Em 1967, durante o Terceiro Festival da MPB na TV Record,
Caetano Veloso e Gilberto Gil entrariam de vez para a histria da
msica popular brasileira, levando junto com eles Os Mutantes, Tom
Z, lanando um movimento musical que ficou conhecido como Tr
GELIA GERAL: TROPICALISMO E MODERNIDADE BRASILEIRA.
Zuleika de Paula Bueno*Resumo
Esse ensaio pretende discutir o movimento tropicalista como
representante da modernidade brasileira, partindo da idia de uma
cultura hbrida apresentada por Nestor Garca Canclini.
Abstract
This essay is concerned about the tropicalista movement as a
symbol of Brazilian modernity. The concept of hybrid culture from
Nestor Garca Canclini is a central idea for this paper.
Introduo
Neste ensaio procuraremos analisar o Tropicalismo levando em
considerao as diversas transformaes do campo artstico no final dos
anos 60 no Brasil. Nossa hiptese principal que o Tropicalismo
revela claramente o carter hbrido da cultura brasileira, bem como
da latino-americana, como defende Canclini (1997a).
Trabalhar com a noo de uma cultura hbrida envolve, na realidade,
discutir diversos conceitos relacionados:
modernidade-modernizao-modernismo, multiculturalidade,
diferena-desigualdade e heterogeneidade multitemporal (Canclini,
1997a : 20). Juntamente com estes conceitos, estaremos retomando as
noes de tradio, dominante, residual e emergente definidas por
Williams (1979), alm de seu conceito de fluxo (1975).
O Tropicalismo envolve diversos elementos residuais em suas
obras, tais como as constantes referncias a smbolos da cultura
popular, bem como imagens construdas pela cultura dominante por
meio da literatura, alm de citaes de uma cultura emergente no
cenrio brasileiro da poca: a cultura de massa. O conceito de fluxo
se encaixa perfeitamente com a msica tropicalista: uma msica que,
na realidade, extremamente marcada por uma linguagem visual, por
imagens desconexas que sucedem-se imediatamente umas aps as outras,
como ocorre na televiso ou como ocorria em determinados filmes da
poca, sobretudo em Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Dos autores que discutem o ps-modernismo, como Sarlo (1997) e
Huyssen (1991), dialogaremos principalmente com as idias sobre a
fragmentao, diluio de fronteiras entre alta e baixa cultura e o
enfraquecimento da historicidade, elementos esses que podem ser
encontradas na linguagem tropicalista, o que no lhe confere,
entretanto, um carter ps-moderno. Ao contrrio, procuraremos reforar
o Tropicalismo como uma expresso artstica que est profundamente
relacionada com as questes colocadas pela modernidade brasileira,
uma modernidade complexa e hbrida.
O Tropicalismo
O ponto de partida do tropicalismo foi o Terceiro Festival de
Msica Popular Brasileira da TV Record, em So Paulo, no ano de 1967.
Neste festival foram apresentadas pela primeira vez as msicas
Alegria Alegria de Caetano Veloso e Domingo no Parque de Gilberto
Gil, deflagrando, assim, uma nova tendncia musical voltada para a
(...) proposta de algo novo, como forma de enfrentar a crise
vivenciada pela MPB( Miranda, 1997:141) Alm dos dois cantores
citados acima, Tom Z, Os Mutantes, Gal Costa, a ex-musa da bossa
nova Nara Leo, o maestro e arranjador Rogrio Duprat e tambm Jlio
Medaglia eram representantes desta nova tendncia.
Se assim podemos cham-lo, o movimento Tropicalista foi,
sobretudo, musical. No obstante, os tropicalistas receberam um
forte apoio dos poetas concretistas, como Augusto e Haroldo de
Campos, e se aproximavam muito do teatro de Jos Celso Martinez e da
arte plstica de Hlio Oiticica, alm de alguns filmes, como Macunama
de Joaquim Pedro de Andrade e Os Herdeiros de Cac Diegues. Podemos
perceber o tropicalismo, portanto, como uma tendncia artstica que
ultrapassava os limites do campo musical e estava presente em
diversas outras manifestaes culturais e artsticas da poca.
De acordo com Favaretto (1979), o movimento se assemelhou a uma
exploso colorida, uma exploso nas letras e arranjos das canes mais
populares da poca, confundindo os critrios da MPB, desnorteando
pblico e crtica e, acima de tudo, expondo uma nova sensibilidade
musical, fortemente marcada pela vida urbana, pela visualidade e
pela modernizao.
Para Miranda (1997), a carnavalizao e a multidentidade cultural
so as principais marcas da Tropiclia: Esta far irromper, de forma
intensa e articulada com outras linguagens estticas (teatro, cinema
e artes plsticas), a viso antropofgica e carnavalizada, retomando a
linhagem modernista, agora noutro registro histrico e esttico,
dentro de nossa contemporaneidade (Miranda, 1997:126).
Veloso (1997), por sua vez, define da seguinte maneira o
Tropicalismo: (...) a aventura de um impulso criativo surgido no
seio da msica popular brasileira, na segunda metade dos anos 60, em
que os protagonistas - entre eles o prprio narrador - queriam poder
mover-se alm da vinculao automtica com as esquerdas, dando conta ao
mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que
fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da
fatal e alegre participao na realidade cultural urbana
universalizante e internacional, (...) Depois da revoluo da bossa
nova, e em grande parte por causa dela, surgiu esse movimento que
tentava equacionar as tenses entre o Brasil-Universo Paralelo e o
pas perifrico ao Imprio Americano. (Veloso, 1997:16)
A partir dessas citaes podemos levantar uma das questes
principais do movimento: o que significa ser moderno no Brasil?
Dessa forma percebemos com quem, ou com o que, o Tropicalismo
dialogava: o Brasil Moderno, e, acima de tudo, com as idias sobre
esse Brasil Moderno.
nesse sentido que o movimento, ao mesmo tempo que trazia
elementos residuais da cultura brasileira, surgia como algo
totalmente novo, ou emergente, conforme a definio de Williams
(1979): (...) novos significados e valores, novas prticas, novas
relaes e tipos de relao [que] esto sendo continuamente criados
(Williams, 1979:112).
O momento de ecloso do Tropicalismo, a mistura dos mais diversos
elementos da nossa cultura, da modernizao brasileira, o
entrelaamento de linguagens visuais e musicais, alm da citao de
imagens referentes cultura popular, de massa e de elite, abolindo a
aparente fronteira entre elas, uma nova forma de relacionar arte e
poltica, enfim, tudo isso fazia desse movimento, na poca, bastante
original.
Outro trao do Tropicalismo era a sua conscincia de fazer parte
da cultura de massa e de ser essencialmente essa cultura. Esse era
um dos pontos mais polmicos apresentados por seus integrantes: a
declarao de pertencerem ao mercado de bens simblicos, expondo,
assim, que toda a MPB, o cinema, as artes plsticas e at mesmo a
literatura pertenciam a este mercado.
Assumir essa caracterstica no significava aceitar o mercado sem
crticas e sim, de acordo com Veloso (1997), tratava-se de criticar
a cultura de massa de dentro e por meio dela.
O mercado de bens simblicos e a reestruturao da idia de
nacional-popular.
Como nos explica Ortiz (1988), a partir dos anos 40 e 50 que
comea a se formar um mercado de bens simblicos no Brasil, o qual
consolida-se definitivamente nas dcadas de 60 e 70. Se a msica
popular j possua um amplo mercado desde os anos 40, graas
popularidade do rdio e de seus astros, apesar da insipincia da
nossa indstria cultural, a televiso e o cinema nacional
estruturar-se-iam como veculos de massa somente nas dcadas
seguintes, o mesmo ocorrendo com outras esferas da chamada cultura
popular de massa, como a publicidade e o mercado editorial, por
exemplo.
Estas transformaes associavam-se, sem dvida, a transformaes
muito mais amplas na estrutura econmica brasileira, ou seja,
internacionalizao do capital, acelerada com o golpe militar em
1964, consolidando nosso capitalismo tardio. Paralelo ao
crescimento da indstria e do mercado de bens materiais, crescia
tambm a produo cultural e o mercado de bens culturais, crescimento
este, entretanto, fortemente controlado pelo autoritarismo estatal.
O advento de uma sociedade moderna reestrutura a relao entre a
esfera de bens restritos e a de bens ampliados, a lgica comercial
sendo agora dominante, e determinando o espao a ser conferido s
outras formas de manifestao cultural. (Ortiz, 1988:148)
Essas transformaes na esfera cultural no ocorreram sem conflitos
e tenses no interior dos diversos campos de produo artstica e
cultural. em meio a essas tenses e contradies que se manifesta o
Tropicalismo.
A msica popular brasileira, por exemplo, era a produo mais
consagrada e legitimada da nossa cultura popular de massa, a que
tinha se firmado como pioneira no nosso restrito mercado anterior
aos anos 70, se caracterizando, assim, mais como uma cultura de
elite do que propriamente de massa.
Recorremos novamente a Ortiz (1988) para explicitarmos melhor
essa idia. O autor nos mostra como o carter restrito da cultura de
massa em seus primeiros anos confere a essa esfera um aspecto muito
mais prximo do mercado de bens eruditos do que de um mercado
massificado. Dialogando com Pierre Bourdieu, Ortiz demonstra a
dificuldade em se aplicar os modelos das separaes estritas das
esferas culturais, coerentes na sociedade francesa, numa sociedade
como brasileira, que passou por outros processos de formao de uma
sociedade burguesa e capitalista. Assim, o autor descreve:
necessrio mostrar que a interpenetrao da esfera de bens eruditos e
a dos bens de massa configura uma realidade particular que
reorienta a relao entre as artes e a cultura popular de massa. Esse
fenmeno pode ser observado com clareza quando nos debruamos nos
anos 40 e 50, momento em que se constitui uma sociedade moderna
incipiente e que atividades vinculadas cultura popular de massa so
marcadas por uma aura que em princpio deveria pertencer esfera
erudita da cultura ( Ortiz, 1988: 65).
A expanso do mercado de bens culturais, rompia em parte com essa
aura erudita que envolvia a MPB. As canes de protesto, a Bossa
Nova, as canes dos festivais, ou seja, o fino da MPB passava a ter
na televiso - veculo de massa por excelncia - seu principal espao
de comunicao, mas conservaria ainda o discurso que defendia a
pureza das nossas letras e melodias, pureza esta entendida como uma
tradio, uma estruturao musical, uma essncia fundamentalmente
brasileira, ou melhor, fundamentalmente nacional-popular. Essa
caracterstica, por exemplo, era o que diferenciava um programa como
O Fino da Bossa, apresentado por Elis Regina, de Jovem Guarda,
comandado por Roberto Carlos, ambos exibidos pela TV Record. O que
fazia a diferena, enfim, era o carter nacional-popular do primeiro
em contrapartida ao carter comercial e internacionalizado do
segundo.
A reestruturao do mercado cultural, entretanto, comea a
transformar o prprio sentido de nacional e popular. Essas noes que
ganharam corpo e fora durante a dcada de 50 e incio dos anos 60
comeavam a ser reformuladas a partir do golpe militar. Esta uma das
teses apresentadas por Ortiz: o advento de uma cultura popular de
massa implica a redefinio desses conceitos, e nos prprio parmetros
da discusso cultural e continua adiante : No caso da moderna
sociedade brasileira, popular se reveste de um outro significado, e
se identifica ao que mais consumido, podendo-se inclusive
estabelecer uma hierarquia de popularidade entre diversos produtos
ofertados no mercado (...) A indstria cultural adquire, portanto, a
possibilidade de equacionar uma identidade nacional, mas
reinterpretando-a em termos mercadolgicos; a idia de nao integrada
passa a representar a interligao dos consumidores potenciais
espalhados pelo territrio nacional. Nesse sentido se pode afirmar
que o nacional se identifica ao mercado; correspondncia que se
fazia anteriormente, cultura nacional-popular, substituiu-se uma
outra, cultura mercado-consumo. (Ortiz,1988:160-5)
Embora bastante longa, a citao nos ajuda em grande parte a
entender os conflitos que se travavam em torno da msica brasileira
neste perodo. na reformulao da idia de nacional-popular, que
conferia msica brasileira um lugar de destaque na alta cultura que
residia grande parte das tenses. A idia de nacional-popular na
msica chocava-se com um novo parmetro de legitimao: o
mercado-consumo.
Em 1966, um ano antes da exploso tropicalista, que traria de
forma explcita esses conflitos na MPB, Augusto de Campos escrevia
um artigo discutindo sobre as diferenas entre O Fino da Bossa e
Jovem Guarda, os dois programa j citados acima, refletindo sobre o
decrscimo de interesse do pblico em relao ao primeiro programa e
destacando o que fazia cada vez mais a Jovem Guarda ser um
movimento considervel no interior da MPB. O artigo, por sinal, j
inovava ao promover essa integrao da JG MPB. Augusto de Campos
reforava o carter de alta cultura do Fino ao comentar sobre a
natural adeso do ambiente universitrio a este programa. Defendia,
contudo, que este j havia perdido seu antigo vigor ao se afastar
gradualmente da Bossa Nova sem incorporar os novos elementos
musicais que surgiam em nosso cenrio musical, o que era bastante
aproveitado, ainda que ingenuamente, pelo grupo da Jovem Guarda. Em
outras palavras, Augusto de Campos revelava o enfraquecimento do
carter de vanguarda da Bossa Nova que, neste momento, ainda no
havia sido preenchido por nenhum outro movimento da Msica Popular.
(Campos, 1974: 51-7)
Em outro artigo, tambm de 1966, esse mesmo autor expunha que a
Jovem Guarda soubera se integrar nova realidade mundial na qual o
Brasil estava inserido, alm de corresponder aos anseios da nova
comunicabilidade que esta realidade havia imposto. Em vez do eterno
retorno ao sambo quadrado e ao hino discursivo folclrico-sinfnico
defendido pela ala mais sofisticada da MPB, Augusto de Campos
defendia uma msica que se aproveitasse da nova sensibilidade
musical mundial e, a partir de uma atitude antropofgica, gerasse
algo novo. E j colocava Caetano Veloso, antes mesmo de sua emerso
bombstica, como um dos possveis jovens compositores que
proporcionariam essa retomada do vigor musical brasileiro: Caetano
Veloso, entre outros jovens compositores de sua gerao, mostra que
possvel fazer msica popular, e inclusive de protesto e de Nordeste
quando preciso, sem renunciar linha evolutiva impressa `a nossa
msica popular pelo histrico e irreversvel movimento da bossa-nova.
(Campos,1974: 64)
Com essa discusso no estamos querendo dizer que Augusto de
Campos compartilhava sem crticas da idia de mercado-consumo e sim
que ele reconhecia as radicais mudanas pelas quais passava o cenrio
cultural brasileiro, bem como o processo irreversvel que a
consolidao do capitalismo tardio no Brasil trazia para o nosso
mercado de bens culturais. Em outras palavras, no era mais possvel
negar a existncia desse mercado e todas as implicaes que ele trazia
para a msica popular, mas no somente para ela, como tambm para o
cinema, as artes plsticas, a poesia, a literatura e todas as outras
formas de expresso artstica. O mercado existia, e a msica
inevitavelmente participava dele.
O Tropicalismo, neste contexto traado, apareceu como o movimento
musical que procurou trazer tona definitivamente essa tenso
nacional-popular/ mercado-consumo. Eram as implicaes dessa
transformao que gerariam as letras, o ritmo, a mistura
tropicalista. No se pode pensar o tropicalismo, (...) sem se
considerar que o lugar social da cano mediatizado pelo aspecto
mercadoria nos escreve Celso Favaretto. Os tropicalistas no
ignoravam a discusso; antes partiram dela, tomando o aspecto
comercial de sua atividade como um dado (...) No tropicalismo, a
colocao do aspecto esttico e do aspecto mercadoria no mesmo plano
faz parte do processo de dessacralizao, da estratgia que dialetiza
o sistema de produo de arte no Brasil por distanciamento/aproximao
do objeto-mercadoria. Esta posio destoava de outras, quer de
esquerda, quer de direita (...) ( Favaretto, 1979: 96-8)
Os tropicalistas construram uma nova idia de Brasil a partir
dessa realidade ps-1964 e de uma nova crtica, surgida da tenso
entre os ideais de nacional-popular da esquerda tanto quanto de
mercado-consumo da direita. A reconstruo da idia de Brasil pelo
Tropicalismo representa, na realidade, uma sntese das mais variadas
tendncias e projetos transformados em linguagem musical, como
veremos em seguida.
O Redescobrimento do Brasil
Assim como outros movimentos culturais, o Tropicalismo propunha
uma redescoberta do Brasil, num movimento tanto de ruptura com os
movimentos anteriores quanto de retomada e reviso do passado e das
tradies. Indo mais alm, era um movimento que selecionava certas
imagens, certos momentos, certas idias na elaborao da sua prpria
concepo de Brasil.
Meyer (1994) traa as constantes redescobertas na literatura e
explica-nos como a cultura letrada foi construindo e reconstruindo
a histria do Brasil partindo da carta de Pero Vaz Caminha, passando
pelos relatos dos viajantes estrangeiros e as imagens de paraso
terrestre, chegando ao romantismo e ao indianismo, atravessando os
discursos cientficos do final do sculo XIX como nos escritos de
Slvio Romero, fortalecendo-se com os modernistas Oswald e Mrio de
Andrade no manifesto antropofgico e na figura de Macunama,
finalizando com os ps modernistas, descobridores do Brasil
subdesenvolvido. Todos promovem um eterno retorno nossa descoberta,
cada qual desvendando um aspecto da nao, recriando imaginariamente
o Brasil.
O Tropicalismo, ao contrrio dos movimentos citados, no elaborou
uma imagem unificada e articulada da nao. Mais do que desbravar e
desvendar, o Tropicalismo expunha as imagens j descobertas num
grande painel, numa grande sntese das vrias descobertas do Brasil.
Procurava criar uma imagem plural do pas: multicultural,
multitemporal e multidentitria. Promovia a deflagrao da memria
deste pas e reunia os vrios brasis em canes fragmentadas que
procuravam formar imagens mltiplas e no nicas. Imagens hbridas.
A cano Trs Caravelas ( de autoria de Alguer e Moreau, verso de
Joo de Barros) retomava o momento de descoberta da Amrica,
destacando a chegada das caravelas la Pinta, la Nin y la Santa
Maria em terras americanas. A carta de Pero Vaz Caminha era citada
antes dos acordes iniciais de Tropiclia (de Caetano Veloso) e
Marginlia II (de Gilberto Gil e Torquato Neto) retomava o poema
romntico de Gonalves Dias, Cano do Exilo, numa verso muito mais
melanclica e contempornea: minha terra tem palmeiras/ onde sopra o
vento forte/ da fome com medo muito/ principalmente da morte. A
exaltao da natureza, to tpica do romantismo, era encontrada num
contexto de descrena e ironia: aqui o terceiro mundo/ pede a beno e
vai dormir/ entre cascatas palmeiras/ aras e bananeiras/ ao canto
da juriti. Da literatura mais crtica dos anos 30 e 40, como
Graciliano Ramos, por exemplo, foram as idias da misria e
desigualdade social destacadas. Tropiclia fazia referncia a uma
criana sorridente feia e morta, Miserere Nobis ( Gilberto Gil e
Capinan) , traava a imagem de migrantes calados, magros e famintos,
sonhando com um farto jantar. Muitos outros exemplos ainda podem
ser retirados das canes. O importante notar como essas referncias
vem incorporadas a um novo contexto.
Essas imagens incorporadas da literatura, ou seja, da cultura
erudita por excelncia, eram retrabalhadas num contexto de cultura
de massa e destitudas de seu carter de alta cultura. Nos fragmentos
das canes, elas formavam o imenso painel de imagens do Brasil ao
lado de referncias da chamada cultura popular - como o Bumba meu
Boi, que aparecia no refro de Gelia Gera( de Gilberto Gil e
Torquato Neto): bumba i i boi/ ano que vem ms que foi/ bumba i i i/
a mesma dana meu boi- e principalmente da cultura de massa: Alegria
Alegria (de Caetano Veloso) citava Brigitte Bardot, Tropiclia se
referia Carmem Miranda, ao Fino da Bossa, Parque Industrial (de Tom
Z) falava de garotas-propaganda, de revistas moralistas, de jornais
populares, Baby (Caetano Veloso) citava Roberto Carlos, Superbacana
(Caetano Veloso) retomava os superheris dos quadrinhos. A prpria
Gelia Geral misturava ao bumba meu boi o i, i, i, estilo musical da
Jovem Guarda, revelando os diversos aspectos da nossa cultura
popular de massa.
Ao universo cultural, reuniam-se as referncias ao momento
histrico dos anos 60/70. Parque Industrial problematizava a
modernizao do pas e o nacionalismo da poca: retocai o cu de anil/
bandeirolas no cordo/ grande festa em toda a nao/ despertai com
oraes/ o avano industrial/ vem trazer nossa redeno, fazia ainda uma
crtica ferrenha combinao mercado-consumo ao cantar: tem
garotas-propaganda/ aeromoas e ternura no cartaz/ basta olhar na
parede/ minha alegria num instante se refaz/ pois temos o sorriso
engarrafado/ j vem pronto e tabelado/ somente requentar e usar/
somente requentar e usar/ porque made made made/ made in brazil.Era
a nossa modernidade que estava sendo exposta no painel montado pela
Tropiclia: ela reconhecia que a sociedade brasileira se
transformava e no cultivava mais a lembrana da modernizao como
projeto de construo nacional. Na Tropiclia, essa construo j estava
dada. por isso que a redescoberta do Brasil que promovia no
envolvia uma reconstruo una e coesa da nossa identidade, mas a
sntese de todo esse projeto, o reconhecimento dessa construo. Dessa
forma, nossa identidade era multidentidade, ou seja, identidades
que se desenvolviam transformando-se, nas palavras de Canclini
(1997), ou ento, identificaes em curso, como defende Boaventura de
Sousa Santos (1994).
Octvio Ianni assim escreveu sobre a histria de nossa modernizao:
Uma histria na qual a modernidade est mesclada no caleidoscpio dos
pretritos, dos ciclos desencontrados de tempos e lugares, como se o
presente fosse um depsito arqueolgico e pocas e regies
(Ianni,1990:37)
Foi a partir dessa mesma histria, mltipla e contraditria, que o
Tropicalismo criou a sua linguagem. Para os tropicalistas, a
modernidade no foi somente o novo, o passado ainda era presente
neste Brasil moderno. Enfim, nossa modernidade era multitemporal,
isto , uma modernidade sem esferas separadas e autnomas mas onde
todas as esferas se consolidavam conjuntamente e mescladamente, num
processo de hibridao. Nossa cultura, portanto, aparecia no
tropicalismo como uma multiculturalidade.
Canclini (1997a) , ao analisar a modernidade na Amrica Latina, a
define como hbrida. Na Amrica Latina, as tradies ainda no se foram
e a modernidade no terminou de chegar, ele afirma. Mais importante
que discutir a oposio moderno/tradicional nestas sociedades,
entretanto, discutir os pontos de interseco entre estes dois plos.
nessa interseco que podemos encontrar as caractersticas mais
significativas da nossa modernidade. Assim como no funciona a
oposio abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular
e o massivo no esto onde estamos habituados a encontr-los.(
Canclini,1997a: 19).
Quanto definio de modernidade, este autor declara que ela se
constitui de quatro movimentos bsicos: um projeto emancipador -
marcado pela secularizao dos campos culturais, a racionalizao da
vida social e o individualismo crescente; um projeto expansionista
- marcado pelo conhecimento cientfico, produtivo, de controle da
natureza e desenvolvimento industrial; um projeto renovador - que
abrange a busca do aperfeioamento e inovao incessantes, alm da
reformulao dos signos de distino; e finalmente, um projeto
democratizador - baseado na educao e na difuso da arte, dos saberes
especializados visando uma evoluo racional e moral. Esses projetos,
ao desenvolverem-se entram em conflito, afirma Canclini. Na Amrica
Latina, alm desses conflitos, eles se mesclam s contradies j
existentes nessas sociedades, num processo de justaposio e
entrecruzamento de tradies, temporalidades e identidades, gerando
uma cultura de interseco, a qual ele chama de uma formao
hbrida.
O Tropicalismo representa bem essa modernizao que (...) diminui
o papel do culto e do popular tradicionais no conjunto do mercado
simblico, mas no os suprime. Redimensiona a arte e o folclore, o
saber acadmico e a cultura industrializada, sob condies
relativamente semelhantes. ( Canclini, 1997a : 22).
Assim, na msica tropicalista, todos esses elementos aparecem
mesclados. Basta retornarmos cano Gelia Geral de Gilberto Gil e
Torquato Neto para exemplificar essa afirmao: as relquias do
brasil:/ doce mulata malvada/ um elep de sinatra/ maracuj ms de
abril/ santo barroco baiano/ superpoder de paisano/ formiplac e cu
de anil/ trs destaques da portela/ carne seca na janela/ algum que
chora por mim/ um carnaval de verdade/ hospitaleira amizade/
brutalidade jardim.
Esse processo da esttica tropicalista j foi muito comparado ao
processo antropofgico, tpico do modernismo de Oswald de Andrade.
Sem dvida, esses dois movimentos tm caractersticas muito
semelhantes, como revela Dilmar Miranda, e foi justamente a esttica
antropofgica que permitiu ao tropicalismo, segundo este autor,
alcanar uma perspectiva mltipla e plural, num processo de digesto
das mais variadas interpretaes nacionais e internacionais.
Para Santos, essa atitude antropofgica tpica das culturas de
fronteira, que ele define como: uma cultura (...) que teve sempre
uma grande dificuldade em se diferenciar de outras culturas
nacionais ou, se preferirmos, uma grande capacidade para no se
diferenciar de outras culturas nacionais e, por outro lado, manteve
at hoje uma forte heterogeneidade interna.( Santos, 1994: 133). uma
cultura que nunca coube num espao nico, cujas identificaes que da
derivam tendem a autocanibalizar-se passando por constantes
reinterpretaes fundadoras.
Neste ponto, voltamos questo inicial colocada acima, sobre o
redescobrimento do Brasil pela Tropiclia. Se, como Canclini (1997a)
nos explica, o modernismo cultural significou na Amrica Latina um
grande impulso na construo da identidade nacional - gerando, por
exemplo, uma preocupao com a mexicanidade, com a brasilidade - a
retomada desse projeto pelos tropicalistas revelaria uma reconstruo
desta mesma brasilidade moderna. So novos os elementos, porm, a
serem digeridos. O fundo tnico valorizado pela antropofagia
aparece, aqui, sob a forma de valores da sociedade industrial,
reduzidos a emblemas. (...) O interesse pelo tema da originalidade
nativa e a consequente reao fascinao da cultura europia, no
modernismo, sofreram mudanas substanciais na dcada de 60. As
discusses sobre a originalidade da cultura brasileira foram
deslocadas pelo debate sobre a indstria cultural, transferindo-se o
enfoque dos aspectos tnicos para os poltico-econmicos (...) (
Favaretto, 1979:37-8)
A linguagem tropicalista
A sntese das representaes de Brasil e a nossa complexa
modernidade - a qual chegou a vrios processos desiguais e
combinados de modernizao- aparecia sob diversos aspectos na
linguagem tropicalista: a introduo de instrumentos eletrnicos na
MPB, os arranjos desconexos de Rogrio Duprat e Jlio Medglia, a
retomada de ritmos folclricos, a batida do violo sobreposta aos
acordes de guitarras, a justaposio de sons, vozes, gritos e rudos
sequncia musical, a reunio dos mais variados estilos musicais em
uma nica cano, a reeleitura do rock e de outros ritmos
internacionais, a regravao de canes clssicas da nossa msica
popular, a teatralizao da msica, as colagens, as livres associaes,
entre outros recursos. Fazia-se uma msica hbrida. De fronteira.
A cultura de fronteira se apresentava principalmente pela
dramatizao e carnavalizao das formas (Santos,1994: 135). Esta
carnavalizao, na literatura, se define pelas inovaes lingusticas
criadas pela incorporao da linguagem familiar do cotidiano e pelas
inverses de regras gramaticais, conforme analisa Bakhtin (Miranda,
1997).
Essas caractersticas compunham grande parte das letras das canes
tropicalistas: elas utilizavam muito da linguagem carnavalesca em
sua narrativa. Sob o aspecto esttico, se o modernismo j expunha uma
carnavalizao na literatura, reconstruindo uma linguagem ao avesso,
o Tropicalismo, diante de um processo de modernizao radicalizado,
radicalizava tambm a dialtica deconstrutivista/ reconstrutivista do
modernismo. Assim, ele no era mais a linguagem ao avesso, mas o
avesso do avesso.
A incorporao da linguagem visual na msica foi outra de suas
caractersticas. Augusto de Campos definia a letra de Alegria
Alegria como uma letra-cmara-na-mo, graas sua linguagem
extremamente marcada pela visualidade, capaz de captar a realidade
sua volta, o cotidiano e os fatos casuais ao modo informal e aberto
de um Godard( Miranda,1997:153) .
A montagem, processo bsico da linguagem cinematogrfica, era
tambm um dos componentes das canes tropicalistas. Como observa
Favaretto, Domingo no Parque, de Gilberto Gil, foi totalmente
concebida a partir das montagens eisensteinianas: letra e msica,
sons e griots, guitarras e berimbaus so sincronizados,
interpenetrando-se como vozes em rotao.
Caetano Veloso no nega as influncias cinematogrficas no impulso
inicial do Tropicalismo. No foi o cinema americano, dominante nas
salas de cinema brasileiras, entretanto, que lhe despertou para o
universo visual. Muito antes de conhecer os cones hollywoodianos,
eram os cones do cinema europeu que povoariam o imaginrio do
cantor. Desta forma, Brigitte Bardot que foi citada em Alegria
Alegria, e no Marilyn Monroe. E foi Godard o cineasta que lhe
despertou para o cinema de Hollywood. Assim, o cinema americano j
lhe chega mediado por uma outra viso, j lhe chega como
metalinguagem, e foi dessa mesma maneira que Caetano utilizou todas
as outras referncias da cultura cinematogrfica em suas msicas.
Godard lhe ensinou a refletir sobre a prpria arte que realizava,
sobre a reflexividade no cinema e isto, afirma Caetano, estava
muito prximo de tudo o que queria fazer. Foi Terra em Transe, de
Glauber Rocha, no entanto, que lhe exps cruamente a esttica que
iria seguir. Era aquele painel exuberante e algo disforme que
Caetano procurava levar para a sua msica ( Veloso,1997).
No seria exagero afirmar que o fluxo das msicas tropicalistas se
aproximavam muito do fluxo televisivo, tal qual definiu Williams
(1975): uma srie de eventos desconectados, organizados em sequncia,
ou melhor, em vrias sequncias, sem intervalo, que geram uma nova
sensibilidade comunicativa e essencialmente televisiva. O fluxo, ou
flow, simultaneamente uma tecnologia e uma forma cultural, e
portanto, uma experincia vivida. A miscelnea de eventos discretos
organizados em sequncias j era uma experincia conhecida das grandes
revistas, de alguns espetculos musicais, mas jamais estes meios
alcanaram o grau de racionalizao e especializao do fluxo
televisivo. O que a televiso promoveu, na realidade, foi uma nova
experincia ao relao ao tempo, consequentemente, uma nova
sensibilidade temporal e uma nova forma de comunicao de imagens e
sentimentos.A idia de uma transformao na sensibilidade fundamental
para a nossa anlise da linguagem tropicalista, pois essa nova forma
de vivncia - Williams (1975) considera toda forma cultural, uma
forma de experincia vivida - que estrutura suas canes.Celso
Favaretto refora muito essa idia. Ele escreve: A marchinha pop
Alegria Alegria denotava uma sensibilidade moderna, flor da pele,
fruto da vivncia urbana de jovens imersos no mundo fragmentrio de
notcias, espetculos, televiso e propaganda (Favaretto, 1979: 8)
Essa nova experincia introduzia na msica elementos pouco
tradicionais: as canes eram repletas de efeitos eletrnicos, muitas
vezes eram interrompidas por vozes e rudos sobrepostos s canes. o
que ocorre em Panis et Circensis, por exemplo, interpretada pelos
Mutantes. A msica interrompida e ouve-se vozes conversando, barulho
de pratos e talheres, revelando a mise en scne que descrevia toda a
cano: as pessoas na sala de jantar.
toda essa nova sensibilidade tecnolgica e moderna, era
assimilado tambm os ritmos regionais, folclricos, os estilos
caractersticos de outras pocas da MPB. Dois mil e um( Tom Z e Rita
Lee) era o exemplo mximo desse processo. Ao som de uma viola
caipira e de trechos cantados com o sotaque tpico de Tonico e
Tinoco, sobrepunham-se as guitarras eltricas e recursos tecnolgicos
gerando um efeito futurista:
Astronarta libertado/ minha vida me ultrapassa/ em quarquer roda
que eu faa./ Dei um grito no escuro/ sou parceiro do futuro/ na
reluzante galxia. A cano representava a interseco de todas as
nossas razes agrrias e arcaicas com os sonhados projetos
futuristas, to prprios da poca.
Sob essa mesma perspectiva, Cho de Estrelas, a cano clssica de
Orestes Barbosa e Slvio Caldas, foi regravada pelo mesmo grupo.
Simultaneamente, uma homenagem e uma ironia ao estilo da MPB da
primeira metade do sculo e aos famosos cantores do d de peito , a
primeira parte da msica recriava a mesma tcnica desses cantores,
mas na segunda metade, eram justapostos sons de trens, helicpteros,
bandas, tiros, relgios, galos, sinos, aplausos ao pacato violo que
acompanhava at ento a voz lenta e melanclica de Arnaldo Baptista.
Criava-se toda uma sonografia que acompanharia a imagem do morro
que descreve a msica. E a esse morro idlico cantado por Slvio
Caldas, os Mutantes agregariam novas referncias, como os tiros da
polcia. Novamente sintetizavam as vrias representaes e
temporalidades do Brasil numa s cano, a coexistncia de todos esses
tempos, ritmos e imagens na MPB. Se em Caetano e Gil, a linguagem
cinematogrfica e televisiva aparecia principalmente na construo das
letras, nos Mutantes a visualidade residia sobretudo na sobreposio
intensa de efeitos sonoros.
Eram basicamente esses os ingredientes da mistura tropicalista:
a incorporao da novas experincias culturais que vinham se
processando, o redescobrimento da tradio e as reelaboraes das
representaes do Brasil.
Esses diversos elementos apareciam todos justapostos nas canes,
revelando as diversas camadas das canes, ou emprestando termos da
anlise cinematogrfica, revelando um processo de montagem vertical.
Exagerando um pouco, as msicas tropicalistas antecipariam uma
linguagem prpria dos videoclips.
Tropiclia e Bossa Nova.
O impulso inicial de todo esse movimento e de todas essas
transformaes foi um profundo desejo de reviso da MPB, processo esse
que, segundo Caetano Veloso, somente foi possvel com as mudanas na
msica popular iniciadas com a Bossa Nova ( Veloso, 1997).
A Bossa Nova, segundo o cantor, sugeria programas para o futuro
e punha o passado em nova perspectiva. Se dialogava com o jazz, era
no samba, entretanto, que a Bossa encontrava toda a sua fora. Ela
permitiu uma (...) radical mudana de estgio cultural e nos levou a
rever o nosso gosto, o nosso acervo e as nossas possibilidades
(Veloso, 1997: 35) . Era nas batidas bsicas, nas sequncias ritmicas
mnimas do samba que nascia a batida da bossa nova. Demonstrava, nas
suas reinterpretaes de antigos samba-canes, por exemplo, como samba
pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente
descaracterizadas. Essa espcie de essncia do samba, e portanto, de
brasilidade que se manifestava na Bossa Nova, sem dvida, foi o
grande impacto que permitiu ao Tropicalismo pensar a desconstruo/
reconstruo da MPB sob as mais diversas perspectivas.
Procurando articular uma nova linguagem da cano a partir da
tradio da msica popular brasileira e dos elementos que a modernizao
fornecia, o trabalho dos tropicalistas configurou-se como uma
desarticulao das ideologias que, nas diversas reas artsticas,
visavam a interpretar a realidade nacional, sendo objeto de anlises
variadas - musical, literria, sociolgica, poltica.( Favaretto,1979:
11).
Arte e Poltica
No foi s a esttica de Terra em Transe que Caetano Veloso e seus
companheiros tropicalistas levaram para a msica. Foi tambm uma nova
relao com a poltica, questionadora dos movimentos anteriores,
desmistificadora, crtica da representao tpica do populismo, mas
tambm da ao popular, incapaz de revolucionar a sociedade.
Escreve Caetano Veloso: (...) era a prpria f nas foras populares
- e o prprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo
- o que aqui era descartado como arma poltica ou valor tico em si.
Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrent-la. (...) Era
dramaturgia poltica distinta da usual reduo de tudo a uma
caricatura esquemtica da idia de luta de classes.( Veloso,
1997:105-6). Era principalmente nesse ponto, que o Tropicalismo
rompia com os ideais de nacional-popular defendidos pela maior
parte do campo artstico do momento, sobretudo, pela ala mais
ortodoxa da MPB, ou seja, as canes de protesto.
A arte nacional-popular defendia uma politizao da atividade
artstica. O questionamento dessa subordinao da arte pela poltica, j
estava sendo questionado desde o incio dos anos 60 pelos
integrantes do Cinema Novo, defensores de uma arte que fosse to
revolucionria nas formas quanto a poltica deveria ser na ao. Terra
em Transe, no entanto, exacerbava essa revoluo na forma e
questionava os projetos polticos, traando um intenso dilogo com as
diversas aes polticas de sua poca.
Essa dessacralizao da poltica proporcionada pelo filme, permitiu
ao Tropicalismo perceber as novas perspectivas que esta ia
assumindo em meados nos anos 70, principalmente, a sua crescente
transformao em espetculo.
Se o populismo, em sua origem, j trazia a marca dessa
espetacularizao da poltica por meio da imagem do lder carismtico e
da encenao do popular, uma mescla de participao e
simulacro(Canclini, 1997a: 264), a expanso da indstria cultural ia
lentamente transformando o populismo em popularidade, apagando toda
a ao poltica, reforando a encenao do poltico. Ao colocar a poltica
como caras de presidentes, o Tropicalismo revela esse esvaziamento
da ao poltica popular. Em outras palavras, a reinveno da poltica no
passava pela esttica, mas pelo consumo.
Cada vez mais, a arte e a poltica so atuaes, muito mais do que
aes, afirma Canclini.( 1997:350) A mdia recria a poltica sob novas
formas de representao, e ela equivalente, no mundo contemporneo, a
todos os outros smbolos e emblemas da indstria cultural. Isto est
explcito em Alegria Alegria: o sol se reparte em crimes/ espaonaves
guerrilhas/ em cardinales bonitas/ eu vou/ em caras de presidentes/
em grandes beijos de amor/ em dentes pernas bandeiras/ bomba ou
brigitte bardot.Tudo deglutido pela mdia e tudo reduzido a um
denominador comum. Assim, as guerrilhas polticas no se destacam do
cotidiano, assim como os presidentes no passam de meras imagens,
como as divas do cinema. Bombas, guerrilhas e presidentes
constituem o cotidiano massivo da mesma forma que Cardinales
bonitas, grandes beijos de amor e Brigitte Bardot. Ambgua, a msica
de Caetano intrigava; em sua aparente neutralidade, as conotaes
polticas e sociais no tinham relevncia maior que Brigitte Bardot e
Coca-Cola (...) Alegria Alegria apresenta uma das marcas que iriam
definir a atividade dos tropicalistas: uma relao entre fruio
esttica e crtica social, em que esta se desloca do tema para os
processo construtivos. ( Favaretto, 1979: 8).
A msica trabalha com as representaes da cultura de massa. So
mitos, imagens, invenes do mundo contemporneo. Enfim, todos
participam igualmente da espetacularidade do mundo moderno. A msica
denotaria o que Sarlo chama de estado de televiso. (Sarlo,1997: 81)
Esta autora nos expe exatamente esse processo, afirmando que cada
vez mais a poltica existe na medida em que ela est presente na
televiso e que vivemos num mundo de poltica midiatizada. Esse
processo que est em curso desde meados dos anos 70, um dos muitos
fragmentos das imagens do cotidiano captadas pelas letras
tropicalistas. nesse universo, de bancas de revista, entre fotos,
fatos e nomes, entre programas televisivos, como descreve Alegria
Alegria, que se d a poltica. Ela um monumento feito de papel crepon
e prata.
Concluso: Moderno ou ps-moderno?
A utilizao de colagens, livres associaes, as mais variadas
referncias histricas, o embaralhamento das esferas culturais, a
mistura de linguagens, identidades e tempos formando uma gelia
geral sem tempo nem identidade, so caractersticas constantemente
associadas a uma linguagem ps-moderna e a um suposto momento tambm
ps-moderno.
Sarlo (1997) nos expem como as novas cidades, sem centro, sem
unidade, povoadas de emblemas do consumo e representantes da crise
do espao pblico revelam a constituio de um novo espao social, que
poderia ser chamado de ps-moderno. Da mesma maneira, a linguagem
televisiva, o sonho acordado do zapping, a sobreposio e acelerao da
imagens, a sua extrema fragmentao, tambm geram uma sensibilidade
muito diferente da sensibilidade tpica do modernismo, descrita por
Baudelaire, por exemplo. Da mesma forma, cada vez mais as culturas
populares so transformadas por elementos exteriores a elas, ou
ento, por elementos constitutivos destas que so reelaborados em
novos meios de comunicao. Nestes, o nacional, o internacional, o
popular e o erudito, o local e o global se misturam e tomam parte
de um espao cultural, onde persiste, no entanto, a desigualdade no
acesso a estes bens simblicos. J no se pode falar de um lugar da
arte, pois este j se deslocou infinitas vezes por ao da indstria
cultural e suas regras j foram profundamente questionadas por todas
as vanguardas deste sculo. O processo de dessacralizao se concluiu,
afirma ela.
Da mesma forma, Huyssen (1991) nos fala de uma falta de
profundidade na sociedade contempornea, da eterna superficialidade
de todas as manifestaes culturais, da cultura do simulacro, que
retira toda a ao e reduz todas as experincias encenao e representao
do real, o enfraquecimento da historicidade, a superposio de tempos
histricos reunidos independentes de suas caractersticas prprias,
adotados somente como um grande painel, a exarcebao da cultura como
um outdoor, imagens sem contedo, temporidades esquizofrnicas, a
emergncia de uma sensibilidade que mais intensidade que
verdadeiramente sensibilidade e a profunda relao de tudo esse
processo com a nova tecnologia.
Ora, podemos nos perguntar se este cenrio traado por estes dois
autores, e por vrios outros que discutem o ps-modernismo no se
assemelha profundamente a todas aquelas caractersticas e elementos
que constatamos no Tropicalismo. A resposta dessa questo seria
facilmente sim. Seria ento o Tropicalismo anunciador de um novo
tempo, ps-moderno?
Essa questo j no to simples. Se reconhecemos que, sem dvida,
vivemos numa sociedade profundamente transformada pelas novas
tecnologias, pelo avano das comunicaes, pela formao de uma nova
sensibilidade, pelo agravamento das contradies sociais e pela
quebra da autonomia das esferas culturais, como expem os autores
ps-modernos, consideramos, entretanto, que ainda no podemos falar
que vivemos num mundo realmente ps-moderno, mas num mundo onde a
modernizao est radicalizada, conforme defende Anthony Giddens: Ns
no nos deslocamos para alm da modernidade, porm estamos vivendo
precisamente atravs de uma fase de sua radicalizao.( Giddens,
1991).
Para este autor, a modernidade corresponde a um certo costume de
vida e de organizao social que emergiu na Europa a partir de sculo
XVII e teve influncia mundial e, embora percebemos hoje os
contornos de uma ordem nova e diferente, o que vivemos no pode ser
chamado de ps-modernidade. Para comprovar seu argumento, Giddens
discute algumas caractersticas fundamentais da modernidade: a sua
descontinuidade com os modos de vida tradicionais, o ritmo de
mudana constante, a sua ambiguidade entre segurana X perigo e
confiana X risco, as separaes do tempo e do espao, o desencaixe das
relaes sociais e a reflexividade constante das aes e do pensamento
social.
Esse ltimo ponto destacado, a reflexividade, consiste: (...) no
fato de que as prticas sociais so constantemente examinadas e
reformadas luz de informao renovada sobre estas prprias prticas,
alterando assim, constitutivamente seu carter.( Giddens, 1991:
45)
Conforme entendemos, as caractersticas assinaladas acima como
ps-modernas e que encontram no Tropicalismo uma certa similaridade,
na realidade, correspondem sobretudo a esse carter extremamente
reflexivo da modernidade.
Ao redescobrir o Brasil, reinventar a msica, refletir sobre a
histria e os processos culturais do Brasil de maneira fragmentada e
aparentemente descontextualizada, o Tropicalismo se revela como um
movimento radicalmente reflexivo, no sentido descrito por Giddens,
de reviso das prticas sociais luz do conhecimento e da renovao
dessas mesmas prticas, gerando o carter mutvel e imprevisvel da
modernidade.
A partir da, respondemos a questo colocada acima negativamente,
ou seja, o Tropicalismo no aparece como um movimento anunciador de
um perodo ps-moderno, mas exatamente como um movimento extremamente
moderno: hbrido, como a modernidade latino-americana.
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cultural form. New York, Schocken Books, New York, 1975.
* Zuleika de Paula Bueno mestre em Sociologia e doutoranda em
Multimeios pela Universidade de Campinas.
O autor confere essa caracterstica de fronteira sobretudo
cultura portuguesa, mas afirma que essa forma cultural tambm se
manifesta no Brasil e em outros pases de influncia ibrica.
De Caetano Veloso e Gilberto Gil, integra o lbum Tropiclia ou
Panis et Circenses, j citado.
Esse esvaziamento da participao popular como participao poltica
tambm provoca uma reelaborao no prprio conceito de cidadania. Como
nos diz Canclini (1996), o cidado se transforma em cliente, em
pblico consumidor.
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