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Fernando Gazoni a Poetica de Aristoteles

May 29, 2018

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joseluispsi
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  • 8/9/2019 Fernando Gazoni a Poetica de Aristoteles

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    A Potica de Aristteles: traduo e comentrios

    Fernando Maciel Gazoni

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento deFilosofia da Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Universidade de SoPaulo, para obteno do ttulo de Mestre emFilosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Marco Antnio de vila Zingano

    So Paulo2006

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    FOLHA DE APROVAO

    Fernando Maciel GazoniA Potica de Aristteles: traduo e comentrios

    Dissertao apresentada Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo para a obteno dottulo de Mestre. rea de concentrao:Filosofia

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr.:

    Insituio:Assinatura:

    Prof. Dr.:Insituio:Assinatura:

    Prof. Dr.:Insituio:Assinatura:

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    DEDICATRIA

    A meus pais, Walter (in memoriam ) e Soss. Ele,que de tanto repetir quousque tandem, Catilina,abutere patientia nostra , despertou em mim acuriosidade das letras clssicas, e ela, que meensinou a estudar quando eu tinha 7 anos.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Marco Zingano, cujo exemplo e generosidade permitiram que seexpressasse em mim o que antes era uma mal resolvida vontade filosfica.

    Aos Profs. Drs. Lucas Angioni e Paula da Cunha Corra, cujas argiesforam to importantes para dar forma a meu trabalho.

    A meu amigo Srgio Righini, com quem constantemente troquei idias sobreesttica, tragdia, beleza, e com quem discuti alguns pontos a respeito do textodessa Dissertao.

    Ao Paulo Ferreira, que gentilmente se props a ler a traduo e oscomentrios.

    A todos meus familiares, mas especialmente a minha me, minha tia Cizinha,meus irmos, minha irm, meus sobrinhos, sobrinha e cunhadas.

    Fernanda, pelo amor e pacincia.

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    RESUMO

    Este trabalho uma traduo da Potica de Aristteles (com exceo doscaptulos 19 a 22, que no so discutidos aqui) acompanhada de comentrios. Ainteno dele estabelecer um texto que leve em conta as vrias contribuiesdadas pelas principais tradues francesas, inglesas, italianas e portuguesas, esituar, por meio dos comentrios, a Potica dentro do corpus da filosofia aristotlica,especialmente a tica de Aristteles e sua teoria da ao.

    Palavras-chave: Potica , Aristteles, filosofia antiga, tica aristotlica, teoria da

    ao.

    ABSTRACT

    This paper is a translation into Portuguese of AristotlesPoetics (with theexception of chapters 19 trough 22, which are not discussed here), with

    accompanying commentaries. Its intention views the establishment of a text thattakes into account several contributions given by the main French, English, Italianand Portuguese translations. The commentaries considerPoetics as a part of theAristotelian philosophy teachings, especially Aristotles ethics and his action theory.

    Key words:Poetics , Aristotle, ancient philosophy, Aristotelian ethics, action theory.

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    SUMRIO

    Esclarecimento . . . . . . . . . 7

    Apresentao . . . . . . . . . 8

    Introduo . . . . . . . . . 10

    Traduo e comentrios

    - captulo 1 . . . . . . . . . 30 - captulo 2 . . . . . . . . . 35

    - captulo 3 . . . . . . . . . 38 - captulo 4 . . . . . . . . . 40 - captulo 5 . . . . . . . . . 46 - captulo 6 . . . . . . . . . 50 - captulo 7 . . . . . . . . . 60 - captulo 8 . . . . . . . . . 64 - captulo 9 . . . . . . . . . 67 - captulo 10 . . . . . . . . . 73 - captulo 11 . . . . . . . . . 74 - captulo 12 . . . . . . . . . 80 - captulo 13 . . . . . . . . . 82 - captulo 14 . . . . . . . . . 86 - captulo 15 . . . . . . . . . 91 - captulo 16 . . . . . . . . . 95 - captulo 17 . . . . . . . . . 99 - captulo 18 . . . . . . . . . 104 - captulo 23 . . . . . . . . . 108 - captulo 24 . . . . . . . . . 112 - captulo 25 . . . . . . . . . 117 - captulo 26 . . . . . . . . . 123

    Referncias Bibliogrficas . . . . . . . 128

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    ESCLARECIMENTO

    Como este um trabalho acadmico que envolve a traduo de um textoclssico, j vertido e comentado inmeras vezes em diversas lnguas, ele devenaturalmente recorrer a algumas dessas vrias tradues, analis-las e comparar asdiferentes solues propostas. Mas fazer a indicao da citao dessas diferentessolues, quando elas so agrupadas, poderia sobrecarregar o texto. Ento, quandose faz a citao de um exemplo tomado entre um dos tradutores, a indicao completa, no sistema autor-data. Mas quando se comparam as tradues e elas soagrupadas de acordo com suas semelhanas, fazer a indicao de cada uma

    tornaria a leitura cansativa. Nesse caso, o expediente adotado foi indicar apenas osnomes dos tradutores. Entenda-se que a indicao bibliogrfica ausente remeteria traduo cujo autor est listado, no mesmo local daPotica que objeto docomentrio. Veja-se, por exemplo, a nota 2 do captulo 18:

    Parece-nos equivocado o comentrio de Dupont-Roc e Lallot (ARISTTELES,1980, p. 291) ao justificarem sua opo de ligar o advrbiopollakis a enia tn esthen , de tal forma que sua traduo resulta (idem, p. 97): le nouementcomprend les vnements extrieurs lhistoire et souvent une partie desvnements intrieurs (o n compreende os eventos externos histria efreqentemente uma parte dos eventos internos). equivocado no pelas razesgramaticais que eles apresentam, que so plausveis, mas porque seria estranhoque, como parte da tragdia, o entrelaamento pudesse ficar totalmente fora dela.Essa, entretanto, a verso da grande maioria das tradues consultadas(Gernez, Magnien, Eudoro de Sousa, Bywater, Else, Halliwell, Rostagni, Gallavotti,alm de Dupont-Roc e Lallot, claro). Como se explicaria, tambm, a meno parte (meros ) a partir da qual comea o desenlace se o entrelaamento fossetotalmente externo? A opo mais razovel parece considerarpollakis ligado frase como um todo, como fazem Hardy, Bruna e como sugere Lucas(ARISTTELES, 1998b, p. 183).

    Deve-se observar, tambm, que, como os comentrios so feitos em notas derodap, que j usam uma fonte menor que a fonte do texto e tm espaamento deuma linha, as citaes longas, ao contrrio do que se recomenda, no tm nemespaamento nem tamanho de fonte menores do que os das notas de rodap emque elas se inserem.

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    APRESENTAO

    Esta uma traduo comentada da Potica de Aristteles para o portugus,excetuados os captulos 19, 20, 21 e 22. Essa lacuna se explica pelo escopo dotrabalho. Minha inteno foi traduzir e comentar aPotica como uma obra dentro docorpus aristotlico, relacionando-a principalmente com sua tica, o que me pareciafundamental para procurar entend-la a contento. Para esse tipo de comentrio, atraduo dos captulos 19 a 22 no imprescindvel, pois eles pouco ou nadaacrescentam ao que me parece ser o principal: a definio da tragdia como mmese

    de uma ao , o que a coloca no centro da moral aristotlica. Os preceitosaristotlicos quanto ordem, extenso e beleza da tragdia, a ponderao de que apoesia mais filosfica que a histria, a exata compreenso dos motivos daprimazia do enredo frente ao carter e da exata relao que subsiste entre eles, oentendimento da importncia da peripcia, do reconhecimento e dos eventospatticos para a finalidade da tragdia, a relao entre necessidade (ouprobabilidade), enredo, surpresa e acaso, todos esses pontos no so

    compreensveis sem referncia a categorias da filosofia aristotlica, e maisespecificamente de sua tica. Espero que meus comentrios tornem esses pontosinteligveis.

    Antes da traduo e dos comentrios h uma introduo, que no pretendemais do que situar a questo da catarse sob a visada terica da tica aristotlica.Para tanto, o texto faz um apanhado de pontos docorpus aristotlico aparentementedesconexos, sem relao uns com os outros, mas que depois se aglutinam e

    mostram sua pertinncia na anlise da tragdia.Acho que a fantasia inicial de quem se prope comentar aPotica chegar a

    uma concluso definitiva do que seja a catarse. No meu caso, essa fantasia se viulogo esvaziada por uma espcie de dvida ctica, suscitada pela enorme quantidadede interpretaes disponveis a respeito dela. A variedade tamanha que o foco deateno logo se desvia da pergunta o que , afinal, a catarse? para a questo, maspor que, afinal, no se chega a um consenso do que a catarse?. Essa dvida de

    fundo que orienta a introduo.

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    A traduo foi feita diretamente do texto grego, editado por Kassel (1988),mas confrontei, quanto possvel, diferentes verses, no s porque aPotica sabidamente um texto elptico e lacunar, mas tambm para flagrar as divergnciasentre os tradutores e situar minha verso dentro da tradio. Fiz uso das traduesmais reputadas em ingls (Bywater, Butcher, Else e, mais recentemente, Halliwell),francs (Hardy, Dupont-Roc e Lallot), italiano (Rostagni, que, a rigor, no umatraduo, mas um comentrio linha a linha) e portugus (Eudoro de Sousa e JaimeBruna). Ao lado dessas tradues, devo citar tambm a de Michel Magnien e a deBarbara Gernez, ambas francesas, a de Gallavotti (italiana), e a recente traduopara o portugus de Pietro Nassetti, que, apesar de no gozarem do crdito das

    outras, por vezes oferecem solues bastante interessantes. Essas tradues foramconsultadas compulsivamente, comparadas e anotadas. A esses estudiosos faltaacrescentar os comentrios de Lucas, cujos pontos de vista, quase sempre sucintose pertinentes, procurei incorporar, quando me pareciam apropriados, a meusprprios comentrios.

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    INTRODUO

    La controverse de la catharsis des cent cinquantedernires annes a t marque de la part de plusieursinterprtes, un degr dont il est difficile de trouver unparallle dans les tudes classiques, par un talage deconfiance en soi qui tait pratiquement en proportioninverse de la qualit des tmoignages notre dispositionsur le sujet.1

    to\ kalo\n e)n mege/qei kai\ ta/cei e)stin.2

    h( me\n ou)= kata\ th\n te/xnhn kalli/sth trag%di/ae)k tau/thj th=j susta/sew/j e)sti.3

    i. Ordem e extenso

    A afirmao aristotlica a respeito do belo (to kalon ), que serve de epgrafe

    para essa Introduo, encontra paralelo em outras partes docorpus aristotlico que

    no somente a Potica . Assim, por exemplo, atica Nicomaquia afirma, ao

    examinar a virtude da magnanimidade (megalopsukhia ), que ... o belo (to kalon )

    est na extenso do corpo, pois as pessoas pequenas podem ser graciosas (asteioi )

    e bem proporcionadas (summetroi ), mas no so belas4, ou os Tpicos , ao se

    referirem ao corpo, o belo parece ser uma certa simetria dos membros5. Tambm

    1 (HALLIWELL, 2003, p. 500). A controvrsia a respeito da catarse dos ltimos cento e cinqenta anos foimarcada, da parte de muitos intrpretes, em um nvel que dificilmente encontra paralelo nos estudos clssicos,por uma demonstrao de confiana em si que estava praticamente na proporo inversa da qualidade dostestemunhos sobre o assunto nossa disposio. (traduo nossa)

    2 O belo est na extenso e na ordem (Potica, 1450 b 37).

    3 Assim sendo, a mais bela tragdia segundo as regras da arte se faz com essa composio (Potica, 1453 a 22)

    4 tica Nicomaquia, 1123 b 7.

    5 Tpicos, 116 b 21-22

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    no livro M daMetafsica , encontramos o belo relacionado extenso e ordem e

    articulado s cincias matemticas:

    aqueles que sustentam que as cincias matemticas nada dizem a respeitodo belo ou do bom, enganam-se, pois elas discorrem a respeito deles e osdemonstram no mais alto grau. Pois, ainda que no nomeiem seus efeitos eprincpios ao demonstr-los, disso no se segue que no discorram arespeito deles. As principais espcies do belo so a ordem (taxis ), a simetria(summetria ), e a definio (to horismenon ), o que, nas cincias matemti-cas, demonstrado no mais alto grau.6

    Essas citaes permitem inferir que o belo, ligado simetria e ordem, no

    um conceito exclusivo daPotica , mas um postulado geral disperso nocorpus aristotlico. NaPotica , entretanto, ele encontra sua expresso na tragdia. Ordem

    e extenso so explicitamente mencionadas no captulo 7, e fundamentam certas

    caractersticas importantes do enredo. A ordem, identificada completude da ao

    trgica, d origem ao preceito da unidade da ao trgica e da necessidade de

    seqncia lgica entre partes. Da anlise da extenso resultar que a tragdia deve

    ter um tamanho tal que possa para ser apreendida na sua totalidade pela memria7

    e suficiente para a reverso de fortuna do heri trgico8.

    ii. Ao e carter

    A eleio do enredo (o arranjo das aes) como o princpio e como que a

    alma da tragdia9, em detrimento do carter, pode parecer um contra-senso a

    alguns. Essa impresso s vezes nasce de um ponto de vista anacrnico do teatro e

    da literatura, de modo geral, uma vez que nosso hbito esttico entende os

    personagens como possuidores de um carter peculiar, por vezes patolgico, e o6 Metafsica, 1078 a 33-b 2 (traduo nossa).

    7 Potica, 1451 a 5.

    8 Cf. nota 3 do captulo 7.

    9 1450 a 38.

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    enredo, como a trama em que essa idiossincrasia se expressa. assim com

    Shakespeare (como entender Othelo seno como algum dominado por um cime

    doentio instigado por um ressentido Iago?), assim com Dostoievsky, assim comNlson Rodrigues. Talvez seja assim tambm com Media, mas para Aristteles a

    ao o principal. Entretanto, mesmo sem levar em conta essa viso anacrnica, que

    revela mais sobre ns que sobre Aristteles, a impresso de que primazia do enredo

    um contra-senso pode nascer tambm de uma leitura atenta do prprio texto.

    Quem leia aPotica com zelo percebe que a palavra ao ocorre apenas uma vez

    antes da definio de tragdia dada no incio do captulo 6. Essa nica ocorrncia,

    em 1447 a 28, casual: Aristteles, ao tratar dos meios em que se realiza a

    mmese, diz que a dana faz uso apenas do ritmo. De fato, os bailarinos, segue o

    texto, dando forma figurada aos ritmos, mimetizam carter, afeces eaes . Essa

    meno a aes, dessa forma e nesse momento do tratado, claramente

    insuficiente para fundamentar a definio de tragdia como imitao de uma ao10.

    No entanto, seria de se esperar que todos os elementos presentes na definio de

    tragdia tivessem sido abordados de maneira suficiente nos captulos anteriores,

    uma vez que a definio se faz preceder de um anncio que explicita essa ordem de

    coisas: falemos da tragdia, tomando dela a definio de sua essncia que deriva

    do que foi dito11

    . Se h um momento em que a ao abordada antes do captulo 6,ela abordada de maneira indireta, por meio dos agentes. Eles so citados no incio

    do captulo 2, onde o carter de quem age (e no a ao) que fundamenta a

    distino entre tragdia (carter elevado) e comdia (carter baixo). Mas a ao

    que se protagoniza na definio da tragdia e entre as partes que a compem, e no

    o agente (e seu carter).

    10 Essa no parece ser, entretanto, a opinio de Rostagni (ARISTELES, 1945, p. 32).

    11 1449 b 22-24. A respeito desse assunto, veja-se a nota 4 do captulo 6.

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    Esse movimento no casual, uma vez que Aristteles afirma explicitamente

    a primazia do enredo sobre o carter: a tragdia mmese no de homens, mas de

    uma ao e da vida ... segundo o carter os homens possuem determinadasqualidades, mas segundo suas aes que eles so felizes (eudaimones ) ou o

    no12. Pode-se buscar a justificativa para a primazia dada ao enredo e ao em

    detrimento do agente (e seu carter) na tica aristotlica, onde talvez encontremos

    na dinmica que se estabelece entre ao e carter fundamentos que permitam (ou

    no) esclarecer esse ponto da Potica . Esse parece ser o caminho de anlise mais

    natural. Os resultados, entretanto, sero divergentes conforme seja o entendimento

    dos pontos da tica relevantes para o assunto. Para citar um exemplo (ou um contra-

    exemplo), Dupont-Roc e Lallot (ARISTTELES, 1980, p. 196) entenderam que na

    tica aristotlica o carter primordial e prevalece sobre as aes:

    Du point de vue de l'thique (cf., par exemple,th. Nic.,II, 1105 a 30sq .),une action humaine ne peut recevoir de qualification morale qu'en rfrenceaux dispositions thiques du sujet qui l'accomplit, et notamment au choixdlibr (proairesis; cf. Pot., 50 b 9), fruit du caractre(thos) et de lapense (dianoia),que cette action manifeste.13

    Eles so obrigados, ento, a postular uma inverso dos pontos de vista entre a tica

    e a Potica de forma a justificar a primazia dada s aes pela ltima:

    Mais, y regarder de prs, on voit que, si les donnes fondamentales del'thique sont effectivement prises en compte ici, laperspective o elles

    12 1450 a 16-20.

    13 Do ponto de vista da tica (cf., por exemplo,tica Nicomaquia, II, 1105 a 30 et seq.), uma ao humana nopode receber qualificao moral a no ser em referncia s disposies ticas do sujeito que a realiza, enotadamente escolha deliberada ( proaiseris; cf. Potica, 50 b 9), fruto do carter (ethos) e do pensamento, queesta ao manifesta. (traduo nossa)

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    apparaissent est originale [...] Ce qui est au premier plan ici, c'est non plusl'agent, maislaction...14

    Entretanto, na passagem da tica Nicomaquia a que eles se referem, no se afirmaque a ao humana s pode ser qualificada em decorrncia do carter de quem a

    realiza. Uma anlise do trecho citado datica Nicomaquia deixar isso claro.

    Aristteles entende o processo de formao das disposies ticas do

    indivduo como um processo acumulativo, em que a repetio de aes de mesma

    qualidade torna o indivduo cada vez mais apto a realizar esse tipo de ao e

    conseqentemente mais senhor da virtude relativa a ela. realizando aes

    corajosas que nos tornamos corajosos, realizando aes justa que nos tornamos

    justos. Mas essa doutrina tem uma objeo imediata ( qual Aristteles responde no

    trecho citado por Dupont-Roc e Lallot): se o indivduo, para se tornar justo,deve

    realizar aes justas, realiz-las desse modo j no implica o domnio da prpria

    justia? J no implica ser justo? Aristteles responde a essa objeo traando umparalelo entre o mbito tcnico e o mbito tico. No primeiro, a qualidade do produto

    final pode ser independente da qualidade de quem lhe deu origem (um mau oleiro s

    vezes faz bons vasos, que so bons apesar dele). A qualidade do produto est no

    prprio produto. Mas isso no quer dizer, e talvez venha da o erro de Dupont-Roc e

    Lallot, que o contrrio o que vale no escopo tico, no quer dizer que a relao

    entre a ao tica e seu agente seja to estreita a ponto de a primeira s de deixar

    qualificar unicamente em funo da qualidade do segundo. De fato, Aristteles no

    chega a postular essa relao de identidade entre a qualidade da ao e do agente,

    e so bvias as suas razes para no proceder assim: se s o justo fosse capaz de

    realizar aes justas, s o temperante as temperantes, s o corajoso etc, estaramos

    14 Mas, observando mais de perto, v-se que, se os dados fundamentais da tica so efetivamente levados emconta aqui, a perspectiva em que eles aparecem original [...] O que est em primeiro plano aqui no mais oagente, mas a ao (traduo nossa)

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    todos restritos e fadados s virtudes que trazemos por natureza. No haveria

    aquisio das virtudes, nem conflito moral, o que justamente o contrrio do que ele

    prope. Aristteles no pode ser to exigente quanto aos critrios de qualificao deuma ao, sob pena de ver sua tica engessada. Os requisitos que ele prope so

    menos rigorosos. Uma ao, para ter determinada qualidade: a. deve ser realizada

    por um agente que tem conhecimento do que faz; b. o agente deve ter escolhido a

    ao, e ela deve ter sido escolhida por ela mesma; c. o agente deve t-la escolhido

    de maneira estvel e segura15.

    Com isso, Aristteles pretende ter solucionado a possvel objeo a sua

    doutrina de aquisio das virtudes. O agente tem uma margem de liberdade para

    sua ao. Ela decorre certamente de seu carter, que ser to mais estvel e seguro

    quanto mais acumulativo tiver sido o processo que o consolidou, mas isso no

    significa que o conflito moral deixa de existir para ele. Um homem corajoso, que

    to mais corajoso quanto mais realizou aes corajosas, pode eventualmente ter um

    ato covarde, e muitos atos covardes anularo a coragem que ele adquirira. A ao

    tem prevalncia sobre a disposio, que pode ser engendrada, mas tambm

    corrompida, por vrias aes de mesma qualidade16.

    Assim sendo, as virtudes, e portanto o carter do agente, na dinmica que se

    estabelece na tica aristotlica entre carter e ao, representam um plo de maiorinrcia, que se movimenta, se modifica e se constri com mais dificuldade. Mas, por

    isso mesmo, o plo mais estvel. A ao, ao contrrio, o plo mais dinmico.

    15 Esses pontos esto todos determinados no captulo 4 do livro II datica Nicomaquia(1105 a 17 - b 18)

    16 EN , 1103 b 7-8: ... toda virtude engendra-se a partir e corrompe-se por meio das mesmas coisas. (traduode Marco Zingano, em texto ainda indito)

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    Essa, em certo sentido, decorre do carter, que uma das causas da ao17, mas a

    o carter, em certo sentido, decorre da ao: das vrias aes que o consolidaram.

    iii. Sabedoria prtica

    Mas isso ainda no diz tudo a respeito da relao entre ao e virtude dentro

    da tica aristotlica. O assunto no estar suficientemente exposto, no que diz

    respeito a esta Introduo, se no nos referirmos sabedoria prtica, ou prudncia

    (phronsis ), a virtude intelectual que opera em meio s virtudes ticas.

    A virtude, nos diz atica Nicomaquia , dupla: h a virtude intelectual e h a

    virtude tica18. Essa diviso da virtude, por sua vez, decorre de certas caractersticas

    da prpria alma. No captulo 13 do livro I datica Nicomaquia , Aristteles analisa

    as virtudes a partir das divises da alma. H nela uma parte irracional (alogon ) e

    uma parte dotada de razo (logon ekhon ). Essa diviso fica clara quando se pensa

    em seus extremos: a alma, segundo a doutrina aristotlica, responsvel, por

    exemplo, pelo crescimento, e a parte da alma responsvel por isso em nada

    participa da razo; mas a alma tambm responsvel pela apreenso dos objetos

    matemticos, e essa parte da alma inteiramente racional. Entre os dois extremos,

    h uma parte que parece ser irracional, responsvel pelos apetites e pelos desejos,

    mas que obedece razo, pois um certo desejo ou apetite pode ser moderado pelareta razo. Essa parte, Aristteles no v motivos em incorpor-la definitivamente

    parte racional (e, nesse caso, a parte racional da alma seria dupla: uma responsvel

    pela apreenso dos objetos matemticos, outra responsvel pelos apetites e

    desejos) ou parte irracional (e nesse caso, seria a parte irracional que deveria ser

    17 Cf.Potica, 1450 a 1-2.

    18 EN , 1103 a 14.

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    dupla: uma que em nada participa da razo e outra que de certa forma, participa da

    razo). Essa falta de definio afirmada pelo prprio Aristteles de maneira clara:

    manifesto, assim, que a parte irracional dupla: a parte vegetativa emnada participa da razo; a parte apetitiva e, em geral, desiderativa participade certo modo da razo, na medida em que a escuta e lhe obedece, assimcomo dizemos do pai e dos amigos que tm razo, e no como namatemtica [...] Se for preciso dizer que ela racional, ento tambm aparte racional ser dupla: uma propriamente em si racional, a outra comoem certa medida obediente ao pai. Tambm a virtude dividida segundoessa diferena, pois dizemos que umas so intelectuais e outras morais.19

    Para os propsitos da tica, o importante que ela, no sendo totalmente

    redutvel razo (ao contrrio da tica socrtica, que considera a virtude como

    sabedoria), entretanto sensvel a ela. Essa parte da alma o mbito por

    excelncia das virtudes morais. Tambm , como veremos, o mbito por excelncia

    da tragdia.

    Entretanto, se a parte apetitiva e desiderativa da alma capaz de ouvir a

    razo, deve haver uma virtude intelectual capaz de persuadi-la. A prpria definio

    de virtude tica deixa isso claro:

    A virtude , pois, uma disposio de carter relacionada com a escolha econsistente numa mediania, isto , a mediania relativa a ns, a qual determinada por um princpio racional prprio do homem dotado desabedoria prtica.20

    A sabedoria prtica ou prudncia (phronsis ) assim fundamental para a

    ao moral e para a virtude tica.

    19 tica Nicomaquia, 1102 b 29-1103 a 15, traduo ainda indita de Marco Zingano.20 tica a Nicmaco, 1106 b 36-1107 a 2, traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, coleoOsPensadores.

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    iv. A catarse musical

    Um outro ponto do corpus aristotlico em que a catarse mencionada o

    livro VIII aPoltica , que, entre outros temas, aborda a questo da educao musical.H ali referncias catarse musical, e o trecho tem sido considerado importante

    como guia para tentar ao menos delinear um possvel entendimento do que seria a

    catarse potica. O trecho que nos interessa comea em 1342 a 4 e segue at 1342

    a 16.

    A algumas almas sucede serem tomadas de forte emoo. Isso acontece,

    em maior ou menor grau, a todas. So tomadas, por exemplo, de piedade ede temor, alm de entusiasmo. Sob influncia dessas emoes, alguns sopossudos, e ns os vemos, sob influncia de melodias sacras, quandofazem uso das melodias que colocam a alma fora de si, restabelecidoscomo se tivessem recebido tratamento medicinal e purgao (catarse). Omesmo deve afetar os piedosos e os temerosos e, de maneira geral, osemotivos, na medida em que a cada um sobrevm essas coisas; e paratodos se faz certa purgao e so aliviados por meio do prazer. Da mesmaforma, as melodias prticas proporcionam um prazer inofensivo aoshomens.21

    O trecho foi visto por Bernays como uma evidncia de que a catarse tem um

    fim puramente medicinal. Esse ponto de vista j foi bastante criticado22, uma vez que

    a tica mdica no exclusiva, e o texto claro: o mesmo deve afetar os piedosos

    e temerosos ... e para todos se faz certa purgao. Mas deve-se observar que a

    nfase da passagem nas emoes que o processo, tal como descrito, pem em

    jogo. Tal leitura da catarse, se transposta Potica , certamente deve relegar a

    segundo plano mecanismos que se utilizem de ordem e simetria para produzir o

    belo.

    Interessante notar, ainda, que a msica, na tragdia, citada apenas como

    um ornamento e no chega efetivamente a se integrar estrutura do enredo. Se a

    Poltica expressamente cita os "tratados sobre poesia" como o lugar em que a noo

    21 Traduo nossa.22 Para uma crtica recente, veja-se Halliwell (2003, p. 500) .

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    de catarse ser esclarecida23 (esclarecimento que, supe-se, deveria estar no

    hipottico segundo livro, perdido, daPotica ), o que permite inferir que a catarse

    trgica compartilha algo com a catarse musical, a posio secundria dada msicaentre as partes da tragdia permite igualmente supor que a catarse trgica talvez

    no se identifique totalmente musical.

    v. Teorias da catarse

    Halliwell, no seu livro publicado em 1988 a respeito daPotica de Aristteles,

    faz um apanhado geral das teorias a respeito da catarse e, feitas as ressalvas de

    praxe em relao a esse tipo de agrupamento (desrespeito s sutilezas de cada

    intrprete, etc), dividiu-as em seis grupos: o grupo que tem uma viso moralista-

    didtica da catarse (de acordo com a qual a tragdia ensina a audincia por meio

    de exemplos ou contra-exemplos a controlar suas emoes e os erros que elas

    podem causar24), os que vem a catarse como meio de aquisio de fora moral

    (para quem a Tragdia nos ajuda a nos tornar habituados ao infortnio e assim mais

    aptos a toler-lo25), aqueles que vem a catarse relacionada de alguma forma

    noo aristotlica de meio termo26, os que consideram a catarse uma descarga

    emocional (uma maneira inofensiva e prazerosa de consumir emoes acumuladas

    e excessivas27

    ), os que vem na catarse um processo intelectual (a catarse

    23 1341 b 38

    24 Halliwell, 1988, p. 350.

    25 Idem, p. 351.

    26 O principal fator ... nessa escola de interpretao o conceito aristotlico de habituao: o princpio de quenossas aes e experincias ajudam a formar nossas capacidades futuras para as mesmas aes e experincias. Odespertar da piedade e do medo, por meio dos melhores recursos trgicos, torna-nos acostumados a sentir essasemoes da maneira correta e com a intensidade correta. (HALLIWELL, 1988, p. 352)27 Idem, p. 353.

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    entendida como uma espcie de clarificao intelectual28), e um ltimo grupo cujo

    representante mais eminente no sculo XX seria Else, que considera a catarse como

    a purificao da ao trgica por meio da demonstrao que seu motivo no miaron [moralmente repelente]29.

    Essa diviso de Halliwell, entretanto, pode ser reagrupada se notarmos que

    os trs primeiros grupos relacionam a catarse, de alguma forma, a questes ticas.

    Ao lado desses, poderamos colocar o quarto grupo (que a considera dentro de um

    mbito emocional) se lembrarmos que, para a tica aristotlica, virtudes dizem

    respeito a aes e emoes30. Halliwell, entretanto, neste quarto grupo, quer reunir

    aqueles que, como Bernays, apartaram a dimenso emocional de qualquer

    considerao tica31, mas no necessariamente a tese da descarga emocional deve

    ser apartada de um componente tico. Dentro desse quarto grupo, ento,

    poderamos considerar um subgrupo que considera a descarga emocional de

    maneira patolgica e outro subgrupo que a v por um prisma tico. O quinto dos

    grupos de Halliwell se distingue claramente dos anteriores pela preponderncia do

    componente intelectual. Quanto ao sexto grupo, no parece convincente considerar

    a purificao (catarse) como algo que tem como objeto o ato trgico. No parece

    razovel considerar que catarse seja a elucidao sobre a verdadeira natureza do

    ao trgico. Halliwell (1988, p. 356) apresenta outros motivos para que sedesconsidere essa tese.

    28 Idem, p. 354. Halliwell considera ainda um segundo tipo de abordagem intelectual (cujo representante seriaNicev, mas ao qual ele prprio no parece dar muita importncia (idem, p. 355))

    29 Else, 1957, citado por Halliwell (1988, p. 356) (colchetes de Halliwell). No convincente, entretanto,considerar a purificao (catarse) como algo que opera sobre o ato trgico. Halliwell (1988, p. 356) apresentaoutros motivos para que se desconsidere a tese defendida pelos representantes desse grupo.30 tica Nicomaquia, 1109 b 30.

    31 O ponto crtico que Bernays e outros enfatizaram esta analogia [i.e., a analogia medicinal] de maneira a dar katharsisum sentido exclusivo de alvio teraputico ou quase-teraputico, e excluir qualquer questo a respeitode uma dimenso tica da experincia (HALLIWELL, 1988, p. 353).

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    Essa classificao, assim reagrupada, revela suas linhas de fora principais32.

    A catarse pode ser vista como preponderantemente tica, como

    preponderantemente esttica / intelectualista ou como uma certa terapia medicinal.No grupo que a v como predominantemente tica, pode-se postular ainda uma

    outra diviso: os que a vem como uma descarga emocional (sem que essa

    descarga emocional tenha fins exclusivamente teraputicos) e os que a vem como

    um aprendizado das virtudes. O aprendizado das virtudes, ainda, pode ter sua

    nfase colocada no sentir as emoes da maneira correta e com a intensidade

    correta33 (uma espcie de educao sentimental) ou nas relaes que se

    estabelecem entre os apetites, desejos e emoes e as razes que os ponderam,

    deliberam e escolhem. Esse ltimo grupo, por dar mais peso razo deliberativa,

    aproxima-se bastante dos que enxergam na catarse apenas um esclarecimento

    intelectual. Por sua vez, aqueles que enxergam a catarse como uma certa terapia

    medicinal devem reter dela apenas o suscitar e aliviar emoes, desprezando

    qualquer tipo de ponderao ou de raciocnio ligado a esse processo.

    Assim,grosso modo , podemos enxergar umcontinuum que vai desde a pura

    presena de estados emocionais, de onde se ausenta a razo (a tese medicinal), at

    a preponderncia da razo, que no se confunde com sua pura presena porque a

    tragdia no trata das cincias matemticas.Essas leituras, para se constiturem, entretanto, no utilizam apenas o pano

    de fundo das teses aristotlicas. Elas devem se referir ao texto da prpriaPotica .

    32 A classificao de Halliwell pode ser comparada com a de Pierre Destre (2003, p. 433-434), que prope:catarse moral, catarse medicinal, catarse esttica e a catarse tica. Destre, entretanto, no d detalhes a respeitoda teoria da catarse moral, de modo que no podemos analisar em que essa rubrica se diferencia da catarse tica.Pode-se postular uma identidade de fundo entre as listas dos dois autores pela meno aos autores representantesde cada grupo. Halliwell, por exemplo, cita Bernays como expoente dos que consideram a catarse uma espciede descarga emocional, o que corresponde, na lista de Destre, catarse medicinal. Golden, para Destre, representante da linha esttica, mas Halliwell o coloca no grupo da catarse intelectual.33 (HALLIWELL, 1988, p. 352).

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    vi. A prpriaPotica : catarse intelectual

    Munidos dos conceitos apresentados nas sees i. a iv. (o belo referido ordem e simetria, a teoria tica das virtudes e da ao, o papel da sabedoria

    prtica na escolha deliberada, a catarse musical tal como ela se apresenta na

    Poltica ), poderamos examinar, de incio, como aPotica enxerga o tratamento que

    a tragdia d extenso e ordem de forma a fazer aparecer o belo. A tarefa,

    primeira vista, no parece difcil: ordem e extenso (nessa seqncia) so

    explicitamente examinadas no captulo 7 daPotica , justamente o captulo que inicia

    o exame mais minucioso do enredo e que segue at o captulo 14.

    A localizao desse captulo, logo aps a definio de tragdia, determinao

    e hierarquizao de suas partes, j diz de sua importncia, mas bastaria sua frase

    inicial para ilustr-lo: discriminados esses elementos [as partes da tragdia],

    falemos, depois deles, das caractersticas que deve ter o arranjo das aes [o

    enredo] uma vez que essa , da tragdia, a parte primeira e mais importante34. No

    escapa da ateno dos comentadores a importncia da seo da Potica dedicada

    ao enredo. Eudoro de Sousa (ARISTTELES, 1998a, p. 168), por exemplo, afirma:

    Os captulos VII, VIII, IX e XXIII formam um conjunto homogneo, quepoderia ser designado como o ncleo de toda aArte Potica, pois, como"teoria do mito", a doutrina vale, no s para a tragdia e a epopia, comopara a comdia e o jambo, por conseguinte, para a poesia imitativa todaa poesia, em suma. O mito elemento mais importante, entre todos os queconstituem a imitao com arte potica vem agora a ser determinadocomo uma totalidade (cap. VII) e como uma unidade (cap. VIII) e, sendototalidade e unidade, vem a ser "coisa mais filosfica" do que a histria (cap.IX): entre duas formas de apreenso do real-agente, o intermedirio quemais participa dauniversalidade,que objecto prprio da Filosofia, do queda particularidade, qual se cingiria a ateno indagadora da histria.

    34 1450 b 22-24.

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    ou Halliwell (ARISTTELES, 1987, p. 98):

    Aristotle now embarks on one of the most important and exacting sections ofhis argument. In expounding his criteria of form, scale and unity in poetry, heallows us to see the way in which his thinking about the art rests on thefoundations of a wider philosophical system.35

    O critrio de ordem se explicita, na tragdia, inicialmente na seqncia de

    suas partes. Ela deve ter comeo, meio e fim. A afirmao, em si mesma, seria um

    trusmo, na medida em que de tudo se pode postular comeo, meio e fim, se no

    fossem as relaes de necessidade ou probabilidade que devem subsistir entre as

    partes36. Ao comeo deve seguir-se o meio, mas no qualquer meio, e sim o meio

    que decorre necessariamente ou provavelmente do comeo, ao meio deve seguir-se

    o fim, mas no qualquer fim etc. Mas notemos que, tal como se apresenta, esse

    um critrio formal vazio, puramente relacional. O comeo se define por referncia ao

    meio, que se define por referncia ao comeo e ao fim, que se define etc. A

    necessidade (ou probabilidade) que deve organizar essa seqncia, necessidade e

    probabilidade cuja importncia Aristteles sempre frisa como critrios que devem

    orientar o arranjo do enredo, no se consubstancia se no se explicitardo que

    esse comeo, do que esse meio, do que esse fim. Ela no se revela se no ficar

    claro qual o objeto que preenche essa forma vazia. Esse objeto aao , e anecessidade ou probabilidade que deve governar a seqncia comeo, meio, fim,

    enseja a unidade da ao trgica . Esse ponto j est dado na definio de tragdia

    (mmese de uma ao completa ), mas desenvolvido com mais detalhe no captulo

    35 Aristteles agora d incio a uma das sees mais importantes e exatas de seu argumento. Ao expor seuscritrios de forma, escala e unidade na poesia, ele permite que ns vejamos a maneira como seu pensamentosobre a arte se alicera nas fundaes de um sistema filosfico mais amplo. (traduo nossa).36 Cf. nota 5 do captulo 7.

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    8. O critrio da ordem se explicita, ento, no preceito da unidade da ao trgica: os

    incidentes devem se seguir uns aos outros de maneira necessria ou provvel.

    O critrio da extenso, por sua vez, no se deixa explicitar de maneira toclara quando aplicado tragdia. A metfora que Aristteles utiliza para desenvolver

    o tema facilmente inteligvel em si mesma (um animal, para ser belo, no pode ser

    extremamente pequeno, porque sua percepo pelos sentidos seria confusa, nem

    muito grande, pois sua extenso no se deixa abranger por um nico olhar), mas

    quando transposta para o caso da tragdia perde nitidez, notadamente em relao

    ao limite inferior de extenso preceituado. Essa falta de nitidez no uma questo

    importante em se tratando do que se expe aqui, mas notemos que ordem e

    extenso so categorias espaciais, afins viso, enquanto a tragdia temporal. Se

    o preceito relativo ordem transita com desenvoltura de um domnio a outro, uma

    vez que uma disposio espacial ordenada (ou seja, que mantm entre suas partes

    certas relaes de proporo e simetria) transforma-se em uma seqncia temporal

    ordenada (ou seja, que mantm entre suas partes certas relaes de probabilidade

    ou necessidade), essa transitividade vacilante quanto ao preceito de extenso.

    Aquilo que apreende a extenso no espao, a viso, tem os limites inferior e superior

    claros: um objeto muito pequeno no visto com nitidez, um objeto muito grande

    no visto no seu todo. Mas esse limite, aplicado memria, que responsvelpela apreenso da extenso no tempo, claudicante: se algo muito longo, a

    exemplo de algo muito extenso, no consegue ser retido pela memria, o que seria

    algo to curto a ponto de no poder ser lembrado? Esse lapso do texto, entretanto,

    no s ganha uma verso mais clara no captulo 23, quando se fala da extenso da

    pica37, como o limite inferior de apreenso do belo de pouca importncia prtica,

    37 Cf. nota 8 do captulo 23

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    uma vez que se preceituar, quanto extenso da tragdia, que o melhor o maior

    limite possvel at onde permitir a clareza do todo38. Surpreendentemente39,

    entretanto, esse preceito quanto extenso se transforma, sem aviso prvio, emoutro: ter um limite suficiente a extenso na qual se d [...] a mudana do infortnio

    para a fortuna, ou da fortuna para o infortnio40. Essa transformao, ao agregar a

    um preceito puramente formal um certo tipo de ao (no por acaso, um tipo de

    ao capaz de suscitar temor e piedade), parece depor contra a suficincia de

    caractersticas formais (ordem e extenso) para dar conta do belo na tragdia41.

    Desconsiderando esse pormenor, temos como resultado que o belo, na

    tragdia, est ligado unidade da ao trgica e a uma certa extenso que lhe

    prpria. Mas como a unidade de ao trgica chega a constituir o belo?

    Para entender esse ponto, devemos recorrer ao paradigma da pintura tal

    como a Potica o apresenta. Ele utilizado j no terceiro pargrafo do texto (1447 a

    18-19), mas tambm, em 1448 a 5, 1448 b 9, 1450 a 26, 1450 b 1, 1454 b 9, 1460 b

    9. O trecho em 1448 b 9, no captulo 4, especialmente frtil em comentrios, pois

    nesse ponto a anlise de Aristteles se desenvolve por algumas linhas e se articula

    ao que parece ser uma teoria geral da mmese e ao prazer que ela provoca. De

    acordo com essa doutrina, a mmese prazerosa porque, de alguma forma, ela

    permite ao espectador aprender alguma coisa a respeito da realidade, e aprender,ainda de acordo com o texto, prazeroso. Esse prazer, que mais acentuado para

    os filsofos, mas no exclusivo deles, tambm est ligado ao reconhecimento de

    uma forma j vista, e, em menor grau, aos elementos materiais da pintura, 38 1451 a 10-11.

    39 Cf. nota 15 do captulo 7.

    40 Potica, 1451 a 12-15 41 Entretanto, o captulo 23 parece fazer derivar o prazer prprio da pica da observncia da unidade de ao(1459 a 21). Mas, a esse respeito, veja-se a nota 3 desse captulo.

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    realizao da obra, s cores, etc. Se a passagem for articulada com uma outra, no

    captulo 1542 (a partir de 1454 a 7), outro trecho em que o paradigma da pintura se

    apresenta forte, teremos um quadro que descreve a mmese trgica como umprocesso que, partindo de uma ao real, extrai dela as relaes de necessidade ou

    probabilidade que regem suas partes, depurando-a de todo elemento casual e

    acessrio, prprios no da poesia, mas da histria, para devolv-la realidade sob

    forma de tragdia, colocada para a avaliao e inteleco de sbios espectadores

    capazes de apreciar o real depurado de suas contingncias e a estrutura necessria

    ou provvel que o rege. A ordem e a extenso (ou, nesse caso, a necessidade e a

    probabilidade), criam o belo por retirar do real qualquer elemento que atrapalhe sua

    simetria, por depur-lo de qualquer elemento que no esteja subordinado

    necessidade ou probabilidade que o rege. Tal interpretao da mmese encontra

    apoio nas passagens do corpus aristotlico citadas, notadamente nas que se

    referem ordem e extenso como propiciadores do belo. Temor e piedade entram

    na tragdia apenas como sentimentos cuja estrutura ser deslindada e a catarse

    deve ser entendida como um processo de depurao intelectual, um processo que

    permite uma viso mais clara da estrutura dessa ao temerosa e piedosa. Aprender

    a estrutura dessa ao prazeroso .

    Um exemplo dessa interpretao de catarse fornecido por Dupont-Roc eLallot. Para eles,

    colocado na presena de uma histria (muthos ) onde ele reconhece asformas , sabiamente elaboradas pelo poeta, que definem a essncia dopiedoso e do temvel, o espectador prova ele mesmo o medo, mas sob umaforma quintessenciada, e a emoo depurada que o toma ento, e que nsqualificaramos como esttica, se faz acompanhar de prazer.43

    42 ... os bons pintores ... restituindo a forma prpria [do modelo], ao retratarem semelhantes, pintam-nos maisbelos. Para a leitura intelectualista / esttica, a nfase do processo recai em tomar da realidade uma certa formae restitu-la no quadro como forma prpria. 43 (ARISTTELES, 1980, p. 190) (traduo nossa).

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    vii. A prpriaPotica : catarse emocional

    Entretanto, uma ao pode se organizar segundo o provvel ou o necessrio,pode ter uma certa extenso, mas no chegar a provocar temor ou piedade. Se o

    retratista pode extrair de qualquer face sua forma prpria ao retrat-la, e isso

    suficiente para sua arte, no qualquer ao que serve tragdia: essa ao deve

    provocar medo e piedade. A insistncia nessas duas emoes (ou ainda outras, se

    postularmos que a tragdia no se restringe a elas) parece fazer da tragdia algo

    que no prescinde de um certo mbito emocional. H quatro pontos44 da Potica em

    que Aristteles faz meno ao mais belo enredo ou mais bela tragdia, e em todos

    esses lugares essa beleza est ligada a eventos capazes de suscitar temor ou

    piedade. Significativamente, trs deles esto no captulo 13, que analisa a

    configurao de enredo mais capaz de fazer a tragdia atingir seu efeito. Esse

    enredo no est analisado quanto ordem ou extenso (ou necessidade ou

    probabilidade), mas sim quanto reverso da fortuna e ao carter do heri, e, em

    ambos os casos, so eleitos a reverso e o carter mais apropriados a suscitar

    temor e piedade.

    Enxergar na tragdia um artefato para apenas provocar medo e piedade,

    entretanto, esvaziando-a de qualquer considerao tica mais importante, aproxim-la da interpretao medicinal proposta por Bernays ou rebaix-la a um

    patamar puramente hedonista, que se esgota, em um caso, no sucesso da terapia,

    em outro, no prazer que ela provoca. Halliwell (2003) discute longamente a

    adequao ou no do conceito de catarse musical apresentado em Poltica VIII

    catarse trgica. Ele defende que os dois trechos docorpus no so incompatveis, e

    44 1452 a 11, 1453 a 23, 1452 b 31 e 1453 a 19.

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    que a catarse musical, tal como tratada naPoltica , ainda que suas propriedades

    no possam ser transferidas ipsis litteris tragdia, no obstante no devem ser

    desprezadas em se tratando da catarse trgica. No deixa de ser interessante notar,entretanto, que a melodia (canto) esteja mal integrada estrutura da tragdia,

    destino similar ao do espetculo. A melodia classificada como umhedusma ,

    palavra traduzida como ornamento, mas que tem a mesma raiz de prazer e seria

    vertida mais propriamente como tempero45. A ela cabe, na Potica , um destino

    similar ao do espetculo. O prazer que ela proporciona, assim como o prazer ligado

    a efeitos cnicos, deve dar lugar ao prazer prprio da tragdia, aquele que provoca o

    medo e a piedade por meio da mmese, e que deve estar ligado s aes46.

    viii. Concluso

    possvel enxergar, na Potica , fundamentos para uma tese intelectualista

    da catarse. possvel, tambm, enxergar fundamentos para uma tese puramente

    emocional. Mas tanto um extremo quanto o outro s se constituem relegando a

    posies secundrias elementos aos quais o prprio texto parece atribuir relevncia.

    tragdia, assim, resta um mbito que concilie essas duas vertentes.

    Como concili-las uma questo que permanece aberta. Mas curioso notar,

    sem que essa observao nos faa chegar a uma resposta definitiva da questo,que, em trs pontos importantes do tratado, o temor e a piedade (ou elementos aos

    quais eles esto ligados) so acrescentados ao texto, eles no surgem com

    naturalidade da discusso que os precede. assim, por exemplo, na definio de

    tragdia. Temor e piedade no se contavam entre os elementos analisados nos

    45 Como ser dito na nota 7 do captulo 6. 46 Potica, captulo 14, 1453 8 -14.

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    captulos anteriores47. assim no caso da determinao do tamanho ideal da

    tragdia: nada da discusso a respeito da extenso permitiria prever que a extenso

    ideal faria referncia reverso de fortuna do heri trgico, que um elementopropiciador de piedade48. assim no final do captulo 9, em que a mais bela

    tragdia, surpreendentemente, no aquela que tem a ordem e a extenso mais

    perfeitas, mas aquela que, sendo completa (ou seja, preenchendo os requisitos de

    ordem e extenso), capaz de fazer surgir com mais surpresa (sem, entretanto,

    deixar ser regida pelo provvel ou pelo necessrio) o temor e a piedade49. Essa

    mesma ordem de apresentao organiza a seo do tratado dedicada ao muthos

    (captulos 7-14), que comea por analisar os elementos formais do enredo

    (completude, unidade, ordem, extenso captulos 7-10) para ento definir os tipos

    de enredo mais eficazes para suscitar medo e piedade (captulos 11, 13 e 14). No

    seria essa mais uma evidncia de que o enredo que suscita temor e piedade no

    permite que se derivem todas suas propriedades da anlise da extenso e da

    ordem? Por sua vez, s temor e piedade no so suficientes para o prazer prprio

    da tragdia, eles devem estar integrados a uma estrutura una, em que as partes se

    relacionem segundo o necessrio ou o provvel.

    Mas tambm no esse o mbito prprio da ao moral? Tambm ela se

    encontra a meio caminho entre a irracionalidade vegetativa e a razo matemtica.Se Aristteles no v razes para colocar a parte apetitiva e desiderativa da alma

    junto parte racional ou parte irracional, essa ambivalncia encontra paralelo

    tambm no estatuto que devemos dar catarse. Em ltima instncia, a tica que

    delimita as fronteiras onde devemos procur-la. 47 Cf. nota 6 do captulo 6.

    48 Cf. nota 15 do captulo 7.

    49 Cf. nota 13 do captulo 9.

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    ARISTTELES POTICA

    1

    Falemos da arte50 potica, dela mesma51 e de suas espcies, quecapacidade52 cada espcie tem, do arranjo53 que devem ter os enredos se h de ser

    50 Arte, aqui, traduz o termotechn, no explicitado no texto grego, mas certamente subentendido, seja pelapresena do adjetivo substantivado poitik, ao qual ele se ligaria, seja pelo tratamento semelhante que recebe,

    no corpus aristotlico, a retrica, tambm ela, na verdade, uma arte retrica. O comeo da Retrica, deAristteles, como aqui, tambm no explicita tekhn rhtorik (arte retrica), mas diz apenas rhtorik(retrica) (1354 a 1). Chantraine (1990), no seu Dictionnaire tymologique de la langue grcque, no verbetesobre o verbo poie, faz constar como palavra derivada poitike, acrescenta entre colchetes [tekhn] e iguala oconjunto a lart potique. Importa notar, sobretudo, que dentro da tripartio usual do conhecimento atribudaa Aristteles (conhecimento cientfico/terico, conhecimento prtico/tico, conhecimento produtivo/tcnico), aPotica ocuparia lugar dentro do conhecimento produtivo/tcnico. Isso, como notou Sophie Klimis, coloca umproblema para os intrpretes que querem ver aPetica dentro de um paradigma tico; a interpretao tico-poltica se choca ento com uma aporia grande, visto que a tica e a poltica pertencem ao mbito conceitual daao, enquanto a tragdia pertence ao da produo. Alm disso, no interior do mbito potico, a anlise no secentra na ao ( praxis), mas na representao ficcional (mimesis praxes). So as regras tcnicas que permitemessa estilizao do real que ocupam a boca de cena (KLIMIS, 2003, p. 466) (traduo nossa). Entretanto, no sepode deixar de notar que a mmese da ao pode e deve ser entendida dentro do quadro conceitual da aomesma, ainda que a potica, sendo arte, tem um escopo que no se deixa apreender somente pelas categoriasticas (a esse respeito, veja-se, por exemplo, a nota 23 do captulo 6).

    51 Aqui importa no exagerar o sentido doauts (dela mesma). No se trata de falar da poticakathauto, ouseja, segundo sua essncia, por oposio ao falar delakata sumbebekos, que implicaria falar da potica segundoseus acidentes. Falar da arte potica, dela mesma, uma expresso que restringe o mbito do tratado (no sefala, por exemplo, da poesia como educao ou como lazer, como o caso da msica no captulo VIII daPoltica 1339 a 17-26) ao mesmo tempo em que o organiza, por oposio ao falar de suas espcies: falemosdela em geral, como gnero, para ento tratarmos de suas manifestaes particulares, suas espcies. Isso posto,parece excessivo o comentrio de Rostagni passagem (ARISTTELES, 1945, p. 3), ao considerar queAristteles busca a essncia da arte potica e identifica essa essncia na mmese. Halliwell, que tambm comoRostagni, procura ver a mmese como o fundamento de uma esttica aristotlica, no chega a considerar esseauts com a mesma nfase que Rostagni. Halliwell busca antes no sentido da expresso que termina essepargrafo inicial (ver nota 6) a fundamentao de sua tese (a nosso ver, equivocada).52 Capacidade traduz o gregodunamis, palavra do vocabulrio aristotlico que recebeu as mais diversastradues. Para o portugus, Eudoro de Sousa verteu como efetividade, explicando, em nota, quepotencialidade seria um termo igualmente vlido, e acrescentou: potencialidade, que, uma vez actualizada emcada uma das espcies de poesia, vem a constituir o rgon, ou o efeito que lhe prprio; na tragdia, este sero prazer resultante da imitao de casos que suscitam terror piedade (53 a 1) (ARISTTELES, 1998a, p. 149). 53 arranjo traduz um termo importante para o tratado, uma vez que o enredo, visto como o arranjo dos feitos, aparte mais importante da tragdia. O termo ser retomado vrias vezes ao longo dos captulos subseqentes. Porvezes, em vez de arranjo, adotamos composio. A frase foi vertida por Eudoro de Sousa (ARISTTELES,1998a, p. 103) como da composio que se deve dar aos mitos. Sua soluo prefervel ao uso do verbocompor, que a maioria das tradues adota (Hardy, Bruna, Rostagni, Dupont-Roc e Lallot, Gernez) e que podefazer supor que se trata de compor no mesmo sentido que inventar, como quando dizemos que Beethovencomps sinfonias. Ainda que, ao contrrio da composio musical, no usemos o verbo compor no caso dainveno literria, importaria, ainda assim, evitar alguma anacrnica semelhana com o paradigma romntico decriao artstica.

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    exitosa a produo potica54, e ainda de quantas e quais so as partes dela, assimcomo de tudo mais que diga respeito mesma pesquisa, comeando, conforme natureza, primeiro pelas coisas primeiras55.

    54 produo potica traduz poisis, que traduziramos mais imediatamente como poesia (Dupont-Roc eLallot), ou como poema (Eudoro de Sousa, Bruna, Bywater), ou ainda como composio potica (Hardy,Halliwell). Exceo feita a Dupont-Roc e Lallot, todos os tradutores mencionados centram-se no produto daproduo potica, o poema. A opo por produo potica explica-se principalmente por uma questo de fundolexical: poisis o substantivo grego derivado do verbo poie (fazer, produzir) por meio do sufixo sis, quecorresponde ao portugus o, e indica o ato de realizar a idia expressa pela raiz verbal: de produzir vemprodu-o. Acrescente-se a isso o fato de que a frase construda pela perfrase verbalmell+infinitivo futuro,que indica um ato a ser realizado, ou que se pretende que seja realizado. Tudo parece indicar que estamos nombito daquilo que est para ser feito, no no mbito da coisa realizada. Mas a questo de pormenor, senotarmos que a produo potica exitosa se identifica ao poema exitoso. E mesmo aPotica, em outros trechos,parece oscilar entre considerar poisiscomo produo potica ou como o produto final (como produto final, porexemplo, 1447 a 14, b 26, como produo, 1448 b 23, 24, ...). 55 A expressoarxamenoi kata phusin prton apo tn prtn(...comeando, conforme natureza, primeiropelas coisas primeiras) tem um repertrio particular de interpretaes, que variam de acordo com cada tradutor.Entende-se: aPotica extremamente concisa e truncada, talvez mais do que costumam ser os textosaristotlicos, e essas expresses de carter auto-referente, em que o filsofo se refere no ao objeto de suapesquisa, mas maneira como essa pesquisa est sendo organizada, ao revelarem o olhar do filsofo sobre aprpria obra, parecem capazes de fornecer informaes importantes. Tome-se por exemplo okata phusin(conforme natureza) da expresso citada: Dupont-Roc e Lallot, no seu comentrio, leram aqui um Aristtelesnaturalista. Aplicando potica o mtodo de classificao do naturalista (seguindo a ordem natural, 47 a 12),Aristteles, tratando a arte potica como gnero, distinguir nela as espcies (eid) (ARISTTELES, 1980, p.143) (traduo e grifo nossos). Rostagni (ARISTTELES, 1945, p. 3) comenta que okata phusin fariareferncia a uma ordem natural, ou seja, do geral para o particular, e cita, como apoio a seu ponto de vista noo Aristteles naturalista, mas o Aristteles da Metafsicae dos Segundos Analticos. De mesma opinio Gallavotti (ARISTTELES, 1999, p. 121, nota 5). J Eudoro de Sousa (ARISTTELES, 1998a, p. 149)comenta o comeando...pelas coisas primeiras dizendo que esta expresso quase formular em Aristteles(Gudeman, pg. 78): a indagao (methodos) procede naturalmente do geral para o particular. Halliwell(ARISTTELES, 1987, p. 31) traduz o trecho de forma a ver aqui o anncio do que seriam os primeirosprincpios da potica, certamente levado a isso pelo prton apo tn prtn(primeiro pelas coisas primeiras).De maneira geral, todos os comentrios, por dspares que sejam, so unnimes em ver na reunio dos diversosgneros citados no incio do pargrafo seguinte, sob o selo da mmese, a definio de um carter geral que osunifica. Os comentrios diferem em que, uns, consideram a mmese a definio de uma essncia da arte potica(Rostagni e Gallavotti explicitamente, mas Halliwell tambm), outros, apenas vem nela um carter geral, sem,entretanto, se comprometerem com uma tese essencialista (Dupont-Roc e Lallot, Eudoro de Sousa). Qualquerque seja o comentrio, nenhum deles contradiz a organizao do tratado. Realmente ele caminha do geral para oparticular. Entretanto a expressoarxamenoi ... prton apo tn prtn(comando ... pelas coisas primeiras), oualguma variante muito prxima, tem outras ocorrncias em Aristteles ( As Partes dos Animais, 646 a 3, 655 b28, tica Eudmia, 1217 a 18,Gerao dos Animais, 737 b 25), sendo que ela aparece de maneira bastanteanloga a esse trecho daPoticanas Refutaes Sofsticas: arxamenoi kata phusin apo tn prtn(comeando,conforme natureza, pelas coisas primeiras) (164 a 22), onde a retirada do advrbio prton(primeiro) no aafeta significativamente. Ora, nas Refutaes Sofsticasno se procede do geral para o particular, nem essaexpresso parece introduzir alguma definio essencial. No trecho que se segue, o modo de apresentao doassunto parece ser o daevidncia: Oti m n on o m n es sullogismo , o d' ok ntej dokosi , fanern .sper gr ka p tn llwn toto gnetai di tinoj moithtoj , ka p tn lgwn satwj cei (164 a 23-26). Que uns so silogismos, ao passo que outros, no sendo, parecem, evidente. Pois assim comoem outros mbitos isso acontece por causa de uma certa semelhana, tambm nos raciocnio isso se d da mesmaforma (traduo nossa). Essa maneira de proceder no est em desacordo com a filosofia aristotlica. Veja-se, aesse respeito, o comeo do Livro I, daFsica (184 a 16 et seq.):

    pfuke d k tn gnwrimwtrwn mn dj ka safestrwn p tsafstera t fsei ka gnwrimtera: o gr tat mn te gnrima ka

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    De fato56, a composio pica, bem como a composio da tragdia, e aindaa comdia, a arte do ditirambo e a maior parte da aultica e da citarstica57, todas

    plj. diper ngkh tn trpon toton progein k tn safestrwn m nt fsei mn d safestrwn p t safstera t fsei ka gnwrimtera.

    E o percurso vai desde o mais cognoscvel e mais claro para ns em direo aomais claro e mais cognoscvel por natureza: pois no so as mesmas coisas que socognoscveis para ns e cognoscveis simplesmente sem mais. Por isso necessrio,desse modo, proceder a partir dos que, apesar de serem menos claros por natureza,so mais claros para ns, em direo aos mais claros e mais cognoscveis pornatureza (Traduo de Lucas Angioni (ARISTTELES, 2002, p. 13)).

    Se esse exemplo vlido como paradigma para aPotica (uma concluso anloga adviria do trecho citado datica Eudmia), seria foroso concluir que a unificao da epopia, da tragdia, da comdia, do ditirambo, damaior parte da aultica e da citarstica sob a gide da mmese se d tambm sob o signo da evidncia. Se isso no

    evidente para ns, talvez o fosse para o pblico da poca, como sugerem Dupont-Roc e Lallot na nota 4 docaptulo 1 (ARISTTELES, 1980, p. 144-145). Esse comentrio bastaria quanto s evidncias internas aocorpus aristotlico do sentido da expresso. Mas h ainda evidncias externas. Andrea Rotstein, ao analisar oconjunto das artes mimtica arroladas no incio do pargrafo seguinte e compar-las com inscries epigrficas,afirma que ... the six branches of poetic art mentioned herecorrespond to categories of competition at the major Athenian festivals, namely the City Dionisia and the Great Panathenaia (ROTSTEIN, 2004, p. 40) (itlico dooriginal). Ela conclui:

    ... correspondence between all items in our passage [i.e., o incio do pargrafoseguinte: De fato...] and categories of competition at the internationally renownedfourth century Athenian Musical Contests suggests that the list simply names themost conspicuous examples of mimesis,those that were prominent enough to lay a

    foundation for the general concept of mimesis. (ROTSTEIN, 2004, p. 42).

    56 Esse de fato, que traduz a partcula gregad (negligenciada pela grande maioria dos tradutores: Eudoro deSousa, Jaime Bruna, Rostagni, Gallavotti, Dupont-Roc e Lallot, Nassetti, Bywater; no negligenciada porHalliwell e Gernez, mas traduzida com outro significado) vem corroborar a conjectura de que Aristteles arrolaesses gneros como mimticos sob o signo da evidncia (ver nota anterior).

    57 No h consenso entre os intrpretes por que apenas a maior parte da aultica (a arte de tocar o aulo, que seaproxima mais da clarineta que da flauta, ainda que flauta seja a traduo mais usual entre as edies daPotica) e da citarstica (arte de tocar a ctara) seria considerada mmese. Que parte dessas artes seriano-mimtica? Dado que Aristteles em nenhum ponto de seu extensocorpus que chegou at ns tratousuficientemente do conceito de mmese, foroso reconstru-lo a partir da maneira como ele se apresenta. Nesse

    sentido, qualquer reconstituio que se queira vlida deve explicar por que a aultica e a citarstica somimticas, e deve tambm explicar por que elas so mimticas, mas no no seu todo. Gallavotti(ARISTTELES, 1999, p. 122-123) exclui da mmese musical a msica entusistica, dentro da tripartiomusical aristotlica proposta naPoltica (msica entusistica, msica tica, msica prtica, qualificaes detraduo to mais incerta quanto menos sabemos da msica grega e de seu carter) e centra sua ateno namsica prtica (que faria a mmese de aes, segundo ele) como candidato ideal a msica mimtica. Dupont-Roce Lallot (ARISTTELES, 1980, p. 144, nota 2) consideram a hiptese de Gallavotti arbitrria. De fato, emPoltica VIII, 6, Aristteles afirma que h imitaes ... no ritmo e na melodia, da clera e da doura, dacoragem e da prudncia, e de todas [as afeces] contrrias a essas, e dos outros tipos de carter (1340 a 18-21).(sti d moimata ... n toj r)uqmoj ka toj mlesin rgj ka prathtoj , ti d' ndreaj kaswfrosnhj ka pntwn tn nantwn totoij ka tn llwn qn ). Poder-se-ia objetar que o termo aquiusado no mmesis, mas omoimata (traduzido como imitao). Mas logo adiante, em 1340 a 38-39,Aristteles escreve:n d toj mlesin atoj sti mimmata tn qn (nas melodias mesmas h imitaesdo carter), fazendo uso do termomimemata, correlato demmesis. Importa notar, objetando Gallavotti, quenesse ponto do texto daPoltica, Aristteles ainda no distinguiu msica tica, prtica ou entusistica, e a msicacomo um todo dita mimtica.

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    so, no geral, mmeses58. Diferem entre si de trs maneiras, ou por realizar ammese em meios diferentes, ou por realizar a mmese de coisas diferentes, ou porrealiz-la diferentemente, isto , no do mesmo modo59.

    Pois assim como uns mimetizam muitas coisas colocando-as em imagem pormeio de cores e figuras (uns por tcnica, outros por hbito), e outros por meio davoz, assim tambm se d nas artes mencionadas: todas efetuam a mmese por meiodo ritmo, da palavra e da melodia, usados separadamente ou misturados. Porexemplo, fazem uso apenas da melodia e do ritmo a aultica e a citarstica, e algumaoutra que seja assim quanto potncia, como a arte da siringe60, enquanto a artedos danarinos imita por meio do ritmo mesmo, separado da melodia (pois eles, de

    fato, dando forma figurada aos ritmos, mimetizam carter, afeces e aes61).A arte que faz uso da palavra desacompanhada, ou do metro

    desacompanhado62 (sejam esses misturados entre si ou de um nico gnero), notem nome at agora. Pois no teramos um nome comum para nomear os Mimos de58 H grande controvrsia quanto ao sentido de mmese em Aristteles, o que se reflete nas escolhas para atraduo do termo. As edies mais antigas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Bruna, Gallavotti) vertem otermo por imitao. Dupont-Roc e Lallot (cujo livro sobre aPotica de 1980) chamaram ateno para ainconvenincia dessa traduo e optaram por representao. H ainda a possibilidade de deixar o termo comono original, mmese. Halliwell procede assim e essa a soluo adotada aqui, ainda que isso deixe o textopouco fluente quando o caso de traduzir o verbo correlato: mimetizar no do portugus corrente, e realizara mmese, outra opo possvel, torna a leitura carregada. A soluo no compromete o tradutor com nenhumatese a respeito do que seria mmese, o que uma estratgia escrupulosa em se tratando de um termo controverso.

    59 Nenhum dos tradutores consultados chega a colocar em questo se esta frase final do pargrafo (no domesmo modo, em grego,m ton auton tropon) se refere apenas ao ltimo dos trs critrios de diferenciao dasartes mimticas ou a todos eles; todos traduzem da forma proposta aqui, o que parece mais natural, dado que oltimo dos trs critrios apresentado por meio de um advrbio (heters) e a frase tem tambm um carteradverbial. Nada impediria, porm, que omodo da mmese englobasse os meios, os objetos e o...modo demmese, ainda que disso resultasse uma desconfortvel polivalncia terminolgica, o que no raro emAristteles. Como cada um dos trs critrios de diferenciao abordado na seqncia do texto, esta passagemno chega a gerar dvidas. Rostagni fala, a respeito da frase toda (heters kai m ton auton tropon) de uma nointil abundncia verbal, tpica de Aristteles: cf. exemplos similares em XV, 54 a 30, XXVI [sic], 60 a 11-12;16 (ARISTTELES, 1945, p. 4) (traduo nossa). Talvez Aristteles tenha considerado que o advrbioheters poderia se prestar a confuses, j que ele pode ter como sentido tambm de uma ou de outra maneira (poroposio aamphoters, de ambas as maneiras). Conservou-o, para respeitar o paralelismo com os outroscritrios de diferenciao, tambm eles apresentados por palavras da mesma famlia deheters, e resolveuexplicit-lo por meio de uma frase explicativa introduzida porkai. Esta a hiptese que fundamenta a traduoapresentada.

    60 Flauta de P.

    61 Carter, afeces e aes so conceitos importantes da tica aristotlica. Esse o primeiro momento, naPotica, em que conceitos ticos relevantes so mencionados. O ponto antecipa e anuncia o captulo 2, que tratados objetos da mmese, e prenuncia um tema importante do tratado, as relaes entre a poesia e a tica, queculminam na definio da tragdia como a imitao de uma ao e no arrolamento do carter e do pensamentocomo partes da tragdia.62 Desacompanhados de msica, entenda-se

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    Sfron e Xenarco e os dilogos socrticos63 nem se a mmese fosse feita emtrmetros, ou dsticos elegacos, ou em algum outro esquema mtrico, exceto porqueos homens, unindo o fazer ao metro, chamam uns de poetas elegacos, outros depoetas picos, declarando-os poetas no a partir da mmese realizada, mas deacordo com o metro usado. Pois mesmo se fosse publicada matria mdica oufisiolgica em metro, o costume cham-los assim. Mas nada de comum h entreHomero e Empdocles, exceto o metro. Por isso a um costuma-se chamar com justia poeta e, ao outro, antes naturalista que poeta. O mesmo se daria se algumrealizasse a mmese misturando todos os metros, exatamente como Quermon fezem Centauro , uma rapsdia mista de todos os metros: tambm ele deve ser

    declarado poeta64.Seja esse assunto, ento, dado por definido dessa maneira. Mas h algumas

    artes que fazem uso de todos esses meios mencionados, quero dizer, fazem uso doritmo, da melodia e do metro, como a poesia dos ditirambos e dos nomos65, ou acomdia e a tragdia: diferenciam-se, porm, porque aquelas fazem uso de todos osmeios ao mesmo tempo, mas essas fazem uso deles por partes.

    Essas so, ento, as diferenas entre as artes quanto aos meios em que se

    realiza a mmese.

    63 H referncia aos dilogos socrticos tambm na Retrica, em 1417 a 21. Talvez se trate no dos dilogosescritos por Plato, mas de um gnero literrio.

    64 Aristteles d um carter essencialista mmese realizada e um carter acidental ao metro utilizado.

    65 Segundo West ([1994], p. 215-217) O termo nomos tem uma ampla gama de significados: pode ser usado,em um contexto no tcnico, para qualquer tipo de melodia. Aqui, entretanto, provavelmente refere-se scomposies com acompanhamento de ctara (j que a ambincia do texto ateniense) usadas em ocasiesformais, como sacrifcios, funerais, festivais, etc...

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    Uma vez que aqueles que realizam a mmese realizam a mmese66 depessoas que agem 67, 68, e essas forosamente so virtuosas ou viciosas (pois ocarter quase sempre segue apenas estes registros: pois todos se diferenciamquanto ao carter pelo vcio e pela virtude69), ou melhores que ns, ou piores, ou taisquais (exatamente como os pintores: Polignoto figurou melhores; Pausnias, piores;Dionsio, iguais), evidente que cada uma das mmeses mencionadas ter essasdiferenas70, 71, e ser diferente por, dessa maneira, mimetizar coisas diferentes.

    66A repetio existe tambm no original grego, s que de forma mais elegante, pelo uso do particpio presente junto ao verbo conjugado. Em portugus, o trecho destoa, situao agravada pela opo de usar a perfrase

    realizar a mmese, que o sobrecarrega (ver nota 9 do captulo 1).

    67 pessoas que agem a perfrase em portugus do particpio presente grego prttontas. Preferiu-se a perfraseao substantivo agentes, ele prprio na sua raiz tambm um particpio presente latino, mas ao qual o usoagregou outros significados que acrescentariam frase outros possveis sentidos alheios a ela.

    68 Aqui se diz que a mmese tem por objeto pessoas que agem, ao passo que, na definio de tragdia,apresentada no incio do captulo 6 (1449 b 24-28), diz-se que ela, a tragdia, a imitao de uma ao. Aquesto no de pouca importncia, uma vez que a ao, identificada ao mito, a parte mais importante datragdia, seu princpio e como que sua alma (1450 a 38). Acrescente-se a isso o fato de que o mito tem oprimeiro lugar em detrimento mesmo do carter dos personagens, como afirma expressamente Aristteles em1450 a 16: A tragdia mmese no de homens, mas de uma ao e da vida. Cabe chamar a ateno para o queparece ser uma divergncia entre o captulo 2 (a mmese uma mmese de pessoas que agem, e essas, as pessoas,so virtuosas ou viciosas) e o captulo 6 (a tragdia a mmese de uma ao virtuosa ou, conforme propomos,mmese de uma ao em que a virtude est implicada (cf. nota 5 do captulo VI) o que, para a tragdia, maisimportante que o carter de quem age). Primeiro devemos nos acautelar contra uma possvel objeo: oparticpio presente grego prttontas, traduzido pela perfrase pessoas que agem (ver nota 2) no permite que seescolha de forma inequvoca qual a sua nfase, se no sujeito da ao (as pessoasque agem) ou se na aopropriamente dita (as pessoas queagem) e, na segunda hiptese (se ele se centra na ao), no haveria grandedistncia entre os captulos 2 e 6: se trata, nos dois casos, de privilegiar a ao. Entretanto, a seqncia docaptulo 2 no deixa dvidas: os agentes que so ditos virtuosos ou viciosos, do carter deles que o tratado sevale para distinguir as diferentes artes mimticas. Se h um propsito em focar o agente, isso s pode serentendido como um meio mais adequado para chegar finalidade do captulo, que distinguir as diferentes artesmimticas, notadamente a tragdia da comdia. mais evidente que oshomensso virtuosos ou viciosos. Essaforma de apresentar o assunto est de acordo com o trecho da Fsica citado na nota 6 do captulo 1 (Fsica I - 184a 16 et seq.): o percurso do conhecimento se faz a partir do que mais cognoscvel e claro para ns em direoao que mais cognoscvel e claro por natureza. Tambm no se deve excluir a hiptese de que, ainda que atragdia seja a mmese de aes, e que nela a ao ocupe um lugar de destaque, o mesmo no necessariamente sed nas outras artes mimticas: no incio do captulo 5 se diz que a comdia a mmese de homens viciosos, semque se privilegie a ao. E ainda uma questo em aberto saber at que ponto a msica pode mimetizar aes.Ela parece mimetizar antes caracteres (Poltica - VIII, 6, 1340 a 18-39). O captulo 2, abrangendo sem distinotodas as artes mimticas, deve centrar-se no que mais comum a todas.

    69 Vcio e virtude so conceitos ticos que aqui entram sem mais detalhes e que no fazem jus, pela sua simplesmeno, s nuances da psicologia moral aristotlica. Entretanto, so suficientes para diferenciar a tragdia dacomdia.

    70 O esquema sinttico que a traduo adota foi usado por Dupont-Roc e Lallot e defendido por Lucas(ARISTTELES, 1998b, p. 63), que afirma que tambm Gudeman e Sykutris utilizaram-no em suas edies.Mas esse no o ponto de vista de outras tradues consultadas (Hardy, Bywater, Eudoro de Sousa, Gallavotti,Halliwell, Gernez) e do comentrio de Rostagni (ARISTTELES, 1945, p. 10, nota linha 1448 a 4), todos

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    unnimes em considerar certamente ou melhores que ns, ou piores, ou tais quais como a orao principal doperodo, tendo como subordinadas a ela as oraes uma vez que aqueles que realizam a mmese realizam ammese de pessoas que agem e essas forosamente so virtuosas ou viciosas. Se observarmos a conexolgica entre as frases,

    1. quem mimetiza mimetiza pessoas em ao2. pessoas so necessariamente virtuosas ou viciosas3. quem mimetiza mimetiza pessoas que so melhores, piores ou iguais a ns,

    veremos que 3 antes uma espcie de trusmo, alm de no ser concluso lgica natural de 1 e 2. Muito maisadequado parece o seguinte esquema:

    1. quem mimetiza mimetiza pessoas em ao2. pessoas so necessariamente virtuosas ou viciosas3. (so ou melhores que ns, ou piores, ou semelhantes)4. evidente que cada uma das mmeses mencionadas ter essas diferenas,

    Neste caso, 3 aparece como uma explicitao de 2 e 4 apresenta-se como a verdadeira concluso, de valorrelevante inclusive para o objetivo anunciado no captulo 1: diferenciar as artes mimticas quanto ao objeto doqual se faz a mmese. As diferentes opes de traduo no chegam a obscurecer o ponto 4, de modo que aobjeo que aqui se levanta contra as outras tradues no chega a comprometer o entendimento que elasoferecem do assunto. Mas se poderia objetar que 4, para servir como apdose, como concluso do raciocnio,no poderia ter associada a ela a partculade, na expressodlon de hoti( evidente que). No usual, de fato,que uma apdose seja introduzida assim. Mas Denniston (1954, p. 180) d um exemplo de apdose comde na Retrica (1355 a 2-14, sendo que a apdose est em 1355 a 10), em um trecho, assim como naPotica, cujaprtase se inicia comoepei de(uma vez que), seguida de outras prtases introduzidas comde para finalmentechegar a uma apdose que se inicial comdlon de hoti( evidente que).Dessa passagem Jaime Bruna tem uma outra traduo ainda, que, apesar de, a nosso ver, ser equivocada, mereceanlise. Ele traduz: Como aqueles que imitam imitam pessoas em ao, estas so necessariamente ou boas oums... (ARISTTELES, 1997, p. 20). Ou seja, para Bruna, 2 a orao principal, concluso lgica de 1. Quemage necessariamente bom ou mau. Como sua traduo no tem notas, no possvel saber seus reais motivos,mas interessante observar que ela estaria de acordo com uma anlise daPotica que desse ao termo grego prxis, ao, um sentido estritamente tico: segundo tal ponto de vista, a prxisno seria uma ao qualquer,mas uma ao de carter moral relevante, uma ao na qual certamente haveria uma escolha deliberada entredois extremos, sendo que essa ao seria virtuosa quando escolhe o meio entre os extremos, e viciosa quandoerra essa meio. NaPotica possvel ler, por vezes, a prxisnessa chave, inclusive quando o termo aparece depar comenergin, que significaria uma ao desprovida de relevncia moral (por exemplo, em 1448 a 23).

    71 Ainda em relao a esse primeiro pargrafo, seria pertinente perguntarmo -nos como uma diviso binria(virtude/vcio) pode dar origem tripartio melhores que ns/iguais/piores que ns. Colocando a questo deoutra maneira, como se explica a relao entre as frases 2 e 3 (numeradas na nota anterior)? Else(ARISTTELES, 1994, p. 83, notas 18 e 20), para contornar essa dificuldade, sugeriu que a meno a pessoastais quais, bem como a meno, entre os pintores, a Dionsio, fosse uma interpolao. Baseava-se ele no fatode que no h, no restante daPotica, meno parte da doutrina que deveria tratar da imitao de homens taisquais ns. No entanto, os manuscritos no autorizam a hiptese. Mesmo se adotssemos a hiptese de Else, adificuldade da relao entre 2 e 3 no estaria totalmente resolvida. Ela surge do fato que 2, ao fazer referncia aconceitos ticos, parece prescindir de uma referncia explcita a um termo de comparao. Um homem ditovirtuoso no em relao a seus pares, mas por possuir uma disposio deliberativa relativa a uma mediedade (avirtude definida assim, natica Nicomaquia, em 1106 b 36). Como ento 3 faz surgirex abruptoumareferncia a um genrico ns? Isso no parece um lapso, uma vez que a frase final do captulo (homens pioresque os de agora) refora a idia de um referencial externo. Dupont-Roc e Lallot (ARISTTELES, 1980, p. 157-158, nota 4), na tentativa de resolver a questo, fazem intervir aqui um distanciamento entre o plano darealidade, em que os homens so ditos virtuosos ou viciosos, e o plano da representao. A mmese opera nosentido de transformar seu modelo (que participa de uma lgica binria fundamentada na realidade virtude evcio) em um objeto representado (que participa de uma lgica ternria igual, melhor ou pior que ns). funo daquele que realiza a mmese transformar acentuando a qualificao tica em direo seja do plo nobre(beltionas, melhores), seja do plo baixo (kheironas, piores), seja conservando tal qual (toioutos)(ARISTTELES, 1980, p. 157). E acrescentam:

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    De fato, tambm na dana, na aultica e na citarstica pode haver taisdessemelhanas 72, bem como nos gneros sem metrificao e nos metrosdesacompanhados. Homero, por exemplo, fez homens melhores, Cleofonte os fezsemelhantes e Hegemon, de Tasos, o primeiro a fazer pardias, e Niccares, quefez a Deilada 73 , piores. O mesmo se d a respeito dos ditirambos e dos nomos74,pois algum poderia realizar mmeses assim como Timteo e Filoxeno fizeram osCclopes .

    A mesma diferena separa a tragdia da comdia: esta quer fazer a mmesede homens piores que os de agora; aquela, de melhores.

    Esta transformao positiva, negativa ou nula de ordem propriamente tica, tempor funo distribuir as produes das diferentes artes representativas (pintura,dana, msica acompanhada de canto) entre diferentes gneros: a trade Polignoto,Pausnias, Dionsio ilustra essa repartio na pintura (ARISTTELES, 1980, p.157) (traduo nossa).

    A hiptese encontra apoio no texto daPotica, notadamente em 1454 b 8 et seq., onde se diz que o poeta, aorealizar a mmese trgica, deve moldar seus personagens, a exemplo dos pintores (a meno pintura se repete),de maneira a faz-los parecer bons. Dupon-Roc e Lallot seguem:

    Mas deve-se tomar cuidado que a transformao de ordem ticano , de direito,constitutiva dammesis: seno, como poderamos conceder o estatuto mimtico a umproduto resultante de uma transformao nula (tais quais ns), ou seja, em pintura,s obras de Dionsio? Dos captulos 4 (48 b 10 et seq.) e 15 (54 b 8 et seq.) resultarque o carter verdadeiramente constitutivo do processo de representao (mmesis) a abstrao da forma prpria (idia morph) e suarestituio (cf.apodidontes, 54 b10) na obra produzida. A variao tica vemsomar-sea esta atividade fundamentalpara diferenciar os produtos dela (ARISTTELES, 1980, p. 158) (itlicos originais,traduo nossa).

    O ponto de Dupont-Roc e Lallot, no que se refere ao carter, interessante e parece oferecer uma descriocoerente do processo de mmese quanto a esse elementos da tragdia. Podemos representar Dioniso de formanobre, como fez Eurpides, em As Bacantes, ou de forma baixa, como fez Aristfanes, em As Rs. Para aclassificao dos gneros interessa menos o carter do modelo que sofre a mmese que o carter do objetoproduto da mmese. Entretanto, como descrio do processo geral de mmese baseada nessa leitura dos captulosIV e XV, vejam-se as restries discutidas na Introduo.

    72 O texto no original grego tem a mesma afirmao atenuada que a traduo: na dana, na aultica e nacitarstica pode haver tais dessemelhanas. Como dessas trs artes, ao contrrio das outras que aparecem emseqncia, no h exemplos citados, a atenuao se mantm e tentador supor que nelas tais diferenas somenos notveis, o que estaria de acordo com nossa experincia moderna. De fato, difcil, para nossasensibilidade, conceber que a msica possa mimetizar, de maneira inequvoca, um carter imoral, por exemplo.Entretanto, no caso da dana, o texto daPotica mais explcito: ela pode mimetizar carter, afeces e aes(1447 a 28).

    73 A Deilada, pelo que o nome indica (deilos + ilada) seria uma pardia da Ilada, uma Ilada de covardes(deilossignifica medroso).

    74 A respeito dos nomos, veja-se nota 16 do captulo 1.

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    Alm dessas, h uma terceira diferena: a maneira como75 algum poderiarealizar a mmese de cada um desses objetos. De fato, possvel mimetizar com osmesmos meios e as mesmas coisas tanto recitando (seja se fazendo passar poralgum outro, como faz Homero, seja sem se transformar e permanecendo o mesmo)quanto fazendo todos76 os que realizam a mmese como que agir e atuar77, 78.

    75 Aristteles segue o plano traado em 1447 a 17: depois de ter tratado dos meios de realizar a mmese (captulo1) e dos objetos da mmese (captulo 2), ele passa a tratar dos modos de mmese (comoela realizada).

    76H aqui um lapso conceitual apontado por inmeros comentadores: Aristteles passa, sem aviso, da mmeserealizada pelo poeta mmese executada pelos atores.

    77 H duas passagens textuais que devem ser confrontadas com essa. A primeira da prpriaPotica, maisexatamente no captulo 24, em 1460 a 5-10, onde se diz que Homero deve ser louvado por ser o nico entre ospoetas a no desconhecer como o prprio poeta deve colocar-se no poema. Pois o poeta deve ele mesmo falar omnimo possvel, pois no realiza a mmese agindo assim (ou seja, falando em nome prprio). Essa passagemparece excluir do domnio da mmese aquele que recita sem se transformar e permanecendo o mesmo e estem conflito com o captulo 3. Entretanto, o texto de 1460 a 5-10 parece estar em sintonia com o trecho daRepblica, de Plato, em que Scrates discute com Adimanto se os poetas devem ou no ser permitidos nacidade ideal (392-396, a segunda passagem textual mencionada) . De acordo com a distino socrtica, h anarrao simples (haple diegesis), h a narrao em que intervm tambm a mmese (caso de Homero) e h aarte toda ela mimtica (caso das tragdias e comdias). Ora, Aristteles parece distanciar-se de Plato primeiroporque d mmese um valor positivo, considerando-a inclusive mais filosfica e virtuosa que a histria (1451 b5-6) e depois porque parece ampliar o domnio da mmese, de forma a que ela passe a conter, se nos ativermos aesse captulo 3, tambm o que Plato considerava no ser mimtico, no caso a narrao simp les (aquela que opoeta realiza permanecendo ele mesmo, sem mudar). Como no h nocorpus aristotlico uma definiointensiva de mmese, foroso buscar reconstituir o que seria sua teoria de forma extensiva, ou seja, a partir damaneira como ele faz uso do termo nas diversas passagens em que ele aparece. Assim sendo, torna-se importantedar um sentido ao conflito que h entre os captulos 3 (o poeta que recita permanecendo ele mesmo realiza umammese) e o captulo 24 (o poeta no realiza a mmese a no ser quando deixa de falar ele mesmo). Claro estque os trechos, tomados ao p da letra, so inconciliveis. Halliwell, por exemplo, dedica todo um captulo deseu livro mmese, e prope que, em Aristteles, a mmese vale como um enactment, termo que traduziramospor personificao (HALLIWELL, 1998, p. 109-137). A seu ver, a discrepncia entre os captulos 3 e 24 apenas o mais bvio sintoma de uma tenso subjacente no tratamento que Aristteles d mmese(HALLIWELL, 1998, p. 127). Se h essa tenso, foroso reconhecer, entretanto, que ela no se resolve.Woodruff considera a posio de Halliwell quanto mmese equivocada e pretende que o trecho do captulo 24seja o nico momento, daPotica, em que a mmese est confinada personificao no modelo estreito de RepblicaIII (WOODRUFF, 1992, p. 79). Para Woodruff, no temos razo para duvidar que uma teoriaaristotlica unificada da mmese possa ser conseguida (WOODRUFF, 1992, p. 82). De qualquer forma, osrequisitos para uma teoria aristotlica da mmese devem levar em conta trs aspectos a serem relacionados(talvez at compatibilizados) entre si: a mmese musical, a mmese na pintura e a mmese literria, por assimdizer. Woodruff, no seu artigo, consegue unific-los, ainda que a mmese musical dependa de uma interpretaobastante particular. Halliwell v nesses trs aspectos, notadamente entre a mmese na pintura e a mmeseliterria, tenses que indicariam uma tentativa de Aristteles de dar teoria da mmese uma abrangncia queela no encontra em Plato. A mmese, em Aristteles, de acordo com Halliwell, seria um fundamento das artesem geral. No toa que ele traduz 1447 a 12-13 da seguinte forma: comeando, de maneira natural, dosprimeiros princpios. A mmese , para Halliwell, um primeiro princpio da arte potica, e mesmo das artes emgeral, com toda a carga conceitual que essa expresso tem no vocabulrio aristotlico. Se, no entanto,entendermos 1447 a 12-13 de uma outra maneira, sem toda essa carga conceitual (cf. nota 6 do captulo 1),talvez possamos supor que Aristteles usa o termo mmese de uma maneira no necessariamente unificada, nemtalvez conceitualmente forte. Mas isso apenas uma sugesto de encaminhamento do tema. Resolver acontrovrsia da mmese no espao de uma nota de rodap (ainda que longa) certamente no nossa pretenso.

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    nessas trs diferenas que se faz a mmese, conforme dissemos desde o incio: nosmeios, nos objetos e no modo. De modo que, de uma maneira, Sfocles faz ammese assim como Homero, pois ambos mimetizam pessoas virtuosas, mas, deoutra maneira, Sfocles seria como Aristfanes, pois ambos m