SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINAS EAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância Especialização em Artes Visuais: Cultura e Criação Turma AVMG09 Douglas Velloso FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS Belo Horizonte 2012
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Fotografias - Memórias reais e poéticas ficcionais - Douglas Velloso
Por meio do presente estudo tem-se a intenção de potencializar, como um espaço artístico único, o binômio ficção-imagem; e a partir de propostas criativas trabalhar a relação entre narrativa e visualidade como registro da memória. A fotografia é tratada como potencializador criativo e também como linguagem visual. Os valores implícitos de seus fragmentos de tempo, lugares e transmissão também são alicerce da produção teórica e prática. Em tal estudo se busca uma tensão maior entre os campos da arte, com o foco na memória, pela relevância que esta tem com a linguagem visual da fotografia e com a linguagem narrativa do texto ficcional. No conjunto de textos e de imagens, trabalha-se a ligação entre memória e informação. Com um olhar poético a produção se orienta, tendo como resultado a leitura de imagens e textos. Assim, essa produção plástica e textual reunida compõe um único volume – apresentado por um quadro que precisa ser lido, onde as narrativas acompanham suas respectivas fotografias. Nele estão formalizados os textos e as imagens produzidas, a partir do processo criativo, estruturado nas relações entre texto e imagem.
Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.
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SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINASEAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância
Especialização em Artes Visuais: Cultura e CriaçãoTurma AVMG09
Douglas Velloso
FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS
Belo Horizonte
2012
SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL – SENAC MINASEAD - Programa de Pós-graduação - Modalidade a Distância
Especialização em Artes Visuais: Cultura e CriaçãoTurma AVMG09
Douglas Velloso
FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS
Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.
Dissertação – Educação a Distância (Especialista em Artes Visuais Cultura e Criação). Senac Minas, 2012. 1. Fotografia 2. Artes Visuais 3. Memória I. Título
CDU 502.3/77
Douglas Velloso
FOTOGRAFIA – MEMÓRIAS REAIS E POÉTICAS FICCIONAIS
Dissertação apresentada ao Departamento de Educação a Distância do Senac Minas, como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Artes Visuais - Cultura e Criação. Orientado por Lilian Lacerda.
1. INTRODUÇÃO – MEMÓRIAS DE UM RECOMEÇO ….................................................... 01
2. MEMÓRIAS EM PARES – SINÔNIMOS VISUAIS ….......................................................... 04
2.1 - Vulnerabilidade e memória por Sophie Calle …........................................................... 052.2 - Memórias bordadas de Leonilson …............................................................................. 082.3 - Paulo Brusky, um colecionador de memórias ............................................................... 12
3. PRETÉRITO PERFEITO POR SEUS REGISTROS DE IMAGENS ….............................. 16
Through the following study the intention is to potentialize, as a unique artistic space, the
binomial ficction-image; as from criative proposals to work the relation between narrative and
visuality as a register of memory. Photography is treated as creative potentializer as well as a visual
language. The implicit values of its fragments of time, places and transmission are also the
foundation of theoretical and practical production. The study seeks a greater tension between fields
of art, with the focus on memory, by the relevance that it has with the visual speech of photography
and the narrative speech of the fictional text. On the set of texts and images, the study presents the
connection between memory and information. The producion is oriented by a poetic look and has as
its results the reading of images and texts. Therefore this plastic and textual production all together
composes a single volume presented by a chart that must be read, which the narratives are followed
by their respectives photographs. On it the texts and images produced are formalized through the
creative process structured in the relations between text and image.
Keywords: Photography. Memory. Creation. Fiction.
1. INTRODUÇÃO
Prestando atenção nas referências visuais que sempre nos cercam, a intenção dessa proposta
de trabalho se processou por meio da apropriação de algumas dessas referências cotidianas para se
criar um inventário de memórias. Para incorporar fragmentos de tempo, a primeira referência de
linguagem levantada como objetivo é a linguagem da fotografia, que abre o campo para múltiplas
associações e que transita pelos mais diversos campos – deixando sempre seus rastros visuais,
temporais e pessoais, por onde quer que caminhem. O outro foco escolhido nessa apropriação, para
dar vazão à criatividade e deixar coeso esse inventário de memórias, é a linguagem narrativa
ficcional – esse pilar é que está ligado à criatividade, à produção material das ideias, à pessoalidade
da proposta em questão, à poética que pode ser contemplada e lida.
A base dessas duas linguagens está na memória, carregada de fragmentos de imagens reais e
mentais, que estão definidos por um tempo particular e específico. Estão ali guardadas lembranças
esquecidas, lembranças gravadas que abrem para infinitos braços de leitura – e como a imagem se
tornou fundamental à comunicação, da mesma forma a criação se fez fundamental para a narrativa
textual, escrita. Essa escrita se fundamentou e cresceu em importância, se desenvolvendo por
séculos, mas nunca se distanciando por completo do significado da imagem. Escrever fez o homem
marcar em um suporte a sua fala, a sua vontade, seu alfabeto de valores. A imagem e a escrita abrem
para que registremos a nossa memória para o futuro, definindo aquele espaço de tempo como
importante para o seu portador e todos os envolvidos.
O conceito de memória, dentro da proposta de trabalho, está ligado ao conceito criativo da
conservação da imagem, uma criatividade que, ao mesmo tempo em que ilustra um feito, eterniza
uma homenagem, uma ideia. A memória entra como instrumento fundamental de união social, um
pilar que sustenta o pretérito – sendo sua guarda realmente efetiva, não abrindo brecha para o
isolamento. Pode se colocar a palavra memória no singular pela singeleza e no plural pela força
narrativa do ontem – e a mesma pode trazer para o seu entorno diversos sinônimos, pode definir,
pode simplesmente evocar, pode reconhecer e se deixar conhecer, pode esconder, pode remotar. A
memória se conceitua ambiciosa, não importando se apresentada como de trato íntimo ou coletivo –
acontecimentos sempre são referências marcantes, tornando dados cognitivos como peças
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facilitadoras de conhecimento. A memória está sempre em movimento, disparando os sentidos
através do tempo – resignificando todo o seu entorno, inclusive as verdades cravadas no pretérito.
A fotografia, como linguagem cotidiana, também cresceu em significados, foi democratizada
e ganhou corpo para ser referência de registro individual e coletivo, o que abriu espaço também
para ser suporte artístico, pelas mãos de uma vanguarda que recebeu a captação do real como
exemplo da velocidade contemporânea. Da mesma forma, como feito com a imagem real da
fotografia, as vanguardas também trabalharam a linguagem narrativa como meio de divulgação
artística, atrelando sempre esses dois focos ao desejo criativo ligado mais à pessoalidade do artista,
aos seus anseios, descobertas e correlações. Os movimentos de vanguarda europeus eram aqueles
que alicerçavam a cultura de seu período, estando, inclusive à frente desse tempo, segundo seus
manifestantes. Deste modo a fotografia se legitima como espaço particular da memória, um
produto social que referencia o fragmento do tempo, que eterniza o momento de leitura visual das
nossas ações. É o primeiro meio funcional de registro que une o homem à máquina, através do uso
da representação. E, dentro de todo esse contexto está o valor da lembrança, um valor carregado de
certo esquecimento, de certa nostalgia – mostrando que, pela memória, os fragmentos de lembrança
constitutivos estão definidos por um tempo.
O objetivo da proposta de conclusão de curso se alicerçou primeiramente na linguagem da
fotografia, através do disparo recorrente que a memória produz, no qual a fotografia se abre como
suporte de experimentação; e é exatamente nesse foco que o presente estudo se sustenta,
principalmente na implicação do processo de criação de realidade. Em segundo lugar, como
objetivo funcional, a proposta é de se aliar esse aspecto fundamental da fotografia com a ficção
literária, com a memória histórica desse fragmento de espaço – e todos os focos de motivação do
trabalho aparecem no resultado final exposto, apresentando o valor pessoal inserido nesses tópicos
trabalhados em conjunto. E esse valor pessoal está explícito através da linguagem da fotografia;
através do casamento dos aspectos fundamentais da fotografia com as da ficção literária, aspectos
estes sempre ligados à memória histórica desse fragmento de espaço.
Recolher imagens fotográficas com registro pessoal e individual de passado, que sejam
significantes para seus portadores, fez com que o trabalho de apropriação desse fragmento pessoal
abrisse espaço para a criatividade. Essas imagens dispararam a criação de narrativas ficcionais,
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deixando explícito um tempo específico que se presume existir naquela imagem estrangeira, sem
mesmo saber sobre o potencial de verdade que aquela imagem dispara. Esses textos se apresentam
através de uma linguagem ficcional sobre o que a imagem produziu como motivador visual e
criativo, e se tornando uma referência textual e sobre aquela imagem específica.
Dessa maneira, o norte da pesquisa passa pela relação com o tempo dos suportes escolhidos
e das palavras criadas sobre eles, a efemeridade e as suas respostas através do tempo; o espaço da
imagem apropriada, dos seus respectivos textos e sua transmissão; o rastro, os fragmentos e os erros
– e como objetivo manter equilibrado as proposições plásticas com a produção escrita, sempre
embasada na teoria, em referências já legitimadas e criadoras de conceitos sobre memória, arte,
poesia, fragmento, tempo e narrativa. A teoria sobre o assunto estará bem embasada por nomes
como Boris Kossoy, Roland Barthes, André Bazin, Susan Sontag e Philipe Dubois; referências para
suportar todo o conteúdo da proposta pessoal. As referências visuais sobre a memória, a escrita e a
fotografia segue como objetivo de pesquisa; através da apresentação de trabalhos poéticos e de
extrema intimidade de Sophie Calle, do objetivismo e da simplicidade de Leonilson e da liberdade
criativa que suporta os arquivos de Paulo Bruscky. O objetivo dessa proposta é justamente usar
desse espaço múltiplo que a imagem fotográfica oferece, e trabalhar e modificar essa realidade
interior da fotografia. E a definição do tema objeto de estudo, após abrir as colocações sobre o
assunto, se define como Fotografia: memórias reais e poéticas ficcionais.
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2. MEMÓRIAS EM PARES: SINÔNIMOS VISUAIS
O século XX se volta em favor da visualidade real, fazendo-a crescer como fator de
importância significativa, alicerçada pelo desenvolvimento da indústria gráfica e sua melhoria nos
meios de impressão – exatamente ao mesmo tempo que se abre uma crise de representação
crescente e discutida no meio das artes. O surgimento de fotos aliadas ao texto faz a divulgação
mais atraente, democratizando o espaço de comunicação e sendo referência da velocidade que a
comunicação passara a exigir. Dentro do espaço das artes visuais, a fotografia se legitima e surge
como documento imagético de sentimento sobre um fragmento de tempo – e a palavra, que não
pode deixar de se expressar nesse mesmo nicho, torna-se o próprio documento pessoal de próprio
punho. Essas duas referências, quando ligadas a desejos de criação e arte, sempre trocam de pares,
como em uma dança que marca a memória de seus idealizadores/proprietários. Cortázar abre a
questão de forma clara, deixando evidente o espaço que a narrativa e a fotografia têm em comum –
e também o espaço diferenciado de experimentações pessoais que estas abrem:
Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, acumulativos, que não excluem, por certo, uma síntese que dê o clímax da obra, numa fotografia ou num conto de grande qualidade se procede inversamente, isto é, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas que também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie deabertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. 1
A ampliação do espaço e do tempo permitiu com que o cotidiano fosse expandido e as
relações facilitadas, por uma rapidez temporal/tecnológica que refletiam o desejo social do homem
de se manter presente em todos os lugares, em todas as formas e por dentro de todas as novidades.
As articulações extremamente novas, advindas da modernidade, foram velozmente apropriadas
pelos artistas para diversas formas de utilização, passando pela experimentação, pela mimese, pela
leve interpretação visual do cotidiano, pela intelectualidade necessária, pelo impacto social, pela
representação caótica pura e simples, pela montagem como conceito, etc. Deste modo, a classe
artística abraçou essa busca de mais referências que desafiassem a intelectualidade e que ocupasse o
1 CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.151-152.
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novíssimo espaço aberto para se denominar também uma linguagem artística. E muitos foram os
pares criativos que se utilizaram da individualização da linguagem narrativa e do fragmento
conjunto de espaço e tempo pessoal inerente à fotografia para serem referências de suas propostas
artísticas.
Como referências artísticas que alicerçam a pesquisa em questão, as escolhas de pares
passou por quem conseguiu deixar claro tanto a força da imagem e da linguagem narrativa como a
importância documental e artística, referências que trabalham a intimidade através da fotografia
e/ou da escrita. Sophie Calle, Leonílson e Paulo Bruscky foram os escolhidos para o
aprofundamento visual como referência artística. Sophie Calle pelo uso constante do conceito de
intimidade, da memória exposta de forma forte e sutil, tudo ao mesmo tempo. Leonilson pela
simplicidade construtiva, formal e literal de suas ideias bordadas em poéticos fragmentos de texto.
Paulo Bruscky pela audácia multidisciplinar no trato com a linguagem narrativa e a imagem
fotográfica, além de guardar e preservar junto consigo parte da memória da arte que lhe agrada.
2.1. Vulnerabilidade e memória por Sophie Calle
A artista francesa Sophie Calle (1953) propõe suas narrativas, estimula a ficção fazendo uso
do leitor e de sua intimidade como referência. O conceito de memória sempre esteve presente em
seus trabalhos – as apropriações, as intimidades expostas, os relatos, as experiências individuais, as
fotografias cotidianas se tornam fundamentais para construção de alguns de seus detalhados e
meticulos planos de trabalho. O seu uso de texto, narrativo ou ficcional, é uma incitação que
provoca o seu espectador construir uma resposta, deixando margem para vários pontos de foco e
diferentes interpretações. Quando a narrativa se torna apenas fragmento, a interpretação é colocada
nas costas do leitor com uma carga maior. Calle usa dessa força de forma diferente, transferindo de
forma correta e dosada a sua carga para seus leitores, colaboradores - pois textos e as imagens de
Sophie Calle são indissociáveis quando apresentados em conjunto. Como referência, abro a
proposta The Blind, datada de 1986 e que nos mostra essa relação entre imagem fotográfica,
memória e narrativa, apresentada por Calle de forma poética.
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Figura 01 - Sophie Calle – The Blind
Nessa proposta, Calle entrevistou pessoas cegas e solicitou que estas definissem o belo e
qual o exemplo que seus entrevistados tinham do conceito de beleza. As respostas apropriadas por
Calle foram acompanhadas da fotografia em close de seus respectivos, em preto e branco sobre
moldura barata. Calle criou também adaptou imageticamente as referências citadas pelos cegos e as
expôs, de forma simples e didática. Nesse projeto as imagens e fotos nos deixam a mercê da
completude de um texto, de um manual, de um ponto de partida para percorrer – de forma poética a
obra passeia por diversos meios de comunicabilidade. Sophie trás aos seus leitores/espectadores,
formalmente, seus relatórios sobre essas ações; por meio de registros fotográficos, de registros em
narrativa e da memória sobre as situações que ela mesma se propôs investigar. Nessa proposta The
Blind, Calle trata a solidão de forma poética, criando registros memoriais tão significativos quanto
os registros imagéticos, usando de toda a exploração dos sentidos – inclusive pelo uso da memória.
Existem diversas propostas de Sophie Calle ligando a linguagem fotográfica com a escrita, e entre
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elas estão os trabalhos Wait for Me (2010), Room with a view (2003) e The other (1992) onde a
artista nos mostra um pedaço de sua intimidade através de uma foto pessoal ligada a uma narrativa
de memória sobre o espaço de tempo específico em que aquela imagem se originou – são trabalhos
que seguem a mesma linha de construção intimista, de uma suavidade e de um posicionamento
poético tão singelo que faz com que a obra tome um tempo maior do espectador que deseja por
completo absorvê-la.
Figura 02 e 03 - Sophie Calle - Wait for Me (2010) e The other (1992)
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Figura 04 - Sophie Calle - Room with a view (2003)
2.2. Memórias bordadas de Leonilson
Associando o conceito da precariedade dos suportes com o conceito da narrativa
esteticamente pessoal, o artista cearense José Leonilson (1957-1993) aparece como um testemunho
dessa troca entre o eterno e o status que ele traz para a simplicidade do suporte cotidiano e frágil,
mas incrivelmente real. O trato com a narrativa se faz presente na simplicidade com que os efeitos
poéticos de Leonilson chamaram a atenção – tanto pela força visual de seus trabalhos quanto pela
difícil classificação do artista dentro de um único meio produtor da arte. Leonilson recolhe com
propriedade, do cotidiano, as palavras que lhe servem como alicerce comunicativo para traçar linhas
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poéticas - cada proposta criativa de Leonilson se sustenta como um registro íntimo e irônico, um
mergulho pessoal ao interior. Seus bordados, suas colagens, cadernos, gravuras, composições e
desenhos, cercados de palavras fortes, apresentam a busca do artista pela harmonia, uma relação
com a memória com o objetivo de fazer o sublime se aliar ao novo, passando pelos conceitos do
gesto e da individualidade. São orações poéticas modernas em linhas de cor – reiterando a arte, ao
mesmo tempo, de forma singular e precária.
Leonilson abre em suas propostas um discurso introspectivo, através de referências artesanais,
memoriais e temporais – uma observação de si mesmo, registrada em códigos, signos e palavras que
falam em primeira pessoa. Valorizava a origem, deixava a vida influenciar suas escolhas artísticas.
Lisete Lagnado, primeira pesquisadora do artista, encontra o espaço exato da introspecção na obra
de Leonílson, afirmando que:
Leonilson – discípulo de um ideal romântico malogrado – foi movido pela compulsão de registrar sua interioridade a fim de dedicá-la aos objetos de desejo. Esse legado, enunciado por um 'eu' cuja expiação é incessante, reavalia a subjetividade após as experiências conceituais. Isto é, desgastada a reflexão sobre o destino da arte que teve a metalinguagem como ápice, a obra volta-se neste momento para o questionamento do sujeito.2
Leonilson é um artista que conseguiu imprimir um estilo próprio para seus trabalhos, nos
quais não existe um foco específico, um tema único ou apenas uma crítica – seu trabalho está no
todo cotidiano. Como referências de uso da escrita e da imagem da memória, Leonilson faz de seus
cadernos de anotações preciosos meios de introspecção, apresentando o pensamento do artista
através de seu próprio punho, através de sua própria imagem como artista. Como recurso de
memória, as anotações além de ser objeto de estudo pessoal, são incrivelmente plásticas e
imagéticas. São dois cadernos pessoais do artista escolhidos como referência, os Cadernos de
desenhos e anotações de 1981-1983 e os Cadernos de desenhos e anotações de 1988-1989.
2 LAGNADO, Lisete. Leonilson: São tantas as verdades. DBA/Companhia Melhoramentos: São Paulo, 1998 , p. 879
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Figuras de 05 a 09 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1981-1983
Figura 10 - Leonilson - Cadernos de desenhos e anotações de 1988-1989
2.3. Paulo Bruscky, um colecionador de memórias
Quando a memória é o foco, sempre se espera que essa esteja protegida, passada para um
suporte rígido onde possa readquirir sentido. Paulo Bruscky (1949) assim o fez, criando um arquivo
de memórias de substancial importância, pois seu acervo pessoal de guardados artísticos reflete não
somente a sua história pessoal, mas a história da riqueza da arte brasileira, garimpada e guardada de
forma segura em seu atelier em Recife. Bruscky transforma o estável, o cotidiano e abre a arte para
fora, deixando claro que esta precisa ser vista. Bruscky tem a capacidade de poetizar o objeto já
pronto, tirando dele a precariedade e colocando foco – mostrando que a arte pode se abrir em
qualquer espaço. O próprio Bruscky se afirma, mostrando o seu papel como propositor artístico:
É claro, é uma utopia, mas arte existe em todo canto, na maneira de ver e não de fazer. Eu sei que é uma utopia, mas o artista é muito necessário, infelizmente ele tem que agir, porque as pessoas em grande parte não sabem ver. Então, o artista tem obrigação de mostrar. A arte existe independente do artista.3
3 BRUSCKY, Paulo. Entrevista por MARSILLAC, A.L.M., Porto Alegre, 2010.12
Dentro desse contexto de ação da arte, do espaço que esta precisa para se mostrar, Bruscky
aparece com o conceito da circularidade como fundamental – a poética precisa aparecer e passar de
mão em mão, para ser reconhecida e com valor. Esse valor é encontrado no retorno que o artista
consegue se propondo a deixar sua criação circular, ser consumida, lida, modificada, ser
provocadora. Como referência dessa arte que ensina a ver, obras como Xeroperfomance (1984),
Envelopoema (1989) e Título de Eleitor cancelado (1980) mostram essa interferência
particularizada sobre o que já foi visto, sobre o privado, sobre aquilo que circula – além de
questionar os meios em que faz parte, principalmente o meio artístico desgastado pelo
engessamento ocasionado das regras e o espaço político opressor em que o artista estava inserido.
Paulo Bruscky manipula ludicamente o real, articulando limites entre todas as formas de discurso –
legitimando as relações, as trocas críticas, físicas e funcionais.
Figura 11 - Paulo Brusky – Envelopoema (1979)
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Figura 12 - Paulo Brusky – Xeroperformace (1984)
Figura 13 - Paulo Brusky – Título eleitoral cancelado (1980)
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Figura 14 - Paulo Brusky – Envelopoema (1989)
Paulo Bruscky se apropria da linguagem da carta, do envelope, do selo, do carimbo para
tratar a questão cotidiana da circularidade – sempre buscando novas maneiras de ver a experiência
artística em todo o espaço, subvertendo a arte para que esta se poetize em detalhes angariando força.
Sua narrativa está no fragmento de texto, no signo forte da letra – não somente como imagem, mas
também como memória, dessacralizando a arte e colocando essa próximo à intimidade do artista, do
seu pensamento e principalmente dos seus ideais e ações. Uma ampliação da escrita, onde qualquer
forma reconhecida por ter um signo comum tem potencial para ser vista de outra forma, de forma
artística, de uma forma sem regras – sempre apropriando do cotidiano e colocando nele sentido.
Suas interferências são como uma assinatura de um reconhecedor, um curador dando veredicto e
inserindo um espírito investigativo à arte.
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3. PRETÉRITO PERFEITO POR SEUS REGISTROS DE IMAGENS
Pretérito, palavra que reflete o ontem, momentos que deixaram marcas para serem
lembradas – fragmentos, pedaços de memórias guardadas em gavetas, em envelopes, em fotografias
recortadas, em histórias que nos definem como personalidades. Termo que se refere claramente ao
tempo – e à amplitude que é sinônimo deste - ligado a uma ação significativa de registro.
Pretérito [pre.té.ri.to adj (lat praeteritu)]: Que passou; passado. sm (Gram) Tempo verbal que exprime ação passada ou estado anterior; passado. P. imperfeito: tempo que indica uma ação passada, em relação ao presente, e que estava se exercendo quando outra se realizou: Estudava, quando ele entrou. P.-mais-que-perfeito: tempo que exprime ação anterior a outra, que já é passada no momento em que se fala: Ele partira, quando eu cheguei. P. perfeito: tempo que exprime ação passada e liquidada: Ele viajou. Futuro do p.: tempo que substituiu o antigo «condicional», e em que o processo indicado como posterior a um momento do passado é anterior ao momento em que se fala. Refere-se comumente a processos que não chegaram a realizar-se: Morreria se não viesses.4
Como a linguagem artística, o pretérito tem relações com o perfeito, o imperfeito e o mais
que perfeito - a arte se encontra dentro do homem como parte de sua memória, como particular fator
de registro do pretérito através da sensibilidade dos sentidos. Nesse espaço específico é que a
fotografia toma corpo, como referência de um registro que não se mostrava meramente
interpretativo, mas também documental e fragmentar da realidade. E a fotografia é esse registro
denunciante do passado, um meio de registro transformador que tinha como objetivo eternizar essa
ebulição das transformações sociais advindas da modernização cada vez mais crescente. A imagem
do passado sempre é um objeto que desperta atenção pelo seu sentido de representatividade, por
abrir um fragmento da história pretérita e, principalmente, por poder ser usada – a imagem real pode
muito bem ser descartada, pode envelhecer conjuntamente com o seu propositor ou dono, poder
perder a nitidez, pode esconder, pode suportar, pode criar expectativas sobre, pode ser uma
miniatura de algo ainda maior, pode ser pessoal e intransferível. Susan Sotang afirma essa
importância da maleabilidade que a imagem fotográfica abre, sendo objeto até mesmo de
apropriação pela sua conexão com o passado:
4 MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Melhoramentos Ltda, São Paulo: 2008.16
Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. É envolver-se em uma certa relação com o mundo que se assemelha com o conhecimento – e por conseguinte com o poder. (...) A fotografia brinca com a escala do mundo, pode ser reduzida, ampliada, cortada, recortada, consertada e distorcida. Envelhece ao ser infestada pelas doenças comuns aos objetos feitos de papel; desaparece; valoriza-se, é comprada e vendida; é reproduzida. 5
Essa apropriação da imagem fotográfica é o que interessa para a sequência desse estudo,
pois é dessa apropriação que a criatividade vai se valer – existe a clara necessidade de a imagem
disparar o desejo de se colocar no papel uma estória, com cores e sem h, para deixar claro que os
textos criados não passam de uma ficção sobre aquilo que desperta a fotografia como fator de
registro pessoal. As ficções necessitam também seguir todo esse percurso de valorização do
passado, precisam ser fatores de significação de memória, precisam casar com esse envelhecimento
da fotografia, precisam estar doentes em conjunto, precisam deixar marcas para suportar o seu
receptor. Precisam inclusive ser ousados, para receber um desejo de foco. É evidente que erra-se
quando se ousa escrever. E quando se escreve de outras maneiras, usando da estética e apropriando-
se das imagens, a ousadia cresce ainda mais – as pautas de um velho papel podem sim ser linhas do
horizonte, da mesma forma que palavras podem se tornar imagens compositivas de uma criação.
Gilles Deleuze fala dessa relação entre criação e troca, na qual “o artista é criador de verdade, pois a
verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada”.6
Seguindo o objetivo da pesquisa, foram apropriadas diversas imagens de memória durante
todo o processo criativo; fotografias que deixavam claro a passagem do tempo e da importância das
histórias que fazem parte daquele universo representado em um fragmento, uma verdade criada e
armazenada em imagens 3x4, por exemplo. Para a proposta criativa em questão, um bom número de
fotografias de identificação foi conseguido, principalmente imagens da época da infância – o que
traz à tona a memória e o que faz sentido essas permanecerem guardadas por tantas décadas, pois ali
está um rosto conhecido e ao mesmo tempo distante, diferente, preto e branco. Com as quatro
imagens antigas e infantis selecionadas, a proposta criativa circula por uma narrativa que traz à tona
a época de infância novamente, do ponto de vista de um dos retratados – sempre relacionado à
memória e à passagem do tempo e suas consequências.
5 SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro : Arbor, 1981, p.04.
6 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Cinema 2. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990, p. 179.
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Foi mesmo ontem que eu estava sentado
naquela árvore com os pés a balançar.
Estávamos em quatro e nos alimentávamos
de goiabas brancas e mangas-rosa. Tínhamos
pipas e peões que rodavam no chão e no céu.
Gostávamos de chuva quando a tarde
começava a cair. Líamos histórias e
inventamos outras muitas. O céu ficava
laranja e as nuvens se tornavam um cinza
quase azul. Jogávamos e perdíamos. Nossas
mãos balançavam e se encontravam quando
fazíamos festa nas noites de frio. Foi ontem
mesmo. Meus joelhos eram fortes, os mais
fortes dos quatro. Jogávamos e perdíamos.
Hoje eu jogo sem saber se consigo perder.
A narrativa que fora criada para acompanhas as fotografias é particular, saudosista e foca no
relacionamento e suas dificuldades e/ou facilidades – o verbo jogar entra como ligação entre
pretérito e presente, sobre a dificuldade de se relacionar que foi crescente com a passagem do
tempo. E as fotografias que dão origem ao texto mostram, literalmente, a identidade infantil e
distante do presente dos envolvidos – a memória do passado passa pelo encontro das quatro
identificações e reconhecimento da importância desse pretérito na formação dessa identidade adulta
e atual dos protagonistas. Dentro dessa mesma temática, três fotos apropriadas têm um mesmo
personagem infantil, nas quais duas dessas imagens fazem par e estão em perfeito estado, sempre
em preto & branco com uma mudança leve de pose do fotografado e seu telefone; são imagens
maiores, onde se percebe um esmero maior do fotógrafo com o resultado final. A terceira imagem –
que é cópia de uma das do par inicial – se apresenta como uma figura bem mais desgastada, tem
perdas nos suporte e está recortada toscamente – é a única do conjunto que tem tons de cor, um tom
fraco, aquarelado, destoando do conjunto. A proposta de criação narrativa desse trio de imagens
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passa pelo conceito de desgaste, de mudança pelo tempo – da falsidade por trás da cor real, pela
perda da sensibilidade e do correto com o passar do tempo. A memória, no texto criado, está em um
passado que poderia ser correto, poderia seguir com esmero, mas que seguiu por outro campo e se
desgastou, se entristeceu e se manchou com cores fáceis em demasia.
Fui criado desde muito novo por duas mães. Uma
branca e outra velha, que só usava branco. Minha
cabeça era redonda e negra, com uma marca
acima da orelha direita - uma cicatriz discreta.
Roubava doces, bolsas, chaveiros e placas
amarelas. Sinalizava esquinas, jogando água em
vidros de gente pouco importante. Comi fogo
pelas noites e pão dormido de anteontem. Entrei
em contrário, fechei os olhos e roubei um
cachorro que nunca cresceu. Comia pouco, sorria
menos ainda. Cresci e tive pés velozes, bem
marcados. Corria muito, sorrindo menos ainda.
Roubei tecido com detalhes em flor. Já podia ser
pego, apesar de discreto. Uma mãe morreu e
mesmo assim não parei. Organizei-me junto aos
meus, parei de correr e só pulava quando o trem
passava na minha carreira. Envenenei-me pelo
ócio e pela vadiagem, criando cores no cabelo.
Hoje enxergo somente a cor de uma farda e vejo
em meu rosto outras cicatrizes, nada discretas.
Minhas unhas estão negras e meus pés rápidos
hoje não se movimentam mais. Perdi a segunda
mãe pelo juízo. Em meio às grossas correntes de
ferro presas ao meu pescoço, escondo o medo de
uma farda que se move de um lado para o outro.
Medo que eu tenho das cobras que comeram o
meu cão que nunca cresceu. Medo que eu tenho
de nunca mais querer ver a noite outra vez.
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O objetivo criativo dessa proposta é perceber o quanto a nossa imagem pode se desgastar
com o tempo, e como nossa memória pode se influenciar e recortar o pretérito com base no presente
– mesmo que possamos pintar o passado, ele se mantém real e reflete todo o medo que assola o
presente. A memória pode se influenciar através dessa diferença entre o ontem e o hoje, pode
reavaliar percursos e perceber os erros dentro da linha do tempo - o conceito de diferença está
intrinsecamente ligado à transgressão, à inexatidão, controvérsia, prejuízo, incômodo, transtorno.
Em duas das imagens apropriadas, a representação familiar se apresentara muito forte, pelo signo da
figura masculina como pilar dentro da sociedade, tanto como provedor quanto como engrenagem de
seu tempo. O tempo também modifica essas engrenagens, a memória deixa marcas também em
quem observa de fora – e esse foi o motivo escolhido para iniciar a ficção sobre a fotografia em
questão. O alicerce criativo passa por esse ponto de vista de quem narra alguém que é de fora, mas
que carrega uma intimidade sobre o seu descrito, sobre suas atividades cotidianas, suas memórias de
passado, suas amizades nunca esquecidas e sobre a sua rotina familiar. A casa é o elemento de
conversão, o elemento de silêncio, de velhice, de introspecção – mas onde cabem todos que se
fazem especiais na memória longa de tempos vividos.
Ele era calado, quase não se notava a sua presença. Abrigava na sombra das filhas e dos netos a
sua imensa felicidade. Chamava a atenção poucas vezes, gostava de cães e de limpeza. Tinha um
bom corpo e uma mulher fiel, que lhe deu a força que precisava para poder descansar. Não era
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jovem, e nem velho demais para ter certeza da hora. Era um homem que, sem pretensão de ser
mais do que era, criou uma família. Criou também em sua casa grande o hábito de manter fechadas
as portas, deixando sempre aberta às grades do jardim. E quando abria a porta da frente, era Natal.
Amigos antigos se misturavam a netos cada dia mais velhos. E fortes. Tão fortes que mal percebem
a fraqueza que é estar só. Mas quando tiverem eles seus filhos vão perceber o momento certo de
se calar. E o bisavô verá de cima que as portas sempre estarão abertas a quem conseguir enxergar
além do jardim.
A proposta narrativa é particular, intimista pelo trato familiar e a narrativa de fora para
dentro mostra a existência de um espaço aberto, de diálogo – ao mesmo tempo em que trata da
introspecção. Dentro desse mesmo nível familiar e pessoal, mas com um foco antônimo ao último
citado, duas fotografias de uma mesma personagem foram escolhidas para ser um par e serem
usadas em conjunto no processo criativo – as imagens abrem para busca de uma identidade
feminina distanciada pelo tempo infantil. As fotografias foram as primeiras a serem trabalhadas
como uma carta formal, realista e de trato íntimo pelo passar do tempo, deixando evidente que a
memória está presente em um passado que não existe mais e que questiona o presente. Ao mesmo
tempo em que a imagem é plástica, a narrativa insere elementos de erro e de tristeza que passam a
aparecer nas imagens – como se a linguagem fragmentar da fotografia pudesse captar não somente
o fragmento do tempo real, mas também a indiferença e o descuido reconhecidos em um olhar. De
temática familiar, a narrativa criativa aborda principalmente o lado humano por trás da memória – e
mostra de certa forma, que a escrita é uma linguagem de mais fácil exposição, pelo distanciamento
das duas pontas envolvidas no diálogo.
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Minha querida filha. Dessa vez espero que você ultrapasse as primeiras linhas do papel. Escrevo a você
para que se lembre de seu pai. Faz vinte anos que você deixou a casa que nunca lhe acolheu. Uma frase
que você mesma ainda deve dizer. Esse lugar nunca me acolheu. Faz vinte anos que você deixou seu pai,
marcada pela dor da incompreensão. Seu pai é um homem rude, machista e infiel. Você sabe que tudo
na vida dele foi um mar de rispidez e ignorância. Sim minha filha, ignorância. Seu pai não teve a
oportunidade de ver nada nascer, nem sequer o que ele mesmo plantava. Sua única ordem era o
cansaço. Sua única certeza era que o sol era o seu relógio. E hoje ele nem sequer pode enxergar o
tempo. Sua única diversão é a bebida, seguida por gritos de ordem. Minha filha, seu pai não é um doente
ou um escravo da cegueira. Ele é apenas incapaz de mudar de opinião. Nem você, a coisa mais perfeita
que ele teve nas mãos, fez isso mudar. Sei que as últimas palavras dele a você hoje são cicatrizes; que
você percebe no espelho, quando chora. Minha filha, não peço a você que apareça ou que escreva
palavras falsas em um papel qualquer. Peço apenas que você se lembre do seu pai sem mágoa ou
rancor. Apenas busque perdoá-lo, lembre que ele precisa de ajuda, e não de acusações. O tempo já lhe
mostrou as consequências, as reações. Seja mais inteligente do que ele e não deixe para resolver essa
mágoa quando seu pai se for e você ser inundada pelo remorso. Lembre-se do seu pai, por o momento
de um instante. Reze por ele, se ainda acreditar em Deus. Quanto a mim, não se preocupe. Estou feliz
em perceber que tudo que passei me faz hoje perceber que os erros que cometi não se repetirão nunca
mais. Mesmo porque hoje já não me resta tanto tempo assim.
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O conjunto de imagens atrelado à produção ficcional criativa, nessa proposta, leva o
espectador a criar conexões com a fraqueza e imperfeições do ser humano, mostrando que a
fotografia também pode ficar marcada com o tempo que antecede a ruptura, a separação – fixando a
memória do portador no tempo em que o equilíbrio ou a inocência dominavam. A memória das
relações humanas está impressa em papel fotográfico por muitas décadas, sendo esse um dos focos
mais evidentes da ação fotográfica – o de manter eternizado um encontro ou um momento
específico, com outros escolhidos para tal. A próxima produção apresentada tem como referência
visual a fotografia que registra o encontro de duas garotas que aparentam ter uma proximidade real,
pois o resultado revelado é um abraço natural entre as fotografadas. Dentro dessa temática intimista,
a produção ficcional trata dessa aproximação fraternal entre duas do mesmo gênero, tratando
sempre de todo o percurso de vida e da memória retida dessa aproximação - os erros, os acertos, os
preconceitos e as acomodações de uma história longa de vida descrita de forma poética e simplista
Somos diferentes demais, mas temos a
mesma força. Temos por equilíbrio a
família, a resistência, a solidão e a
saudade. Erramos em demasia, por
querer abraçar o mundo. Somos irmãs,
companheiras, trabalhadoras. Guiamos
caminhos diferentes, mas temos a mesma
dificuldade em dizer não. Isso porque
somos apenas humanas, que buscam
sempre manter o exemplo naquilo que
propomos e nem sempre são valorizados.
Temos filhos, netos e cansaço de esperar.
Agradecemos toda chuva que cai e nunca
nos esqueceremos das nuvens do
passado. Somos caluniadas por sermos
simples e apedrejadas por sermos
egoístas. Mas não somos egoístas, muito
menos simples. Somos mulheres que
temos as cicatrizes dos erros em nossa
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face. Mantemos um disfarce apenas para
não incomodar. Somos irmãs até na falta
de jeito com as coisas boas e com as
cores claras demais. Não queremos saber
o que sentimos, escondemos qualquer
demonstração de afeto. Mas somos
irmãos na vontade de fazer tudo aquilo
que um dia foi escrito para nós
obedecermos. E cumprimos ordens.
Vemos a morte como meio e as lágrimas
como fim. E cumprimos ordens de voltar
para fazer tudo assim novamente.
A ficção criada mostra não somente a aproximação e as evidentes afinidades disparadas pela
imagem fotográfica; mas também foca toda uma linha histórica muito comum à figura feminina – e
todo esse furacão de mudanças e certezas por elas alcançado. O uso da palavra disfarce foi
objetivado por aliar a função da fotografia com a função temática da narrativa, criando um ciclo que
evidencia que a fotografia e a posição social escondem algo muito maior por trás do disfarce muitas
vezes solicitado para ambas ser aceitas como perfeitas. Outra narrativa proposta criativamente após
o recebimento de uma fotografia é também focada na relação próxima entre o seu protagonista e
suas amizades, aqui tratada de forma poética – o foco da criação passa pelo conceito da valorização
trabalhador, os seus prazeres e angústias. O conceito de jardim é retomado, não agora como apenas
um local de beleza plástica, de acolhimento – mas sim como um lugar de exposição para o que vem
de fora, um lugar de trabalho pesado onde o importante é encaixar cada engrenagem em seu devido
espaço.
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Estava exausto. Carregara pedras por toda a manhã, para enfeitar um jardim de poesias.
Pedras opacas, quase ocres, guardadas em um saco de tecido com cores que aprecio. Pedras
que guardavam há séculos palavras mudas, sílabas sem tom. Todos que passavam olhavam
como gelo aquele jardim. Amigos acenavam, mas não me ofereceram ajuda. Gostaria de ouvir
ao menos palavras de incentivo. Contudo, apenas acenavam. Mesmo assim, cada amigo
antigo possuía um pedaço de meu jardim de poesias em seu nome. Os mais velhos e
importantes amigos ficavam representados próximos à janela. Os outros mais recentes perto
a cancela, para tocar-lhes o ego. Enfeitei tais jardins antigos com palavras novas. Deixei o ocre
das pedras se misturarem ao mar de branco e verde que tanto cultivo. Já imaginava algum
companheiro com pedras na mão a formar palavras, a seu gosto e entendimento. Meu
cansaço embriagava e os sonhos já sumiam aos olhos. Resolvi descansar com água, para
esperar a luz amarela de um sol fosco iluminar minhas pedras em mais um dia. Amanhã,
carregarei mais pedras cruas de cor e vogais para saciar a construção de poesias em meu
jardim.
Ao mesmo tempo leve e poética, a temática em questão se mostra pesada por se tratar do uso
das pedras como decoração/metáfora para o prosseguimento de trocas sociais. Percebe-se na
fotografia a valorização do contato social, que contrasta com a dificuldade e o cansaço que se tem
ao objetivar manter a ordem das relações quando estas precisam aparecer. O trabalho narrativo abre
para a própria memória guardada de relações, e para a poética das palavras sempre escolhidas para
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nos apresentar e nos representar perante os mais próximos - a poética, como construção de relações,
é colocada como objetivo de satisfação. Na penúltima proposta da série, a memória é apresentada
de maneira mais intimista, trazendo a questão infantil do trato com a memória – do ponto de vista
adulto sobre proposições sonhadoras de seu passado de criança. A fotografia apropriada ocupa bem
essa força como fragmento de passado – principalmente quando a imagem está relacionada com um
espaço específico de um tempo sem retorno, sempre bem caracterizado pela guarda da imagem
infantil como uma representante de toda uma fase. O processo criativo despertado com a fotografia
de retrato se aparece amplo, mas quando se cria um alicerce temático ficcional, a imagem
fotográfica automaticamente se fecha no foco criativo proposto. No texto ficcional, o enredo é
poético, um tanto quanto criativo e com doses de sonhos tipicamente infantil – nota-se também no
contexto da narrativa pinceladas de histórias que se conectam ao protagonista, além de influências
despertadas por elementos criativos visuais. Cria-se toda uma imagem mental sobre a visualidade
do objeto tratado no texto, inclusive atrelando esse objeto à fotografia de seu 'portador'.
Ganhei de presente uma pequena caixa pintada
com frutas. Dentro existia um lápis sem cor, uma
borracha meio azul e meio vermelha, e uma
agenda do ano de meu nascimento. Desenhei na
contracapa da agenda um sol redondo e logo
abaixo rabisquei o meu nome. Com a borracha
apaguei as folhas das frutas da caixinha – é que
não gostava daquele verde opaco quando
criança. Depois de um tempo, criei na caixa
feijões brancos em chumaços de algodão úmido.
Quando percebi que os brotos começavam a
surgir, tirei a tampa da caixa e a virei pelo
contrario. Pensava que as pêras eram pintadas à
cor do sol e que essa cor fizesse crescer as
coisas. Mas o sol nunca teve cor. Já a agenda só
teve o meu nome escrito, por muitos anos, em
meio a um mundo de folhas somente datadas.
Por causa disso a jogaram fora. Se soubesse
outras palavras, teria plantado feijões nas linhas
da minha agenda. No mês de Março.
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A motivação narrativa, nesse trabalho, passa pela angustia de se deixar claro a importância
desse pretérito do protagonista, e de como essa angústia da apresentação de um dado/objeto
descrito de forma tão sutil e também de modo tão significativo aproxima as duas pontas da ficção -
detalhes de como uma mente criativa funciona através de um evento cotidiano mostram uma ficção
extremamente preso à um universo artístico sempre ligado ao cotidiano do protagonista. O último
texto ficcional criado parte do princípio da memória saudosista e familiar, do tempo infantil
cravado na memória como especial. Novamente recebi um par de fotografias para criação de uma
mesma origem, e percebi a imagem em comum do passado carregando nos braços a lembrança de
um lugar especialmente delineado por coadjuvantes importantes para a formação atual da
protagonista – como se o passado ainda lhe protegesse o seu presente de forma poética e
extremamente saudosista.
Era uma sinfonia de sons leves, em pedaços de manhã iluminados pela maestria de pássaros.
Orvalho clareando o tapete verde, que cobre a terra leve e macia. Terra que abraça as flores;
flores que encurtam distâncias e nos fazem perder o medo das cores. As árvores fortes daquele
lugar dão o exemplo da perseverança no trabalho. Pedi licença ao tempo para experimentar a
sombra que me convidava a sentir um pouco de mim. A solidão ali se torna lembrança de finais
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de tarde, onde tínhamos por companhia um cão fiel, de pelo curto e amarelado. A saudade ali
se torna muda, por falta daquela palavra que deveria ser dita ao calor de um abraço que hoje
não tenho. A tristeza ali se torna egoísmo, pois nem sequer conseguimos usar nossos olhos em
benefício da beleza das cores naturais. De olhos fechados lembrei uma canção que lembrava os
tempos de menina, onde a chuva era a porta de entrada de uma festa. E onde estão meus
estimados companheiros? Se foram tantos janeiros, desde que eu deixei meus pais. Adeus
lagoa, poço verde da esperança. Meu tempo de criança que não volta nunca mais.
Percebe-se, na criação ficcional, uma valorização de um lugar específico, conservado não
somente na memória; mas também ainda fragmentado no presente da protagonista. A criação partiu
do ponto de vista de se narrar um lugar do passado, já que as imagens fotográficas deixam claro o
foco relacional ligado à família – uma criação que necessitava sutileza e controle do tempo, que
realmente fosse equilibrado como as imagens apropriadas. A composição e a plasticidade das fotos
pedem uma criação de extremo bom gosto, principalmente que acenda da memória uma luz que
possa nos carregar ao pretérito perfeito. Em todos os trabalhos plásticos, a apresentação visual da
criação exigiu que se manteasse a sutileza das criações, assim o lugar onde a memória se
estabeleceu através da imagem fotográfica precisa sempre combinar com o mesmo tempo das
criações literárias e os suportes escolhidos para estas serem lidas. Às vezes, esse percurso é trilhado
para chegar a outros tempos, outros espaços - espaços que desejamos que outros compartilhem, para
criarmos redes e sairmos do lugar comum. Borris Kossoy (2005) afirma que a fotografia cresce em
importância não somente pelo seu valor como imagem formal e instantânea, mas também pelo valor
da múltipla dimensionalidade da fotografia, principalmente nas primeiras décadas do século XX.
Kossoy deixa claro o quanto esse fragmento de imagem abre para realidades, de qualquer cor e
forma, de qualquer verdade e pensamento:
A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira e mais evidente
está ali, é o conteúdo da imagem fotográfica, congelada, imóvel, registrada no
documento, é um testemunho, uma segunda realidade. As outras faces são
exatamente as que não podemos ver, ficam ocultas, não se explicitam, chamamos de
primeira realidade. Podemos intuir, é o outro lado do espelho e do documento, é a
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vida, a situação dos homens retratados, a história do tema, ou seja, a realidade
interior. Ao apreciarmos uma fotografia, nos vemos ali, parado, quase sem perceber
mergulhando no seu conteúdo, imaginando a trama dos fatos, tentando descobrir o
que estava acontecendo naquele exato momento, as circunstâncias em que estava
envolvido o assunto, enfim, é um exercício mental de reconstituição quase intuitivo.
Podemos ver que a reconstituição, sendo ela dirigida a investigação histórica ou até
mesmo como mera recordação pessoal, sempre implica num processo de criação de
realidades, onde se resulta em imagens mentais elaboradas pelos próprios receptores
envolvidos.7
Kossoy deixa claro o quanto a fotografia abre como suporte de experimentação, e é
exatamente nesse foco que os trabalhos plásticos se sustentam, principalmente na implicação do
processo de criação de realidades, que tem a necessidade de envolver através da memória - e a
narrativa nasce da experiência pessoal de quem narra ou de quem transmite essa narrativa. Pedaços
e fragmentos de ficção acabam por dar cor a essas estórias fotografadas em preto e branco. Fazer
com que sua narrativa seja imaginada, transmitida e tratada em cores é uma bela ousadia, pois o
objetivo principal das propostas criativas é alcançar o olhar do outro, sem imediatismo, na busca de
focos diversos de interpretação.
7 SAMAIN,Etienne (org.). O Fotográfico. Segunda edição. Huitec Editora / Senac Editora. São Paulo, 2005, p. 4029
4. CONCLUSÃO
De acordo com a proposta inicial, se escolheu a fotografia como a escada para proposições
plásticas e criativas – e também foi a escolhida por ser o objeto imagético por excelência da
memória. Mas, durante o percurso criativo, a imagem fotográfica antiga e apropriada passou a ser
não somente um ativador de memória, mas também um motivador criativo e um estimulador de
sensações. Abrindo sobre a experiência da criação plástica, o tempo e o espaço gastos com a
contemplação da fotografia se tornaram o mesmo do da criação das cartas, da escolha dos papéis e
da proposição de colocar as narrativas em um suporte de próprio punho – esse ponto é que se
percebe o tamanho criativo que existe em uma produção de artes visuais e o tamanho do esmero que
às vezes passa despercebido quando se tem apenas o objeto final para ser contemplado.
Em todo momento a palavra memória se fortalecia como objetivo, fazendo que o antes
pudesse chamar a atenção e desarmasse o momento veloz atual - o objeto artístico precisava sair da
zona de conforto para ser legitimado. A velocidade é tanta que hoje se faz necessário estar sempre
atento àquilo que nos cerca - e ao mesmo tempo ir na contra mão disso tudo para poder entender em
qual contexto se deve atuar. Dentro dessas definições, o aprofundamento nos mostra que a arte é o
fim em si mesma, onde a particularidade objetivada das relações se torna objetivo, força de atenção,
participação e troca. A arte - e todos os meios de produção criativa influenciada por ela - está
intimamente ligada à mudança do olhar do espectador, tirando este do lugar comum na busca
refletiva sobre aquilo que lhe é apresentado, fruindo esteticamente sobre tal.
Como o processo criativo é de contínuo crescimento, o que se precisa deixar claro quando se
entrega um objeto pronto para um leitor é que a organização de uma proposta de trabalho em artes
visuais passa pela responsabilidade de se deixar uma marca, um signo, uma identidade - a criação
precisa passar pelo crivo do conceito de responsabilidade e de identidade. Reconhecer uma obra
como sua é distinguir que todo o processo de criação valeu a pena; é o primeiro passo para se seguir
em frente. Alfredo Bossi deixa clara a necessidade com que se devem tratar todas as etapas
criativas, afirmando que “a arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma,
se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade
humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se artística.”8
8 BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. Editora Ática. Série Fundamentos. São Paulo. 2004. p. 13.30
A palavra trabalho passa a ter a sua frente um artigo. O trabalho. Um trabalho. Esse artigo,
definido tão poucas vezes, e indefinido quase todas as outras, é o que se faz reconhecer que alguma
coisa está latente. O verbo criar é tão amplo quanto sua significação, se conectando a pares e
sinônimos, mudando o foco com o tempo e se influenciando com trocas interartísticas. Essa troca se
tornou o objetivo desse projeto, que foi alcançado devido à interação entre a memória, a fotografia e
a escrita – sempre tirando proveito do espectador como receptor de uma ideia que, sem sua
presença, se torna um objeto sem objetivo. A busca é refletir no outro um turbilhão de percepções,
passando pelo conforto visual, pelo incômodo e pela alegria da descoberta.
Criar significa pensar no outro, perceber seu potencial e transformar um simples gesto em
ação consciente e responsável. O suporte proposto para leitura, aliado ao objetivo de despertamento,
passa por esse conceito de criar para receber respostas, e sem esperar a sacralização do objeto ou até
mesmo sua eternização. Ela precisa permanecer na memória pelo tempo necessário para gerar
incômodo sentimento ou indiferença. Precisa fundamentalmente ser uma pedra no cotidiano veloz e
extremamente urbano - um espaço de instante onde o que se percebe é a eficiência poética
funcionando como desejado. Perceber o trabalho por completo, pronto para ser lido ou devorado, é
prazeroso pelo fato de que o objetivo fora cumprido corretamente - quando se entrega um trabalho
para a leitura de outros que não acompanharam o processo criativo, este trabalho já não te pertence,
este foge ao controle das mãos e cria vida, modificando os sentidos de quem o absorve, de quem o
lê. O autor é o ator que em final de peça apenas acompanha os olhos ávidos de quem aplaude o que
foi feito e está terminado – atores que em final de peça apenas reconhecem que o melhor está por
vir, e que aplausos são apenas o ingrediente pra se começar outra busca, criar novas imagens, novas
histórias e outras belas memórias para se guardar em qualquer espaço disponível.
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5. REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_________________. El Império del signos e variaciones sobre la escritura. Barcelona: Paidós, 2002.
_________________. O prazer do texto. São Paulo: Objetiva, 2006.