I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos 23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES 1999 GT 10 - IDENTIDADE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE SABERES Coordenadores: Prof.ª Dr.ª Aissa Afonso Guimarães (UFES) Prof. Dr. Osvaldo Martins de Oliveira (UFES)
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I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
23 a 25 de setembro de 2015, UFES, Vitória-ES
1999
GT 10 - IDENTIDADE, MEMÓRIA E TRANSMISSÃO DE
SABERES
Coordenadores:
Prof.ª Dr.ª Aissa Afonso Guimarães (UFES)
Prof. Dr. Osvaldo Martins de Oliveira (UFES)
I CONACSO I Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios da inserção em contextos contemporâneos
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2000
TRADIÇÃO E MEMÓRIA: LINGUAGEM POÉTICA NA ESCULTURA DE
IRINEU RIBEIRO
Abinair Maria Callegari CAR/UFES
Resumo: Ressalta o processo artístico do escultor e ceramista Irineu Ribeiro que tem como a matéria
prima, de grande parte de sua produção, a argila do Vale do Mulembá, jazida denominada barreiro,
localizada no bairro Joana D’Arc, no município de Vitória, ES. No passado essas argilas, assim como
o processo de queima, eram utilizadas pelos índios tupis-guaranis, habitantes do litoral capixaba, na
confecção de seus utensílios. Esse costume foi passado para os escravos africanos que mantiveram a
herança ancestral, chegando aos dias atuais com o trabalho das paneleiras, do bairro de Goiabeiras,
na confecção de um dos maiores patrimônios da cultura do estado, a panela de barro. Irineu empresta
sua linguagem poética como meio para a circulação e manutenção dos elementos contidos nessa
tradição. Este estudo propõe contribuir para o registro e memória da cultura capixaba e foi subsidiado
por entrevista com o próprio artista e por narrativas de autores como Jacques Le Goff, Marina de
Andrade Marconi e Zélia Maria Neves Presotto, que abordam o tema nos aspectos histórico,
antropológico, material e da memória coletiva, dentre outros que se dedicaram e se dedicam à causa
da negritude e suas contribuições para a formação da identidade capixaba.
Abstract: It emphasizes the artistic process of the sculptor and ceramist Irenaeus Ribeiro whose raw
material of his works is the clay from Vale do Mulembá, deposit called “barreiro”, located in the
neighborhood of Joana D’Arc, in Vitória, ES. In the past these clays, as well as the firing process were
used by the Tupi-Guarani Indians, inhabitants of the Espírito Santo coast, in the making of its utensils.
This custom was passed to the African slaves who maintained the ancestral heritage reaching today with
the work of the potters from the neighborhood of Goiabeiras in the making of one of the largest state’s
cultural asset, the mud pot. Irineu lends his poetic language as means for running and maintenance of the
elements contained in that tradition. It aims to contribute to the record and memory of Espirito Santo’s
culture and was subsidized by interviews with the artist himself and with narratives of authors like Le
Goff, Marina de Andrade Marconi and Zélia Maria Neves Presotto, that address the subject in historical,
anthropological, material, collective memory aspects and among others who dedicated and devoted to the
cause of blackness and its contributions to the formation of capixaba identity.
Keywords: tradition; memory; capixaba identity.
Introdução
Este trabalho apresenta um dos aspectos tratados na pesquisa realizada como Trabalho
de Conclusão de Curso de Graduação em Artes Plásticas/Bacharelado, da Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES), cuja temática se enquadra na linha de pesquisa História e Teoria da
Arte. Foi feito um estudo teórico sobre os trabalhos escultóricos do artista capixaba Irineu
Ribeiro, com o intuito de aprofundar o conhecimento sobre suas obras, no que se refere à relação
de seu fazer artístico com a tradição, a memória e a identidade capixaba.
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A opção pelo artista Irineu Ribeiro se deu pelo interesse em contribuir para
incrementar a pesquisa sobre a linguagem da cerâmica, sendo esta pouco abordada em
pesquisas realizadas na Universidade, tanto na licenciatura, como também no bacharelado
em arte. E, sobretudo, por esta ocorrer nos trabalhos de um artista que utiliza a matéria prima
e o método ancestral de queima e tingimento das peças, similarmente às paneleiras de
Goiabeiras na confecção das panelas de barro, elementos estes constitutivos do Ofício das
Paneleiras de Goiabeiras, Patrimônio Cultural do Brasil1. Com isso Irineu estabelece uma
ligação visceral com sua cultura, uma amálgama de memória e contemporaneidade em um
processo de ressignificação de saberes tradicionais para suas manifestações no presente.
Para Celso Perota (1997), a cerâmica arqueológica encontrada no Espirito Santo2 está
classificada em três tradições, cada uma representativa de uma cultura indígena distinta: a
tradição UNA, a tradição Tupi-guarani e a tradição Aratu. E acrescenta: “Pela análise técnica
da atual cerâmica produzida na região de Goiabeiras, podemos afirmar que essa é uma
mistura de técnicas das tradições cerâmicas pré-históricas Tupi-guarani e UNA,
sobressaindo as usadas pela tradição UNA” (PEROTA, 1997, p. 14).
Para que essa tradição pré-histórica chegasse até nós, foi de fundamental importância,
nesse processo de transmissão, o papel daqueles que, mesmo não pertencendo ao grupo que
detinha esse saber originalmente, tomou-o por empréstimo3 e o fez circular mantendo-o vivo,
possibilitando que pudesse ser passado de geração para geração. Não obstante a condição ágrafa
desses grupos, a história não deixou de ser contada, pois em seus alicerces está a memória.
Jacques Le Goff (1990) defende que a memória coletiva não é uma característica
intrínseca de todas as sociedades, mas uma forma característica dos povos sem escrita. Porém,
Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (2006) alertam: “Não que a escrita seja um
marco entre os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos” (SILVA; SILVA, 2006). Por isso,
esses mesmos autores citam Jan Vansina, grande africanista, que defende que a oralidade é
uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade, no caso a de escrever.
1 O Conselho Consultivo apreciou e aprovou o pedido de Registro do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras na
sua 37º reunião, em 21/11/2002. A inscrição no Livro de Registro dos Saberes foi feita em 20/12/2002,
inaugurando mais que o Livro, o próprio instrumento do Registro. Em consequência, o Ofício das Paneleiras
foi declarado Patrimônio Cultural do Brasil. Conforme IPHAN Dossiê Iphan 3 – Ofício das Paneleiras de
Goiabeiras. Brasília: Iphan, 2006. p. 45. 2 Registro de cerâmica no Sítio arqueológico de Areal, localizado nas proximidades do morro Mestre Álvares,
na divisa dos municípios de Vitória e Serra, comprova que populações pré-históricas ceramistas estiveram na
região litorânea há cerca de 2.500 anos AP (Antes do Presente) (PEROTA, 1997, p. 13). 3 O sentido do termo “empréstimo”, neste contexto, significa não ter origem no próprio grupo, ou que foi
inventando por outrem (MENDONÇA, 2010, p. 38).
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Dessa forma pretendeu-se estudar as referidas obras para conhecê-las, oportunizando a
difusão desse conhecimento, dando-lhe visibilidade, não só entre o público no âmbito acadêmico
e social do estado, mas também para além de suas fronteiras. Mostrar a importância da obra de
Irineu Ribeiro no cenário artístico capixaba, evidenciando elementos que se conecta com a tradição
e a memória, como sendo uma contribuição para a formação de uma identidade estadual, foi nosso
principal objetivo nesse trabalho. E assim, justificar sua inserção na contemporaneidade, por
serem, tais elementos, pertencentes aos estudos culturais, sendo estes, conforme pontua Corassa e
Rebouças (2009), um dos aspectos ressaltados pela arte contemporânea.
1. Lugar, celeiro de memórias, tradição e pertencimento
Teóricos como o geógrafo chinês, Yi-fu Tuan e Mauro Guilherme Pinheiro Koury,
pensam o homem considerando sua relação com o lugar e com a cultura. Assim, inicialmente,
procuramos definir o termo “lugar”, que de acordo com Tuan (1980), a Geografia de
abordagem humanística, o meio ambiente e a visão de mundo estão estritamente ligados. Para
esse autor, o lugar é marcado por três palavras chaves: percepção, experiência e valores.
Considera o lugar como espaço vivido e onde com ele se estabelece uma relação afetiva. Em
seu livro Topofilia, o autor define o termo criado por ele como “o elo afetivo entre a pessoa e
o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vívido e concreto como experiência
pessoal” (TUAN, 1980, p. 5), numa referência à importância desses valores para motivação
daqueles que possuem a emoção do pertencer para realização de objetivos.
Portanto, é de grande relevância para a sociedade que sejam envidados esforços no
sentido de valorizar e divulgar toda manifestação artística produzida em seu interior, e que
esta, não apenas se torne conhecida, mas que cada sujeito, independentemente de sua origem
étnica e de sua posição social, se sinta representado por meio dela.
Este trabalho de pesquisa se reporta a questões que falam mais de perto de situações
significativas para muitas pessoas, e seu mérito está principalmente nisso, no despertar, ou mesmo
reforçar, o sentimento de pertença que segundo Koury (2004) “[...] está relacionado à aproximação
e à ligação com o local de origem. É uma ideia de enraizamento, em que o indivíduo constrói e é
construído, planeja e se sente parte de um projeto, modifica e é por ele modificado”.
Conhecendo melhor sua história e as manifestações artísticas de seu entorno, em
especial as que se propõem recuperar lembranças do cotidiano de um grupo (Fig.1), o sujeito
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se torna mais apto e capaz de com elas interagir, sem subestimá-las, e em uma relação
dialógica compreender melhor a si mesmo e também ao mundo que o cerca, atribuindo o
devido valor ao que lhe é estrangeiro, sem, contudo, se submeter a ele. Le Goff (1990, p.
411) escreveu a respeito: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,
procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que
a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.
Assim, essa pesquisa pretendeu contribuir para tornar o artista e seus trabalhos ainda
mais conhecidos, não só para o público acadêmico, mas também para a sociedade no âmbito
desse estado e quiçá para além de suas fronteiras.
2. Ludicidade na gênese da criação
Penso que não posso negar o meu passado.
O meu passado é a minha verdade, e por isso eu estou presente.
Irineu Ribeiro
Em depoimentos do próprio artista, por meio de entrevista ocorrida do dia 20 de janeiro de
2014, além dos diversos aspectos envolvendo seu trabalho, como trajetória, motivações e referências,
foi possível apreender particularidades de sua afável, porém forte personalidade e desenvolvida
espiritualidade, o que nos auxiliou na compreensão de suas escolhas no campo da arte.
Irineu afirma que a origem de tudo que faz hoje está nas brincadeiras da infância.
Considera que tenha sido uma criança solitária, e buscou, instintivamente, a companhia e o
prazer de modelar o barro produzido pelas águas das chuvas, numa demonstração precoce
de sua resiliência e leveza diante das adversidades. Em companhia das tias que coletavam
mariscos, o menino conheceu o manguezal4 quando aqui chegou, vindo do interior do estado
e se estabelecendo no município de Cariacica juntamente com a família. Com certa alegria
saudosa, relembra seu primeiro contato com esse ambiente:
Eu achava aquele universo todo muito gostoso... Para uma criança aquilo era
uma alegria! As brincadeiras com o barro das chuvas que quando eu vi que tinha
liga, que tinha plasticidade, eu pegava aquilo e fazia um monte de coisas:
bichinhos para presépios, construía casinhas... (CHISTÉ; SABINO, 2005, p. 4).
4 É uma região de transição entre o rio e o mar. É uma zona úmida característica de regiões tropicais e
subtropicais. Um dos ecossistemas mais importantes do Brasil, e muito presente no litoral do Espírito Santo. É
um ambiente que fornece alimento e proteção a inúmeras espécies de seres vivos. Disponível em:
124). Apesar dessa esperança, identificamos certa incerteza de que esses jovens de hoje
possam garantir a permanência desses rituais no futuro. Os mestres, ao falarem dos jovens
de hoje, estão também se referindo ao mundo de hoje e expressando sua preocupação com o
espaço reservado para a cultura popular nesse mundo.
Com o mapeamento constatamos um número cada vez menor de grupos em atividade,
segundo os mestres entrevistados, que relataram um quantitativo de vinte e dois grupos só
em São Mateus há poucos anos atrás. Atualmente, encontram-se ativos cerca de quatorze
grupos, sendo nove grupos em São Mateus e cinco em Conceição da Barra.1 Esse número
1 Os grupos identificados em São Mateus: Reis de boi dos Barros, Reis de boi de Luiz Laudêncio, Reis de boi de
Antônio Galdino, Reis de Boi de Benedito Machado, Reis de boi de Valentim, Reis de boi de Benedito Assis, Reis
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pode variar de um ano para o outro, pois às vezes um grupo não sai num ano por algum
problema interno, mas levamos em consideração os grupos que se apresentaram com certa
frequência, nos últimos cinco anos.
1. Reis de Boi
O Reis de Boi é uma prática cultural popular bastante peculiar que incorpora em seu
ritual duas partes distintas: “Uma a semelhança das Folias de Reis, faz o pedido de abrição
de portas, louvações sagradas e saudações aos moradores; outra lúdica e dramática, com
apresentação de entremeios como um Bumba-meu-boi” (PASSARELLI, 2006). Essas
semelhanças, apontadas por Passarelli, fazem com que muitos se refiram ao Reis de Boi
como Folia de Reis, porém basta assistirmos a uma única apresentação para entendermos as
diferenças2. Neves (2008) relaciona o Reis de Boi com o auto do Bumba meu boi:
O Reis de boi que vimos ali representado assemelha-se aos Bumbas-meu-
Boi do norte e do nordeste. Claramente se verifica que a Catirina deve ser
a mesma Tia Catarina do Bumba baiano e a Mãe Catarina do Bumba do
Maranhão. Mas o ponto de referência mais estreito está no Boi – figura
central nos dois autos populares. Como nos Bumbas-meu-Boi, o animal do
Reis de boi entra em cena, dança, cabrioleia, dá marradas e, lá pras tantas
morre. [...]. Num e noutro folguedo, o Boi ressuscita, e torna a dançar e a
dar marradas nas figuras e nos assistentes (pp. 102-103).
As semelhanças são muitas, mas há diferenças importantes que não nos permitem
dizer que o Reis de Boi seja apenas uma nomenclatura dada, no Espírito Santo, ao Bumba-
meu-Boi. Neste ponto, é importante frisar que segundo Passarelli (2006), ao contrário de
tantas outras manifestações que recebem diferentes nomenclaturas em diferentes regiões do
país, o Reis de Boi não possui sinonímia, ou seja, não existe outra denominação para esta
manifestação em nenhuma parte do Brasil.
de boi Mirim de Pedra D’água, Reis de boi do Paixão. Em Conceição da Barra: Reis de boi de Mestre Nilo, Reis de
boi de Mestre Nenem, Reis de boi das Barreiras, Reis de boi de Antonio Conceição e Reis de boi de Tião de Véio. 2 O período de apresentação da Folia de Reis ocorre de 24 de dezembro a 6 de Janeiro, o do Reis de Boi começa
6 de janeiro e vai até 3 de fevereiro. Outra diferença é que o Reis de boi tem a ‘brincadeira do boi’ que embora
o vaqueiro também use máscara, não tem relação nenhuma com a significação do palhaço da Folia. Além das
diferenças nos instrumentos, vestimentas e no próprio ritual.
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2. Os grupos
Os grupos trazem consigo a tradição do Reis de boi, transmitida de geração em
geração, através da oralidade e da prática.
A minha história vem do meu bisavô. Do meu bisavô passou pro meu avô,
do meu avô passou pra meu tio, essa...festa de Reis-de-boi, né, passou pro
meu tio, do meu tio aí passou pra mim (Benedito Machado).
Dos avôs, de pai pra filho, de filho pra neto já, que eu já tenho neto já, já
brincando (José Antonio dos Santos conhecido por Zeca Laudêncio).
Esta transmissão de conhecimento e de prática começa geralmente quando ainda são
crianças, que vão crescendo dentro do grupo e aprendendo com os mais velhos até se tornar
adulto e assumir a condição de Mestre.
Até meu avô eu acumpanhei, eu vim acumpanhando, despois meu bisavô
já num acumpanhei, mas tinha a mesmas histórias, eles contavam a mesma
história, era do mesmo jeito. Então quando chegou no meu tio, aí que eu
cumpanhei o meu tio, então, hoje eu tenho 60 anos de cumpanhamento de
Reis-de-boi. [...] quando eu cumecei acumpanhá meu tio eu tava com 12
anos [...] (Benedito Machado).
Eu tava com doze ano quando cumeço, [...] nos somos em cinco irmão, só
que os outro se afastaram, um bucado já morreu e aí num tem mais. Aí
ficou eu mais meu pai e fomos cumeçando, os outro acabando (se referindo
a outros grupos) e eu fiquei, tô com 73 anos agora, entendeu [...] Quer
dizêr, tô com 73, com 12 eu tô com 61, 61 anos que eu luto com esse grupo
de folclore (Zeca Laudêncio).
Os participantes dos grupos em sua maioria são pessoas de uma mesma família: avôs
e avós, pai, mãe, filhos (as), netos (as), sobrinhos (as), noras e genros entre outros, que no
nosso entendimento, é fator primordial e determinante para a perpetuação do Reis de Boi.
Todos participam ativamente, contribuindo de diferentes maneiras. Existem aqueles que
atuam diretamente e aqueles que dão suporte exercendo atividades como: a confecção e
conserto do uniforme, a produção ou reforma dos chapéus, a organização da festa de
encerramento, entre outras. “[...] e no preparativo de chapéu, eu que enfeito o chapéu, né,
boto as flor, as fita, a ropa, a gente enfeita a ropa, né, do Pai Francisco, [...]” (Dona Mateolina
Cruz Machado, esposa de seu Benedito Machado).
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A quantidade de participantes por grupo pode variar entre 14 e 30 integrantes. Além
do Mestre, outros personagens que compõem o grupo são: O Violeiro, o Sanfoneiro, os
Marujos, o Vaqueiro, o Boi, a Catirina e os Bichos.
Grupo de Reis de boi dos Laudêncios 2, a ‘brincadeira do boi’ - 2014
Fotografia: Fabiane Salume.
O Sanfoneiro e o Violeiro são os responsáveis pela harmonia das músicas.
Posicionam-se um de frente para o outro, em par, no início das filas. O sanfoneiro e o violeiro
têm que estar afinados um com o outro. Todos os mestres nos relataram a importância da
afinação e do “casamento sonoro” entre estes dois instrumentos. O som dos dois é como o
som das vozes dos Marujos, que devem se equilibrar num encontro entre vozes mais graves
e mais agudas, as quais eles chamam de primeira e segunda voz. São eles também que fazem
as “evoluções”, sendo seguidos por todos os marujos. Há de se ressaltar a importância dos
músicos como personagens indispensáveis para a existência e prática do Reis de boi. A
ausência de um dos músicos já é suficiente para que o Reis não se apresente. “Se não tiver o
sanfoneiro, não tem Reis” (Sr. Jose Luiz Barros).
Durante nossas entrevistas, todos os grupos deixaram registrados a sua preocupação
com a formação de novos “tocadores”, principalmente de sanfona de oito baixos. A escassez
de sanfoneiros leva um mesmo sanfoneiro a tocar para diferentes grupos.
Os Marujos tocam os instrumentos de percussão e cantam as marchas, ocupando
funções de guia, “contra guia” e coro. Depois do par formado pelo sanfoneiro e pelo violeiro,
vem o par de guias, seguido pelo par de “contra guias” e por fim, seguido do restante dos
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marujos, sempre aos pares. São os guias que puxam a marcha, geralmente os dois primeiros
versos de uma quadra, respondidos pelos “contra guias”. Os pares seguintes formam o coro
que repetem os “contra guias”.
O Vaqueiro é personagem da “brincadeira do boi”. Este personagem misterioso se
esconde atrás de uma máscara e durante a brincadeira é ele quem conduz a venda, a morte e
a ressurreição do boi. Nesse ponto é bom ressaltar que muitos mestres nos relataram que
atualmente muitos vaqueiros não fazem mais a repartição do boi como acontecia
antigamente, segundo eles porque muitos vaqueiros não sabem mais rimar e improvisar,
habilidade imprescindível para o bom desempenho do personagem. Segundo Aguiar (2005,
p. 103), antigamente, acontecia assim:
Dentre os personagens, o Pai-Francisco [sic], também conhecido como
vaqueiro, ocupa lugar de destaque na preferência do povo que acompanha
com entusiasmo as apresentações do Reis-de-Boi, onde ele vira atração da
festa, aproveitando a ocasião para “vender o boi” para o dono da casa,
sapateando ao som da melodia contagiante, falando em versos hilários e
provocativos e, principalmente, “repartindo o boi” – oferecendo-o aos
“fregueses”, sempre cobrando pelo seu “serviço” e satirizando os
acontecimentos de desagrado da comunidade.
A repartição do boi, citada acima, acontecia quando o dono da casa não queria mais
comprar o boi que estava morto, o vaqueiro então, vendia as partes separadas e cantava em
versos como descrito abaixo por Aguiar (2005, p. 116):
Escrevi uma carta,
cobrei de Joaquim,
me manda o dinheiro
Escrevi uma carta
do peso do fucim...
para Seu Antônio Pife,
Escrevi uma carta,
me manda o dinheiro
cobrei do Teorfe,
do peso do bife...
me manda o dinhêro
do peso do bofe...
E assim continuava rimando até que todas as partes do boi fossem vendidas. Era
enorme a quantidade de versos, todos guardados na memória e inclusive alguns improvisados
na hora, com os nomes de algumas pessoas presentes. Essa habilidade de improvisar foi
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apontada como uma das causas, do desaparecimento da “repartição‟ do boi. Sr. Paixão3, nos
diz “[...] antigamente eles faziam isso, hoje quase ninguém faz, porque muitas das vezes nem
sabe reparti um boi mais. Tem muitos vaqueiros que não sabe”. Também sobre essa
dificuldade, Sr. Benedito Machado nos relata: “Mais num é todos Pai-Francisco que sabe fazê
essa não, precisa ser um Pai-Francisco muito sabido, que sabe fazê isso”.
A Catirina, personagem que é encontrado em quase todos os folguedos do boi e faz
o contraponto cômico, é a esposa do vaqueiro, sendo sempre representada por um homem
vestido de mulher. Também aparece de máscara, quando entra em cena, diverte a todos
tirando os homens pra dançar, causando ciúmes no vaqueiro que exige o dinheiro de quem
dança com ela. “Cada pessoa que ela arrasta pra dançar, ela faz uma cobrança, aí a pessoa
dá aquilo que tem [...] todos que dançar com ela tem que dá alguma coisa, uns paga dois
reais, uns paga cinco, outros paga dez reais” (Sr. José Luiz Barros)4.
O Boi é o personagem principal da “brincadeira”. Aparece sempre acompanhado do
Cachorro e do Vaqueiro. É constituído por uma cabeça confeccionada em papel machê,
pintada e adornada e no lugar do corpo, coloca-se um tecido preso à cabeça, que esconde o
brincante na hora da apresentação. Embora traga em si um aspecto brincalhão e profano dentro
da manifestação, é importante relembrar que o boi se relaciona com o momento sagrado do
nascimento do menino Jesus, que segundo as Escrituras Sagradas, nasce em um estábulo
cercado por animais, inclusive o boi. Esta relação nos foi descrita pelo Sr. Benedito Machado:
Quando Jesus nasceu ele nasceu numa manjedôra, e você entende o que é
uma manjedôra hoje? [...] é um curral que hoje tem e nesse curral tinha um
cocho [...] e ali, Nossa Senhora ficou iscundida e ganhou esse menino. [...]
então foi aonde nasceu o Reis de boi, por isso que eles botaram o boi,
botaram a loba que é a égua e botaram o cachorro que tava chegando na hora
e ficaram “aquentando” (esquentando, aquecendo) Jesus na quentura ali.
Os Bichos variam em quantidades e tipos, de acordo com o grupo. Além de animais,
há também a presença de seres fantásticos, do imaginário popular. A entrada dos bichos é
revestida de grande euforia, um misto de curiosidade e medo toma conta de todos que
acompanham a apresentação, principalmente as crianças. Os bichos investem contra as
pessoas assustando e divertindo os presentes. Não existe um quantitativo de bichos pré-
3 Mestre do Reis de boi do Paixão. 4 Mestre do Reis de boi dos Barros.
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determinado, variando de acordo com o grupo, porém, de acordo com seu Valentim Pereira5,
“quanto mais Bicho melhor é o Reis”.
3. Os instrumentos musicais
Os instrumentos utilizados são o violão, a sanfona de 8 baixos e os pandeiros. Porém,
pode haver variações como no caso do Reis de boi dos Laudêncios, onde encontramos o
afoxé, o reco-reco e o tamborim. Os pandeiros são responsáveis pelo ritmo das marchas. A
batida dos pandeiros é basicamente dividida em três tipos: o tempo forte marcado por uma
batida com o polegar, uma base que varia segundo a marcha e a batida final com um repique.
A sanfona e o violão são responsáveis pela harmonia da música, por isso, ser de boa
qualidade é fundamental. Segundo o Sr. Paixão, não é qualquer sanfona que dá conta de
acompanhar o Reis, tem que ser de oito baixos e ter boa sonoridade. Antigamente os
instrumentos eram produzidos artesanalmente. Sobre a feitura dos pandeiros, Sr. Benedito
Machado assim nos relata: “[...] e aí fizeram o pandêro, num era esse pandêro de tarracha,
foram no mato tiraram uma madêra, fizeram a ripa, o alco (arco) do pandêro, pegaram o coro
do boi fininho, fizeram o pandêro”.
4. As marchas
Santos Reis estão me chamando
pra com eles passeá
onde eles estiver
eu também vou estar6.
As Marchas, assim como os demais elementos compositivos e participativos do Reis
de boi, ocupa seu lugar de destaque com uma variedade de ritmos, letras e melodias que
animam e dão sentido a cada momento vivido e representado nesta manifestação.
A composição das Marchas geralmente é feita pelos mestres ou por integrantes do
grupo, e muitas vezes de forma coletiva, feita na hora dos ensaios, ou ‘tirada’ antes e
melhorada na hora para adaptar ao violão e à sanfona, “pra ficar tudo encaixadinho”.
Segundo Sr Antonio Galdino “[...] Cada um tira e vai juntando né [...] A gente ensaia e vê:
5 Mestre do Reis de boi do Valentim. 6 Trecho do ‘Som de Reis’ citado pelo Sr. Paixão.
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essa tá boa?”. Assim também nos relata Sr. Valentim: “É, porque é o seguinte, chega lá
talvez a gente tá cantando uma marcha, num pega na sanfona e no violão, o cara tem outra
melhor, bota ela, num tem problema não”.
Seu quantitativo é variável. Alguns Mestres falaram em 12, 16 e houve quem nos
relatasse até 25 marchas ao todo. Esta variação ocorre dependendo do lugar onde o Reis se
apresenta. “Quando a gente apresenta numa casa, numa comunidade, que já chega ali no
horário certo, então a gente apresenta as musicas todas. Quando a gente chega lá nos Santos
Reis (referindo-se a Festa de Santos Reis) então, porque é muito Reis que vai pra lá, então,
são marcada (contadas) as musicas” (Sr. Benedito Machado).
Apesar da flexibilidade no quantitativo de marchas, existem aquelas que estão sempre
presentes, são obrigatórias e apresentadas seguindo uma ordem, são elas: O Som de Reis (Reis
da Porta), o Descante, a Marcha de Entrada, a Marcha de Ombro, o Baiá, a Marcha do
Vaqueiro, a Marcha do Boi, a Marcha dos Bichos, a Marcha de Despedida e a Marcha da
Retirada. Cada marcha possui suas características e seu momento de apresentação.
Vale ressaltar dois fatos curiosos: o primeiro é a ausência de registro escrito das letras das
Marchas, delegando ao Mestre e aos guias a responsabilidade do ensinamento, que é feito de forma
oral e repetitiva nos ensaios, até que todos memorizem. O segundo é que as Marchas são sempre
inéditas, ou seja, todos os anos novas marchas são escritas. Esta singularidade faz com que os
temas utilizados na escrita das letras das marchas, abordem, além das temáticas religiosas, clássicas
e habituais, também, atualidades de cunho político, social e econômico. É a tradição permitindo-
se mesclar e interagir com o meio circundante, confirmando o dinamismo da cultura.
Eu fui lá em Brasília
Visitei Sarney nosso Presidente
A promessa que ele fez
Ele não cumpriu e enganô muita gente
5. O ritual
O ponto de partida para o início das apresentações é a Festa de Santos Reis, que
acontece na comunidade de mesmo nome situada no bairro Pedra D’água, um dos mais
antigos de São Mateus. Essa festa acontece tradicionalmente todos os anos no dia 6 de
janeiro, dia de Santos Reis, ou no sábado mais próximo a esta data. As festividades têm
início com uma procissão em devoção aos Santos Reis, saindo da igreja e percorrendo um
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pequeno trecho até às margens do Rio Cricaré. Todos os grupos de Reis que irão se
apresentar participam da procissão, juntamente com a comunidade e com várias pessoas que
vem para prestigiar, inclusive turistas. À beira do rio é feita uma oração pelo Pároco presente
e depois todos retornam à praça em frente à igreja para uma missa campal.
As apresentações de Reis de boi, na festa, acontecem em dois momentos: o sagrado,
dentro da igreja e o profano, fora, na praça em frente à mesma, onde acontece a “brincadeira”
do boi. Após o primeiro grupo se apresentar na igreja, este vai para a rua apresentar a segunda
parte, que é a do boi. Enquanto isso o segundo grupo, apresenta a primeira parte na igrejinha
e assim sucessivamente, até que todos os grupos tenham se apresentado dentro e fora da
igreja. Os grupos que não estão se apresentando prestigiam a apresentação dos demais.
A apresentação do grupo começa na porta de igreja, que fica fechada e se mantém
assim até terminar o pedido de “abrição” de portas. O grupo se posiciona formando duas
filas, começando pelo Sanfoneiro e o Violeiro, seguido pelos guias, contra guias e o restante
dos Marujos, sempre aos pares. As Marchas cantadas na porta são: O Som do Reis e o
Descante, ambas cantadas apenas pelo guia e “contra guia”. Aqui notamos uma mudança no
modo de apresentação. Segundo Sr. Antônio Nascimento7, além dele, os grupos de Reis de
boi que ele conhece, não cantam mais os 25 versos do Som de Reis. Ele diz que muitos nem
sabem mais os versos, que ele garante, aprendeu com o pai e são versos que narram o
nascimento do menino Jesus e a visita dos três Reis Magos. Realmente observamos que os
outros grupos não mantém essa tradição, somente o Reis de boi de Mestre Nilo ainda canta
o Som de reis ou Reis de porta integralmente.
Aberta a porta, o Reis entra cantando a Marcha de Entrada, que é o pedido de licença,
a saudação. Os grupos ajoelham-se diante da imagem dos Santos Reis, guiados pelo Violeiro
e o Sanfoneiro. Dentro da Igreja, os grupos de uma forma geral, apresentam outras duas ou
três marchas e se retiram. Neste ponto termina a parte sagrada da manifestação com a
participação apenas dos músicos e dos Marujos.
Do lado de fora da Igreja começa a “brincadeira do boi”, aos músicos e marujos juntam-
se os demais personagens. Após a Festa, os grupos se apresentam em locais onde são convidados,
no período de seis de janeiro até três de fevereiro, dia de São Brás. Sobre estas apresentações,
mais transformações, alguns Mestres nos relatam que antigamente brincavam de Reis por três
dias e três noites seguidas pra cada santo: Santos Reis, São Benedito e São Brás.
7 Mestre de Reis de boi da comunidade são Cristóvão.
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[...] saía todo mundo a pé [...] era quatro noite rolado, saía do dia três ao dia seis,
então num vinha em casa não [...], você saía dia 3 e chegava dia 7 em casa [...]
aí pegava dia 18 e chegava dia 21 em casa também, então onde você cantava,
por ali você dormia, amanhecia e ia pra outro lugar [...] (Sr José Luiz Barros).
Quem convida não paga nada, a não ser que ofereça uma ajuda para a locomoção do
grupo, mas a tradição é a de oferecer um jantar ou um lanche caprichado para todos os
integrantes do grupo e os que com eles forem. O transporte do Grupo é particular e feito com
recursos próprios. A despesa é dividida igualmente entre os membros do grupo, que apesar
dos custos, fazem o possível e o impossível para festejar e brincar o Reis. No dia 03 de
fevereiro, dia de São Brás, ou no sábado mais próximo desta data, acontece a festa de
encerramento organizada por cada grupo isoladamente ou em grupo como no caso do Reis
do Valentim e dos Barros. De acordo com a tradição é neste dia que acontece a “bendição
das gargantas” que segundo os brincantes “é prá gente podê cantá ano que vem”.
6. Permanências e transformações
Como podemos perceber várias mudanças ocorreram no ritual do Reis de boi ao
longo desses anos. Sabemos que a cultura é dinâmica e não temos uma visão purista a
respeito dessas transformações. O que nos interessa nessa pesquisa é entender quais foram
essas mudanças, como elas ocorreram, por quais motivações. Também nos interessa saber
de que forma essas mudanças são sentidas e entendidas dentro do grupo, por seus
participantes, a visão dos mais velhos e a dos mais jovens. Por outro lado, o que permaneceu,
quais os fatores influenciaram ou não essas transformações ou permanências.
Mais do que as mudanças no ritual, apontadas anteriormente – mudanças nas
vestimentas, modos de fazer instrumentos, de cantar o Reis, de partir o boi – desejamos
entender as mudanças nas relações sociais no interior dos grupos. Quem são as pessoas que
hoje mantêm essa tradição? Quais fatores foram responsáveis pela manutenção dessa prática
cultural até os dias de hoje? Como era esse tempo passado onde essas práticas culturais
ocupavam um espaço central na vida da comunidade? Quais medidas são necessárias para a
salvaguarda dessa expressão da cultura popular? Qual o perfil dos sujeitos aos quais caberá
a missão de perpetuar essa tradição? Quais os processos de transformação a cidade, a
comunidade e as pessoas sofreram em seus modos de pensar, de agir, em suas relações com
a religiosidade, com a família, enfim com o mundo?
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Acreditamos que ao tentar responder essas perguntas nos propomos um entendimento
dessa prática cultural de uma maneira mais profunda, que busca descobrir qual o lugar, na
atualidade, reservado às culturas populares? Como essas práticas culturais se relacionam com a
contemporaneidade e da cultura de com o mundo tão influenciado pela cultura de massa. Será
que essas transformações que ocorreram no Reis de boi são fruto dessas relações? São muitas
perguntas que ainda precisam ser respondidas. Porém esperamos que, ao dar voz àqueles que
mantiveram viva essa prática cultural até os dias de hoje, essa pesquisa possa contribuir para o
reconhecimento e a manutenção dessa belíssima manifestação da cultura popular.
Referências
CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
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hora de dormir, em torno das 20 horas. Durante o dia, há o intenso fluxo de entrada e saída
das barracas, mas os espaços fora das barracas são os mais ocupados pelos Calon. A sombra
das árvores certamente constitui um dos mais recorrentes espaços de socialização. São
poucas as barracas que possuem fogão, geladeira, mesa, armário, guarda-roupas. TVs, DVDs
e aparelhos de som são comuns na maioria.
Buscando entender as relações não só internas do rancho Calon de Carneiros, mas também
suas relações com o entorno, realizei entrevista com alguns moradores de Carneiros na própria
cidade, em Maceió e durante o trajeto de Maceió até o município. Durante as entrevistas, alguns
moradores de Carneiros, se mostraram favoráveis à permanência dos Calon na região. Um
morador me conta as impressões que as pessoas da cidade possuem em relação aos ciganos:
Tem gente que tem preconceito... o povo tem muito... e eles também não
tem muita aproximação com o povo da cidade... que falam que eles deviam
já ter ido embora, que não era pra ter deixado eles ficar, que o prefeito
acolheu eles num sei porque, que não era pra ter vendido terreno pra eles...
mas eu mesmo, não tenho nada contra eles não... nesses dias eu comprei
um som de carro a um deles, tinha vendido o meu, fui e comprei um dele...
eles sempre tão em Tapera numa feira de troca que tem lá... eu fui pra lá
pra ver se aparecia um sonzinho melhor daquele que eu tinha, aí ele
apareceu vendendo e eu comprei... sempre compro alguma coisa a eles na
feira... eles vendem de tudo... (E. S. - morador de Carneiros).
A fala desse morador revela as constantes negociações nas feiras entre calon e
brasileiros “a maioria do povo fala... mas uma hora ou outra sempre fazem algum tipo de
negócio com cigano”, completa ele. Como pude perceber as relações com as pessoas da cidade
de Carneiros revelam, como já esperado, alguns conflitos. Nos dias que passei no rancho
percebi que os Calon evitam “andar à toa” pela cidade, nos momentos em que deixam o rancho
estão sempre em grupo, comportamento considerado regular quando falamos dos Calon.
Entrevistando algumas pessoas da cidade, pude descobrir alguns dos “costumes” ciganos
que mais incomodam os moradores: o “nomadismo”; a prática da cartomancia e quiromancia
(atividade na grande maioria das vezes praticada por mulheres), associada à mentira e enganação;
o imaginário do “cigano ladrão”, que gosta de levar vantagem; o costume de andarem sempre
juntos, em família, fato este que em situação de repressão fazem com que sejam associados a uma
“quadrilha” nos termos penais; a visão dos ciganos como preguiçosos e desocupados. Notei como
é grande a influência de representações negativas em torno dos ciganos, fazendo com que seu
comportamento seja, quase sempre, associado a algo desviante e suspeito.
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Para Erving Goffman (1963), a sociedade estabelece os meios para classificar as pessoas
através de atributos tidos como naturais, comuns e desejáveis. Alguns indivíduos ou grupos não
se encaixam nessas categorias, em virtude disso, são considerados indesejáveis, por isso, lhes
são atribuídos uma série de estigmas. Esses estigmas são atributos essencialmente depreciativos
pelo qual esses indivíduos ou grupos “indesejáveis” são identificados.
O momento que os ciganos, tanto homens quanto mulheres, mais circulam pela cidade é
no domingo, dia de feira. Eles também frequentam feiras em outros municípios próximos, como
em São José da Tapera e Santana do Ipanema. Durante minha pesquisa só tive a oportunidade
de acompanhar algumas Calin na feira em São José da Tapera, pois em Carneiros elas evitam
pedir e ler a sorte. As crianças também costumam andar juntas, vão e vêm juntas da escola.
2. Relações espaciais e deslocamentos na microrregião de Santana do Ipanema
Considerando que o espaço é feito de relações sociais, procuramos, na medida do
possível, conhecer como os Calon que estão em Carneiros se relacionam com o espaço a
partir dessa relação construída no cotidiano. As relações sociais entre esses Calon são
marcadas por uma forte divisão entre gêneros, dessa forma, durante a minha estada em
campo, percebi que a grande parte dos deslocamentos no rancho são realizados pelos
homens, por isso, não pude acompanhar melhor e tive dificuldades em entrevistá-los,
portanto, tudo que relatarei a seguir são informações dadas pelas mulheres, algumas
entrevistas com Seu Francisco (chefe do rancho) e Gilberto, seu filho, e observações minhas.
O município de Carneiros faz parte da microrregião de Santana do Ipanema que compreende
os municípios de: Canapi, Ouro Branco, Maravilha, Senador Rui Palmeira, Santana do
Ipanema, Olho d’água das Flores, Olivença e Dois Riachos.
De acordo com as informações que tive junto às Calin, me parece que a morte de um
dos filhos de Seu Francisco fez com que esses Calon resolvessem ir embora da Bahia,
“andando de animal” em direção ao Estado de Alagoas (a família de Seu Francisco arranchou
a bastante tempo no município de Feira de Santana e faz parte de uma rede de parentes que
abrange pousos em Salvador e Camaçari). De acordo com Seu Francisco, eles passaram por
Arapiraca e continuaram caminhando em direção ao sertão. Quando chegaram nessa região,
pousaram em alguns lugares; o primeiro foi no munícipio de Senador Rui Palmeira, depois
passaram por Carneiros, Santana do Ipanema, Olho D’água das Flores e Dois Riachos (nesse
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último eles chegaram a passar mais de 2 anos, “parado” lá). Seu Francisco lembra alguns
detalhes de cada um desses pousos:
Andamos de animal isso tudo aqui... nós passava, ficava um tempo num
canto, um tempo no outro... ficamos um tempo na estrada de Senador... não
era bom não... não tinha água e era difícil demais de ficar ali... depois
passamos por aqui, por Tapera e Carneiros... foi rápido demais aqui...
paramos em Santana... a feira lá é boa, grande, dava pra fazer rolo bom,
leitura, baralho... mas lá foi difícil, difícil a proteção... foi melhor ir embora
de lá... nós vamos na feira até hoje, mas, parar lá não prestou... fomos
embora, passamos por Olho D’agua e ficamos em Dois Riachos...
passamos 2 anos lá... aí voltamos de novo e viemos pra cá.
Da fala de seu Francisco podemos ver que antes de “pararem” em Carneiros, no atual
pouso, eles tiveram mais 3 pousos por períodos relativamente grandes. Em senador Rui
Palmeira, eles pararam, mas a falta de água e localização (segundo Seu Francisco na beira
da estrada) fizeram com que eles fossem embora, passando por São José da Tapera e
Carneiros. Pararam um tempo em Santana do Ipanema. Turista, cigana Calin é uma das
minhas informantes no campo, ela me falou que até hoje eles fazem rolo na feira grande lá:
“fazer rolo lá é bom... tem gente demais... fazer rolo, ler mão, tudo lá era bom...”. Eu
perguntei tanto a Seu Francisco quanto à Turista porque eles haviam saído de lá já que o rolo
era tão bom, já que dava dinheiro, eles responderam que foi porque tiveram que sair mesmo,
que é assim mesmo “melhor sair e ir pra outro lugar e ir lá só pra fazer negócio”.
Microrregião de Santana do Ipanema.
Assim, podemos entender que os Calon fazem uma distinção dos lugares que são
para fazer negócio e os lugares que são para parar. Quando falava com as Calin sobre a
leitura da sorte, elas me disseram que evitavam “ler a mão e pedir nas portas” lá em
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Carneiros, de acordo com elas, fazer isso não é bom, porque podem ficar visadas e arranjar
problemas com as pessoas da cidade.
Quanto a ideia de “proteção” mencionada por Seu Francisco, observei que Batista,
seu filho, vem “assumindo” o papel de mediador com o mundo externo, pois é a pessoa que
mais mantém relações com os moradores da cidade: “o Batista conhece todo mundo na
cidade e todo mundo conhece ele... qualquer problema na cidade, a gente chama o Batista
por que ele conhece bem os juron, sabe conversar, faz negócio”, conta Sielma. Essa
capacidade de fazer alianças e negociações com o mundo externo – “ele conversa bem” –, é
imprescindível num momento de pouso, de parada.
A falta de documentos – visto que até hoje ter documentos é requisito para se ter
confiança (residência fixa) e conquistar direitos – era aliviada pela proteção de um coronel
ou político. Goldfarb (2010) conta que em Souza/PB, a sedentarização de grupos ciganos foi
um misto da capacidade dos líderes de fazer alianças, somada a um poder paternalista com
atitudes assistencialistas, é importante ressaltar que as áreas ocupadas pelos ciganos no
município pela autora estudada foram doações feitas por esses políticos.
Em Carneiros, os Calon mantêm boa relação com alguns vereadores, com o prefeito
e sua família e empresários da região. A amizade com pessoas influentes na cidade também
é muito importante. Siqueira (2012) que fez seu campo em Souza/PB afirma que o quadro
não é diferente quando ressalta que:
Por isso, justifica como estratégia de convívio social harmônico a
importância de estabelecerem relações aproximadas com pessoas de
respeito na sociedade, pois, quando esses personagens cumprimentam um
cigano em público ou mesmo os convidam para as festas nas quais
geralmente fazem apresentações musicais em voz e violão,
automaticamente outros passam a simpatizá-los, relegando o preconceito
ao segundo plano. Isso também alimenta o papel dos protetores,
principalmente os de atuação política, que têm sido apoiados por grupos
ciganos por apenas cumprirem suas obrigações de assisti-los, mesmo que
esporadicamente (SIQUEIRA, 2012, p. 82).
Os homens fazem bastante rolo em Santana do Ipanema, lá tem feira grande,
movimentada e é comum irem fazer rolo lá; além das feiras também é possível encontrar
esses Calon em cidades do sertão, próximo às instituições bancárias que existem nos centros
das cidades. A ideia de se retirar da cidade pode ter sido uma estratégia para proteger a
atividade econômica Calon.
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Em minha primeira, e única, ida a uma feira no município de São José da Tapera
ficamos lá por um tempo, depois fomos para frente do Banco do Brasil. Eu comentei que
pensava que a gente só circularia pela feira, então Nega me respondeu que não, que as feiras
e os bancos localizados no centro das cidades também são utilizados por eles pra fazer
negócio e a leitura da sorte: “a gente anda é isso tudo... e conhece esse povo tudinho aqui
que trabalha perto... que vende coxinha, relógio, radinho... conhece todo mundo...”.
Os Calon possuem mapas mentais desses lugares em que circulam. Feiras, praças e
instituições bancárias são os espaços de negócio, do rolo. Nesses espaços, os Calon circulam
e mantém uma atividade econômica diferenciada da exercida pelo não cigano, não é raro
ouvir ciganos se gabando de que não está submisso “preso”, “fechado” a um emprego formal,
mas “vive melhor que muito juron por aí...”. Em todo o espaço que passaram, os ciganos
construíram relações que os ajudaram a desenvolver seu modo de vida. Eles negociam e se
apropriam do espaço; as relações e redes de solidariedade formada no espaço parecem ser
mais importantes do que o próprio espaço em que estão “fixados”. Essa postura os ajuda a
manter sua mobilidade, seu movimento.
3. Relações espaciais em Carneiros
Entre os não ciganos, o espaço no rancho é bem delimitado: existe uma área vista
como cigana dentro da cidade “no terreno em frente a Igreja e a Praça, por trás do
Mercadinho Santo Antônio”, dizem os moradores. Como já mencionei anteriormente, o
fluxo de parentes, indo e vindo, intriga e incomoda alguns moradores. O terreno onde o
rancho se encontra, situado no centro da cidade de Carneiros perto da Praça da Igreja de
Nossa Senhora da Conceição, é hoje um pouso onde os parentes espalhados em ranchos no
Estado da Bahia fazem constantes viagens “a passeio”, “pra visita”, “pra fazer rolo”.
Ouvi tanto por parte de Seu Francisco quanto por parte das calin sobre a importância
de terem comprado o terreno na cidade, mesmo assim, como já ressaltado anteriormente, é
latente a possibilidade de saída a qualquer momento. A impressão que trás as falas dos Calon
é que eles andaram por toda a região, escolherem o lugar, conseguiram “proteção”, e o
rancho se constituiu em um lugar estratégico onde podem fazer negócio com as cidades
vizinhas e onde conseguiram fazer um pouso que é referência para os parentes.
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Quando conheci Rafaela, prima da Sielma e também sobrinha da Nega, minha
principais informantes e interlocutoras no campo, ela estava arranchando com os parentes
em Carneiros faziam 5 meses, contudo me comunicou que era “por pouco tempo”, que a
“qualquer dia” voltariam a Bahia. A impressão que dá é que Salvador, Feira de Santana,
Camaçari e Carneiros constituem um só espaço, onde esses Calon construíram uma rede de
solidariedade forte entre esses parentes que estão em comunicação constante pelos
deslocamentos, mas também por telefone e através das notícias e fofocas entre os pousos.
Cada vez que alguns parentes chegam, trazem notícias de primos que foram presos,
de quem “destruiu a vida indo morar com uma jurin”, que o tio tá bem de vida, que a filha
tá sendo judiada. Na maioria das vezes, são essas notícias que fazem com que outros parentes
se desloquem para “vê o que tá acontecendo lá”, “pegar a filha de volta”, “ficar com os
parentes enquanto o primo tá na cadeia”, etc. A procura por notícias dos parentes é grande e
são sempre recebidas de forma entusiasmada. Em umas das minhas visitas ao rancho, Nega
contou que estava preocupada esperando um telefonema, pois sua irmã com o marido e os
sobrinhos tinham ido para a Bahia buscar a filha que estava sendo “judiada” pelo marido:
“se chegar lá e for verdade ela volta aqui pra ficar com nós... ela vem que seja pelos
cabelos...” A mesma coisa acontece por lá, Sielma me conta que a família de Madalena,
casada com seu irmão Michel, veio passar uns tempos porque souberam que ela havia sido
agredida pelo marido “se Michel não se orientar, eles levam Madalena de volta”.
As brigas entre parentes também são motivos para os deslocamentos. Um simples
telefonema sobre uma briga entre parentes causa o imediato deslocamento de uma família
nuclear para defender ou para repreender o responsável pela discórdia.
Desses movimentos são trazidas mais e mais notícias que os fazem ligar uns para os
outros para saber se o que foi contado é verdade e, com isso, essa rede de parentes fica cada
vez mais unida. “Tem briga demais aqui... mas parece que depois das briga... se entende e
fica tudo até melhor... é coisa de parente... isso tudo aqui é parente”, diz Nega.
Esses deslocamentos demonstram-se movidos por essa rede de solidariedade entre
parentes, que aumenta a sensação de pertencimento e a construção de um espaço que parece
não ter fronteiras, dando a impressão que para os Calon Feira de Santana, Salvador,
Camaçari e Carneiros são um só espaço.
Em Carneiros eles evitam algumas práticas como pedir dinheiro na rua e a leitura da
sorte, como já falado anteriormente. Já o rolo ocorre normalmente tanto fora quanto dentro
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do rancho. Eles mantêm ótimas relações com o prefeito e com alguns empresários locais.
Todos esses “juron amigos” visitam o rancho em dias de festa; “o prefeito vem prá cá...
come, bebe com nós... conversa, dança...”, conta Nega.
Tive a oportunidade de ir para o maior supermercado da cidade, fazer umas compras
para a barraca de Nega. Foram conosco Sielma, Mirele e o menino Darlan. Nega me falou:
“o dono desse mercado é muito nosso amigo”. Então, conheci Abadias que disse que ficou
amigo dos ciganos desde o tempo em que chegaram na cidade. Ele me contou que vai
frequentemente ao rancho e já foi padrinho de um casamento lá, “o único defeito deles é
pechinchar muito na hora de comprar”, conta rindo.
Outro comerciante da localidade que tem amizade direta com os ciganos e também
frequenta o rancho é Seu Antônio, que tem um comércio de galinhas na cidade. Os ciganos
tanto compram lá, quanto vendem também as galinhas que são criadas no rancho: “as
galinhas boa, de capoeira daqui, a gente entrega logo a ele... ele abate lá mesmo... o dinheiro
é negociado lá na hora quando as galinha é levada... umas tão grande, outras mais pequena
[...] antes nós vendia na feira aqui... só que a amizade com ele ficou melhor... é só levar as
galinha pra lá e ele vai vendendo...” (Nega).
Existem amizades com outros comerciantes, como por exemplo, “o homem dos DVD”,
que não tive a oportunidade de conhecer. Existe também a costureira D. Nê, “ela costura pra nós
desde o tempo que chegamos aqui... tem outra, mas só fazemos roupa com ela”, conta Nega.
Depois de muitas negociações sobre o preço dos vestidos, Nega me conta que hoje em dia
qualquer vestido sai no valor de R$ 50, “ela não faz menos que isso... tá vendo como é caro?
Ainda tem que levar o pano, os bico, as fitas... por isso que só encomenda roupa nova quando
tem casamento”. D. Nê faz os vestidos e também já foi para casamentos no Rancho.
Vemos que o juron mesmo visto como “o outro”, “o prostituído”, “sem moral” (que
se definem pelas ações e comportamentos) integra diretamente as relações comerciais,
econômicas e afetivas dos Calon. Faz-se rolo com juron, ele está no rancho sendo padrinho
de casamento, comendo e bebendo.
Os Calon se constroem em meio a mundo construído pelo não cigano. Fazem um uso
Calon das estradas, do comércio, das praças, das feiras. Ferrari (2010) fala sobre um mundo
dado (mundo gadje3) e um mundo construído (o mundo Calon):
3 Gadje ou gadjo é um dos termos usados por ciganos para se referirem aos não ciganos, na maioria das vezes
usados por ciganos de etnia Rom. Entre os Calon são mais usados os termos juron, gajon ou brasileiro.
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[...] o mundo dado é o ambiente gadje, de onde os calon extraem seus
“recursos”. Os calon se servem das redes de água e esgoto, e das
instalações elétricas, pagando ou “fazendo gatos”. A “primeira língua”
aquela que será a base para a introdução do repertório lexical chibi, é a
língua portuguesa, dada pelo gadje. A comida é brasileira, mas não se come
como os brasileiros. Os nomes oficiais são tipicamente brasileiros, mas
sobre estes atuam os apelidos. A música é sertaneja local, mas não se escuta
“som” como os brasileiros [...] As estradas, as cidades, as ruas em que
circulam, o terreno para acampar, o mundo em que vivem é pensado como
um mundo gadje dado, a partir do qual se cria um mundo calon (p. 299).
Quando pergunto sobre a cidade, os Calon nunca mencionavam o acampamento
sempre falavam na feira, no centro, nas praças, são desses lugares que os Calon sobrevivem,
se fazem Calon no mundo juron e, a partir dele se difenciam e mantem seu movimento.
Ao Perguntar a Gilberto sobre a cidade de Santana do Ipanema, aonde vai com frequência,
ele me fala da praça onde fazem rolo, do celular que trocou com o juron, dos melhores dias de feira
lá, da estrada, da polícia, dos comerciantes, onde é melhor para as mulheres ler a sorte, os
empréstimos negociados em frente ao Banco do Brasil, etc. As referências à cidade são a partir do
uso que fazem dos lugares. Seu movimento no espaço é feito de acordo com “sintomas e avaliações
antes que de medidas e de propriedades” (Deleuze e Guattarri, 1980).
Pensadas um pouco como se estabelecem as relações dos ciganos Calon de Carneiros
e o entorno do rancho e da região, passarei, no próximo capítulo, a tratar sobre como se
estabelecem as relações dentro do rancho e quais são suas dinâmicas cotidianas do grupo.
4. Espaço, identidade e nomadismo
Ao me debruçar sobre os estudos dos povos ciganos percebi a necessidade de elaborar
algumas reflexões acerca de noções que têm sido utilizadas para estudar estes grupos de modo
essencializadas. Uma delas é a ideia de “nomadismo”, vista por muitos enquanto uma
característica quase que intrínseca ao modo de ser cigano. Deste modo, considero que, estudar
ciganos é desconstruir noções essencialistas, pois o “nomadismo” é naturalizado como um
estilo “autêntico” de “ser cigano”. Essas ideias se chocam com a realidade social brasileira,
onde os ciganos estão cada vez mais engajados politicamente e exigindo cidadania e direitos,
tentando dialogar com o Estado, reivindicando terra e construção de casas, endereço fixo.
Nesse contexto, poderíamos nos perguntar: a “identidade cigana” estaria se “perdendo”? Essa
naturalização do “nomadismo” como definidor do ser cigano, também se choca com o trabalho
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de campo por mim empreendido, pois nele descobri que os ciganos estabelecem outros tipos
de fronteiras culturais que os diferenciam dos não ciganos, além desta ideia de nomadismo.
Durante todo o trabalho, tentamos nos livrar dessas noções simplistas e fixas de
identidade que não dão conta da complexidade das relações sociais, ou seja, que cristaliza e
naturaliza essas relações e, muitas vezes, caem na dicotomia nômade/sedentário impondo
uma visão de mundo do pesquisador e ignorando o sentido e vivido pelos nativos.
Do ponto de vista do gadje, as caravanas passam, os acampamentos
aparecem e desaparecem; em relação a eles, os ciganos se movem [...] Nessa
concepção, se o cigano se move, ele é “nômade”, se ele se fixa, se
“sedentarizou” e está perdendo sua tradição. Mas será essa a melhor maneira
de descrever a relação do cigano com a terra? (FERRARI, 2010, p. 260).
Insistir na dicotomia, se viajando é “nômade”, se está parado é “sedentário”, pouco
nos esclarece sobre a visão de mundo dos ciganos em relação ao espaço em que ocupam,
pois essa dicotomia só encontra lógica nos olhos dos não ciganos, procuro apreender o que
o cigano pensa e sente quando nos fala que é “nômade”, que é “livre”.
A ideia de “nomadismo” para os Calon vai além da nossa dicotomia simplista que consiste
em “sedentário/nômade”, “parado/em movimento”, “ter endereço fixo/viver viajando”, etc.
A fala de Turista é reveladora nesse sentido, ao falar sobre o desejo deles de verem
suas casas construídas: “quem disse que uma casa foi feita pra prender?... casa é casa...
cadeia é cadeia...”, diz ela e ainda completa: “o juron é preso na casa... preso nas coisas... o
cigano não... é livre... a gente fica onde tá contente, onde tá a família... se estamos juntos tá
bom, se acontece coisa ruim e não dá pra um... não dá pra nenhum...”.
A sensação de “estar indo” é latente; o “cigano” se vê na mobilidade, no
deslocamento, no ir e vir: “cigano não nasceu pra tá preso, nós é livre, sempre foi assim...
vem de ordem... nós não tá aqui? Se precisar... arrumo as bombas e vai simbora...” (Nega).
Então, em Carneiros, mesmo pleiteando a construção de suas casas, os ciganos não
veem o lugar como algo permanente, pois, ele depende das relações, alianças, afetos e
situações nele construídas, sem a família o lugar não existe, dessa forma, eles se veem
inclinados a abandonar o local diante de acontecimentos.
Dentre esses acontecimentos está a morte, como revela seu Francisco ao ser perguntando
sobre a morte de seu filho: “foi dada a ordem de andar... simbora da Bahia... andando por meio
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dos outros sertão... chegamos aqui... passamos... voltamos e paramos aqui de novo... chegou a
ordem de parar... nunca mais voltei pra Bahia... não ando mais por aquelas banda... até hoje”.
Outra hipótese de largar o rancho que encontrei durante a entrevista foi: “nós temos que
procurar nossa paz né? Se ali tem inimizade num chega nem perto... se tem cigano diferente...
também não... cada um com cada um”, diz Nega. Outra hipótese seria “a vergonha”, ou seja, se
algum Calon fizer algo que envergonhe o grupo. Compartilho com Ferrari (2010) a ideia de que:
O parar/morar não significa fixação, o viajar/andar tampouco significa
“errância”, o movimento, sendo absoluto, não se define em relação ao
espaço físico, o território, mas sim a rede afetiva de relacionalidade –
parentes, inimigos, estranhos, gadjes (p. 273).
Seu Francisco explica sua relação com o espaço do rancho, com o lugar onde estão
“arranchados”:
Aqui é um pouso... nós juntamo e compramo... é nosso, mas não tamo preso
aqui... aqui nós arrancha, recebe a família... um cuida do outro... como
Jesus e Maria ensina pros cigano... e aqui tem liberdade... tem sim... cigano
é livre... entende?... entende não né?... deixa eu dizer, é assim, um
passarinho... um passarinho... ele é livre num é? Mas ainda assim ele num
tem um pouso? É a mesma coisa de nós.
Assim, entre os Calon de Carneiros, o rancho não é pensado como algo fixo: “se não tá
bom mais aqui... a gente sai pro meio do mundo... vem os outro e fica no lugar” (Seu Francisco).
Ferrari (2010) entende que o movimento Calon é, sobretudo, uma recusa em se fixar
e só nesse sentido o cigano pode ser definido como “nômade”. Segundo ela, a noção de
nomadismo, visando descrever a relação do cigano com a terra, só deve ser usada se for
reconceitualizada, nos termos do que Deleuze e Guattarri chamam de “desterritorialização”,
pois ele não cria uma relação com a terra, de propriedade, de pertencimento, isto é, “andando
ou morando, sua relação com a terra não muda, pois o movimento para eles não é relativo,
mas absoluto. Levam-no dentro de si, mesmo que parados” (p. 267).
Conclusões
Tentei entender os sentidos existentes por trás das viagens e dos constantes
deslocamentos desses Calon. Minhas observações no rancho me fizeram concluir que os
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Calon possuem um modo específico de se relacionar com o espaço, baseado nas relações de
afeto entre parentes. Através dos deslocamentos, eles mantêm o afeto necessário a sua rede
de parentes e constroem relações e laços com os não ciganos que possibilitam a manutenção
do seu modo de vida. Pois eles se constroem e se apropriam do espaço, através das
negociações e alianças com um mundo juron.
Com a pesquisa, pude perceber que as praças, os espaços próximos às instituições
bancárias, as feiras etc. são também espaços Calon. Os seus deslocamentos constroem essas
redes. Se deslocar não é algo aleatório e sem propósito como podem julgar os olhos “fixos”
do não cigano, esses trajetos podem revelar muito mais sobre o modo de viver Calon, eles
têm um sentido vivido por eles. Assim, considero que os Calon transformaram não só o
rancho em Carneiros em um espaço seu, mas todo o caminho que percorrem e estabelecem
relações comerciais e de amizade, em Carneiros e nas cidades vizinhas.
Referências
FERRARI, Florência. O mundo Passa: Uma etnografia dos Calon e suas relações com os
brasileiros. São Paulo, 2010. Tese (Doutoramento em Antropologia Social) - Universidade
de São Paulo. 2010.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ª ed.
Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1963.
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Nômades e Peregrinos: o passado como elemento identitário
entre os ciganos calons na cidade de Sousa - PB. In: Cadernos de Campo, SP, n. 19, 2010.
SEPPIR. Brasil Cigano - I Encontro Nacional dos Povos Ciganos, 20 a 24 de maio de
2013, em Brasília-DF. Disponível em www.seppir.gov.br.
SIQUEIRA, Robson Araújo de. Os calon do município de Sousa/PB: dinâmicas ciganas e
transformações culturais. Recife, 2012, 164 f. Dissertação (dissertação de mestrado).
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Programa de Pós-Graduação em
Antropologia, 2012.
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A CLASSE TRABALHADORA PAULISTA ENTRE 1920 E 1940 E A EDUCAÇÃO
NÃO-FORMAL: O CASO DO PCB
Lilian Zanvettor Ferreira UNICAMP
Resumo: O presente trabalho procurou compreender os espaços de participação política dos
trabalhadores paulistas das décadas de 20 a 40 enquanto espaços de educação. Nos debruçamos mais
precisamente sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), local de convergência de lutas dos
trabalhadores na época e que alternou períodos de legalidade e ilegalidade. A pesquisa sugere que o
espaço do partido pode ser considerado como um espaço agregador de diversos saberes, aprendizado,
debate e crescimento entre os trabalhadores paulistas. Mais especificamente buscamos compreender a
experiência do jornal A Classe Operária, órgão oficial do partido, e que tinha como intenção ser um espaço
de divulgação das lutas operárias, também de participação operária e construção de conhecimento.
Palavras-chave: educação; PCB; A Classe Operária.
Abstract: The present study sought to understand the spaces of political participation of paulistans
workers in the decades of 20 to the 40, while educational spaces. We looking for, specially, about
the Brazilian Comunist Party (BCP), local of struggle convergence of works at the time and that
alternated periods of legality and illegality. The research suggests that the party’s space can be
considered as a space that adds diverse knowledge, learning, debates and growth between the
paulistans workers. More specifically, we seek to understand the experience of the newspaper “The
Working Class”, official party organ and which had as intention be a disclosure space of workers
‘struggles and also, working participation and knowledge building.
Keywords: education; BCP; The Working Class
O pintainho humano mal abandona a casca atraca-se aos livros e a resmas de cadernos.
Eu aprendi o alfabeto nos letreiros folheando páginas de estanho e ferro.
Maiakovski
Introdução
Uma questão pessoal suscitou o desejo desta pesquisa: quando da primeira eleição
do presidente Lula no país, em 2002, o Brasil se dividiu entre os que o queriam no governo
e os que o designavam de “analfabeto”, por não ter frequentado a escola formal1- incapaz,
portanto, no dizer de alguns, de ser um governante. Particularmente isso me foi bastante
incômodo, pois me debruçava sobre a pesquisa biográfica do Sr. Basílio Zanvettor2, militante
1 No ideário brasileiro ainda paira a diferença de valorações entre aquele que é intelectual e aquele que é
trabalhador. Por sua característica de trabalhador sindicalista e nordestino, o senso de alguns grupos de
interesse atribui a Lula a insígnia de analfabeto. Lula, no entanto, frequentou o ginásio e o curso técnico de
torneiro mecânico no SENAI. Fonte: Instituto Lula. Disponível em: <http://www.institutolula.org/biografia>. 2 Basílio Zanvettor, militante do Partido Comunista Brasileiro, avô materno da pesquisadora.
Abstract: This article looking for study the jazz as a answer of black people to the oppression and
violence conditions in the white and occidental society. More precisely, I looking for study the jazz
as a creative way of black people denounce them way of life in a USA with strong slavery heritage.
About this denounce, I call creative fight, once that I understand the music as a way founded by the
black people to place and state their identity in the social, economic and cultural context of occident.
For this, I search in the elements more characteristic of jazz – as a building of the sound and the
phrasing, the improvisation, the blues, the spiritual and the rhythm –, their Africans elements.
Perhaps, I recognize the importance of other cultures to the jazz formation. The jazz have the
expressive strong of African culture and, thus, I understand it as an instrument of struggle, of
denounce – because the jazz not convoke a revolution, but expresses the social reality of oppressed
people. In this way, the history of jazz is, in a certain way, the social history of black people and their
search for a more equal and free society.
Keywords: jazz; creative fight; black consciousness.
1. Comentários gerais sobre o jazz
Este capítulo possui a intenção de preparar o leitor para certos aspectos do jazz que são
fundamentalmente importantes. O são não somente naquilo que diz respeito a sua pré-história,
mas, igualmente, nos elementos que fazem deste estilo um estilo muito singular. Neste sentido,
é essencial que o leitor entenda, mesmo que brevemente, as características mais marcantes,
segundo Berendt e Huesmann (2014), desta música, isto é, o que faz do jazz o jazz.
Para falar de jazz é necessário voltar aos seus fundamentos. Não exatamente penetrar
em seu modo de vida e em seus valores anteriores à escravidão, uma vez que isto seria um
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empreendimento que fugiria bastante do que é proposto aqui. Por mais que seja verdade que
o principal núcleo, isto é, os aspectos fundamentais do jazz sejam de origem negra, não é
verdade que o jazz seja um estilo musical puramente negro. Aliás, se existe algo sobre o jazz
que podemos afirmar com grande certeza é de que ele jamais foi uma música pura. Pelo
contrário, o jazz é o resultado de uma hibridização musical.
Pensar que o jazz é um estilo musical inteiramente africano é um erro de cálculo que
desvaloriza seu próprio caráter agregador. Mesmo porque pouca coisa da organização social
dos negros da África Ocidental – de onde saiu, segundo Eric Hobsbawm (2012), a maioria
dos escravos – sobreviveu à escravidão. A não ser por certos cultos religiosos, como o vodu
na Louisiana, pouca coisa havia de africanismo nos Estados Unidos. É importante dizer que
este africanismo existia mais e de maneira mais pura em áreas de domínio francês, pois, por
serem de maioria católica, permitia-se um maior grau de paganismo do que entre os donos
de escravos protestantes. “Música africana razoavelmente pura sobreviveu, nos Estados
Unidos, em parte como música ritual, pagã e mais ou menos cristianizada e em expressões
como works songs e hollers” (HOBSBAWM, 2012, p. 61).
O jazz pode ser entendido, então, como resultado da fusão entre a “música negra”
com alguns componentes da “música branca”. Hobsbawm (2012) nos diz que o nascimento
do jazz se deve, basicamente, à presença de três culturas europeias: a espanhola, a francesa
e a anglo-saxã. Cada uma delas viria formar uma fusão musical afro-americana diferente: “a
latino-americana, a caribenha e a francesa [...] e várias formas de música afro-anglo-saxã,
das quais, para as nossas finalidades, as mais importantes são as canções gospel e os country
blues” (HOBSBAWM, 2012, p. 61). A região do Delta do Mississippi é normalmente
reconhecida como o principal centro do jazz, justamente por sua rica concentração cultural.
De interior anglo-saxão protestante, com parte do território se estendendo até o Caribe
espanhol e de cultura francesa nativa. Ora, o Delta Mississippi possuía as condições
necessárias para o surgimento de uma música como o jazz.
Dessas culturas europeias, a francesa foi a que mais contribuiu musicalmente,
“principalmente por ter sido assimilada por uma classe especial de escravos libertos que
crescia em New Orleans: os créoles” (HOBSBAWM, 2012, p. 62). Não é por acaso que os
créoles possuíam conhecimento e possibilidades musicais maiores do que os outros negros,
que nem por isso produziram músicas de má qualidade. O conhecimento teórico musical, a
instrumentação do jazz de primeira fase, a técnica instrumental, a presença dos instrumentos
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de sopro e o estilo dos repertórios (marchas, valsas e polcas) são de origem francesa. Não só
este aspecto da cultura musical francesa, mas, não menos importante, as festas públicas, os
carnavais, as confrarias, e os desfiles são de herança francesa e contribuíram enormemente
para o desenvolvimento do jazz.
De acordo com Hobsbawm (2012), a partir do final do século XIX, os créoles
levaram esta sabedoria especial aos outros negros de posição socioeconômica inferior, uma
vez que, como aumento da segregação racial, os créoles foram rebaixados de sua posição
relativamente privilegiada.
Das heranças anglo-saxãs, a língua inglesa foi a mais importante. “Ela forneceu as
palavras para o discurso negro e para as canções” (HOBSBAWM, 2012, p. 63). Com o inglês
os negros desenvolveram uma linguagem jazzística e as emocionantes letras de blues,
considerada por “alguns críticos, na linha de Jean Cocteau, como a única contribuição
essencial no domínio da poesia autenticamente popular do século XX” (BERENDT,
HUESMANN, 2014, p. 199).
Mas, para Hobsbawm (2012), o principal fator da expansão da música negra norte-
americana e, consequentemente do desenvolvimento do jazz, foi a não inundação de padrões
culturais das classes socioeconomicamente superiores dentro desta música. Este fato
propiciou um desenvolvimento forte e resistente da linguagem musical ligada ao povo, em
uma sociedade cada vez mais capitalista.
Entretanto, o mais importante disso é o fato de que a formação do jazz não ocorreu
por exigências vindas de cima, mas de maneira espontânea e vinda de baixo, de quem
realmente era praticante e vivenciava a música negra. Consequentemente, o componente
africano da música não foi subordinado ao componente europeu.
[...] Todos os elementos musicais – ritmo, harmonia, melodia, timbre e as
formas básicas do jazz – são essencialmente africanos em seus
antecedentes e derivação. E por que haveria de ser de outro modo? Afinal,
as tradições de séculos, que não são meros cultos artísticos, senão parte
inseparável da vida diária, não são abandonadas tão facilmente. Houve
aculturação, porém, só no sentido de que o negro permitiu que elementos
europeus se integrassem às de sua própria música. Por isso, pode-se dizer
que dentro do vasto marco de tradição europeia o negro americano foi
capaz de conservar um núcleo significativo de sua tradição africana. E é
esse núcleo o que tem feito do jazz a linguagem tão singularmente cativante
que é (SCHULLER apud CALADO, 2007, p. 66).
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Esta conclusão é importante em dois sentidos. Em primeiro lugar, ela confere à cultura
africana seu lugar marcante e essencial na constituição do jazz. Em segundo, ela nos permite fazer
uma reflexão reveladora. Ora, se existe um núcleo africano no jazz e se este núcleo é fundamental,
é possível pensar que alguns elementos componentes das representações musicais de algumas
culturas da África Ocidental estejam presentes no jazz. Bom, não é por acaso que o spirituals, o
blues em menor medida, constitui a principal fonte criativa e vital para o jazz. É, principalmente,
nos spirituals que o jazz encontra a força emocional de sua música. As igrejas, de fato, foram o
principal refúgio do afro-americano, uma vez que este foi o local que encontraram para a
manifestação relativamente livre de suas heranças rituais e do sentimento de grupo.
De certo modo, isto se explica pela natureza da música africana, que é basicamente
funcional. Mais precisamente, “esta música se presta fundamentalmente a determinados
propósitos sociais e religiosos” (CALADO, 2007, p. 68). Não há, portanto, uma separação
entre arte e vida, música e cotidiano, músico e público. O fundamental é que a música seja
um fenômeno coletivo e imerso na vida cotidiana. Quando os africanos chegaram aos E.U.A
o lugar em que este fenômeno musical se desenvolvia, isto é, o espaço reservado para a
prática coletiva da música eram as igrejas batistas.
De acordo com Carlos Calado (2007), a proximidade existente na cultura africana
entre a linguagem e a música é uma explicação possível para o acurado senso rítmico e
musical do negro africano. Isto porque, em muitas comunidades africanas, a linguagem é
tonal e qualquer inflexão – mudança de acento, por exemplo – implica na alteração de
significado da palavra. “Lo fò (Vá e lave aquele prato) torna-se com uma mudança do acento
na palavra fo: Lo fó awo nyen (vá e quebre aquele prato). Olorun lo dà mi (Deus me fez)
torna-se, com uma mudança do acento sobre a palavra da: Olorun lo dá mi (Deus me traiu)”
(CALADO, 2007, p. 69). Neste sentido, os instrumentos são capazes de reproduzir as
palavras. O “dundun1” era usado em algumas ocasiões de certas comunidades da África
Ocidental com o objetivo de emitir pensamentos e mensagens sem a necessidade do
pronunciamento da voz. Através da pressão ou relaxamento do braço no couro do
instrumento o executante conseguia alcançar a afinação desejada. É claro que para
compreender esta linguagem era necessária certa destreza auditiva, capaz de reconhecer
certos elementos como: altura, ritmo e timbre. Neste contexto, as crianças são introduzidas
desde cedo nesta educação do ouvido, uma vez que ela faz parte da assimilação da língua.
1 Tambor falante da África Ocidental.
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Entretanto, “mesmo que os negros não mais pudessem usar os tambores durante a
escravidão nos EUA, proibidos pelos senhores receosos de seu poder de comunicação e
incitamento, substituem-nos pelas palmas e batidas de pé, que assumem função semelhante
na busca de preservar essa linguagem” (CALADO, 2007, p. 71).
Ora, o que mais objetivamente distingue o jazz da música clássica europeia é a
construção do som e do fraseado. Elementos estes que estão de acordo com a própria
natureza da música africana – de música coletiva e funcional. Ao contrário de uma orquestra
sinfônica, onde cada músico procura executar de maneira excelente as partes destinadas a
ele, sem, no entanto, deixar de buscar o máximo de homogeneidade dentro do conjunto, o
jazzista procura desenvolver seu próprio som. “Os critérios deste estilo de som são de ordem
mais expressiva e emocional que normativa” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 185).
Enquanto na música clássica orquestral o objetivo é um mesmo ideal sonoro a fim de
produzir um som belo, no jazz a finalidade é desenvolver uma signature sound. Mais
precisamente, no jazz o músico espelha-se em si mesmo e, por isso, os sons são duros e
francos – a voz produz uma gama de sentimentos possíveis e verdadeiros que vão de
encontro com a personalidade do músico; o mesmo vale para o som expressivo, eruptivo e
liberto dos instrumentos. Aqui, o som não segue preceitos normativos a não ser a própria
realidade que assola o músico. “Um jazzista – mesmo numa big band – percebe e sente,
compreende e visualiza aquilo que toca”, de modo que, “a beleza da música jazzística tem o
caráter mais ético que estético” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 186). LeRoi Jones em
“Black Music: Free Jazz y Conciencia Negra (2010)” provoca alguns críticos de jazz que se
preocuparam mais em atestar sobre a qualidade da música do que sobre sua motivação –
sendo que esta consiste na principal chave para se compreender o que é jazz.
“Na cultura africana o ‘belo’ só se justifica enquanto expressão do cotidiano”
(CALADO, 2007, p. 29). No jazz, o som, os efeitos e a expressão valem mais do que a
palavra ou a beleza da nota produzida. O fraseado jazzístico é responsável por passar uma
informação vinculada aos sentimentos e à personalidade do artista. Neste sentido, o
instrumento é, na verdade, um prolongamento do corpo e da voz do jazzman.
Por ejemplo, un saxofón, que fue hecho por un alemán, y que cuando se lo
toca, como dicen los blancos, ‘legítimamente’ suena como la difunta Lily
Pons en un funeral, es transformado por Ayler, o por los miembros de
cualquier iglesia de los negros, en un aullante espírito de invocación, como
si estuviera atado al cuello del negro ‘enloquecido” (JONES, 2010, p. 188).
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Disto decorre que “a construção do som e do fraseado de jazz são os elementos mais
negros da música jazzística” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 187). Bom, isto é muito
bem exemplificado pela dicção cantante do inglês no sul dos Estados Unidos. Fato que está
relacionado à influência dos negros. Algumas gravações de Allan Lomax revelam este
fenômeno, ao observarmos a facilidade com que cantores de blues passavam da fala para o
canto – às vezes é possível, inclusive, confundir estes dois momentos, da fala e do canto.
Ironicamente, como acentua Berendt e Huesmann, os brancos desta região falam de modo
parecido. A própria palavra “nigger – que em sua origem nada mais é que a forma dos negros
falarem negro” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 187).
Além da construção do som e do fraseado, o improviso é uma das principais marcas
do jazz. Por mais que na maioria das culturas musicais, em que o sentido de criação prevalece
ao da imitação, a improvisação seja um recurso, foi no jazz que ela encontrou sua melhor
expressão. Uma vez que o jazz possui uma relação benévola com a espontaneidade,
preservando-a na possibilidade de cada músico se representar no som que executa, o
improviso em jazz alcançou possibilidades infinitamente mais ricas. Entretanto, como é de
se esperar, as formas mais antigas de jazz utilizavam-se de improvisações menos complexas.
É de se esperar porque o jazz é uma música em constante renovação e a improvisação é um
procedimento estrutural desta música. Com exceção do free jazz da década de 1960 e das
formas mais complexas de canções que foram utilizadas nas décadas posteriores, o
improviso em jazz é baseado em um tema. O músico de jazz sobrepõe à harmonia dada da
canção ou do blues – que, na maioria das vezes, é de 32 ou 12 compassos – novas linhas
melódicas que ocorrem em dois sentidos: no primeiro caso, onde está situado o jazz mais
antigo – como estilo New Orleans –, a canção ou o blues era sutilmente modificada e
embelezada, ornamentada; no segundo caso, no jazz moderno – grosso modo, de 1940 a
1980 –, as linhas melódicas são novas – em um elevado grau – e infinitamente mais ricas.
Seja lá como for, o importante é reconhecer que “a harmonia é o princípio de controle
estrutural no jazz” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 188). Mais do que isso, “o criador
de um chorus de jazz é simultaneamente improvisador, compositor, intérprete e arranjador
[...] caso contrário a música se torna duvidosa” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 191).
Neste sentido, partindo do pressuposto de que o improviso é dizer algo muito particular
de forma estruturada, criativa e elegante, é possível encontrar paralelos entre o ato de falar e
de improvisar. Algo que os músicos de jazz sempre souberam e que a crítica e os intelectuais
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foram perceber só posteriormente. Pois bem, assim como a fala, o improviso é organizado e
executado de modo inteligível de acordo com cada contexto. O músico deve saber a hora exata
de “dizer algo” em uma música, de dar sua opinião, e para isso é fundamental que ele possua
um vocabulário, uma noção de sintaxe musical e um discurso. Não é sem motivo que grandes
músicos de jazz criam chorus completamente diversos sobre um mesmo tema. Cada um faz
uso do vocabulário, da sintaxe e do discurso de uma maneira extremamente particular, “pois
um improviso de jazz é a expressão pessoal do improvisador e de sua condição musical,
emocional e espiritual” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 191).
Além da própria individualidade do músico, a coletividade, como é possível perceber
melhor neste ponto, é uma das marcas do improviso e do jazz. Ora se para “se falar em jazz”
é preciso conhecer e respeitar a estrutura, isso quer dizer que existe uma preocupação com o
conjunto em jazz. “O jazz é provavelmente a única forma de arte hoje existente em que a
liberdade do indivíduo não colide com o sentimento de comunidade” (BERENDT,
HUESMANN, 2014, p. 196).
Até este ponto é necessário que se destaque duas coisas: em primeiro lugar o peso da
cultura negra na construção do jazz; em segundo lugar a liberdade de expressão inerente a
este estilo musical. Ora, o jazz nada mais é, como entende Amiri Baraka (2010), que a reação
do negro ao mundo ocidental branco. E esta reação possui raízes muito profundas que partem
da África – principalmente seu lado ocidental – aos Estados Unidos.
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2. O jazz como luta criativa
O jazz, dentro de seu próprio desenvolvimento, ofereceu, ao afro-americano, uma
possibilidade de luta (criativa) contra uma sociedade de heranças escravagistas. Entretanto,
reconheço que há um risco muito grande em se falar de “luta”, isto é, de um conflito. E este
risco só aumenta se colocarmos o jazz como o agente desta luta.
Bom, o interesse aqui é buscar resolver com o maior cuidado possível isto que chamo de
“luta criativa”. Criativa, pois, se trata de um conflito diferente do que estamos acostumados a
presenciar nos noticiários de TV, jornais etc. Trata-se de um conflito que acontece no nível da
cultura ou, mais precisamente, no nível da criação musical – que se fundamenta, como dito mais
acima, em um conjunto de experiências herdadas e vividas. Trata-se, basicamente, de uma luta
contra as expressões mais imediatas do racismo, da miséria e de seus desdobramentos: a violência,
a opressão, a segregação, a injustiça, o sofrimento e assim por diante.
Para este fim, parto basicamente do livro “Antropologia da Escravidão: o ventre de
ferro e dinheiro” de Claude Meillassoux (1995). Acredito que Meillasoux oferece os
fundamentos necessários e suficientes ao meu interesse: de mostrar que o jazz – e suas raízes
– oferecem um meio para o negro se afirmar como um indivíduo social, particular, ou seja,
como um integrante completo – sexualizado, socializado e possuidor de uma particularidade
– da sociedade do mundo ocidental.
É importante dizer que o livro não se refere em nenhum momento sobre o jazz. Mas
fala sobre o escravo, como um ser “dessocializado, despersonalizado, dessexualizado e, por
fim, descivilizado”2. Ora, a música afro-americana é, como vimos, a resposta do negro – que
fora escravizado e (continua sendo) marginalizado – para a sociedade branca ocidental.
Meillasoux nos fala que, nas sociedades escravagistas, o escravo era um “estranho
absoluto” (MEILLASOUX, 1995, p. 78). Isto quer dizer que “o estado dos escravos era o
resultado de uma sucessão de transformações que contribuíam para fazer deles indivíduos
sem laços nem parentesco, afinidade ou vizinhança, e, por conseguinte, aptos à exploração”
(MEILLASOUX, 1995, p. 79).
A primeira destas transformações, de que fala o autor em questão, é a
dessocialização. Esta palavra expressa, grosso modo, o fato de que o escravo só assumia esta
condição ao ser retirado de sua sociedade de origem e, posteriormente, introduzido a uma
2 Estas são expressões usadas pelo próprio Claude Meillasoux, 1995.
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outra, sem que a ele fossem destinados alguns direitos básicos. O escravo assumia, portanto,
uma condição negativa em relação ao gentio3, que possuía um status positivo. Ora, o escravo
só se encaixava em uma posição negativa porque existia seu oposto, o gentio. “A escravidão
nos remete, pois, necessariamente, à sociedades estatutárias e de classes” (MEILLASOUX,
1995, p. 80), como é o caso dos Estados Unidos da América.
A noção de estranho, neste sentido, se opõe a noção de cidadão, de indivíduo munido
de direitos civis ou, em outras palavras, de prerrogativas sociais que, de uma forma ou de
outra, insere o indivíduo no meio social. Assim, o escravo era privado de uma possível
inserção no conjunto das relações econômicas e sociais. “Em sua solidão, o estranho estava
destinado à escravização” (MEILLASOUX, 1995, p. 83). Ao ser introduzido na sociedade
escravagista, o estranho era um morto social4, um não-nascido, pois, “nascer, bem mais do
um fato biológico, é um fato regido pelas leis humanas” (MEILLASOUX, 1995, p. 83).
Mas o que privaria o indivíduo dessocializado de reatar os laços sociais perdidos ou,
inclusive, de criar novos laços, seja com o gentio ou com outros escravos? “Pela
despersonalização, que operava no seio da sociedade escravagista, o indivíduo perdia essa
faculdade” (MEILLASOUX, 1995, p. 84). De uma maneira geral, as sociedades
escravagistas consideravam os escravos como mercadorias, isto é, objetos nas mãos dos
comerciantes e, posteriormente, propriedade de algum senhor de escravos. Há, portanto,
neste contexto, a reificação do sujeito. Em outras palavras, o escravo perde agora sua
individualidade para se voltar como coisa comercial.
Sua ressocialização era, para ficarmos no aspecto jurídico, improvável e
efetivamente desconhecida de fato, pois ela supunha não o reatamento dos
laços com outros cativos igualmente despersonalizados, mas admitir a ter
com os gentios as relações de que dependia a pessoa social
(MEILLASOUX, 1995, p. 85).
E um dos aspectos de se considerar o escravo como uma propriedade de alguém implica,
simultaneamente, sua descivilização. Uma vez que o corpo e o espírito deste estranho estava sob
o controle de um único indivíduo, ele deixava de se definir socialmente, passava a se localizar
fora do sistema legal que rege a sociedade e que concede certos direitos civis – de respeito à
liberdade individual, por exemplo. É dizer que ao escravo nenhum sacrilégio cometido seria
3 Expressão utilizada por Meillasoux para se referir aos indivíduos “de boa raça” – do latim gentilis. 4 “[...] ele só tinha as prerrogativas que lhe eram dadas, e sempre a título precário” (MEILLASOUX, 1995, p. 83).
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visto como imoral ou criminoso. O escravo possuía, então, um estado de vida nua – contra a qual
qualquer coisa é cabível de ser cometida. Ele era um ser neutro5 cujo estado era permanente e
natural – firmado pela lei. Consequentemente, “com exceção das funções do poder, eles podiam
ser designados para qualquer emprego, de acordo com as necessidades múltiplas e variadas da
sociedade escravagista, e permanecer sempre escravos” (MEILLASOUX, 1995, p. 89).
Neste cenário de coisificação e de marginalização do elemento estrangeiro, a
reprodução ganha um sentido puramente mercadológico. Isto, pois, segundo Meillasoux
(1995), nas sociedades escravagistas a captura de novos escravos possuía uma função
reprodutora, no sentido de reconstituírem a classe explorada. À escrava era, geralmente,
negada a função reprodutora, uma vez que o principal interesse que ela despertava para a
sociedade em questão estava em sua própria força para a lida. Na escravidão o mais importante
para o escravista é a força de seu rebanho, ou seja, a capacidade de seus escravos de
desempenharem o serviço ao qual foram designados. E não era diferente com a mulher: ela era
valorizada simplesmente por ser capaz de desempenhar as funções exigidas – dessexualização.
E a função de mãe não era uma destas. Pelo contrário, caso as escravas engravidassem, elas
seriam rebaixadas ao nível de genitoras somente, e “sua progenitura pertenceria ao senhor e
podia ser-lhe arrancada a qualquer momento” (MEILLASOUX, 1995, p. 87).
Assim, a dessocialização, a despersonalização, a dessexualização e a descivilização
formam o cenário geral das sociedades escravagistas. Ao ser retirado de sua sociedade ou
comunidade, o escravo é forçado a passar por um processo que o transforma em indivíduo
neutro, descivilizado. E é justamente este processo que o negro precisará superar no contexto
dos Estados Unidos escravista e pós-escravista – a sociedade pós-escravista não livrou o
negro do preconceito e da segregação. A busca por uma sociedade onde a cor não seja uma
barreira é, infelizmente, um processo lento.
A parte deste processo de libertação no qual o jazz – junto com a música negra de um
modo geral – está inserido, chamo de luta criativa. Criativa porque se trata de uma resposta,
de uma reação, de natureza diferente das que geralmente permeiam as lutas contra a opressão,
por exemplo. A música, grosso modo, é a expressão da consciência sobre o meio em que vivem
5 “A civilização de um indivíduo é o reconhecimento jurídico da socialização, o fato de pertencer à sociedade
civil, à cidade; é a capacidade de recorrer, em caso de desacordo com aquele de quem depende diretamente, à
arbitragem de uma autoridade que supera ou iguala as partes implicadas” (MEILLASOUX, 1995, p. 88). Bom,
e este estado de descivilazado coloca o estranho, o escravo, em uma condição de indivíduo neutro, isto é, que
não está contido dentro dos preceitos que consideram alguém como parte integrante da sociedade. Mais do que
um ser descolado, o escravo era um ser explorado por sua posição.
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os músicos. E uma das mais importantes heranças africanas para a música negra é que esta
deve, primeiro, ser expressiva. Ora, é flagrante as precárias condições de vida em que os negros
viviam – entender os fundamentos da escravidão, como fizemos mais acima, nos ajuda neste
sentido. É de se esperar, portanto, que, se por um lado, “la suavidad y el llamado bienestar del
ambiente del hombre blanco son descritos en su música (arte) [...]” (JONES, 2010, p. 181),
por outro, o homem negro expressaria a dureza de sua vida e de suas relações cotidianas; os
amores desfeitos tragicamente; os guetos; os vícios do submundo; a violência policial; a
discriminação; a morte precoce de seus equivalente sociais6; a busca por uma sociedade mais
justa, igualitária e inclusiva etc. Por exemplo: “el mundo accionado por las imágenes de James
Brown es el lugar más bajo (el más extraño) en el orden social americano blanco” (JONES,
2010, p. 181). Além disso, “el uso de la música hindú, de los viejos spirituals, o de blues
marcadamente rítmicos [...] por parte de los nuevos músicos” (JONES, 2010, p. 183-4) se
mostra (manifesta) como uma música inclusiva, que envolve o mundo inteiro.
Deste modo, se coloco o jazz como uma música de luta criativa é porque seu
conteúdo manifesta, de um modo ou de outro, um conjunto de imagens sobre o modo de vida
do negro no contexto em questão. E porque esta música foi um dos fenômenos que ajudou a
criar uma identidade afro-americana e a situar o negro no mundo ocidental. O próprio
desprezo, que os músicos do novo jazz nutriram sobre as coisas do mundo branco, colaborou
com isto: os músicos do free jazz buscavam a libertação do espírito, ou melhor, uma eterna
busca em direção ao espírito livre. “De esto se trata la New Black Music: encuentren al yo,
y luego mátenlo” (JONES, 2010, p. 170).
Hobsbawm dedicou um capítulo inteiro de seu livro “História Social do Jazz” (2012)
a fim de registrar e estudar este caráter do jazz: de se posicionar contra qualquer coisa que
signifique castração da liberdade ou opressão. Segundo ele, é mais fácil dizer contra o que o
jazz é contra, do que dizer do que ele é a favor. E a luta que o jazz inicia é, claramente, contra
o legado escravista. “O jazz não é simplesmente música comum, ligeira ou séria, mas
igualmente uma música de protesto e rebelião” (HOBSBAWM, 2012, p. 328).
Em outras palavras, o jazz, enquanto expressão criativa funcionou, dentre outras
coisas, como um meio de libertação e inclusão do negro na sociedade norte-americana. É
claro que este processo foi demorado e doloroso ao se considerar o que os músicos deste
6 Nos capítulos que Berendt dedica aos músicos de jazz e em outras consultas desta natureza um dos fatos mais
relevantes é a morte prematura dos músicos negros: entre 30 e 40 anos, geralmente.
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estilo sentiam, mas o simples fato do jazz perturbar emocionalmente – como diz Hobsbawm
– a sociedade branca da época é de extrema importância. Afinal, de que outra maneira a
música poderia operar uma mudança? Pois bem, a mudança que o jazz operou foi a de incluir,
gradativamente, seu executante negro dentro do mundo ocidental.
Dizer que o jazz operava uma perturbação no emocional da sociedade conservadora
é fundamental, mas não completa os impactos gerais do jazz sobre esta sociedade. Uma das
características que colaboram com isso, quero chamar de “luta criativa” – e Hobsbawm
chama de protesto –, é que o jazz “é uma música democrática” (HOBSBAWM, 2012, p.
329). Isso quer dizer que este estilo, ao contrário da música clássica, não afeta somente os
músicos, mas a população de maneira geral. Mais acima foi dito que, nos primórdios do jazz,
muitos músicos sem formação formal poderiam contribuir, de alguma maneira, com sua
carga criativa. Mais precisamente, “o jazz era originalmente uma música para ser
contemplada pelos menos intelectuais ou especialistas, pelos menos privilegiados, menos
educados ou experientes [...]” (HOBSBAWM, 2012, p. 330).
Os primórdios do jazz são marcados por uma expressividade – para usar as palavras
de Hobsbawm – “forte, áspera [...] com as cores da vulgaridade” (HOBSBAWM, 2012, p.
330) que acabava por conquistar as camadas mais populares. E esta é uma das maiores
conquistas do jazz, a saber: o de se constituir como uma conquista popular sobre a cultura
de minoria. O jazz permitiu que seus ouvintes mais modestos pudessem efetivamente criar
música, enquanto, a música clássica permitia, no melhor dos casos, que seu ouvinte a
reproduzisse. Ora, disso incorre o fato de que o jazz “foi a arte que mais perto chegou de
derrubar as barreiras de classe” (HOBSBAWM, 2012, p. 331).
No jazz moderno a expressividade ganha mais força e o jazz se marca, mais do que
nunca, como música negra, “pois seu principal elo com a cultura europeia – a organização
harmônica – havia sido completamente partido” (BERENDT, HUESMANN, 2014, p. 48).
Neste contexto, os músicos de jazz já possuíam um nível de conhecimento musical que não
se vê normalmente na população, de modo que o “fazer jazz” deixou de ser coisa popular.
Entretanto, os músicos modernos e intelectualizados de jazz se lançaram ao descobrimento
e inclusão de novas culturas musicais não europeias. E isto quer dizer que o jazz não perdeu
seu caráter agregador, inclusivo, coletivo etc.
Jazz significa coletividade, convivência, partilha, presteza, acordo. Numa
palavra: capacidade de comunicação [...]. Em seu poder de diálogo
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esconde-se um elemento emancipador. [...] O impulso comunicativo que
os afro-americanos transmitiram ao jazz agregou um novo princípio à
história da música: a transposição para a linguagem dos sons e dos ritmos
de conceitos como individualidade, igualdade de direitos, dignidade e
liberdade (HUESMANN, 2014, p. 27).
Neste sentido, por conta da própria natureza e das origens do jazz, é que ele se presta
a expressar um discurso de protesto, de heterodoxia e democrático. Às vezes, o próprio ato
de escutar música de povos e classes oprimidas, em meio a uma sociedade conservadora,
pode significar um gesto de discordância social. E “o jazz não é somente música de pessoas
comuns, mas música de pessoas comuns em seu nível mais concentrado e emocionalmente
mais poderoso” (HOBSBAWM, 2012, p. 339).
De um modo geral, o jazz não é consciente politicamente, isto é, seus músicos não
se posicionavam a favor da direita ou da esquerda; não organizavam uma revolução social
ou um protesto qualquer. “As vozes que gritam ‘Não gostamos disso’ não devem ser
confundidas com ‘Isso não pode continuar’” (HOBSBAWM, 2012, p. 340). E é por isso que
é mais fácil reconhecer o que o jazz combate do que o que ele apoia. O protesto em jazz se
manifesta na expressão do ressentimento, da repugnância à desigualdade, à falta de
liberdade, à infelicidade etc. – e isto não implica militância. O protesto em jazz está no ritmo7
e na força emotiva de dizer:
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop8.
7 “O mais forte dos dispositivos musicais de indução de emoções físicas poderosas, o ritmo, como nenhuma
outra música conhecida em nossa sociedade. Ele não é somente uma voz de protesto: é um alto-falante natural”. 8 “Strange Fruit” é uma canção cuja versão mais famosa é a de Billie Holiday. Condenando o racismo americano,
especialmente o linchamento de afro-americanos que ocorreu principalmente no Sul dos Estados Unidos.
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POVO DE AXÉ: MEMÓRIAS E IDENTIDADES EM CASAS DE CANDOMBLÉ (ES)
Milena Xibile Batista Mestra em Ciências Sociais - UFES.
Resumo: Em terras americanas e brasileiras, trouxeram mais que seus corpos, os africanos reconstruíram
e transmitiram no Novo Mundo uma bagagem e herança cultural extremamente rica, implantando
dialetos, memórias, crenças e um panteão de Orixás, Inquices e Vóduns. Entender a autodefinição de
membros de “comunidades de terreiro” enquanto pertencentes às nações de candomblé nos impele a
retomar parte de fragmentos da história dos africanos antes de sua chegada ao Brasil e compreender como
ocorreram as primeiras manifestações em terras brasileiras. Como ponto de partida, a presente etnografia
e a literatura sobre o assunto requerem adentrar em análises de categorias nativas do povo de santo e, em
seguida, passar a questões teóricas sobre esses temas. Na cidade de Serra encontram-se as quatro casas
de santo onde a pesquisa de campo foi realizada com sacerdotes, que dividem suas memórias e
experiências religiosas compondo um exercício teórico sobre a história e a formação do candomblé no
estado. Suas preocupações são de transformar parte das tradições orais em produção escrita. Reconstroem
a ligação com uma comunidade imaginada que remonta à África e desenvolvem relações de parentesco
ficcional entre os membros das comunidades de terreiro, formando uma família de santo e de axé.
Palavras-chave: candomblé; memória; identidade.
Abstract: In American and Brazilian soil they brought more than their bodies, African people rebuilt
and passed in the New World a background and extremely rich cultural heritage, deploying dialects,
memories, beliefs and a pantheon of Orixás, Inquices and Vóduns. Understanding the self-definition
of members of “communities place of the Candomblé” as belonging to Candomble’s nations leads
us to recover part of African history fragments prior to their arrival in Brazil and understand how the
first manifestations in Brazilian territory occurred. As a starting point, this ethnography and literature
about the subject, requires entering into the analysis of the native categories of the people of Saints,
and then go over the theoretical questions on these topics. In the Serra City are the four holy places
where the field research was conducted with priests who share their memories and religious
experiences composing a theoretical exercise about the history and the formation of Candomble in
the state. Their concerns are to transform part of the oral traditions into writing production. Restores
a connection with an imagined community that dates back to Africa and plays fictional relationships
among members of communities place of the Candomblé and form a family of Saint and axé.
Keywords: candomblé; memory; identity.
Introdução
Em terras americanas e brasileiras trouxeram mais que seus corpos, os africanos
reconstruíram e transmitiram no Novo Mundo uma bagagem e herança cultural extremamente
rica, implantando dialetos, memórias, crenças e um panteão de Orixás, Inquices e Vóduns.
Analisar memórias e identidades das casas de santo, comunidades e nações de candomblé
capixabas foi o cenário de uma pesquisa maior, da qual parte se desdobrou nesse ensaio sobre uma
religião de matriz africana. Um diálogo com pessoas que são referências religiosas no candomblé
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e sobre essa religião de matriz africana no contexto externo a esse universo religioso e ainda mais,
pessoas e comunidades que se definem a partir da fé, isto é, tomam a fé como símbolo delimitador
de suas identidades. A partir da análise das histórias de vida dos entrevistados1, foi possível
entender como, apesar de todos os desafios, dedicam-se há mais de vinte anos a defender o que
acreditam ser uma herança de seus ancestrais religiosos, pois entendem que o candomblé é uma
religião que, para realizar suas celebrações, remonta sempre às suas origens africanas.
O período colonial brasileiro foi marcado pela escravização de africanos. Os “filhos
da diáspora africana” trazidos para cá eram de distintas regiões da África, o que nos permite
entender a diversidade cultural que marca esses grupos. As religiões de matriz africana, por
exemplo, existem de norte a sul do país, em meio a diferentes processos de hibridização
entre elas próprias e o cristianismo (religião dominante), bem como entre elas e as doutrinas
espiritualistas. Essas hibridizações de crenças e rituais são tão evidentes que já não dizemos
no Brasil religiões africanas e sim religiões afro-brasileiras.
O continente africano pode ser dividido em duas partes, cortando-o com uma linha
demarcatória à altura do Golfo da Guiné. Dessa linha para cima, as tradições culturais negras
são chamadas sudanesas e desse paralelo para baixo, chamadas de bantos2. Dos negros
sudaneses, as culturas que mais influenciaram no Brasil foram a nagô (nàgó)3 e a jeje4,
provenientes da Nigéria e do Daomé respectivamente.
1 Os iniciados no candomblé costumam chamar os sacerdotes de zeladores, mãe e pai-de-santo, baba, ya, babalorixá
(bàbálórìṣà), sacerdote de culto às divindades denominadas Òrìṣàs (orixás). Nesse trabalho, foi entrevistado o senhor
Rogério de Iansã, o único babalorixá. E no caso de iyalorixá (iyálórìṣà) –sacerdotisa do culto aos Òrìṣàs (mãe que tem
conhecimento de orixá), foram entrevistadas as senhoras Edinéa de Iemanjá, Dezinha da Oxum e Rita de Oxum. 2 Bantu: compreende Angola e Congo; é uma das maiores nações do Candomblé, uma religião afro-brasileira.
Desenvolveu-se entre escravizados que falavam a língua quimbundo e a língua kikongo. No panteão dos povos
de língua kimbundu, originários do norte de Angola, o Deus supremo e Criador é Nzambi ou Nzambi Mpungu;
abaixo dele estão os Minkisi (do kimbundu Nkisi ou (plural) Minkisi ou Mikisi receptáculos), divindades da
mitologia Bantu. O Deus supremo e Criador é Nzambi ou Nzambi Mpungu; os Jinkisi/Minkisi, divindades da
Mitologia Bantu. Essas divindades se assemelham a Olorum (deus supremo) e correspondem aos Orixás da
Mitologia Yorubá, e Olorum e Orixá do Candomblé Ketu. Na hierarquia de Angola o cargo de maior
importância e responsabilidade é: o Tata Nkisi (homem) ou Mametu Nkisi (mulher). LOPES, Nei. Novo
Dicionário de Banto do Brasil. São Paulo: Pallas, 1999, p. 23. 3 Nàgó – uma forma de definir o povo yorubá. Ànágó. Todas as palavras em yorubá foram retiradas do
dicionário de BENISTE, José. Dicionário de yorubá-português. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 538. 4 jejes: os jejes ou daomeanos são um povo africano que habita o Togo, Gana, Benin e regiões vizinhas,
representado, no contingente de escravos trazidos para o Brasil, pelos povos denominados fon, éwé, mina, fanti e
ashanti. O apogeu desse tráfico foi durante o século XVIII, durando até 1815, no chamado “Ciclo da Costa da
Mina” ou “Ciclo de Benin e Daomé”. Candomblé Jeje é o candomblé que cultua os Voduns do Reino de Daomé,
levados para o Brasil pelos africanos escravizados em várias regiões da África Ocidental e África Central. Essas
divindades são da rica, complexa e elevada Mitologia Fon. Introduziram o seu culto em Salvador, Cachoeira e
São Felix, na Bahia. Também em São Luís, no Maranhão e, posteriormente, em vários outros estados do Brasil.
1. A comunidade de Helvécia entre a desterritoriaização e a reterritorialização
A comunidade de Helvécia está localizada no extremo sul da Bahia, mais
especificamente no município de Nova Viçosa e, no ano de 2005, foi reconhecida pela
Fundação Palmares como área remanescente quilombola. Seu passado está ligado à Colônia
Leopoldina, uma sesmaria de posse suíço-alemã, fundada em 1818, originalmente destinada
ao povoamento, mas que se constituiu como colônia agrícola, com grande número de
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escravos. Ao histórico de Helvécia agrega-se a expansão do eucalipto, que teve início no
meado do século XX, no Extremo sul da Bahia.
O sistema escravista e a monocultura do eucalipto deixaram marcas profundas
ligadas às características étnicas e culturais da população e, evidenciaram formas identitárias
e de resistência da comunidade em relação ao espaço, suas histórias e sua gente.
Com a expansão da produção de eucalipto na região e o estabelecimento da indústria
de papel e celulose, os espaços onde anteriormente imperavam as atividades tradicionais da
agricultura familiar deram lugar à monocultura. A dominação hegemônica das terras pelo
grande capital da empresa de celulose realinhou as relações sociais, desarticulou as
organizações econômicas e por consequência, provocou a reelaboração das relações da
população local com a sua própria memória no/do espaço.
Gradualmente a compra de terras e a invasão do eucalipto mobilizaram a população
local negra. A partir de confrontos com as empresas do agronegócio e disputas políticas
internas na comunidade, levaram o grupo a se organizar e iniciar a luta pelo reconhecimento
do distrito de Helvécia como espaço remanescente quilombola.
Nesse contexto de relações ambíguas de poder, algumas vozes e silêncios, que
permeiam discursos na comunidade, trouxeram à tona questionamentos sobre os bastiões da
memória coletiva, na perspectiva da posse da terra e desterro, que definiram/definem a
organização e vivência da comunidade de Helvécia. Assim também, é pertinente
compreender a utilização dos subterrâneos da memória e evidenciar seus lugares
reminiscentes para tornar visível a luta da comunidade contra a infiltração desagregadora do
capital latifundiário das empresas de celulose.
Portanto, para analisar os conflitos ligados ao direito, à memória e a terra neste lócus é
preciso salientar algumas questões norteadoras: A) De que forma a expansão do domínio de
terras pelas empresas de agronegócio, no extremo sul da Bahia, desarticulou os vínculos de
memória na/da comunidade? B) De que forma a Memória coletiva contribuiu/contribui para
que a comunidade resista às consequências da invasão da cadeia produtiva do eucalipto? C)
Como a busca do reconhecimento como comunidade remanescente quilombola reelaborou a
memória coletiva ou fez emergir suas memórias subterrâneas, e qual a relação entre o
território, ritos, performances e a memória coletiva de Helvécia? Pouco a pouco, essas
problemáticas corporificaram-se em tema para a análise do binômio memória/resistência na
comunidade remanescente quilombola.
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No intuito de alcançar resultados na pesquisa, que visassem perceber os alicerces nos
lugares de memória que dão sustentação às práticas tradicionais, foram analisados dados,
documentos e fontes orais no sentido de compreender a formação da memória coletiva na
comunidade de Helvécia. Sendo assim, objetivando também, compreender como os sujeitos
e o grupo, na comunidade, se valem da memória coletiva, conferindo-lhe novas
configurações e se instrumentalizando essa como elemento de resistência contra os impactos
da monocultura de eucalipto.
2. A memória e a terra como alicerces do sentimento de pertença
O distrito quilombola de Helvécia, localizado no Território de Identidade1 do
Extremo-sul da Bahia apresenta configurações sociais e econômicas típicas do contexto do
Brasil imperial. Sua formação está ligada ao início do século XIX, mais especificamente no
ano de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Nesse período a demografia
brasileira ainda era insipiente, motivo pelo qual o rei português D. João VI decretou que
fossem doadas sesmarias para colonos estrangeiros que se interessassem na formação de
povoados e exploração de terras no Brasil (Gomes, 2009, p. 39). Durante todo o século XIX,
a comunidade de Helvécia2 se envolveu na produção de café, sendo que “a principal
propriedade que garantia o crédito aos produtores de café era o escravo”, como afirma Carmo
(2010). A utilização da mão de obra escrava se fazia presente em muitos dos ramos de
produção, assim estabelecendo um número significativo de escravizados na região, como
assevera Alane Fraga do Carmo sobre os primeiros momentos da colônia de Leopoldina:
Os vários relatórios dos presidentes das provinciais e os documentos do
consulado da Suíça na Bahia discutem a questão da mão de obra empregada no
cultivo do café na Colônia de Leopoldina. São quase exclusivamente braços
escravos, africanos e crioulos em número muito superior ao de estrangeiros. É
difícil, entretanto, precisar a exata população escrava na colônia ao longo dos
seus quase setenta anos de existência (CARMO, 2010, p. 31).
1 Regionalização recentemente estabelecida pelo atual governo da Bahia constituída a partir da especificidade
dos arranjos sociais e locais de cada região, onde a divisão vem sendo utilizada para a implementação de
políticas públicas no Estado, segundo a SEPLAN (2013). 2 As sesmarias da colônia de Leopoldina foram doadas a grupos de colonizadores suíços e alemães, por esse
motivo a colônia foi rebatizada de Helvécia, em homenagem aos grupos de colonizadores suíços.
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Carmo evidencia que, logo, junto ao aumento da produção, também se fazia necessário
a demanda por uma maior quantidade de mão de obra cativa, o que marca a intensificação das
ações escravagistas. Proporcionalmente como resposta ao sistema opressivo da escravidão,
emergia a prática de insubordinação, ligada aos projetos de resistência e liberdade (MATTOS,
2008). Quase sempre, estes projetos de liberdade estavam vinculados à posse da terra, aos
vínculos de parentesco e pertencimento com a comunidade, geralmente reforçados pelas práticas
dinâmicas de sociabilidade3 que reafirmavam os laços de identidade do grupo.
A posteriori, nos desenlaces do sistema escravista, a abolição correspondeu para população
cativa de Helvécia a possibilidade de articular novas trajetórias, através do distanciamento dos
miasmas da condição escrava. Segundo Fraga (2006), o processo da possessão de terras4 gerou
possibilidades de melhoria de condições econômicas e sociais, e sobretudo, a possibilidade de se
distanciar do estigma da submissão do cativeiro, ou seja, o acesso à liberdade.
Gomes (2009) assevera que a gestão desses pequenos lotes de terra pelas famílias dos ex-
cativos se baseava na coletividade do trabalho, forma mais eficiente de sobreviver às adversidades.
Nessa coletividade, o grupo buscava também fortalecer sua identidade como forma de resistência.
Portanto, essa coletividade era evidenciada em várias situações: para lavrar a terra,
construir casas ou comemorar a colheita, a comunidade se reunia em atividades como danças
e festejos que reforçavam os laços do grupo (SANTANA, 2014). Portanto, há indícios que a
identidade dos ex-escravos se ancorava na memória coletiva. Nessa perspectiva de análise
Michael Pollak (1992) concorda com Halbwachs sobre a memória quando afirma que, esta
é um elemento constituinte do sentimento de identidade tanto individual quanto coletiva.
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo
relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos
anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também,
ou sobretudo, como um fenômeno coletivo social, ou seja, como um
fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constante (POLACK, 1992, p. 201).
3 As dinâmicas de sociabilidade a que se faz referência são os elementos das danças como o bate barriga (dança
de tradição africana), festejos como o samba de viola, as religiosidades de matriz africana, trabalhos em grupo
na construção de casas como o embarreiro, entre outros. Assim, as práticas agregadoras do grupo que
reafirmam o sentimento de pertence e colaboração, embasam a resistência do grupo frente às adversidades do
contexto (SANTANA, 2014). 4 Sobre a posse de terra em Helvécia, pesquisas não deixam claro como os ex-escravos chegaram à obtê-las. Contudo,
nas narrativas de antigos moradores a posse da terra é justificada como uma doação da Princesa Isabel. Os moradores
afirmam que receberam aproximadamente 25 braças por família. A pesquisadora da UNEB Liliane Mª Cordeiro Gomes
(2009), em sua dissertação de mestrado, afirma que há uma lacuna nesse episódio histórico e que o grupo utiliza a
memória como forma de preencher tal “hiato”, ela assevera: “talvez este hiato tenha sido preenchido na memória das
pessoas de Helvécia buscando um fio condutor entre o fim do cativeiro e a posse das terras”.
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Nesse sentido, quanto a construção e vicissitude coletiva da memória, Beatriz Sarlo
(2004) complementa que esses sujeitos, marginalizados durante tanto tempo, e ainda hoje
relativamente ignorados buscam novas exigências e tendem a fortalecer o movimento de
resistência recorrendo aos discursos da memória. No caso de Helvécia, a memória é
referenciada em práticas como a dança do Bate-barriga, as Festas de Terreiro, Samba de Viola,
o Embarreiro, entre outras práticas sociais, que possibilitam a sobrevivência da memória do
grupo, pari passo, que essas memórias são os esteios dos movimentos de resistência.
Assim, a sociabilidade presente no espaço de Helvécia, proporcionava aos sujeitos
(individualmente) e ao grupo a reafirmação da identidade e a garantia de que as memórias
construídas não desapareceriam, sendo evocadas nas ações coletivas, nos festejos, nos
féretros e etc. Sobre isso, Maurice Halbwachs (2012) afirma que lembrar não é meramente
reviver, e sim, refazer com imagens e ideias de hoje as experiências do passado e estas, tem
o poder de unificar e até aproximar. Ocorre, segundo o autor, que a memória individual é
fortalecida pela memória coletiva, desde que as lembranças tenham significados para o
sujeito, como se faz transparecer em Helvécia. Acerca disso ele assevera:
Talvez seja possível admitir que um número enorme de lembranças
reapareça porque os outros nos fazem recordá-las; também se há de convir
que, mesmo não estando esses outros materialmente presentes, se pode
falar de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar
na vida de nosso grupo [...] (HALBWACHS, 2012, p. 48).
Contudo, as relações tradicionais que emergiram da posse da terra pelos negros de
Helvécia, como foram supramencionados, esbarram um século depois em fatos que
desarticulam a vivência da comunidade: o advento da cadeia produtiva do eucalipto no
Extremo-sul da Bahia, que fraturou as estruturas concebidas nas relações de sociabilidade
da comunidade com o espaço.
A produção do eucalipto e o estabelecimento das indústrias multinacionais (Suzano
Celulose e a FIBRIA) têm desestruturado os modos de vida tradicionais, marginalizando,
gerando subempregos e violentando a memória do grupo e a sua relação com a terra. A posse da
terra pelas empresas de celulose aumentara significativamente no final dos anos 80, deslocando
os pequenos produtores rurais de suas terras e em virtude disso rompendo os laços de memória
e produção tradicional existente entre estes que lhe conferia significados de pertencimento. Ao
passo que o latifúndio da monocultura se expandia, a comunidade de Helvécia era marginalizada
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dos dividendos de sua produção. Sobre o domínio das terras empreendido pela FIBRIA e os
impactos sociais sobre a população de Helvécia, Gomes salienta:
Diante desta situação, a comunidade viu-se obrigada a deslocar-se de seu lugar
em busca de alternativas de emprego e sobrevivência. Esses deslocamentos
ocorrem tanto para destinos próximos do distrito, como a cidade de Nova Viçosa
e Teixeira de Freitas, como para centros mais distantes, entre os quais Vitória,
Salvador, São Paulo e Belo Horizonte (GOMES, 2008. p. 96).
É possível perceber nesse relato que as terras foram gradualmente ocupadas pela
monocultura, ilhando a comunidade, provocando migrações, interferindo diretamente e
indiretamente nas ações coletivas, desagregando o sentimento de grupo e ferindo as
memórias que durante tanto tempo conferiram identidade à comunidade. Sobre a perspectiva
do desterro dos lugares de memória, Pierre Nora laça olhares buscando perceber a
reciprocidade entre a destruição da memória coletiva e a sobrevivência dessas através de
espaços que encarnam suas reminiscências, como afirma Nora (1984):
A curiosidade pelos locais onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada
a este momento particular da nossa história. Momento de articulação onde a
consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma
memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória
suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O
sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória
porque não há mais meios de memória (NORA, 1984. p. 7).
É possível que através das palavras de Pierre Nora, entenda-se que a comunidade
quilombola tenha recolhido a memória coletiva em lugares de memória (as próprias práticas
de sociabilidade e locais físicos como terreiros, igrejas, cemitério e etc.) e que também são
bombardeados por ações destrutivas do grande capital.
Contudo, é latente o possível esfacelamento de lugares de memória de Helvécia em
detrimento da ocupação territorial do eucalipto, e tal fato, pode ser exemplificado, observando o
cemitério da comunidade que se encontra sitiado pelos “pés de eucalipto”, e atualmente está
engolfado pelo mato e isolado da cidade, em outras palavras, depredado pela monocultura. Neste
fato, se evidencia uma violência física e também simbólica5 que tal produção promove.
5 O conceito de simbólico foi utilizado no texto com base em: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 7 Ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
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Todavia, como um evento de resistência à disseminação do eucalipto, que sufoca e
marginaliza a comunidade de Helvécia, para garantir a sobrevivência do grupo surgiu a iniciativa
de pleitear a oficialização de suas raízes quilombolas, buscando desta forma, subsídios para
conter as lacerações causadas pela monocultura sobre as raízes identitárias da comunidade. A
partir dessa ação, o que fica implícita no “emquilombamento”6 é uma tentativa de resistir às
dominações contemporâneas do grande capital. Assim, no ano de 2005, Helvécia foi
reconhecida pela Fundação Palmares como área remanescente quilombola7.
As condições contemporâneas e externas à comunidade referida abalaram/abalam as
condições materiais e sociais de existência do grupo, ao passo que se desagrega a consciência
sobre o pertencimento a essa comunidade, proporcionalmente também, se ergue o desejo de
manutenção da memória. Nora afirma que “a memória emerge de um grupo que ela une”,
portanto, “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”
(NORA, 1993). Nesse sentido, ao passo que a comunidade sofreu a invasão do eucalipto,
esta buscou renovar a resistência nas vias de suas próprias memórias.
Consonante a essa prática de reafirmação, a memória coletiva aferiu ao grupo a
função de alicerce e de forças centrípetas aos indivíduos da comunidade. Jacques Le Goff
(1994) corrobora com Halbwachs ao afirmar que:
[...] a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades
desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes
dominantes e das classes dominadas, lutando, todas, pelo poder ou pela
vida, pela sobrevivência e pela promoção (LE GOFF, 1994, p. 469).
Assim, a memória do grupo ascende sobre as circunstâncias de conflito, buscando na
coletividade e na ancestralidade raízes profundas suficientes para resistir a invasão
imperativa da cadeia produtiva do eucalipto. Ao passo que se reconhecer quilombola aferiu
ao grupo a dimensões de memória e identidade que outrora eram subterrâneas, sob
circunstâncias de opressão, o reconhecimento encarnou a funcionalidade da resistência.
Sobre a disputa entre as memórias, ditas, oficiais e as memórias subterrâneas ou
marginalizadas, Pollack afirma que:
6 Emquilombamento refere-se a semantização do ato de resistência, das comunidades tradicionais com origem
étnica africana, de se tornar quilombo ou se reconhecer como quilombola; 7 Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003.
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[...] Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu
trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível
afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A
memória entra em disputa (POLLACK, 1985, p. 3).
Nesse campo de disputa, as memórias subterrâneas que emergiram sob uma
conjuntura de conflitos ganham contornos de contestação, a partir do contexto que as
reelaboram, e que por vias destas instrumentalizam as lutas por direitos da comunidade. Se
se declarar ex-escravo denotava sistema simbólico de opressão, ou mesmo atrair sobre si
olhares de discriminação, agora para a comunidade de Helvécia as memórias que foram
silenciadas se tornaram instrumentos de luta e resistência.
Assim, concebendo a memória como eixo norteador, esta breve análise buscou a
articulação metodológica a partir das fontes orais, recorte etnográfico e análise
historiográfica. Nesse recorte metodológico, as fontes orais foram norteadoras no processo
no sentido de articular a análise e dar voz à população do distrito. Thompson (1998) e Portelli
(1997) consideram que a história oral ao trazer evidências sobre o passado convertem as
falas dos narradores em instrumentos com os quais podemos interpretar e escrever a história.
Assim, sendo uma comunidade ligada a grupos africanos e de tradição oral, as narrativas dos
moradores de Helvécia contribuíram com a observação sobre alguns impactos provocados
pelos movimentos recentes do grande capital, assim como disputas ainda em curso. Contudo
as fontes revelaram que mesmo após o distrito ter sido reconhecido pela Fundação Palmares,
como comunidade remanescente quilombola, os desafios e conflitos ligados às empresas de
celulose, ou aos agentes de seu capital, são uma realidade presente, tornando o campo da
memória nesse local um palco cotidiano de disputas de poder.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 7. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CARMO, Alane, Fraga. Colonização e Escravidão na Bahia: A Colônia de Leopoldina
(1850-1888). Dissertação apresentada o Curso de Mestrado em História Social,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: Histórias de libertos e escravos
na Bahia (1870-1910). Campinas: Ed. Unicamp, 2006.
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GOMES, Liliane Maria Fernandes Cordeiro. Helvécia: homens, mulheres e eucaliptos
(1980-2005). Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciências Humanas, Universidade
do Estado da Bahia, Santo Antônio de Jesus, 2009.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2 edição - 6
Reimpressão, 2012.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.
MATTOS, Wilson Roberto. Negros Contra a Ordem: Astúcia, resistência e liberdades
Abstract: This work is an ethnographic presentation of the Alto Iguape quilombo community,
located in the mountainous region of Guarapari, in the state of Espirito Santo. Initially, it creates a
context for the community, arguing that it is a translocal quilombo community. Then, it analyzes
their kinship relations, highlighting their marriage arrangement. Hereafter, discusses their economic
activities and working relationships developed and established in the countryside, on the street, and
at sea. Finally, it deals with their religiosity, focusing on its popular and black ethos.
Keywords: memory; identity; quilombo communities.
Introdução
A comunidade quilombola de Alto Iguape situa-se na localidade das Goiabas, na
região montanhosa de Guarapari, no Espírito Santo. Ela teve sua certidão de autodefinição
como remanescente de quilombo emitida pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2012.
De acordo com uma de suas narrativas de origem, a comunidade teria sido formada por
descendentes dos ex-escravizados, oriundos de duas fazendas que existiam em Guarapari e
que, em meados do século XVIII, pertenciam ao padre Antônio Siqueira de Quental: a
fazenda Engenho Velho e a Fazenda do Campo. Essa narrativa, que é apropriada por alguns
membros da comunidade e da Associação Remanescentes do Quilombo Alto Iguape
(ARQUI), se baseia em pesquisas realizadas por José Amaral Filho (2009), historiador
residente no município, que parte de relatos contidos no livro Viagem ao Brasil, do príncipe
Maximiliano Wied-Neuwied (1940). Em sua obra, o naturalista austríaco descreveu a
república negra que estava estabelecida sobre aquelas fazendas em 1815.
O relato sobre o “refúgio” de ex-escravizados na região está presente na memória
dos membros mais antigos da comunidade, como o senhor Emílio Borges de Almeida, de 94
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anos de idade, que contava a seus filhos e netos histórias que costumava ouvir de seu pai.
Essas histórias, que me foram passadas com mais detalhes por João de Almeida, presidente
da ARQUI e filho de seu Emílio, dão conta de que o avô deste senhor, que se chamava
Gustavo Pinto Ribeiro, teria sido escravizado na Fazenda do Campo, de onde fugiu com sua
esposa Maria Vicente da Conceição para se abrigar nas Goiabas. Foram as histórias de seu
Emílio que impulsionaram os processos de constituição da identidade quilombola e de
reconhecimento da comunidade de Alto Iguape.
É possível dizer que a comunidade quilombola de Alto Iguape é uma comunidade
translocal (SAHLINS, 1997), pois, desde o final da década de 1940, algumas de suas famílias
fizeram um movimento de saída da localidade das Goiabas em direção à região litorânea de
Guarapari, com o intuito de morar mais próximo dos núcleos urbanos do município, em
busca de melhores condições de trabalho. Mesmo assim, essas famílias, que se estabeleceram
nos bairros chamados Samambaia, Banqueta, Jabaraí, Kubitschek, São Gabriel, Paturá e Elza
Nader, dentre outros, mantêm forte vinculação com seus parentes das Goiabas e seus
membros se sentem pertencentes à comunidade. Neste trabalho, estou me detendo no núcleo
das Goiabas, que compreende a comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural
Palmares, e no núcleo de Jabaraí, que abriga o maior número de membros da comunidade
fora das Goiabas, e no qual, assim como nas Goiabas seus membros reproduzem o esquema
da família extensa (AUGÉ, 1978), vivendo uns próximos dos outros.
Nas seguintes seções deste trabalho, focalizarei as relações familiares, as atividades
econômicas e relações de trabalho e as práticas espirituais e religiosas estabelecidas e
desenvolvidas pelos membros da comunidade translocal de Alto Iguape. Esta comunicação é
um recorte do terceiro capítulo da dissertação que estou elaborando para o Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (PGCS-UFES).
1. Relações familiares na comunidade de Alto Iguape
Ilka Boaventura Leite (2000, p. 344), ao tratar sobre a ressemantização do conceito,
escreve que “de todos os significados de quilombo, o mais recorrente é aquele que remete à
ideia de nucleamento, de associação solidária em relação a uma experiência intra e
intergrupos”. Para esta autora o direito quilombola se remete, então,
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à organização social, diretamente relacionado à herança, baseada no parentesco;
à história, baseada na reciprocidade e na memória coletiva; e ao fenótipo, como
um princípio gerador de identificação, onde o casamento preferencial atua como
um valor operativo no interior do grupo (LEITE, 2000, p. 345).
A importância das relações de parentesco, ou das relações familiares, para as
comunidades quilombolas pode ser observada na comunidade de Alto Iguape, que nos dois
núcleos em que me detenho neste trabalho é formada principalmente pelas famílias Santana,
Rangel, Borges de Almeida, e Mendes da Vitória. Os membros dessas grandes famílias
casaram-se entre si, constituindo assim vários núcleos familiares menores. Outras famílias
também vieram a se agregar a essas quatro por meio de casamentos, como os Pereira
Barcelos, os Marcelino, os Santos, os Cristóvão e os Albertino. Das grandes famílias
mencionadas, os Santana e os Borges de Almeida descendem respectivamente de Cláudio
José de Santana e de Deoverdino Borges de Almeida, que são filhos de Gustavo Pinto
Ribeiro e de Maria Vicente da Conceição. A memória dos Rangel, por sua vez, se remete
mais remotamente ao seu antepassado Luiz Pinto Rangel, que é da mesma geração de
Cláudio José de Santana e de Deoverdino Borges de Almeida.
Seu Emílio, que é filho de Deoverdino Borges de Almeida, explica que a diferença
nos sobrenomes dos filhos de seu avô se deve ao antigo hábito da adoção dos sobrenomes
dos padrinhos das crianças na ocasião do batismo. Ele conta que seu pai era casado com
Valentina Maria do Sacramento, com quem teve quatro filhos. No mesmo período, de acordo
com seu Emílio, Deoverdino também mantinha relações conjugais com Ana Maria do
Sacramento, que foi morar com o casal quando tinha 12 anos. Deoverdino e Ana Maria
tiveram seis filhos, um dos quais é seu Emílio. Depois que suas duas mulheres faleceram,
Deoverdino passou a morar com Lidurgéria Maria da Conceição, com quem adotou uma
menina chamada Benedita Vitória, em virtude do falecimento de sua mãe durante o parto.
O senhor João Cláudio Santana era filho de Cláudio José de Santana com Aurélia
Maria da Conceição, que era irmã de Luiz Pinto Rangel. Ele casou-se com Benedita Vitória,
com quem teve 14 filhos, dentre os quais estão algumas de meus principais interlocutores do
núcleo das Goiabas, que são Benedita Santana, Rosa Aparecida Santana dos Santos e Maria
das Dores Santana, mais conhecida como Dorinha. Seu João faleceu durante minha pesquisa,
aos 90 anos. Seu Emílio, por sua vez, casou-se com dona Alicia Santana, irmã de seu João,
e com ela teve 16 filhos, dentre os quais figura João de Almeida, presidente da ARQUI.
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A família Santana, que descende de Cláudio José de Santana a partir de seu João, e a
família Rangel, que descende de Luiz Pinto Rangel por meio de seu filho Angelino Pinto
Rangel, são as principais famílias do núcleo das Goiabas. A família Borges de Almeida, que
descende de Deoverdino a partir de seu Emílio, é uma das principais do núcleo de Jabaraí.
Além dela, compõem este núcleo outro ramo da família Santana e a família Mendes da Vitória.
O primeiro é formado pelos descendentes de Inácio Santana e Idelfina Mendes Santana; a
segunda é constituída pelos descendentes de Maria Santana Mendes e José Mendes da Vitória.
Vale destacar que Inácio Santana e Maria Santana Mendes são filhos de Cláudio José de
Santana. José Mendes da Vitória e Idelfina Mendes Santana também são irmãos.
Observei entre os membros da comunidade de Alto Iguape dois arranjos de casamento
que chamam a atenção: 1) casamentos entre primos, não importa de que grau; e 2) casamentos
nos quais dois irmãos de uma família se casam com dois irmãos de outra família, sejam esses
irmãos biológicos ou adotivos, promovendo assim o que chamo de troca de irmãos. Ambos os
arranjos, na minha perspectiva, têm como objetivos reforçar a endogamia da comunidade e
estabelecer ou estreitar alianças entre os sujeitos. Se considerarmos as narrativas segundo as
quais Gustavo Pinto Ribeiro era um ex-escravizado, que se libertou da escravidão na Fazenda
do Campo e que as Goiabas eram um “refúgio” para ele e para outros indivíduos em igual
situação, vemos que tais objetivos se justificam. Desse modo, os arranjos de casamentos
mencionados podem ser considerados uma herança transmitida entre as gerações de membros
da comunidade (THOMPSON, 1993), que são descendentes do Gustavo.
Os casamentos entre seu Emílio e dona Alicia e entre seu João e Benedita Vitória são
exemplos tanto de casamentos entre primos quanto de troca de irmãos. Nesse caso
específico, o estabelecimento e o estreitamento de relações entre os membros da comunidade
foram acompanhados de uma transmissão de herança material. De acordo com relato de
Dorinha, a casa em que ela e seus irmãos moravam com seus pais anteriormente foi
derrubada pelo vento, por ser uma construção de estuque coberta de palha. Depois desse
evento, a família foi viver na casa onde o ancião das Goiabas morou até falecer. Já seu Emílio
contou que seu João morava em outra parte das Goiabas, e que a casa em que este senhor
morava no início da minha pesquisa pertencia a Deoverdino Borges de Almeida. Segundo a
narrativa do ancião de Jabaraí, seu João passou a morar naquela casa em virtude de seu
casamento com Benedita Vitória, que fora criada por seu tio.
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Outro exemplo de troca de irmãos ocorreu na geração dos anciões1 das Goiabas, entre
os irmãos Inácio Santana e Maria Santana Mendes e os irmãos José Mendes da Vitória e Idelfina
Mendes Santana. Ambos os casais desceram das Goiabas e compuseram o núcleo de Jabaraí da
comunidade de Alto Iguape. O primeiro casal que se estabeleceu mais próximo da área urbana
de Guarapari foi aquele formado por José e Maria. Ele foi seguido pelo casal formado por Inácio
e Idelfina, devido ao estreitamento entre as relações já existentes entre famílias Mendes da
Vitória e Santana, em virtude dos casamentos endogâmicos de seus membros.
Membros da geração intermediária da família Mendes da Vitória também realizaram
trocas de irmãos com outras famílias da região litorânea de Guarapari, como é o caso dos
Monteiro, que são uma família de pescadores da aldeia de Perocão2. Nesse caso, Maria da
Penha Mendes da Vitória e Valdete Mendes da Vitória casaram-se respectivamente com
Orestes Monteiro e João Monteiro. Aqui a troca de irmãos não reforçou a endogamia da
comunidade, mas atuou no sentido de estabelecer alianças entre as famílias envolvidas.
2. Atividades econômicas e relações de trabalho na comunidade de Alto Iguape
Três tipos de atividades econômicas foram desenvolvidos ao longo do tempo na
comunidade translocal de Alto Iguape: o trabalho na roça, que compreende as atividades
agrícolas; o trabalho “na rua”, ou seja, na cidade, principalmente em seus setores de comércio
e serviços; e o trabalho no mar, que se refere à pesca e à cata de mariscos. Essas atividades
econômicas se distribuem entre os membros da comunidade de acordo com suas gerações.
Os anciões dedicavam-se principalmente ao trabalho na lavoura. Todos os membros
da geração intermediária exerciam atividades agrícolas, sendo que hoje se dividem entre o
trabalho na roça, que é realizado por Valdemar Santana, José Aníbal Santana e Gerônimo
Santana, filhos de seu João, e por Paulino Rangel e Manoel Adilson Rangel, filhos de
Angelino Pinto Rangel; e o trabalho na rua, exercido por Dorinha, que faz faxinas e já foi
cuidadora de idosos e por João de Almeida, que é porteiro. Maria das Graças Santana –
também filha de seu João – é aposentada, mas relatou que trabalhou como empregada
doméstica. Já os membros da geração mais nova atuam nos setores de comércio e serviços,
1 Chamo de geração dos anciões da comunidade de Alto Iguape aquela formada pelos netos de Gustavo Pinto
Ribeiro. Geração intermediária é como classifico os filhos dos anciões, e geração mais nova é como designo
os filhos e netos dos membros da geração intermediária. 2 Perocão é uma antiga e importante vila de pescadores do litoral norte de Guarapari, que se localiza próximo à Jabaraí.
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como Rosana Santana dos Santos – filha de Rosa – e Luzinete Almeida Rangel – filha de
Manoel Adilson Rangel e Celina Almeida Rangel –, que respectivamente trabalham em um
restaurante no centro de Guarapari e em uma padaria em Buenos Aires; Jossemar Santana
dos Santos – neto de Inácio e Idelfina, mais conhecido como Polaco –, que trabalha com
comunicação visual; e Adriano Albertino da Vitória – neto de José Mendes e Maria –, que é
professor de História da rede estadual de ensino e atua como diretor do SINDIUPES.
Adriano e Polaco foram os únicos membros da geração mais nova que, até o presente
momento da minha pesquisa, afirmaram ter trabalhado na roça.
Benedita, Dorinha e Rosa relataram que as filhas de seu João também trabalhavam
com este senhor na roça, que ele plantava na parte mais elevada das Goiabas e nas terras de
outros proprietários do entorno. Benedita lembrou que ela e suas irmãs faziam uma escala
segundo a qual, a cada semana, uma delas ficava em casa cuidando dos afazeres domésticos
e preparando o almoço para os demais membros da família que trabalhavam na lavoura.
Benedita afirmou que preferia ir para a roça, pois lá o serviço era pesado, mas tinha hora
para acabar, o que não acontecia quando ela ou suas irmãs ficavam em casa.
Paulino cultiva bananas no terreno que herdou de seu pai, onde também cria gado à
meia com outros proprietários que não têm pasto em suas terras. Além disso, também planta
café à meia em uma fazenda do entorno, mas disse que assim que acabar o contrato, na última
colheita, não fará mais isso e se dedicará exclusivamente à sua propriedade. Manoel Adilson,
por sua vez, trabalha a dia produzindo hortaliças na horta da família Machado, em Buenos
Aires3. Trabalho a meia, ou meação, é uma relação de trabalho agrícola por meio da qual, no
final do processo, o trabalhador entrega 50% da produção ao proprietário do terreno ou do
gado. A meação é realizada tanto na terra dos empregadores – por exemplo, quando estes
são proprietários do terreno em que se cultiva o café – quanto na terra dos empregados – por
exemplo, quando a eles pertence o pasto em que o gado é criado. No final do processo, o
trabalhador vende a sua parte da produção. Trabalho a dia, ou diária, é uma relação de
trabalho agrícola por meio da qual os lavradores diariamente recebem dinheiro pelos
serviços prestados a outros proprietários nas terras destes.
Darcy Ribeiro (1977), quando trata do patrimônio fundiário brasileiro, divide os
camponeses em dois escalões básicos, que são os parceiros e os assalariados. O escalão dos
parceiros é formado pelos meeiros e pelos terceiros – que recebem a terça parte da produção
3 Localidade da região montanhosa de Guarapari próxima das Goiabas e fundada por imigrantes italianos.
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no final do processo. É interessante que, segundo o autor, a parceria é contemporânea dos
engenhos de açúcar do período colonial e absorveu muitos negros forros, no interior regime
escravista, e ex-escravizados, depois da abolição. Assim, os fazendeiros fixavam os negros
em suas terras, mas não os tornavam trabalhadores assalariados. Já o escalão dos assalariados
é formado por um contingente de trabalhadores, em grande parte temporários, e por seus
familiares, que não são remunerados por suas atividades.
A partir da categorização dos trabalhadores rurais trazida por Ribeiro, entendo que
enquanto a meação está para uma relação de trabalho não assalariada, devido à natureza da
sua remuneração, a diária é uma relação de trabalho assalariada, mesmo que temporária, por
ser remunerada em dinheiro. Mesmo assim, de acordo com relatos dos membros da
comunidade de Alto Iguape, a meação traz mais estabilidade aos trabalhadores, por ser
regida por um contrato assinado com os proprietários. O trabalho a dia, por sua vez, não é
registrado na Carteira de Trabalho e Previdência Social nem é regulado por um contrato
formal, pois os lavradores estabelecem tal relação com os proprietários apenas para “ganhar
o dia”, conforme expressou seu Emílio.
João de Almeida contou que, antes de descer para Jabaraí, também exerceu atividades
agrícolas no terreno de sua família e nas fazendas do entorno das Goiabas, sendo algumas
delas pertencentes a descendentes de imigrantes italianos. É interessante que ele relatou que
chegou a trabalhar um dia no que restou da Fazenda do Campo. O filho de seu Emílio conta
que, nessa época, percebia que as relações que os fazendeiros tinham com ele e com outros
trabalhadores era análoga à relação entre senhores e escravizados.
Era aquela, aquela coisa de, realmente, de escravidão mesmo, não era uma
coisa de, de, de um ser humano chegar e... E de valorizar como um
trabalhador. Não, eles queriam te usar como escravo. Ainda tinha em
mente deles que a gente ainda era escravo, [...] aquele povo que pagava a
dia pra gente. Eu trabalhei, eu trabalhei com um cidadão, eu trabalhei com
um cidadão, aqui mesmo na Fazenda do Campo, isso aí depois que já havia
liberado, né? Que segundo dizem, não existia mais escravo, mas de uma
forma ou de outra existia, camuflado. Eu trabalhava descalço, dentro de,
de uma área enorme, assim, que só tinha juá – é aqueles espinho, chama de
juá. Entendeu? Então, o que que eu fazia? Eu roçava, e limpava o lugar pra
botar o pé. Quando eu acabava de cortar aquilo dali e olhava pra trás, eu
não tinha mais por onde passar. E era espinho puro! Então, tudo o que eu
cortava era espinho, quando olhava não tinha. Então, o cara, ele ficava
vigiando a gente. Ele botava uma sete légua, cruzava os braço e ficava
assim, ó. O tempo todo te olhando na cara pra você não parar de cortar,
entendeu? (Entrevista do autor com João de Almeida, Guarapari, 2014).
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De acordo com João de Almeida, outra herança transmitida (THOMPSON, 1993)
entre as gerações da comunidade de Alto Iguape que se remetia ao período do cativeiro era
o modo mais embrutecido e mais extenuante de trabalhar, bem como a realização de
atividades agrícolas que exigem mais esforço físico.
Então, o povo que trabalhava era um povo revoltado, um povo que não tinha,
assim, paciência de trabalhar. Era um povo que trabalhava se matando,
entendeu? Essa coisa de... De pegar peso demais! Essa coisa de... de rasgar
qualquer coisa na unha lá. Entrava no mato e saía cortando, e saía
derrubando. Aquilo dali já não era nem tanto, é... Pela mentalidade deles,
mas era daquilo que eles sofreram lá e foram passando pros outros que tinha
que ser assim (Entrevista do autor com João de Almeida, Guarapari, 2014).
Narrativa parecida foi apresentada por seu Emílio. Ele contou que, na sua juventude,
trabalhava tanto no terreno de sua família, com cultivo de subsistência, e em outras
localidades do interior do município, como Rio Calçado e Barro Branco, para a produção de
café à meia. Segundo o ancião de Jabaraí, suas filhas também trabalhavam com ele, e a sua
família era conhecida pela realização de serviços difíceis.
Nós começemos a trabaiá na roça com oito ano, as minhas fia também
começaro a trabalhar com oito ano. Trabalhava no negócio de... Mas elas
roçava, elas derrubava, elas pintava e bordava comigo! Rapaz, fazia tudo!
Trabalhava fora. Nóis num tinha serviço ruim pra nóis, não! Nosso nome
era o povo do arranque! Nosso nome mesmo, era o povo do arranque. Todo
o serviço encravado eles, eles tava chamando nóis (Entrevista do autor com
Emílio Borges de Almeida, Guarapari, 2015).
A diária e a meação são relações de trabalho hierárquicas, em que há um patrão e um
empregado, que os membros da comunidade de Alto Iguape mantinham principalmente com
os descendentes de imigrantes de italianos da área rural de Guarapari para a obtenção de
dinheiro, com o qual compravam aquilo que não produziam em suas roças. João de Almeida
observa, porém, que estas relações nunca se davam no sentido contrário, e que os membros
da comunidade nunca a estabeleciam entre si nem com outros negros do entorno. Neste
último caso, era estabelecida outra relação de trabalho: o mutirão, que é coletiva e horizontal.
Presenciei um mutirão realizado nas Goiabas, em abril de 2015. Nessa ocasião,
membros dos dois núcleos da comunidade se reuniram para limpar um dos córregos que
cortam a região e que fornece água principalmente para a casa de Manoel Adilson e Celina.
Devido à seca que se abateu sobre o Espírito Santo nesse verão, as fontes de água da
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comunidade tiveram seu volume drasticamente reduzido, e todos os córregos que elas
alimentam praticamente secaram. O objetivo desse mutirão foi retirar o barro e o húmus que
se acumulou sobre a superfície do referido curso d’água, para facilitar a queda da fina lâmina
do líquido que resistia a seca. Foi muito interessante observar a divisão sexual do trabalho
realizada nesse mutirão. Enquanto as mulheres ficaram reunidas na casa de Manoel Adilson
e Celina, e com ela prepararam o almoço, os homens, junto com Manoel Adilson, se
dirigiram ao córrego para trabalhar na sua limpeza.
Outra atividade econômica outrora desenvolvida pelos membros da comunidade de Alto
Iguape é a pesca e a cata de mariscos, realizada no litoral de Guarapari. Como indiquei acima, essa
atividade era complementar para aqueles que realizavam atividades agrícolas nas Goiabas, mas se
constituiu na principal ocupação de alguns membros do núcleo de Jabaraí. De acordo com
Adriano, estes últimos foram introduzidos à pesca em decorrência de relações estabelecidas com
membros de famílias de pescadores de Perocão, como os Cristóvão e os Albertino, relações essas
que inclusive fomentaram casamentos entre as famílias de Jabaraí e as de Perocão.
Inicialmente, os membros que desceram das Goiabas conciliaram as atividades agrícolas
com a pesca, até que a maior rentabilidade da segunda ocupação fez com que alguns deles se
dedicassem exclusivamente a ela, como foi o caso de Antônio Mendes da Vitória, filho de José
Mendes da Vitória e Maria Santana Mendes, que morreu em um naufrágio em alto mar enquanto
pescava. Adriano lembrou que, quando os membros da comunidade que permaneceram nas
Goiabas desciam para pescar e catar mariscos, era comum que eles se juntassem com os
membros do núcleo de Jabaraí, num movimento chamado por eles de “ajuntamento”. Então, eles
iam juntos para as pedras da Praia do Morro pescar e catar mariscos e eram abrigados no final
do dia por José Mendes da Vitória e Maria Santana Mendes. Seu Emílio e João de Almeida já
tinham me contado que, quando ainda moravam nas Goiabas, desciam a pé para pescar e catar
mariscos no litoral e que dormiam na praia quando isso acontecia, o que destoa dos relatos de
Adriano em relação ao abrigo fornecido por seu núcleo familiar, mas corrobora sua narrativa da
prática da pesca pelos membros da comunidade.
3. Práticas religiosas e espirituais na comunidade de Alto Iguape
Pude observar que os membros da comunidade quilombola de Alto Iguape de todas as
gerações e em ambos os núcleos onde estou pesquisando são bastante religiosos. Em sua maioria,
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eles professam o catolicismo em sua vertente popular (FREYRE, 2006), pois os sujeitos de
minha pesquisa de mestrado veem Deus e os santos praticamente como membros da família, se
sentindo próximos deles e por eles amados. Além disso, o catolicismo popular praticado por
esses sujeitos é também negro, o que se vê pela centralidade da devoção a São Benedito.
São Benedito é um santo negro, nascido na vila de São Fratelo, na Sicília, e filho de
africanos etíopes escravizados que foram vendidos naquela ilha italiana. Tendo sido liberto
junto com seus pais, serviu como religioso em conventos de Palermo, também na Sicília,
nos quais exercia atividades de faxineiro e cozinheiro. Devido à sua ascendência africana e
à sua condição inicial de escravizado, São Benedito é bastante cultuado pelos negros
brasileiros. No Espírito Santo existe a narrativa segundo a qual o navio Palermo, que trazia
africanos escravizados para a então capitania, passou por uma violenta tempestade quando
estava próximo da costa e naufragou. Os negros, antes do naufrágio, se agarraram ao mastro
do navio pedindo a proteção de São Benedito, conseguiram milagrosamente chegar vivos
em terra e prometeram celebrar anualmente festas em homenagem ao santo.
Tais festas, na região litorânea do Espírito Santo, entre os municípios de Linhares e
de Guarapari são chamadas de congo, devido ao nome do estilo de música que é nelas tocado,
ou tambor, em referência ao principal dos instrumentos utilizados pelas bandas de congo4.
O ponto alto das festas realizadas em honra a São Benedito é a fincada do mastro, no qual
uma longa estaca de madeira com a bandeira do santo nela hasteada é fincada no chão. A
fincada do mastro é uma referência ao naufrágio do navio Palermo e ao milagre que
acreditam ter garantido a sobrevivência daqueles que o ocupavam.
Na primeira vez que estive nas Goiabas, observei que na sala da casa de seu João havia
na parede uma prateleira em que, ao lado de dois troféus de futebol, repousavam um crucifixo
com a imagem de Cristo, uma imagem de São Benedito, outra de Nossa Senhora da Penha e
dois pequenos oratórios. Quando questionado se era devoto de São Benedito, seu João
respondeu que “São Benedito é muito querido meu” e que “São Benedito toda a vida foi meu
colega. Toda a vida eu fui puxa-saco dele”. Então ele lembrou do tempo em que “brincava
4 A gama de instrumentos de congo varia de acordo com município em que ele é praticado. Em Guarapari,
além dos tambores, feitos basicamente de barris nos quais são fixados os couros que são percutidos, são
utilizados também ganzás, que diferem das casacas típicas do congo de Vila Velha, de Cariacica e de Serra por
não possuir uma cabeça esculpida em seu topo nem um relevo que simula a vestimenta homônima ao redor de
suas ranhuras, chocalhos, chocalhos de contas, caixa e apito. Esses dois últimos instrumentos são de uso
exclusivo dos capitães das bandas, e demarcam sua autoridade, pois são utilizados respectivamente para ditar
o ritmo dos demais instrumentos e para dar fim a cada jongo.
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tambor a noite inteira”, e afirmou que os jongos5 que mais gostava diziam o seguinte: “São
Benedito, meu amor, foi embora e me deixou” e “São Benedito, meu pai, nosso congo já vai”.
Isso demonstra tanto o caráter popular quanto o colorido negro de sua religiosidade.
A proximidade com São Benedito também aparece na narrativa da filha de seu João
em relação à escolha de seu nome. Benedita contou que sempre afirmaram a ela que o santo
homônimo era seu padrinho, pois sua mãe passou muito mal quando estava para dá-la à luz
e o parto durou seis dias. Somente depois que sua avó adotiva, que era a parteira, fez uma
promessa a São Benedito é que a menina nasceu sem complicações para si e para a mãe. É
interessante que a mãe de Benedita possuía o mesmo nome que o escolhido para sua filha, e
que Benedito e sua variante feminina, depois de João, é o nome que mais se repete entre os
membros da comunidade quilombola de Alto Iguape.
Os membros do núcleo das Goiabas da comunidade de Alto Iguape frequentam a igreja
católica de Buenos Aires. Essa igreja tem forte presença de descendentes de imigrantes italianos,
tanto que logo após a sua porta principal, à direita de quem entra no templo, há uma fotografia
emoldurada que retrata o centro de um sacrário, em destaque, e em que se lê a seguinte legenda
escrita em italiano: “Miracolo Eucaristico ‘L’Ostia convertita in Carne...’”. Ainda assim, Paulino
e sua irmã Elielza Rangel Santana relataram que seus pais haviam trabalhado em uma das reformas
da igreja, e que seus antepassados também participaram de sua fundação.
Os membros dos dois núcleos da comunidade quilombola em que realizo a pesquisa
também praticam o congo. Pude observar isso na festa da Consciência Negra, organizada
pela ARQUI no Campo do Manoel, às margens da BR 101, próximo à entrada de Iguape,
em 22 de novembro de 2014. Tal festa contou com a participação de vários membros do
núcleo de Jabaraí e de Paulino, do núcleo das Goiabas, apesar de ser realizada próximo a
este último. A festa se iniciou com uma partida de futebol entre o time da comunidade
quilombola e o time da Associação Escolinha Rural de Futebol de Guarapari (AERF)6.
Depois do jogo é que se iniciou o congo, dirigido pelo mestre Tião, do Trevo de Guarapari,
que cedeu os instrumentos tocados pelos membros da comunidade.
Achei muito interessante que quase todos os membros da família de seu Emílio tocam
todos os instrumentos do congo e se revezavam neles. Chamou-me atenção também o fato
5 Em Guarapari, jongo é o nome que se dá aos versos cantados, enquanto congo é a denominação da festa, da
música ou mesmo do tambor. Não confundir com jongo ou jongo do Sudeste, que são outras manifestações
culturais afro-brasileiras. 6 A AERF foi uma das agências que participou do processo de reconhecimento da comunidade quilombola de
Alto Iguape. Seu presidente, Reginaldo Lucas Loureiro, é coordenador de projetos da ARQUI.
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de dona Alicia, aos 94 anos e sentindo dores, em decorrência do tratamento que faz contra o
câncer, ter tocado ganzá e dançado o congo. Nesse momento, os jongos eram puxados ora
pelos membros da comunidade, ora pelo mestre Tião. Vale dizer que este puxou um jongo
que afirmou ter composto em homenagem à comunidade quilombola, que diz: “Comunidade,
digo muito obrigado. Quando precisar de nós, mande o pequeno recado”.
Seu Emílio havia me contado anteriormente que, quando moravam nas Goiabas, eles
tinham todos os instrumentos de uma banda de congo, e que os tambores foram feitos por
eles mesmos, com barris que compraram em Vila Velha. O ancião de Jabaraí lembrou que,
com esses instrumentos, ele e seus parentes brincavam o congo em várias localidades do
interior de Guarapari. Porém, antes de mudar com dona Alicia para Jabaraí, há uns 15 anos,
ele vendeu os instrumentos.
Seu Emílio e João de Almeida afirmaram que o congo é um traço distintivo da cultura
da comunidade quilombola, ou como um sinal diacrítico, utilizando o conceito de Fredrik
Barth (1998). Eles contaram que, apesar de terem antigamente uma banda nas Goiabas, eles
sempre participavam das festas de São Benedito em Alto Rio Calçado7, junto com grupos de
outras localidades, em vez de fincarem o mastro ali. O presidente da ARQUI faz a leitura de
que a prática do congo se enfraqueceu no interior de Guarapari, devido ao surgimento de
outros produtos culturais.
Ali [em Alto Rio Calçado] já foi um point de todas as festas, era muita
gente, cara! Você olhava aquele morrinho ali, era de baixo em cima.
Quando se falava “festa de São Benedito”, lotava! Aí, vem assim... É mais
ou menos assim, [...] também a tecnologia foi aumentando, foi aumentando
as balada, aquele monte de coisa, e aí foi mudando (Entrevista do autor
com João de Almeida, Guarapari, 2015).
Ainda assim, de acordo com João de Almeida, o congo tem sido resgatado por ser
mais divulgado pela mídia ultimamente. É interessante que, na visão dele, o congo como um
demarcador da identidade quilombola é algo essencial e até mesmo imutável. Por isso, um
de seus anseios enquanto presidente da ARQUI é a aquisição de novos instrumentos para a
comunidade quilombola de Alto Iguape.
Apesar de a maior parte dos membros da comunidade de Alto Iguape serem católicos,
dois núcleos familiares de Jabaraí aderiram ao protestantismo, o grupo de Orestes e Maria
7 Localidade da região montanhosa de Guarapari com forte presença de negros e de descendentes de imigrantes alemães.
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da Penha fazem parte da igreja cristã Maranata, e o de Jaci Mendes da Vitória e Maria Helena
Barcelos são da igreja Adventista. Além disso, Adriano contou que seus tios Antônio e
Benedito Mendes da Vitória praticaram o candomblé, apesar deste último, que ainda está
vivo, não comentar sobre isso com seus familiares. Tal religião afro-brasileira, segundo
Adriano, ainda é praticada por Marta Borges de Almeida, filha de seu Emílio e dona Alicia.
Adriano levantou a hipótese de que o candomblé era praticado nas Goiabas por seus
antepassados, mas que a religião foi abandonada pela maioria deles a partir do contato que
tiveram com os descendentes de imigrantes italianos na igreja católica de Buenos Aires, para
serem mais aceitos por eles em sua congregação.
Imagino que na época ainda existia essa coisa do candomblé! Deve ter
existido... Eu não tenho relatos, eu não tô te dizendo de relatos, tá? É uma
hipótese. Então, eu acredito que essa, esse contato com a comunidade de
Buenos Aires fez com que a comuni... os membros da comunidade
quilombola de Alto Iguape, em algum momento, em algum período, é,
tivessem esse movimento de negação da própria identidade pra assumir a
identidade com a qual eles seriam reconhecidos naquele núcleo de Buenos
Aires (Entrevista do autor com Adriano Albertino da Vitória, Vitória, 2015).
A narrativa de Adriano lembra a perspectiva de Max Gluckman (1987), segundo a
qual um grupo social, no contato com outros grupos, pode abandonar costumes
endoculturais, que são elementos da cultura do próprio grupo, e adotar costumes
exoculturais, que são elementos da cultura do grupo com o qual interagem. Nesse caso, o
candomblé pode ter sido um costume endocultural abandonado pelos membros da
comunidade de Alto Iguape, e o catolicismo um costume exocultural por eles adotado na
interação com os descendentes de imigrantes italianos de Buenos Aires. Ainda assim, o
colorido negro é presente no catolicismo praticado por eles, como demonstrei acima. Ainda
de acordo com Adriano, outra prática espiritual que existiu na comunidade de Alto Iguape
foi o benzimento. Tal prática, que segundo Lidiane Alves da Cunha (2012, p. 4) é típica de
“mulheres que se dizem católicas, mas recebem influência de crenças espíritas, como as
religiões afro-brasileiras e dos rituais indígenas”, foi mantido por Maria Santana Mendes.
Considerações Finais
Esta comunicação abordou alguns dos elementos que foram e que são utilizados pelos
membros da comunidade quilombola de Alto Iguape como fundamentos de sua identidade.
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Tais elementos foram inclusive mobilizados pelos sujeitos da pesquisa no processo de
reconhecimento da comunidade pela Fundação Cultural Palmares. Apesar de trabalhar com
parte de meu referencial teórico, não propus aqui uma reflexão teórica sobre minha pesquisa
e me detive na descrição etnográfica do grupo em que realizo minha pesquisa. Os limites
desse trabalho justificam minha opção.
Referências
AMARAL F., José. Perocão, uma das aldeias mais antigas do Espírito Santo. Blog
Cultura Maratimba. Guarapari, 13 jul. 2009. Disponível em: <http://culturamaratimba.