste filme tal não acontece ainda. Nele permanecem as tensões, a violência, o insólito, os de-sajustes, o desespero a beleza crua e a paixão de outros dos seus filmes. Apetece perguntar por quanto mais tempo.

luz de inverno Boi Luxo

Pietà, Kim Ki-duK, 2012

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MesMo que padecendo de “retromania” aguda (Simon Reynolds explica), de quando em quando, o mundo da música ainda vai sen-do sobressaltado por notícias de regressos que geram uma genuína comoção. No topo dos mais aguardados estavam, havia mais de 20 anos, os My Bloody Valentine, que, desde “Lo-veless” (1991), disco que ajudou a redefinir o significado de “seminal” e o estatuto de “culto”, optaram pelo silêncio, apenas entrecortado, aqui e ali, ora por rumores de um novo disco, ora por novas músicas de Kevin Shields (com-positor, vocalista e guitarrista) a solo, como aconteceu na banda sonora do filme “Lost in Translation”, de Sofia Coppola. Dizia eu que “estavam” os My Bloody Valentine, porque já não estão.

Foi no último dia 2 de Fevereiro que a ban-da irlandesa pôs, finalmente, cá fora o seu ter-ceiro álbum, simplesmente intitulado “m b v”. Porque não há fome que não dê em fartura, uns dias antes, 23 de Janeiro, foi editado, a partir do Japão, um aperitivo: “Yellow Loveless”, um álbum de homenagem em que todos os 11 te-mas de “Loveless” são alvo de versões por artis-tas japoneses.

Desde o início, a influência dos My Bloo-dy Valentine, e de “Loveless” em particular, foi um fenómeno que a passagem do tempo não esmoreceu, muito pelo contrário. Do se-gundo disco dos irlandeses poder-se-ia dizer o que alguém terá dito a propósito do pri-meiro disco dos Velvet Underground: “‘The Velvet Underground & Nico’ vendeu apenas alguns milhares de cópias, mas toda a gente que comprou o disco formou uma banda.” Em termos de influência e de definição da história em que se inscrevem, de facto, poucos discos há como o primeiro da antiga banda de Lou Reed e como o segundo da banda de Kevin Shields.

No caso dos My Bloody Valentine, uma das marcas indeléveis é o som que consegui-ram criar (e que continua a ser alvo de imita-ções) com recurso a vários efeitos e técnicas – desde a distorção ao “delay”, reverberações, alterações dos tempos, “sampling” –, tudo congeminado para erguer muralhas sónicas de intransponíveis guitarras que pareciam amparar com inusitada ternura vozes tímidas, algo frágeis mas orgulhosamente melodiosas. E encantadoras.

A par com os Cocteau Twins e The Jesus & Mary Chain, os My Bloody Valentine são os lídimos representantes do “shoegaze”, o género que foi buscar nome à atitude flácida dos elementos das bandas em palco, sempre com os olhos pregados no chão, onde se es-

tendiam os pedais que processavam os efei-tos das guitarras.

Passados cerca de 20 anos, um pouco por toda a Ásia a cena “shoegazing” tem ainda hoje inúmeros adeptos, em particular nas Fili-pinas e na Indonésia. Também o Japão tem a sua quota-parte de guitarristas ensimesmados, alguns dos quais picam o ponto em “Yellow Loveless” (casos dos Tokyo Shoegazer, que assinam duas versões competentes, mas mui-to coladas aos originais, “Only Shallow” e “I Only Said”, e também dos Lemon’s Chair, a outra banda responsável por dois temas que não fogem muito dos originais, “To Here Knows When” e “What You Want”). Toda-via, esta homenagem nipónica não se fica pela reverência aturdida e, como na frase de Newton, há quem suba aos ombros dos gi-gantes para ver mais longe.

Um dos melhores momentos do disco, porque um dos mais inesperados, deve-se às Shonen Knife, que se lançam à transforma-ção de “When You Sleep” num rebuçado “yé--yé”, com direito a coros e tudo; é como se as imensas camadas do original fossem des-

cascadas até sobrar apenas a melodia que os My Bloody Valentine sempre foram hábeis em esconder.

Outro momento memorável pertence aos GOATBED, senhores de uma electrónica bi-zarra que mergulha “Loomer” numa solução feita à base de ácido que coloca os My Bloody Valentine junto de contemporâneos mas dis-tantes “ravers” espalhados algures num campo verde britânico.

Um dos temas mais emblemáticos de “Lo-veless”, “Touched”, instrumental com apenas 56 segundos na versão original, é aqui es-tendido pelos Sodom Project, que cometem a proeza de perpetrar uma quebra “dubstep” num tema dos My Bloody Valentine.

“Sometimes”, talvez o tema mais conhe-cido de “Loveless”, é apresentado neste disco a cargo dos Boris, o grupo experimental que funde “metal”, “noise”, “ambient” e o que mais estiver à mão. Distendendo o tempo original de “Sometimes”, os Boris acentuam as quali-dades planadoras de uma música que, apesar de ter os olhos postos no chão, teve sempre, afinal, a cabeça e o coração noutro lugar.

Amor de distorção

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perspectivas Jorge rodrigues simão

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metrópolis

PolíticA sem futuro“We’re not Japan. In America, the bet is still that we will somehow find ways to get people spending and investing again. To expect the American governing class at the top to change the direction of the economy that has brought its members prosperity-yes. To expect a confused and divided citizenry to agree on a common economic agenda and impose it on the governing class-yes. What then is the citizen to do? Wait until the next economic catastrophe? Perhaps if, next time, instead of just twelve trillion dollars, the markets lose twenty-five trillion dollars, and instead of reaching percent, the unemployment rate goes to 20 percent, perhaps then our governing class will act for the good of the country. Or perhaps then the people will rise up”.

The Servant Economy: Where America’s Elite is Sending the Middle Class

Jeff Faux

As sociedAdes dos países desenvolvidos do ocidente, não em exclusivo, estão a criar uma nova pobreza, que não se pode consi-derar como fatalidade, mas resultado de uma negligência financeira. Esta situação não é resultado, apenas da crise financeira de 2007-2008 e consequente recessão, porque, surge de más práticas financeiras, que se têm acu-mulado, durante os últimos trinta anos.

É um escândalo que perante a ameaça do desemprego, que apresenta as maiores taxas, entre a população juvenil, tomem consciên-cia e constatem que não necessitam dessa miséria, desesperadamente aparecida para viverem, porque são o único futuro, que pode alterar o “estado de coisas reinante”.

Sabemos que existe uma relação entre o desemprego, os delitos contra a proprie-dade e a população prisional, ou seja, entre desemprego, delinquência, criminalidade, violência, marginalidade e exclusão social, todas faces da mesma moeda. Quase 50 por cento dessa população, nos Estados Unidos, passou em algum momento da sua vida, pela situação de desemprego.

Os furtos com lesões corporais e frac-tura, em duas décadas aumentaram 60 por cento na Alemanha. A nossa sociedade, para essa juventude, chegou ao fim. Não existe futuro, “no-future”, é o seu clamor ator-mentado. Quem tem esperança, poupa no presente, para investir no futuro. Quem não tem esperança e não deseja nenhum futuro, desfruta o presente sem responsabilidade, contraindo dívidas, (uma das características dos pacientes da doença mental, denomina-da, por “bipolaridade”, ou “transtorno maní-aco-depressivo”, que põe em estado de sítio e de choque, quem com eles convive, e que vão aumentando catastroficamente, segun-do a “OMS”) que os seus filhos, ou outros, terão de pagar no futuro.

A esperança ou o desespero de uma so-ciedade, espelham-se nos seus investimen-tos e nas suas dívidas. As sociedades dos países desenvolvidos e de alguns países em desenvolvimento ou emergentes, não são apenas credoras dos países subdesenvolvi-dos, menos avançados ou menos desenvol-

sição ao darwinismo social, no seu livro “Mu-tual Aid: A Factor of Evolution”, publicado em 1902. Os seres humanos, na comunidade tor-nam-se ricos (desconsiderando a propriedade) em amigos, colegas, vizinhos, entre outros, podendo confiar em caso de necessidade.

Apenas colectivamente, como comuni-dade, é possível as pessoas ajudarem-se mu-tuamente, na maioria das dificuldades, pelo que colectiva e solidariamente, como comu-nidade têm a força suficiente para traçar o seu destino. Se ao invés, se dividem, tornam-se susceptíveis de serem dominadas, segundo o antigo ditado romano “divide ut regres – divi-de e reinarás ou vencerás”. A comunidade é o verdadeiro escudo da liberdade do ser huma-no, significando, que o atentado contra a co-munidade, é também, contra a sua liberdade.

Todavia, a comunidade é por tradição conservadora, mesmo que as pessoas pos-sam ser criativas. Os seres humanos desen-volvem-se em comunidade, e a comunidade humana transforma as pessoas. A sociedade é sempre centralista e estabelece nas metró-poles, os grandes centros industriais e ad-ministrativos, empobrecendo os pequenos municípios e desertificando o campo.

A reconstrução da sociedade, deve passar pelas pequenas unidades territoriais adminis-trativas, com autonomia política, adminis-trativa e financeira, na maioria das situações, mais específicas, mensuráveis e habitáveis, o que obrigará à transferência de funções e ta-refas dos órgãos centrais. A descentralização, na era digital não constitui problema técnico.

A sociedade tem nas comunidades in-dependentes, dimensões mais vivas e hu-manas. Toda a delegação de tarefas, que podemos realizar conduz à alienação. O trabalho é uma exigência fundamental da vida humana, porque não apenas assegura a subsistência material, mas também, propor-ciona reconhecimento social e auto-estima pessoal, ou abreviando, forma a personali-dade. O direito ao trabalho é algo mais que um direito material, pois pertence ao âmbito mais intrínseco da pessoa. A forma pela qual se tem de trabalhar e repartir as possibilida-des do trabalho determinará não apenas o destino pessoal, mas também, o colectivo.

A China entra no dia 13, no “Ano da Serpente”, tempo difícil, pois a crise do euro tem-se propagado às economias emergen-tes, e segundo o último relatório da “OIT”, no Sudeste Asiático e Pacífico, o desem-prego é de 13,1 por cento, aumentando até 2017, para 14,2 por cento.

Sendo o “Ano da Serpente”, caracteriza-do pela calma, reflexão e planeamento, con-dições necessárias para a resolução de tão preocupante situação, desejamos que seja encontrada a solução para a sua diminuição, e que não seja devida ao desalento dos jo-vens, em deixar de procurar emprego.

Feliz Ano Novo da Serpente!!!

vidos, cada vez mais endividados, mas co-meçando pelos Estados Unidos e passando pela União Europeia, vão agravando cons-tantemente o seu deficit público, com imen-sas dívidas, prejudicando os nossos filhos e as gerações futuras, com pesadas cargas, tornando a sua vida quase impossível. É a política sem futuro, “no-future-politics”.

Apesar da situação de desespero das so-ciedades dos países desenvolvidos, acom-panhadas por algumas de países em desen-volvimento, continuam a proteger-se umas contra as outras, na corrida armamentista, vivendo no “Sistema da Dissuasão Nuclear”, com temor à mútua aniquilação, investin-do mais em meios para a segurança, desde o mais sofisticado equipamento bélico e nuclear, até à “Iniciativa de Defesa Estraté-gica”, em que a certeza de uma destruição recíproca, após o termo, há muito da “guerra fria”, em 1991, alargada a grupos terroristas, após o 11 de Setembro de 2001, com maior intensidade, deve garantir a segurança.

Quantos mais meios investirem nesta segurança, menor valor terá, o que se quer assegurar. A dissuasão nuclear, ameaça não apenas aniquilar o potencial inimigo, mas toda a humanidade e forma de vida do pla-neta, ou seja, encerra o perigo final de um genocídio político. A humanidade no seu conjunto tornou-se vulnerável, e são uns re-duzidos sistemas político-militares, no mun-do multipolar ou uni-multipolar, que deci-dem sobre a sua extinção ou sobrevivência.

Temos de reconhecer como afirmou, o filósofo judeu-alemão, Günther Anders, que em Hiroshima e Nagasaki começou, em 1945, o possível fim da humanidade. O fi-nal do futuro é uma constante possibilidade. A sociedade industrial moderna, produziu mais riqueza que nenhuma outra, ao largo da história. Mas produziu riqueza à custa da natureza. Até ao presente, nenhuma socie-dade humana tinha causado tantos danos e tão irreparáveis ao meio ambiente.

A crise ecológica, que as nossas socieda-des tem conduzido a natureza e os seres hu-manos, converteu-se, numa verdadeira, ca-tástrofe ecológica, pelo menos para os seres vivos mais débeis, neles se incluindo 1300 milhões de pessoas (número que aumen-tou), ou seja, 25 por cento da população mundial (dado de 2005 do Banco Mundial).

Os líderes políticos que têm o dever de re-duzir o maior risco que a humanidade corre, simplesmente, ignoram irresponsavelmente, sabendo que a natureza se pode degradar de tal forma, que um dia a humanidade, como no tempo dos dinossauros, pura e simples-mente extinguir-se-á como espécie.

O que torna este pensamento mais preo-cupante, é a suspeita de que a decisão podia ter sido tomada de forma irreversível, por-que não é possível controlar os gases tóxi-cos que ascendem e destroem a camada de ozono que rodeia o planeta, e infiltra-se no

seu solo. O destino da humanidade, deste modo, estaria traçado antes da evidência dos sintomas da sua extinção. Assim, não te-ríamos futuro, mas apenas um presente, que não tardará em converter-se em passado.

A sociedade criou um tipo de individua-lismo, em que cada um, procura apenas con-quistar e assegurar a sua liberdade, e se pos-sível alargá-la, sem que ninguém se interesse demasiado, por proteger a dos outros. Por força, do princípio da concorrência, os mais aptos, hábeis e delinquentes (a “Organização Internacional do Trabalho - OIT”, estima que existam quase 400 milhões de pessoas que se dedicam à economia informal ou subterrânea, paralela, da periferia – o enfraquecimento do controlo do poder paternal, insucesso esco-lar, empregos precários e desemprego, são algumas das causas, faz deslocar as pessoas para este tipo de economia ilegal e de prática delinquente) são recompensados, enquanto os débeis e menos capazes são punidos.

Todavia, a comunidade é por tradição conservadora, mesmo que as pessoas possam ser criativas. Os seres humanos desenvolvem-se em comunidade, e a comunidade humana transforma as pessoas

Se acrescentarmos o facto, de que em princípio, o emprego, profissão ou posto de trabalho é um bem cada vez mais escasso, então surge a luta de todos contra todos, e daí resulta uma sociedade de oportunistas, aumentando diariamente, o número de pes-soas atiradas para os mais baixos estratos.

A ideologia de que “nunca existe o sufi-ciente para todos”, está a criar seres humanos solitários e afastados, privando-os de verda-deiras relações com os demais, provocando--lhes a morte social e a doença psicológica/mental. Os seres humanos, apenas poderão a voltar a viver de forma humana na socieda-de, se as comunidades forem reconstruídas e reconhecerem que as pessoas, só podem de-senvolver a sua personalidade, num âmbito relacional e comunitário.

A alternativa à pobreza nunca foi a pro-priedade, mas a comunidade, em que o prin-cípio vital é a ajuda mútua e a solidariedade, quer em relação ao mundo animal, quer ao dos seres humanos, como demonstrou o geógrafo e escritor russo Piotr Kropotkin, em contrapo-

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metrópolis tiago Quadros

do objecto Ao esPAço. do esPAço Ao lugAr.

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eM colAborAção coM Herzog & de Meuron, o artista Ai Wei Wei foi convidado pelo Governo Municipal de Jindong a conceber e construir dezasse-te pequenas estruturas na margem norte do rio Yiwu, em Jinhua. Dezassete ar-quitectos oriundos de sete países apre-sentaram propostas de pavilhões para este lugar, com uma largura média de 80 metros por um comprimento total de 2200 metros. Restrições orçamentais di-taram que apenas fosse permitida a utili-zação de materiais da região. Herzog & de Meuron já estavam a tra-balhar no plano director do novo centro urbano da zona de Jindong de Jinhua. Segundo os arquitectos suíços, para o pavilhão Jinhua Structure I – Cube , concluído em 2006, que Ai Wei Wei os convidou a projectar, “tudo parecia muito simples e lógico: o nosso pavi-lhão de Jinhua seria apenas uma concha no mesmo padrão geométrico que já tí-nhamos desenvolvido para os edifícios de Jindong. Assumindo características de um esquema de ordem dominante, o padrão iria cobrir janelas, portas e todas as fachadas como um elemento lúdico e ornamental, que contrastaria com o cor-po do edifício em alvenaria”.Toda a nova construção deve ser enten-dida como oportunidade de revelação de um lugar. As características essen-ciais que separam a arquitectura das ou-tras artes de expressão visual, fundam-se nos critérios espaciais e tipológicos, e na gravidade que assegura a natureza es-sencialmente estrutural e construtiva do projecto arquitectónico. O espaço é de-terminado pelas propriedades concretas da terra e do céu. A fenomenologia do “espaço natural” ocupa-se, de forma sis-temática, de toda esta totalidade feita de planícies, vales, colinas e montanhas. A este propósito, Norberg-Schulz defen-de que a terra, quando controlada, é “o palco cénico da vida quotidiana”, e que quando entre os homens se estabele-cem relações, carregadas de significado, a paisagem natural origina a paisagem cultural.Entre os espaços naturais podemos referir a paisagem romântica, com ex-pressão máxima na Escandinávia; a paisagem cósmica, revelada com o seu máximo vigor no deserto; e a paisagem clássica, que pode ser definida em ter-mos de lugares individuais distintos. Contudo, os três tipos de paisagem apresentados são arquétipos que rara-mente se equacionam de forma “pura”. Assim, poderíamos antes falar de “pai-sagens compósitas”. Ainda a propósi-to do espaço natural, Norberg-Schulz considera que o homem, para poder habitar a terra, deverá compreender a

interacção céu/terra enquanto conceito existencial, considerando que “o céu é a parábola da terra”.Em Jinhua Structure I – Cube, Herzog & de Meuron comparam o resultado a uma “estrutura molecular ou código ge-nético”. Ao projectarem o padrão (uma acumulação de linhas interseccionadas) num cubo imaginário, criaram uma “gre-lha espacial virtual” com um computa-dor poderoso, gerando “as formas e os espaços inconcebíveis e inimagináveis do pavilhão”. Apesar da complexidade das formas assim geradas, foram usados métodos de construção convencionais, como o betão pigmentado. Herzog & de Meuron criaram duas outras versões da estrutura: Jinhua Structure II – Vertical, um projecto em madeira laminada para o Berower Park da Fundação Beyeler em Basileia e Jinhua Structure III – Hori-zontal, uma estrutura temporária pre-vista para Génova que não chegou a ser executada.Em Jinhua Structure I – Cube, estru-tura e significado são fundamentais. A estrutura de favos de mel do pavilhão representa uma invulgar tentativa de explorar a “função” do habitar: “Abita-re in una casa significa perció abitare il mondo” (Norberg-Schulz). O pequeno pavilhão de Herzog & de Meuron pro-cura erguer-se sobre a complexidade das relações do espaço humano (do es-paço natural à sua ocupação), entre os conceitos de “orientação” e de “identi-ficação”, que determinam os aspectos essenciais das relações entre o homem e o ambiente. Nesta obra são revisitadas questões essenciais à arquitectura. Fala-mos da ordem e da razão. Do prazer do olhar, do escutar, do sentir e do tocar. Do percorrer a arquitectura. A obra de Herzog & de Meuron retoma a ordem inevitável – a ordem da construção, o sentido da ordem, a ordem e o caos. E o arquitecto convida-nos a participar na composição do objecto, na sua articu-lação e continuidade. Tudo é medido pelo nosso respirar, pelo modo como enfrentamos o objecto. Ao nível do es-paço propriamente dito, os elementos de definição espacial estão presentes – a profundidade, a densidade e a abertura. E as superfícies e aberturas invulgares de Jinhua Structure I – Cube podem não ter outro uso que não seja explorar o es-paço e a luz.Se do objecto ao espaço é o primeiro in-terlúdio, do espaço ao lugar é o segundo interlúdio (por interlúdio entender-se-á face, ou aspecto, de um problema). O lugar é o sítio, composto por limites e níveis. É a orientação e o percurso. O problema da forma e da matéria é o do epílogo do projecto.

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gente sagrada José simões morais

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o imortAl tie guAi li

O segundo mais importante dos 8 Imortais, Tie Guai Li, que significa o Sr. Li com uma muleta de ferro, tinha uma cara preta e grandes olhos, com um aspecto rude e mal tratado, a que hoje chamaríamos um maltrapilho. Era coxo e usava uma muleta de fer-ro, transportando sobre o ombro uma cabaça com que aliviava o sofrimento dos pobres e doentes. Por isso está no panteão tauista também como deus da Medicina. De temperamento irascível tornou-se um ser bondoso e benevo-lente, após Lao Zi o educar.Antes de Tie Guai Li se tornar um dos Imortais, era conhecido pelo nome de Li Xuan, quando se casou e teve um fi-lho. A família vivia com poucos recur-sos, já que a sua dedicação ao Tao lhe ocupava longo tempo e a materialida-de era coisa de menor importância. No entanto, quando olhava para os seus vizinhos, que viviam desafogadamente sentia que a sua família merecia mais e não apenas a pequena quantidade de comida que lhes podia arranjar. Na noite da passagem do Ano Novo, encontrou a sua esposa a chorar e quando lhe perguntou as razões, ela mostrou a pobreza em que viviam comparando com a riqueza dos seus vizinhos. “Os nossos vizinhos estão a celebrar com um lauto jantar de família enquanto nós nem se quer temos nada para comer. Não temos comida e so-fremos com o frio, enquanto as casas dos nossos vizinhos todas estão ilumi-nadas e nós nem uma luz temos.” Li Xuan ouvindo as queixas da sua es-posa, nada disse. Precisava de pelo me-nos ter um pouco de azeite para alu-miar a casa e por isso pensou ir pedir ao vizinho que lhe cedesse um pouco. Mas quanto mais temos, menos quere-mos saber das dificuldades dos outros e por isso, este recusou-lhe o tão peque-no pedido. Então fazendo uma estátua de madeira para ver se o vizinho estava atento, colocou-a dentro da casa deste. O vizinho logo deu pelo intruso e com uma faca cortou a cabeça ao boneco. Então Li Xuan, com medo fugiu e com vergonha deixou a sua própria casa. Vagueou e foi praticar tauismo isolado numa montanha. Passou a viver numa gruta levando uma vida disciplinada durante 40 anos, muitas vezes sem dormir nem comer. Certa vez quis ir visitar o seu mestre, Lao Zi e para que tal fosse possível, teve que deixar o corpo, já que ape-nas a alma poderia fazer essa viagem.

Pediu a um seu discípulo para durante sete dias tomar conta do seu corpo, en-quanto estava fora e se após essa data não regressasse então, que lhe cremas-se o corpo. Tinham passado seis dias, quando um parente do discípulo veio-lhe dizer que a mãe estava gravemente doente e às portas da morte. Apercebendo-se do dilema em que o discípulo estava, entre deixar de tomar conta do corpo do mestre, como lhe tinha sido pedi-do, ou optar por ir ver a mãe antes dela passar esta vida, ao olhar para o corpo de Tie Guai Li, o parente aconselhou--o a cremar o corpo, pois estava morto e iria entrar em putrefacção. Devia-se despachar para ainda poder ver a mãe e assim o fez.No sétimo dia quando Tie Guai Li re-gressou, não encontrou o seu corpo. Por sorte viu o de um mendigo que tinha passado esta vida pouco tempo antes e nele reencarnou.Tie Guai Li atingiu o estado de Imortal.A esposa trabalhando duramente con-seguiu sustentar a casa e o filho que passou os Exames Imperiais, tendo-se tornado um Oficial. No dia do casamento do filho, Tie Guai Li regressou à sua antiga pequena casa, mas quando lá chegou esta era já uma casa grande e estava cheia de con-vidados, todos ricamente vestidos.Sentiu-se com muita vergonha por ter tentado roubar o óleo aos seus vizi-nhos e escreveu um poema na parede da casa.Noite de Ano Novoroubo óleofaca afiada corta cabeça ao boneco de madeira.As crianças têm a sua vida.Não temos que trabalhar como um búfalo ou cavalo para as criançaspois elas trabalham para elas.Quando alguns convidados viram um mendigo a escrever na parede, come-çaram a gritar e atraída pelo alvoroço, a esposa veio ver o que se passava. Ao ler o poema, logo percebeu ter o seu marido ali estado. Ao longe ainda viu Tie Guai Li, mas nesse mesmo instante ele transformou-se num dragão e de-sapareceu.Em Macau há muitos templos com os 8 Imortais, encontrando-se a estátua de Tie Guai Li aqui apresentada no tem-plo Hong Kung na Avenida Coronel Mesquita.

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Se nem mesmo os materiais da floresta e do campo são desperdiçados, porque seriam as pessoas rejeitadas?

HuAi NAN Zi 淮南子 o livro dos mestres de Huainan

Do EstaDo E Da sociEDaDE – 35

Sem serenidade, não há forma de iluminar o carácter próprio. Sem calma, não há forma de perseverar. Sem magnanimida-de, não há forma de abraçar ninguém. Sem bondade, não há forma de cuidar de toda a gente. Sem justiça, não há forma de fazer juízos sãos.Assim, um líder sábio emprega as pessoas do mesmo modo que um experimentado artesão trabalha a madeira. Grande e pequeno, longo e curto –, existe sempre um uso apropriado para tudo. Régua e esquadro, quadrado e redondo –, cada um tem a sua aplicação. Apesar das formas serem diferente

e os materiais diversos, nenhum há que não possa ser usado.Até o veneno mais virulento pode ser útil nas mãos de um mé-dico conhecedor. Se nem mesmo os materiais da floresta e do campo são desperdiçados, porque seriam as pessoas rejeitadas?Porém, quando as pessoas não são eleitas para um tribunal, ou quando não são honradas nas províncias, tal não significa que não sejam dignas de mérito –, tal quer apenas dizer que os postos que lhes estão disponíveis não constituem o trabalho que lhes é apropriado.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um

conjunto de sábios taoistas na corte de Huainan (actual Província de Anhui),

no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).

Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sábios destilaram e refinaram o cor-

po de ensinamentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang

Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu

An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selec-

ção de extractos fundamentais, efectuada a partir do texto canónico completo

pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I,

Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos encontram-se organizados em quatro

grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.

O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na

secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

di ZANg WANgo rei do inferno

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