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Ivia Minelli - Priscila Pereira / El gaucho tiene quien lo dibuje. Estudo da imagem gaucha... Miradas desde la Historia social y la Historia intelectual. América Latina en sus culturas: de los procesos independistas a la globalización 453 El gaucho tiene quien lo dibuje. Estudo da imagem gaucha e de suas reapropriações a partir das edições ilustradas do Martín Fierro Ivia Minelli * Priscila Pereira ** Desde a publicação de La vuelta de Martín Fierro em 1879, o poema de José Hernández tem sido acompanhado de uma série de ilustrações e comentários gráficos que tentaram dar um rosto a este famoso personagem da literatura argentina. Artistas reconhecidos como Juan Castagnino e Carlos Alonso estão entre os que se dedicaram à tarefa de desenhar ao gaucho hernandiano, e aceitaram o desafio de dar vida à “pena extraordinária” narrada/ cantada por Fierro. De modo geral, estas edições ilustradas estiveram de acordo com a leitura monumentalizada do poema, ou, pelo menos, coincidiram no ponto de que deveriam exaltar ao escrito. Neste sentido, este artigo tem o objetivo de apresentar uma leitura das ilustrações do Martín Fierro publicadas ao longo do tempo, particularmente de quatro edições ilustradas produzidas em momentos distintos da historia nacional. As edições escolhidas são: a de 1879, desenhada por Carlos Clérice, e considerada a primeira ilustração do poema; a de 1960, ilustrada pelo artista plástico Carlos Alonso e que se diferencia das demais por causa de seu expressionismo plástico; a de 1962 de Juan Castagnino, conhecida por ser a mais conhecida ilustração do Martín Fierro; a de 2004, que ficou sob os cuidados do quadrinista Roberto Fontanarrosa. A partir da análise destas imagens, pretende-se demonstrar que ao redor do espaço gauchesco foi construída uma rede de significados políticos, que remetem a esquemas explicativos da historia nacional e a disputas pela voz do Outro e pela definição de seu papel na configuração da nação. Além disso, é possível ler estes trabalhos gráficos como expressão da permanência da gauchesca no interior da cultura argentina, de modo a se criar, através de um espaço originalmente literário, outras instâncias de enunciação que destacam a presença de um tipo de “saber” que permanece até os dias de hoje. * Aluna de mestrado do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na área de Política, Memória e Cidade, com pesquisa em História da América Independente. ** Aluna de doutorado do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na área de Política, Memória e Cidade, com pesquisa em História da América Independente.
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El Gaucho Tiene Quien Lo Dibuje_Minelli - Pereira

Nov 24, 2015

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Paulo Barsena
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  • Ivia Minelli - Priscila Pereira / El gaucho tiene quien lo dibuje. Estudo da imagem gaucha...

    Miradas desde la Historia social y la Historia intelectual.Amrica Latina en sus culturas: de los procesos independistas a la globalizacin

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    El gaucho tiene quien lo dibuje. Estudo da imagem gaucha e de suas reapropriaes

    a partir das edies ilustradas do Martn Fierro

    Ivia Minelli*Priscila Pereira**

    Desde a publicao de La vuelta de Martn Fierro em 1879, o poema de Jos Hernndez tem sido acompanhado de uma srie de ilustraes e comentrios grficos que tentaram dar um rosto a este famoso personagem da literatura argentina. Artistas reconhecidos como Juan Castagnino e Carlos Alonso esto entre os que se dedicaram tarefa de desenhar ao gaucho hernandiano, e aceitaram o desafio de dar vida pena extraordinria narrada/cantada por Fierro. De modo geral, estas edies ilustradas estiveram de acordo com a leitura monumentalizada do poema, ou, pelo menos, coincidiram no ponto de que deveriam exaltar ao escrito. Neste sentido, este artigo tem o objetivo de apresentar uma leitura das ilustraes do Martn Fierro publicadas ao longo do tempo, particularmente de quatro edies ilustradas produzidas em momentos distintos da historia nacional. As edies escolhidas so: a de 1879, desenhada por Carlos Clrice, e considerada a primeira ilustrao do poema; a de 1960, ilustrada pelo artista plstico Carlos Alonso e que se diferencia das demais por causa de seu expressionismo plstico; a de 1962 de Juan Castagnino, conhecida por ser a mais conhecida ilustrao do Martn Fierro; a de 2004, que ficou sob os cuidados do quadrinista Roberto Fontanarrosa. A partir da anlise destas imagens, pretende-se demonstrar que ao redor do espao gauchesco foi construda uma rede de significados polticos, que remetem a esquemas explicativos da historia nacional e a disputas pela voz do Outro e pela definio de seu papel na configurao da nao. Alm disso, possvel ler estes trabalhos grficos como expresso da permanncia da gauchesca no interior da cultura argentina, de modo a se criar, atravs de um espao originalmente literrio, outras instncias de enunciao que destacam a presena de um tipo de saber que permanece at os dias de hoje.

    * Aluna de mestrado do programa de ps-graduao em Histria da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na rea de Poltica, Memria e Cidade, com pesquisa em Histria da Amrica Independente.** Aluna de doutorado do programa de ps-graduao em Histria da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na rea de Poltica, Memria e Cidade, com pesquisa em Histria da Amrica Independente.

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    Por que voltar ao texto hernandiano?

    Estudar tantas vezes uma mesma obra, encontrar milhares de exemplares diferentes em cada livraria visitada ou, ainda, perceber referncias constantes ao mesmo livro em outros campos da produo cultural (cinema, msica, novela, jornais, etc.) pode gerar no leitor um sentimento de esgotamento ou cansao, decorrente da pergunta: por que voltar a este texto mais uma vez?. Acrescido a isso, pode-se citar a reiterao e engessamento do relato que as obras consideradas clssicas costumam padecer, e que resultado do prprio processo de canonizao e consagrao literrio.

    Este parece ser o caso do Martn Fierro, poema escrito pelo jornalista e poltico Jos Hernndez nos anos 1870 argentinos. Ainda hoje, no h uma s imagem do gaucho e de seus adereos que no nos faa lembrar o protagonista hernandiano, situao com a qual contribuem os inmeros volumes ilustrados que encontramos de El gaucho Martn Fierro (1872, 1 edio) e de La vuelta de Martn Fierro (1879, 1 edio). Diante dessa constncia que a memria cotidiana argentina revela, perguntamo-nos: por que continuar a estudar tal obra? Como podemos nos aproximar de um texto to explorado pelos prprios argentinos? Enfim, por que seguir falando do poema de Hernndez?

    Estas e outras indagaes norteiam os motivos pelos quais escolhemos abordar neste artigo o tema das ilustraes do Martn Fierro. Primeiramente, no temos correspondentes no Brasil de uma narrativa literria to significativa para a consolidao de nossa memria histrica, assim como no encontramos um livro que perpasse geraes e una os brasileiros numa perspectiva identitria. lgico que alguns livros poderiam ser aqui lembrados como referncias ao nosso passado literrio e como representativos de uma suposta brasilidade, mas em nenhum deles tal reflexo estaria atrelada sua autoria e suporte de origem.1

    Em segundo lugar, interessante observar que compartilhamos dessa cultura da ilustrao de clssicos literrios, preenchendo nossas livrarias com edies de obras como Dom Quixote e A Divina Comdia, mas no possumos exemplares nacionais com tais caractersticas. No caso do Brasil, no se sabe se por sorte ou por azar, no houve um Homero, um Virglio ou um Cames que cantasse em chave pica as supostas glrias do passado de nosso povo. Neste sentido, o caso argentino, com a monumentalizao do poema Martn Fierro, seguido de sua elevao pica nacional2, nos parece curioso.3

    preciso dizer tambm que no existem estudos no nosso pas sobre este tema, e tanto o texto como as ilustraes do Martn Fierro so pouco conhecidos por l. No obstante, se levarmos em considerao a fortuna crtica e a importncia histrica desta obra para os argentinos, pode-se justificar uma aproximao ao poema hernandiano. Assim, queremos abordar a obra Martn Fierro a partir de suas ilustraes porque, alm de estas renderem tributo ao mais famoso poema argentino, elas mostram como so rearticulados os temas gauchescos para o contexto evocado, imputando narrativa criada por Hernndez uma condio atemporal e prxima ao mito.

    Finalmente, pode-se argumentar que a permanncia de uma obra e sua consagrao para alm dos seus limites literrios pode indicar a atualidade de certa tradio, bem como a fora de uma memria coletiva que se recicla com o passar do tempo. Ora, isso por si s j possui relevncia e interesse histricos, pois coloca em evidncia as representaes e imaginrios sociais vigentes numa determinada sociedade.4 Afinal, e citando talo Calvino, clssico aquilo que persiste com rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatvel.5

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    Como ler uma obra ilustrada?

    A despeito das discusses sobre a grandeza e valor literrio do poema de Hernndez o que justificaria a encomenda de uma edio ilustrada do Martn Fierro -, gostaramos de fazer alguns apontamentos sobre a relao entre texto e imagem, para tratarmos na sequencia do histrico das ilustraes. Partindo do pressuposto de que qualquer edio ilustrada e/ou adaptao literria se constitui como uma obra autnoma, que no deve ser avaliada em termos de fidelidade ao original, recusamos qualquer chave de leitura destas imagens pautada na relao modelo / cpia. No nosso entendimento, nem a obra literria portadora de um sentido unvoco e monoltico, nem a ilustrao funciona como a apoteose de um texto, conferindo-lhe um sentido interpretativo ltimo.

    Isso significa dizer que, por mais que as ilustraes do Martn Fierro possam ser situadas no campo maior da gauchesca, no possvel reduzir um sistema ao outro. Uma coisa so as discusses relativas ao campo literrio ao qual o poema se insere; outra, completamente diferente, so as questes prprias do campo da cultura visual na qual as imagens esto circunscritas. Em outras palavras, a percepo de que artes diferentes trabalham o sentido esttico de modo distinto um conceito primordial para lidarmos com adaptaes, 6 o que se aplica perfeitamente ao caso das edies ilustradas.

    Talvez um caminho interessante seja ver tais ilustraes como um comentrio obra, uma leitura possvel da mesma. Obviamente, em se tratando de verses ilustradas de clssicos da literatura, impossvel no pensarmos nas razes para a criao das mesmas, geralmente feitas sob encomenda e com o propsito de prestar uma homenagem obra em questo. Todavia, deve-se pensar tambm que, uma vez realizado o trabalho ilustrativo, tais imagens adquirem um significado que vai muito alm do mero sentido ilustrativo que lhes foi atribudo. Inclusive, a relao entre artes visuais e literatura pode ser explorada com vistas a se fazer uma histria da recepo da obra, ou, antes, uma histria da sua fortuna crtica.

    Saber ilustrar implica tener conciencia cualitativa del contenido de la obra que se va a ilustrar. Es decir, para responder a las partes del poema Martn Fierro tuvo que tener conocimiento de la lengua del poema y de las experiencias humanas que trata. Tambin tuvo el ilustrador que encararse con los problemas de interpretacin y de juicio, y tuvo que pronosticar lo que l podra representar visualmente con el mrito artstico con que fue escrito el poema. Lo que dibuje ser el resultado de su seleccin, de su enfoque y de su tcnica. Y las ilustraciones sern su crtica por apreciacin del poema.7

    Tomando, portanto, estas trs dimenses em considerao (seleo, enfoque e tcnica) faremos a anlise das quatro ilustraes selecionadas do Martn Fierro. Seguiremos tambm as pistas presentes no trabalho da historiadora Paula F. Vermeersch, que realizou um estudo sobre os desenhos de Sandro Botticelli para A Divina Comdia. No seu trabalho, a pesquisadora traou o seguinte caminho para analisar esta produo da renascena italiana: primeiro, fez o mapeamento iconolgico, comparando os desenhos de Botticelli com fontes visuais precedentes e contemporneas; em seguida, Vermeersch desenvolveu um estudo da relao entre as imagens e as fontes literrias que lhe serviram de inspirao, buscando entender o debate intelectual da poca.8 Finalmente, para desenvolver esta pesquisa, a autora se apoiou nos aportes metodolgicos oferecidos pela linha de investigaes sobre a relao entre texto literrio e imagem, proposta principalmente pelos intelectuais ligados

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    ao Instituto Warburg (...).9

    Um ltimo ponto que queramos tocar diz respeito aos cuidados necessrios para no reduzir a obra ao contexto histrico, nem tampouco fazer dela um campo absolutamente autnomo e livre de quaisquer lastros sociais. Como bem lembrado por Zoila Nelken, deve-se considerar algumas variveis importantes na hora de se avaliar as questes estticas de uma obra ilustrada, como o caso, por exemplo, das sadas narrativas encontradas pelo artista para desenhar determinada cena ou, mesmo, a materialidade do suporte que receber as imagens. Porm, tambm no se pode fazer vista grossa para as discusses poltico-sociais que envolveram a criao de uma obra ilustrada, de modo a se reposicionar a reflexo sobre a historicidade de suas imagens.

    Martn Fierro: a conformao de um debate poltico-esttico

    Embora Martn Fierro seja a obra mais ilustrada na Argentina, sendo este poema evocado como o sinnimo de argentinidade, importante lembrar que no foi com La vuelta que comeou a tradio de representar visualmente o gaucho. O poema recupera uma abundante iconografia gaucha articulada ao longo do sculo XIX nas telas de Carlos Morel, Carlos Pellegrini, Lon Pallire, entre outros, que j apresentavam os atributos descritos por Martn Fierro sobre o gaucho cantor, as payadas e a figura do leitor nas pulperas.10 interessante notar que boa parte destes pintores eram viajantes franceses que percorriam a regio do Rio da Prata, sendo responsveis pela criao de um modo de representao de tipos rurais baseada num olhar orientalista e que bebia de fontes literrias, sobretudo textos escritos por D. F. Sarmiento e autores da literatura gauchesca.11

    Alm dessas pinturas pertencentes ao gnero pictrico do costumbrismo rural, houve outras imagens do gaucho que podem ter servido como fonte de inspirao para o trabalho de Clrice. Este pode ter sido o caso das gravuras e vinhetas que costumavam acompanhar os folhetos gauchescos e gauchipolticos de autores como Hidalgo e del Campo, e que gozavam de bastante popularidade naquela poca.

    Neste sentido, fica claro que o ilustrador escolhido por Jos Hernndez para desenhar cenas de La vuelta de Martn Fierro baseou seu trabalho numa iconografia j existente, utilizada com o fim de conferir credibilidade ao relato visual, alcanar aceitao popular e exaltar ao escrito.12 Contudo, a grande novidade que teria trazido a primeira ilustrao de Martn Fierro, na defesa do seu prprio autor, seria uma aproximao indita entre o texto escrito e a ilustrao,13 esta como parte constitutiva do corpo do poema apenas na segunda parte. As dez gravuras que compem La Vuelta foram encomendadas a Carlos Clrice, litgrafo, ilustrador e cartunista argentino que estudou seu ofcio na Frana como discpulo do desenhista Henri Meyer (1844-1899), sendo este fundador e diretor do peridico argentino El Mosquito.14 Clrice ficou conhecido nos anos 1870 por suas contribuies a vrios peridicos satricos, as quais o relacionavam a tendncias modernas e ilustradas do perodo. Assim, fora considerado por Hernndez como boa referncia para ilustrar e melhorar a continuao de Martn Fierro. No prlogo intitulado Cuatro palabras de conversacin con los lectores, o autor assim apresenta o novo poema:

    Lleva tambin diez ilustraciones incorporadas en el texto, y creo que en los dominios de la literatura es la primera vez que una obra sale de las prensas nacionales con esta

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    mejora. As se empieza. Las lminas han sido dibujadas y calcadas en la piedra por D. Carlos Clrice, artista

    compatriota que llegar a ser notable en su ramo, porque es jven, tiene escuela, sentimiento artstico, y amor al trabajo. El grabado ha sido ejecutado por el Sr. Supot, que posee el arte, nuevo y poco generalizado todava entre nosotros, de fijar en lminas metlicas lo que la habilidad del litgrafo ha calcado en la piedra, creando o imaginando posiciones que interpreten con claridad y sentimiento la escena descrita en el verso.15

    Por terem sido encomendadas pelo autor da obra, Nelken nos chama a ateno para o didatismo oferecido pelas imagens, uma vez que elas surgem com o propsito de descrever o poema.16 Essas lminas podem ser consideradas costumbristas, pois ilustram o gosto, os costumes e as indumentrias de uma poca e, para Nelken, representam uma crtica positiva do poema, por suas propostas estarem definidas no prprio texto.17 Percebe-se que a relao entre imagem e escrita foi cuidadosamente construda em Martn Fierro, o que nos sugere a busca de Hernndez pela representatividade popular da sua obra, reconhecida no seu esforo em rearticular o lugar da memria gaucha.

    Os anos 1870 e 1880 foram marcados pelos resultados do investimento educacional que o pas conheceu desde 1853, principalmente atravs de projetos impulsionados por Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888).18 Adolfo Prieto indica que, mais do que resultados eficientes, ao longo dessas dcadas conformadoras de uma Argentina moderna19 criou-se uma simpatia pela instituio escolar e Hernndez, percebendo essa transformao a partir da apreciao inicial de seu poema,20 reconhecia esse retorno educacional e apostava no discurso popular e pedaggico como soluo civilizacional.21 Logo, o recurso imagtico ajudaria na apreciao do poema, que tinha cada vez maior aceitao entre o pblico popular e cativava a existncia dos leitores coletivos.

    Un libro destinado a despertar la inteligencia y el amor a la lectura en una poblacin casi primitiva, a servir de provechoso recreo, despus de las fatigosas tareas, a millares de personas que jams han ledo, debe ajustarse estrictamente a los usos y costumbres de esos mismos lectores ().22

    Nessa primeira tentativa de identificao com um pblico leitor mais amplo, as lminas de Martn Fierro no poderiam ser, se no, costumbristas, sendo que as imagens de Clrice reafirmam o prprio movimento de homogeneizao do homem argentino desprendido do poema. E, por conta dessa sobreposio do poema e da ilustrao, abre-se espao para os deslocamentos posteriores entre a narrativa da imagem e a do texto, pois ambas as linguagens no apresentam uma descrio exata do fsico do protagonista, podendo ser ele qualquer homem interiorano; ambas no fazem uma localizao geogrfica onde a trama se desenrola, podendo ocorrer ela em qualquer deserto. De imediato, o que podemos inferir a partir da imagem e do texto que neles existe uma questo scio-poltica que transcorre num palco de intenso debate intelectual. Enfim, esses ingredientes sero bastante explorados pelos ilustradores de Martn Fierro at os dias de hoje.

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    Do olhar criollista s perspectivas transgressoras: um balano sobre as ilustraes do Martn Fierro

    Aps o aparecimento desta primeira edio ilustrada do Martn Fierro, surgiu uma srie de outras interpretaes grficas do mais famoso poema da literatura argentina. A redescoberta do texto hernandiano por Lugones e Rojas nos anos 1910, seguido de sua consagrao como o ponto culminante da produo literria daquele pas, resultou no ingresso do Martn Fierro no crculo das grandes editoras, obra para colecionadores e biblifilos. Acompanhando esta tendncia de maior preocupao grfica com a obra, apareceu uma srie de edies de luxo do poema, com ilustraes cada vez mais portentosas, e sob os cuidados de grandes nomes do cenrio artstico argentino.

    Nos anos 1930, tivemos trs importantes edies ilustradas do Martn Fierro: a de Adolfo Bellocq para a Amigos del Arte (1930), a de Alberto Giraldes para a editora de Nova York Farrar and Rinehard (1936) e a de Tito Saubidet para a edio de Domingo Viau (1937). De acordo com Nelken, o trabalho de Giraldes, tal e qual a verso apresentada por Clrice no final de 1870, traria uma viso bastante edulcorada do poema, com forte acento edificante e idealizador do homem do pampa. Com isso, alijou-se completamente o Martn Fierro do realismo vital to caro Hernndez. Em contrapartida, Bellocq teria enfatizado precisamente estes elementos realistas presentes no texto, como a violncia do gaucho e a fora da natureza. Ora, talvez tais diferenas possam ser explicadas, em parte, pela orientao intelectual/ ideolgica de cada ilustrador: enquanto Bellocq era partidrio do anarquismo e integrava o Grupo de Boedo, Giraldes era filiado ao Grupo de Florida, com tendncias mais aristocratizantes.

    Dos anos 1940, destacamos as ilustraes que ficaram a cargo de Eleodoro Ergasto Marenco (edio Cultural Argentina, 1949), Maria A. Ciordia (edio Ciordia y Rodriguez, 1949) e Osvaldo Svanascini (Ediciones Centurin, 1948). Marenco fez uma interpretao do Martn Fierro muito prxima a que Saubidet havia feito uma dcada antes, enfatizando muito mais os motivos histrico-sociolgicos do poema do que os literrios. J o comentrio grfico de Maria A. Ciordia deu um enfoque feminino obra, ressaltando o tema materno e a insero das mulheres no universo gauchesco. Finalmente, a ilustrao de Svanascini enfatizou o valor universal que o poema poderia ter, fazendo com que a imagem adquirisse certa autonomia em relao ao texto. Es otra manera de decir que el poema Martn Fierro vale como obra de arte aparte de su contenido gaucho.23

    Duas dcadas depois, o modo de representao martinferrista sofreu uma virada em relao a estas correntes mais clssicas de representao pictrica que prevaleceram at os anos 1950. Em 1960, o artista plstico argentino Carlos Alonso produziu uma edio do Martn Fierro de forte expressionismo esttico, desnudando de maneira crua e violenta o universo do gaucho hernandiano. Sua obra choca pela voracidade das linhas e espessura dos seus leos, recriando cenrios com um realismo perturbador e poucas vezes visto na histria das ilustraes do poema.24

    Outra edio que se tornou particularmente conhecida foi a que Juan Carlos Castagnino (1908 - 1972) fez para a Eudeba em 1962. Este artista ilustrou nada menos do que a edio mais vendida do Martn Fierro, motivo que fez com que seu trabalho se tornasse bastante popular e reconhecido por todos. Assim como Svanascini, Castagnino imprimiu um tom universalizante ao seu comentrio grfico, a partir do dilogo com uma tradio da histria

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    da arte de corte mais ocidental. Sob a pena deste artista, o drama vivido por Fierro parece ser o drama de toda a humanidade, o que foi feito atravs da evocao de imagens com forte carga emotiva e dramtica. Para Nelken, en la ilustracin de Castagnino lo importante es el diseo y la emocin que sugiere. Constituye crtica no verbal o por analoga, porque es tan buen arte pictrico como el poema es arte literario.25

    Nos anos 1970 houve outras edies do Martn Fierro que continuaram rompendo com o modelo de representao costumbrista anterior26. Mais recentemente, o quadrinista, escritor e humorista grfico Roberto Fontanarrosa realizou a verso martinferrista mais atual que se tem noticia, juntamente com a de Luis Scafari. Neste trabalho de 2004 publicado pelas Ediciones de la Flor, chama a ateno o tom pardico e o humor sutilmente transgressor, presente, por exemplo, nas setas com palavras explicativas de termos do jargo gauchesco-nativista, maneira de um glossrio. Nas ilustraes de Fontanarrosa, ntida a influncia da esttica dos comics, fazendo do Martn Fierro muito mais um relato de aventuras do que um texto pico ou de denncia social.

    Enfim, entre 1930 a 2004 Martn Fierro foi desenhado por 19 artistas das mais diversas procedncias e estilos, o que mostra a importncia e atualidade da obra no cenrio poltico-cultural argentino. Houve Fierros em estilo realista, feitos em nanquim, em litografia, em histria em quadrinhos... De qualquer forma, das leituras mais tradicionais s interpretaes mais transgressoras, subsiste certa exaltao do escrito, como se todos, a seu modo, rendessem tributo a este clssico da literatura argentina.

    Em suma, podemos seguir a diviso de Juan Sasturain e dizer que na tradio de desenhar o poema Martn Fierro destacaram-se dois tipos de aproximao grfica: a primeira, representada por autores como Clrice, Saubidet, Marenco, e Giraldes, baseia-se num olhar criollista e bastante tradicional, cujo foco evocar o suposto sentimento nacional presente no poema atravs de um trabalho documental e esttico. J a segunda aproximao, presente na leitura de artistas de esquerda dos anos 1960 e 1970, transformou o poema em crnica de violncias e injustias sociais, revelando claramente seu olhar militante e expressionismo comprometido.27

    Alguns temas presentes nas edies ilustradas do Martn Fierro

    Entendido que as ilustraes no funcionam segundo o esquema modelo/ cpia e mais bem introduzem um comentrio grfico obra, iniciaremos a anlise de algumas das imagens presentes nas quatro edies escolhidas. importante ressaltar que selecionamos nosso corpus documental levando em considerao temticas em comum e pontos de divergncia entre as obras de Clrice, Alonso, Castagnino e Fontanarrosa. Pautamos a anlise iconogrfica em ferramentas advindas dos campos da histria da arte28 e da nova histria poltica, e nos baseamos nos critrios de seleo, enfoque e tcnica utilizados por cada ilustrador. Finalmente, resta-nos dizer que nosso objetivo ao trabalhar com este material ilustrado foi rastrear a construo de uma tradio e de uma memria histrica, no necessariamente coincidente com os debates do campo literrio.

    Destacamos trs eixos de explorao de cada ilustrao: qual seria o foco das imagens, pensando se ele se constitui nos personagens, no cenrio, nas indumentrias, ou no prprio sentimento que elas evocam; quais seriam os motivos que levantam, sendo eles

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    de valor costumbrista, histrico-sociolgico ou, ainda, esttico-literrio; e, finalmente, a influncia que o suporte pode exercer na apresentao dessas imagens.29 Acreditamos que, pelo menos, uma caracterstica todos os autores deixam entrever nas suas obras: todas encampam a eterna vigncia de Martn Fierro como condutor de um espao de debate cujo sentido seja o nacional.

    Comecemos com o rosto que cada ilustrador deu ao Martn Fierro. Sem dvidas, a verso mais conhecida do rosto do gaucho de Hernndez a de Juan Castagnino (fig. 1). Com fortes traos expressivos e habilidade no manuseio linear das formas, chama a ateno o realismo da representao e seu carter monumental, proporcionado pelo close-up que ocupa uma pgina inteira da edio da Eudeba. No toa, portanto, que foi esta a imagem que ficou gravada no imaginrio popular como se na verdade fosse a imagem do protagonista do livro de Hernndez, o que explica tambm o sucesso desta verso de1962.

    Fig. 1 Fig. 2

    J o trabalho de Fontanarrosa se diferencia deste pela presena de traos mais sintticos e cartunizados, o que se deve claramente esttica dos comics (fig. 2). Porm, tal e qual o Fierro de Castagnino, tambm o de Fontanarrosa possui uma sobriedade que o aproxima leitura realista do poema. Para o Martn Fierro, o humorista grfico rosarino pintou gauchos caricaturescos, mas tambm os fez parecer tristonhos, caracterstica acentuada devido ferocidade do retrato do ndio. Em alguns momentos, Fierro saiu com os ombros cados, os olhos fundidos na tristeza e nostlgico pela perda de sua prenda e de seu rancho.

    Em relao ao Martn Fierro de Carlos Alonso, interessante notar que seu protagonista aparece despojado de caracteres universais, sendo apenas um gaucho como outro qualquer. Inclusive, difcil distingui-lo de outros tipos gauchescos quando o personagem aparece representado em cenas coletivas. Seu rosto s vezes focado, denunciando mais o seu sofrimento do que um intento de eterniz-lo. Ao prescindir dos atributos que converteriam Fierro num ser excepcional, este artista talvez pretendesse demonstrar o carter coletivo do drama vivido pelo personagem, que seria o drama dos setores campesinos representados por ele. Por eso, los dibujos de Alonso privilegian las escenas de la vida social, laboral y familiar del gaucho ms que ilustrar los acontecimientos que se narran en la trama.30

    Outro tema caro literatura gauchesca e que apareceu em todas as edies analisadas diz respeito representao do ndio. sabido que o mundo do gaucho se estruturou no gnero gauchesco sempre em funo de seus Outros, por antonomsia. Este outro poderia ser o estrangeiro, o negro ou o habitante da cidade, embora mais tradicionalmente a alteridade recaia no elemento indgena.

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    Fig. 3 Fig. 4 Fig. 5

    Na ilustrao de Clrice (fig. 3) o indgena aparece de costas, em posio de ataque. Ele ocupa o centro da imagem e mantm a posse da cautiva, que com gesto suplicante parece implorar ajuda. Toda a cena est investida de forte dramatismo, e se impe como se se tratasse de uma foto posada. Em contrapartida, na imagem de Fontanarrosa (fig. 4), nota-se que o indgena tambm o centro da cena, mas de outro ponto de vista. Aqui sua apario caricata e feroz, evidenciada pelos dentes destacados e a expresso medonha, se d de forma frontal. A cautiva aparece como uma figura totalmente secundria, tendo parte de seu corpo cortado pelo ilustrador. O gaucho tambm desenhado na defensiva, e tal e qual na representao de Clrice, tem uma faca nas mos. interessante notar que, nesta cena de Fontanarrosa, o enfrentamento com o ndio faz o gaucho se transformar: ele fica grotesco tambm. Alis, dos ilustradores estudados, Fontanarrosa o que mais retratou o indgena, que sempre aparece na sua obra travestido de motivos burlescos: sua representao irreverente e escrachada.

    Em oposio s duas ilustraes anteriores, Alonso focou seu olhar no duelo a cavalo envolvendo Fierro e o indgena (fig. 5). Toda a cena baseada na ao e no movimento, sugerido pelos esboos dos corpos e de elementos do cenrio, clara influncia da narrativa flmica na obra deste artista plstico. Ao contrrio das representaes de Clrice e Fontanarrosa, em Alonso o gaucho que est com as boleadeiras. O ndio porta uma lana e est representado de costas, em posio ameaadora. A cautiva est com Fierro, o que sugere que o gaucho tem o domnio da situao. A perspectiva meio area produz distanciamento: como se ns, leitores, vssemos a cena sem nenhum envolvimento emocional.

    Em Castagnino, o ndio no nem feio, nem repugnante. Representado frontalmente, vemos que ele tem rosto e expresso. A cena toda construda com elementos dramticos, destacados por uma iconografia que parece ter origem religiosa. Assim, a cautiva se parece a uma madona, assim como Fierro parece um Cristo sofrido.

    Podemos aventar a hiptese de que a representao do ndio de costas, presente tanto na lmina de Clrice como na ilustrao de Alonso, pode sugerir que a barbrie no tem rosto. De qualquer maneira, com rosto ou no, o fato que os quatro ilustradores estudados mantiveram importantes topos do gnero gauchesco, em geral, e do Martin Fierro, de modo particular. No caso da edio ilustrada feita pelo Negro Fontanarrosa, manteve-se o

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    tom de denncia e o lamento. O mesmo pode ser dito em relao ao trabalho de Alonso e Castagnino: La ferocidad del indio, la reconcentracin del gaucho, la desolacin de los perros flacos, en fin, eso que aunque pasen los aos y las mitologas se degraden, siempre ser parte inherente al espritu de Martn Fierro.31

    Outro grupo de imagens que escolhemos trabalhar refere-se s passagens de Cruz e Fierro nas tolderas, que o nome atribudo ao conjunto de acampamento indgena presentes nas fronteiras do territrio nacional. Ao final de La ida, os personagens decidem ir morar em meio aos selvagens, por desgosto que tinham em relao ao tratamento recebido do Estado argentino.

    Ya veo que somos los dos Astilla del mesmo palo:

    Yo paso por gaucho malo Y ust anda del mesmo modo,

    Y yo, pa acabarlo todo A los Indios me refalo.

    Pido perdn a mi Dios,

    Que tantos bienes me hizo; Pero dende que es preciso Que viva entre los infieles,

    Yo ser cruel con los crueles: Ans mi suerte lo quiso.

    ()All habr sigurid

    Ya que aqu no la tenemos, Menos males pasaremos

    Y ha de haber grande alegra El da que nos descolguemos

    En alguna toldera.32

    Carlos Alonso opta por enfatizar a paisagem dessa cena, mostrando a imposio da noite sobre seus personagens (fig. 6). A imagem escura, densa e com traos pouco definidos, sem que possamos distinguir o traado de Cruz e Fierro. O intuito no parece ser de mostr-los fugidios ou tensos por optarem cruzar as fronteiras da civilizao, pois a serenidade do cu, repleto de estrelas e com brisa envolvente, aponta para uma viagem tranquila e espontnea. Acreditamos haver duas referncias na composio dessa imagem: Carlos Clrice e Van Gogh. Os traos de Clrice (fig. 7) aparecem na opo pela perspectiva, que coloca os personagens em primeiro plano e deixa sugerida, ao fundo, a formao de um pequeno povoado; tambm no est presente a ideia de embate entre os dois mundos, civilizado e selvagem, que em breve se encontraro. J os de Van Gogh, aparecem na prpria escolha dos elementos em destaque. Em A noite estrelada (1889) ou em Noite estrelada sobre o Rdano (1888), podemos notar que na forma como se compe o cu as estrelas so imponentes diante dos demais elementos ele se torna elemento fundamental para a serenidade transmitida na tela.

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    Fig. 6 Fig. 7

    Uma diferena notvel na ilustrao de Clrice em relao de Alonso a clareza com que podemos definir os traos dos personagens e da paisagem que os circundam. Correspondendo aos propsitos costumbristas, o foco da imagem Fierro e o soldado Cruz, estando eles em primeiro plano e bastante caracterizados: so homens sisudos e imponentes diante dos seus cavalos; o primeiro homem, que se acredita ser Fierro, leva a indumentria completa dos gauchos, a bombacha; o soldado Cruz olha para o espectador, retirando qualquer tenso que pudesse existir na cena acreditamos que esta foi uma forma encontrada por Clrice para construir uma identificao do leitor com aquela situao narrada, a qual representa as adversidades enfrentadas pelos gauchos. Ao fundo, os indgenas, j no to bem delineados como Cruz e Fierro, so serenos e no carregam armas, numa aparente movimentao acolhedora diante dos viajantes. Podemos dizer que a prpria simplicidade do trao de Clrice, tpico das impresses periodistas do perodo, conduz nossa ateno cena narrada, muito mais do que forma como ela est representada, sem qualquer dramaticidade.

    J na imagem de Juan Carlos Castagnino sobre o cruzamento da fronteira (fig. 8), a representao da cena se d de forma fragmentada. O personagem central aparece isolado no corpo do poema e a dramaticidade da imagem se d atravs de sua vestimenta, de sua expresso fsica e da fora que o trao empregado pelo ilustrador sugere. A cena se completa na pgina seguinte, quando a paisagem natural aparece sintetizada por um nico animal: um gigantesco abutre. E assim se encerra La ida, com a perspectiva de um deserto tenebroso. A proposta de Castagnino construir na figura de Fierro um mrtir e, para isso, dispe a indumentria gaucha em seu personagem de modo a parecer que ele est coberto por um manto e, da mesma forma, significa na vincha a coroa de Cristo. Os braos cruzados levados ao peito e o olhar cabisbaixo representam o sofrimento de um homem resignado que deve cumprir seu destino. interessante notar que essa representao de Castagnino corresponde a uma narrativa interna s suas prprias obras. Desde 1952, o artista desenvolveu uma srie de trabalhos intitulados Testimonios, que retrata o sofrimento dos envolvidos em conflitos sociais ao longo da histria argentina. Em 1965, logo aps a sua verso ilustrativa de Martn Fierro, Castagnino lana um novo quadro dessa srie, no qual consolida sua representao de Cristo como o espelho dos mrtires ao deixar frente a frente Cristo crucificado e prisioneiro.

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    Fig. 8

    Por fim, valendo-se de uma linguagem prpria dos quadrinhos, a imagem de Roberto Fontanarrosa desnuda a tranquilidade com que tal relao entre ndios e gauchos fora apresentada em algumas ilustraes. A violncia, representada nas lanas indgenas que preenchem hostilmente toda a cena, colocam Fierro e Cruz como refns, ironizando a prpria expectativa do poema sobre estar entre os indgenas: menos males pasaremos. Atravs do recurso da elipse narrativa os ndios no aparecem, mas apenas suas armas , cria-se uma tenso narrativa, expressa tambm na feio dos personagens.

    Consideraes finais

    No trabalho com a obra de Jos Hernndez, ou melhor, com as verses que as ilustraes de Martn Fierro acabam nos proporcionando, interessante observar que no se trata, apenas, de um poema bastante reconhecido ou canonizado pela cultura argentina: um texto que ganhou ares atemporais e serve como base argumentativa para diferentes discursos que o invocam. Por ser to enraizado na memria coletiva do pas, ilustrar Martn Fierro parece ser uma honra, um pice artstico ou uma oportunidade. Fontanarrosa, por exemplo, que construiu um arsenal crtico em relao tradio gaucha na figura de Inodoro Pereyra, foi coroado ao final de sua vida com o convite para ilustrar a famosa obra.

    As imagens que aqui apresentamos demonstram que voltar ao drama cotidiano de Fierro implica no reconhecimento de um lugar seguro para suas narrativas imagticas, que carregam preocupaes tanto histrico-sociais quanto estticas. Esse aparente saber gauchesco, que paira como algo natural entre o discurso poltico-cultural argentino, legam obra Martn Fierro uma caracterstica de suporte, do qual se desprende uma autoridade

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    discursiva. Assim, as narrativas da imagem e a do texto andam em paralelo, mas sem uma necessria equivalncia por parte das ilustraes.

    Notas1 Casa Grande & Senzala (que no um texto literrio, mas creditado muitas vezes como tal), Iracema, Os

    Sertes, O Guarani, entre outras, so obras que remetem a um debate bastante localizado que no reverbera na boca do povo. Se ouvimos algo como unio das raas, da docilidade indgena, ou ainda do caipira/sertanejo, h uma meno velada a essas obras, sendo a sua origem desapropriada, tornando-se senso comum.

    2 A monumentalizao do Martn Fierro, assim como sua reivindicao como poema pico nacional, foi fruto das discusses que desencadearam o chamado Primeiro Nacionalismo ou Nacionalismo Cultural, movimento poltico-intelectual ocorrido na poca do Centenrio argentino. Este movimento foi responsvel pela inveno da nao e do ser argentino, a partir da reivindicao do interior como depositrio da tradio e do gaucho como seu legtimo representante. Isso num contexto no qual se temiam os supostos perigos encarnados na figura do gringo, e a ameaa de dissoluo social representada pelo trip modernizao, secularizao e imigrao. Ver: ALTAMIRANO, Carlos e SARLO, Beatriz. Ensayos argentinos. De Sarmiento a la vanguardia. Buenos Aires: Ariel, 1997.

    3 preciso ressaltar que o nmero de adaptaes de obras literrias brasileiras para outras linguagens, sobretudo quadrinhos, cresceu muito nos ltimos anos, com o fim de atender a uma demanda oriunda principalmente do campo educacional. Assim, surgiram narrativas desenhadas de livros como O Alienista, O Guarani e Triste fim de Policarpo Quaresma. Porm, o que estamos destacando a ausncia no Brasil de uma narrativa pica ou proveniente da epopeia que goze de certa unanimidade nacional e reconhecimento enquanto tal.

    4 BACZKO, Bronislaw. Los imaginarios sociales Memorias y esperanzas colectivas. Buenos Aires, Nueva Visin, 1991.

    5 CALVINO, talo. Por que ler os clssicos? So Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 15.6 ZENI, Lielson. Literatura em quadrinhos in Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos (orgs.). Quadrinhos na

    educao: da rejeio prtica. So Paulo: Contexto, 2009, p. 132.7 NELKEN, Zoila E. Las ilustraciones del Martn Fierro como crtica literaria. Hispania, Vol. 53, n 01,

    maro1970, pp. 98-102.8 VERMEERSCH, Paula. Consideraes sobre os desenhos de Sandro Botticelli para a Divina Comdia. --

    Campinas, tese de doutorado: [s.n.], 2008. 9 Ibidem. Segunda a autora, Essa escola preconizava o estudo sistemtico do mundo imagtico renascentista

    como ndice dos debates polticos, intelectuais e mesmo econmicos, no apenas num estudo formalista das obras de arte, o que torna a abordagem proposta por este escola algo bastante interessante para historiadores que no pertenam ao campo da Histria da Arte.

    10 RIVERA, Jorge B. Ingreso, difusin e instalacin modelar del Martn Fierro en el contexto de la cultura argentina. In: ELOIS, lida; NUEZ, ngel. (Coord.). Martn Fierro / Jos Hernndez. Edicin crtica. Barcelona: ALLCA XX, 2001, p. 552.

    11 AMIGO, Roberto. Beduinos en la Pampa. Apuntes sobre la imagen del gaucho y el orientalismo de los pintores franceses. En publicacin: Historia y Sociedad. no. 13. Universidad Nacional de Colombia, Facultad de Ciencias Humanas y Econmicas. Medelln. 2007.

    12 Da mesma forma, a prpria frmula potica hablar como l habl, que marca o incio do gnero gauchesco com Juan Baltazar Maciel, em 1777 o qual, no final do sculo XVIII, conseguia criar a sensibilidade de transmitir atravs do texto uma voz , tambm resgatada por Hernndez, com a finalidade de desvincular-se do debate letrado que o gnero teria se concentrado em seus desdobramentos. O que podemos identificar nessa articulao de Hernndez, diante do j tradicional espao gauchesco oitocentista, o apelo a uma memria literria e artstica, que se justifica pelo prprio contexto em que a obra foi escrita. Ver: SCHWARTZMAN, Julio. El gaucho letrado. In: LOIS, lida; NUEZ, ngel (coord.). Martn Fierro. Edicin Crtica. Madrid:

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    ALLCA XX, 2001.13 RIVERA, J. B. Op. Cit. p. 14 http://www.mav.cl/expo/martin_fierro/Clrice_comenta.htm (disponvel em 11 de Maio). Vale ressaltar que

    poucas so as fontes biogrficas disponveis sobre Carlos Clrice.15 HERNNDEZ, Jos. La vuelta de Martn Fierro. In: LOIS, .; NUEZ, . (coord.). Op. Cit. P. 261.16 NELKEN, Z. E. Op. Cit. P. 98.17 Idem.18 PRIETO, Adolfo. El discurso criollista em la formacin de la argentina moderna. Bunos Aires: Siglo XXI

    Editores, 2006, p. 27. Sarmiento teve uma longa carreira pblica na Argentina, sendo Governador de sua provncia natal nos anos 1860, assim como embaixador nos Estados Unidos e presidente argentino entre 1868 e 1874.

    19 Referenciando o moderno como momento de consolidao do Estado Nacional, assim como de sua cultura nacional.

    20 At 1878, a obra El gaucho Martn Fierro conheceu 10 edies, um nmero indito para o perodo.21 PRIETO, P. 32.22 HERNNDEZ, Jos. La vuelta de Martn Fierro. In: LOIS, E.; NUEZ, . (coord.). Op. Cit. P. 261-262.23 NELKEN, Z. E. Op. Cit. p. 101.24 Carlos Alonso (1929 -) um gravador, pintor e desenhista argentino, particularmente conhecido pelo

    seu compromisso poltico atrelado atividade artstica. Ele fez parte de um movimento chamado Nuevo Realismo, que surgiu quando alguns integrantes do Grupo de Boedo passaram a preconizar uma arte de contedo poltico e social, preocupada com o registro das partes feias da sociedade e de suas mazelas sociais. Entre as obras que ilustrou esto Dom Quixote, A Divina Comdia, El Matadero, alm de textos de Borges, Neruda e Vias. Pode-se dizer que sua arte deriva rapidamente em direo a formas cada vez mais livres e expressivas simultaneidade da imagem, ruptura do plano, uso da narrativa flmica, do comic, do pop. Cf: BERLANGA, Angel. Pinta tu aldea. Disponvel em: www.boletinargentino.com (2008). Acesso em 10/01/2011. Ver tambm: Carlos Alonso, (auto) biografa en imgenes, Buenos Aires: RO Ediciones, 2003.

    25 NELKEN, Z. E. Op. Cit. p. 102. 26 Este foi o caso dos trabalhos grficos de Di Toto, Roberto Gonzlez e Norberto Onofrio.27 SASTURAIN, Juan. Este gaucho est dibujado. Pgina 12, Domingo, 28 de octubre de 2007. Disponvel

    em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-4230-2007-10-28.html28 Nossa base terica adveio, sobretudo, dos estudos de cultura visual e de alguns aportes oferecidos pela

    Escola de Warburg via estudos de iconologia. Longe de postularmos uma autonomia do campo da histria da arte, acreditamos que objetos artsticos sofrem mediaes scio-culturais e se relacionam com o seu contexto de produo. Cf: GINZBURG, Carlo. De A. Warburg a E. H. Gombrich: Notas sobre um problema de mtodo Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e histria. So Paulo: Cia das Letras, 1989.

    29 Em 2004, Ediciones de la Flor lanou uma edio ilustrada do Martn Fierro, com 25 desenhos em branco e preto de Roberto Fontanarrosa. As ilustraes foram coloridas posteriormente por Pablo Cosgaya; Juan C. Castagnino foi convidado para ilustrar a obra pela Editora Universitaria de Buenos Aires, em 1962, que chegou a vender mais de 250 mil exemplares em quatro edies (entre formatos de luxo e populares). As ilustraes foram realizada pelo artista em tinta sobre papel, tambm no colorida; em 1960, Carlos Alonso ilustra 2 edies de Martn Fierro: ambas saem pela editora Emec com 67 desenhos, sendo que apenas 150 dos 2 mil exemplares retirados naquele ano levam 13 litografias; por fim, como incio da tradio ilustrativa da obra de Jos Hernndez, Carlos Clrice apresentou 10 litografias junto ao poema em 1879, editado pela Librera del Plata.

    30 SLATTA, Sylvia. El Martn Fierro de Carlos Alonso in GUEDICCI, Alberto. Carlos Alonso ilustrador. Buenos Aires: Editorial Fundacin Aln, 2007, p. 47. Ressaltemos que o tema rosto do Martn Fierro em plano close-up no aparece no trabalho de Carlos Clrice.

    31 ZEIGER, Claudio. El gaucho ilustrado in Pgina/12, 30/05/2004, p. 3.32 HERNNDEZ, Jos. El gaucho Martn Fierro. In: LOIS, E.; NUEZ, . (coord.). Op. Cit. P. 197; 200.