-
[T]
Aqum da biopoltica: a parte (sem parte) de Jacques Rancire
[I]
Before biopolitics: the (no) part of Jacques Rancire
[A]Eduardo Pellejero
Doutor em Filosofia Contempornea pela Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, professor da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal, RN - Brasil, e-mail:
[email protected]
[R]
Resumo
Aqum da biopoltica tm pelo menos dois sentidos quando nos
aproximamos da obra
de Jacques Rancire. Refere, por um lado, o enclausuramento da
poltica no domnio do
que ele denomina de polcia, por parte de certas formas da
filosofia contempornea,
a conta de uma relao de uma copertena entre o poder e a vida que
daria conta do
funcionamento das sociedades modernas nesse sentido, aqum
significa uma insufi-
cincia na colocao da questo, o fato de reduzir o problema da
poltica questo das
relaes de poder1. Mas aqum da poltica refere, por outro lado, a
postulao contra-
-intuitiva da poltica enquanto processo especfico, aqum de toda
a partilha policial do
sensvel, isto , da poltica entendida enquanto administrao
efetiva do comum, seja
sob suas figuras histricas hegemnicas, seja sob as suas formas
menores emergentes
nesse sentido, aqum diz respeito a um espao transcendental no
qual possvel
1 A poltica no feita de relaes de poder, feita de relaes de
mundos (RANCIRE, 1996, p. 54).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 36, p. 43-73, jan./jun.
2013
DOI: 10.7213/revistadefilosofiaaurora.25.037.DS.02 ISSN
0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons
-
continuar a colocar a questo da emancipao universal alm de
qualquer superstio
historicista, mas tambm alm de qualquer tentativa de reduo da
poltica tica.
Explorar o alcance e os limites desses dois sentidos da reserva
crtica de Rancire em
relao questo da biopoltica o modesto objeto deste artigo.
[P]
Palavras-chave: Rancire. Biopoltica. Poltica. Polcia.
Emancipao.
[B]
Abstract
Before biopolitics has two meanings when we approach the work of
Jacques Rancire. First,
it means the imprison of politics in the domain of what he calls
police by some forms of
contemporary philosophy, in the name of a relation of
implication between power and life in
modern societies in that sense, before means the failure of the
question on politics by re-
ducing politics to power. But before also means Rancire
contra-intuitive comprehension of
politics as specific process, before any partition of the
sensible in that sense, before refers
a kind of transcendental space where it is still possible to
talk about universal emancipation,
beyond any historicist superstition, but also beyond any attempt
to reduce politics to ethics.
This paper aims to explore the limits of those two elements of
the critical position of Rancire
in relation to the problem of biopolitics. [#][K]
Keywords: Rancire. Biopolitics. Politics. Police.
Emancipation.
A confrontao com os discursos que tematizam o biopoder e a
biopoltica tardia na obra de Rancire, e no surge em seus textos
principais de forma direta (a relao da poltica e da vida na leitura
de Arendt, pelo contrrio, perpassa de forma mais ou menos constante
sua reflexo, e j denunciada explicitamente em Nas bordas do
poltico, 19901). Sua interveno no debate, em todo o caso, em certa
medida for-ada por meio de entrevistas do grupo associado revista
Multitudes2,
1 O confronto com Arendt especialmente interessante no texto que
Rancire dedica questo dos direitos do homem (RANCIRE, 2004).
2 Na entrevista conduzida por Eric Alliez, tudo comea pela
tentativa de enquadrar Rancire no horizonte do pensamento sobre a
biopoltica, interpretando o par conceitual poltica/polcia em termos
de duas formas de vida (RANCIRE, 2010).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.36
-
est ligada ao que Rancire identifica como uma sobredeterminao da
poltica pela ontologia, e cuja anlise desenvolvera sob o concei-to
de arquipoltica em O desentendimento (1995)3. Perante a celebrao
generalizada do retorno da filosofia poltica, Rancire manifestava
ento uma reserva chamativa, identificando, nesse fenmeno, menos uma
redescoberta filosfica da pureza da poltica (durante muito tem-po
reduzida mscara das relaes sociais pelo marxismo) que um
esvaziamento da poltica pela filosofia (num sentido prximo, ainda
que no idntico, ao denunciado por Benjamin, na Alemanha nazista, a
mos da esttica).
A vitalidade demostrada pela filosofia poltica nas ltimas
d-cadas, em grande medida consequncia da sua redefinio a partir de
uma ontologia da vida cujas formas se desdobram em projetos de
diversos signos da genealogia do biopoder foucaultiana funda-mentao
negriana de uma biopoltica revolucionria, e da delimitao arendtiana
da vida econmica e da vida poltica filosofia da histria de tom
niilista que Agamben reconstri a partir das noes de sobera-nia e
vida nua , a vitalidade demostrada pela filosofia poltica, digo,
constitui para Rancire uma deriva dessa ordem. Procurando remeter a
fundao da poltica a modos de vida ou formas de existncia (como o
caso em Aristteles, que estabelece uma distino entre os seres
do-tados de voz e os seres dotados de linguagem), o pensamento
filosfico incorre num crculo vicioso, no oferecendo a descrio falsa
de um fenmeno verdadeiro, mas oferecendo a descrio verdadeira de um
epifenmeno4. Desconhecendo uma oposio fundamental, no entre dois
modos de vida, mas entre duas partilhas do sensvel, entre duas
estruturaes do mundo5 (a policial e a poltica), o pensamento
biopol-tico passa por alto que a poltica (e a sua impugnao da
administrao
3 Em O desentendimento, Rancire argumenta que os filsofos
polticos de todas as pocas, de Plato a Marx, e de Aristteles a
Arendt, sempre tentaram substituir a desordem prpria da poltica
pela ordem hierrquica da filosofia, remitindo a poltica a princpios
antropolgicos, metafsicos ou religiosos. Para uma compreenso da
evoluo do pensamento poltico de Rancire (PELLEJERO, 2009).
4 A simples oposio entre os animais lgicos e os animais fnicos
no pois, de forma alguma, o dado sobre o qual se funda a poltica
(RANCIRE, 1996, p. 35).
5 Isto , entre duas maneiras de dividir o espao e o tempo, de
ver e falar de objetos comuns, de ouvir ou ignorar os sujeitos
falam de tais objetos.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 37
-
policial do comum) existe apenas como suplemento de qualquer
forma de bios, de qualquer forma de subjetividade constituda, de
qualquer esfera de existncia identificvel (RANCIRE 2010, p.
76)6.
Noutras palavras, a reflexo poltica no gira em torno de modos de
vida, como poderiam ser a vida nua e a vida qualificada, a vida do
animal laborans e a do homo politicus etc., mais em torno de duas
formas de partilha do sensvel, que, aqum das apostas do biopoder e
das ten-tativas de articular uma alternativa biopoltica, Rancire
denomina de poltica e polcia (indo de encontro ao nosso modo
habitual de com-preender a poltica, isto , chamando de polcia o que
habitualmente pensamos sob a categoria do poltico7).
Chamamos geralmente pelo nome de poltica o conjunto dos
processos pelos quais se operam a agregao e o consentimento das
coletividades, a organizao dos poderes, a distribuio dos lugares e
funes e os sistemas de legitimao dessa distribuio. Proponho dar
outro nome a essa distribuio e ao sistema dessas legitimaes.
Proponho cham-la de polcia (RANCIRE 1996, p. 41).
verdade que, nisso, Rancire retoma uma noo explorada por
Foucault no prprio contexto do nascimento da biopoltica, mas
segun-do uma estratgia de apropriao que a separa da associao
habitual polcia/aparelho repressivo e tambm da problemtica
foucaultinana de disciplinarizao dos corpos ou da sociedade de
vigilncia (RANCIRE, 2010, p. 78). Rancire parece extrair da noo
foucaultia-na de polcia o seu duplo transcendental, enquanto
princpio de par-tilha do sensvel, contagem totalizante da situao,
ordem do visvel e do dizvel caracterizada pela adequao imaginria
dos lugares, das funes e das maneiras de ser, assim como pela
ausncia de vazios e
6 Uma das tpicas cenas s quais Rancire remete a sua hiptese de
que a poltica no se funda numa forma especfica de vida, mas, pelo
contrrio, o processo pelo qual uma forma de vida passa a ser
considerada (tornada visvel, audvel, competente) no mundo comum, o
de Olympe de Gouge (RANCIRE, 2004, p. 304).
7 H portanto, de um lado, essa lgica que conta as parcelas
unicamente das partes, que distribui os corpos no espao de sua
visibilidade ou de sua invisibilidade e pe em concordncia os modos
do ser, os modos do fazer e os modos do dizer que convm a cada um.
E h a outra lgica, aquela que suspende essa harmonia pelo simples
fato de atualizar a contingncia da igualdade, nem aritmtica nem
geomtrica, dos seres falantes quaisquer (RANCIRE, 1996, 41).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.38
EduardoRectangle
-
suplementos a partir da qual so definidas, num segundo momento,
as estratgias e as tcnicas de poder (RANCIRE, 2010, p. 300).
A polcia assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que
de-fine as divises entre os modos do fazer, os modos de ser e os
modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu
nome para tal lugar e tal tarefa; uma ordem do visvel e do dizvel
que faz com que essa atividade seja visvel e outra no o seja, que
essa palavra seja entendida como discurso e outra como rudo. , por
exemplo, uma lei de polcia que faz tradicionalmente do lugar de
trabalho um espao privado no regido pelos modos do ver e dizer
prprios do que se cha-ma o espao pblico, onde o ter parcela do
trabalhador estritamente definido pela remunerao de seu trabalho. A
polcia no tanto uma disciplinarizao dos corpos quanto uma regra de
seu aparecer, uma configurao das ocupaes e das propriedades dos
espaos em que es-sas ocupaes so distribudas (RANCIRE, 1996, p.
42).
Nos trabalhos de Foucault sobre a governabilidade, a polcia no
constitua apenas uma instituio ou um mecanismo no seio do Estado,
mas uma tcnica do governo, prpria do Estado:
o que, at o final do Antigo Regime, se denominava polcia no era,
ou no era apenas, a instituio policial; era o conjunto dos
mecanismos pelos quais eram asseguradas a ordem, o crescimento
canalizado das ri-quezas e as condies de manuteno da sade em geral
(FOUCAULT, 1994, p. 17 grifo nosso).
Foucault diz que essa nova configurao do poder (que en-quanto
tal no aparece at meados do sculo XVII), no nem judi-ciria, nem
militar, nem completamente poltica, e se encontra ligada
necessidade capitalista de que todos os indivduos sejam vigiados ao
prprio nvel da sua integrao s normas do trabalho, em ordem a que,
enquanto seres vivos, produzam mais fora. Polcia designa, nesse
sentido, o novo domnio no qual o poder poltico e adminis-trativo do
Estado vai concentrar sua interveno (FOUCAULT, 1994, p. 150); seu
objeto estratgico o prprio homem, em suas relaes com o prprio corpo
e com os outros homens, com os territrios e as coisas, com a
propriedade e com a produo etc. (CASTRO, 2004).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 39
-
Em resumo, o homem e tudo o que se encontra ligado sua
felicida-de. Nessa mesma medida, a noo foucaultiana de polcia
constitui um dispositivo social onde se conjugam o mdico, o
assistencial e o cultural (RANCIRE, 1996, p. 41), manifestando uma
significativa proximidade com a constituio histrica do biopoder,
isto , com esse deslocamento estratgico que faz da vida dos corpos
dos in-divduos ao fluxo das populaes um objeto dos investimentos do
poder, da sua administrao, controlo e/ou disciplinamento.
Rancire far dessa ligao o centro dos seus ataques aos discur-sos
que problematizam o biopoder, na medida em que estes se situa-riam
aqum da poltica, no domnio duma anlise restrita do exerccio do
poder, uma anlise que se limitaria a considerar a partilha policial
dos corpos e das agregaes dos corpos, uma anlise que diria apenas
respeito aos efeitos de poder na individualizao da vida e na
socia-lizao das populaes. Todavia, Rancire deduzir polemicamente
que, na medida em que a problemtica do biopoder se encontra
so-bredeterminada pela anlise do exerccio do poder, essa distncia
que a separa da poltica no pode ser desfeita sem reconfigurar os
termos do problema, sem deslocar a perspectiva da aproximao.
Reduzidos a uma teoria do poder e/ou a uma investigao dos espaos da
sua legi-timidade e funcionamento, os discursos que tematizam o
biopoder no vo alm da esfera da polcia, no chegam a colocar jamais
de forma prpria a questo poltica, que no se define pelo exerccio do
poder (RANCIRE, 2001), razo pela qual a noo de biopoltica sempre
vaga e confusa.
H certo paradoxo em se querer inverter o polmico dispositivo de
Foucault, visando afirmar um enraizamento vitalista crucial da
polti-ca. Pois, se a ideia de biopoder clara, a de biopoltica
confusa. Uma vez que tudo o que Foucault menciona, situa-se no
espao daquilo que eu denomino polcia. Se Foucault pode falar,
indiferentemente, em biopoder e em biopoltica, porque seu
pensamento sobre poltica foi construdo em torno da questo do poder,
uma vez que jamais esteve teoricamente interessado na questo da
subjetivao poltica (RANCIRE, 2010, p. 77).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.40
-
A leitura que Rancire faz de Foucault certamente contestvel8, e
voltaremos a ela, mas o seu valor menos hermenutico que polmi-co,
na medida em que se encontra associada tentativa de denunciar a
reduo da poltica questo do exerccio do poder; reduo que, nas
apropriaes contemporneas do dispositivo foucaultiano, define
ge-nericamente as duas linhas maiores de desenvolvimento do que
enten-demos por biopoltica: 1) o solapamento do poder soberano e a
vida nua caracterizado por Giorgio Agamben, e 2) a ontologia
vitalista das multides nas condies do imprio desenvolvida por
Michel Hardt e Tony Negri (mas no s).
* * *
Em primeiro lugar, Rancire se confronta com a considerao
agambeniana do biopoder enquanto modo de exercer a soberania.
Sempre segundo Rancire, a aproximao de Agamben questo tem por
resultado uma construo onto-teolgico-poltica que deduz, a partir
das relaes da vida com o poder implcitas no conceito de soberania,
a totalidade das configuraes da partilha do sensvel que podemos
identificar nos ltimos cem anos nas nossas sociedades (desde os
campos de extermnio nazistas at as democracias contem-porneas).
Certamente, a entrada da vida biolgica na ordem poltica tem como
resultado a inscrio do elemento mais bsico da existncia nas malhas
do poder, constituindo o acontecimento decisivo da mo-dernidade e
transformando as categorias polticas e filosficas tradi-cionais
(LAZZARATO, 2000). Mas enquanto, para Foucault, o dispo-sitivo
biopoltico (inclusive nas suas configuraes mais negativas, como no
caso da limpeza tnica) implicava sempre uma componente positiva de
administrao da vida (como no caso da eugenia) que os distanciava
dos dispositivos soberanos de administrao da morte, para Agamben a
administrao da vida foucaultiana se solapa com
8 Para comear, quando Rancire fala de uma ausncia de interesse
pela subjetivao poltica em Foucault, desestima qualquer valor
poltico da tematizao foucaultiana da subjetividade, que na sua
interpretao se restringiria tica. Para um questionamento dessa
interpretao ver TASSIN, 2012; LAZZARATO, 2000.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 41
-
o estado de exceo schmittiano, apagando a oposio entre poder
soberano e biopoder, deixando pouco ou nenhum espao para a
in-terrupo poltica dessa partilha do sensvel, na qual a vida s
liber-tada das malhas do poder quando abandonada morte. Da anlise
agambeniana seguem-se certos corolrios paradoxais: o estado de
ex-ceo o contedo real das nossas democracias, os direitos humanos
so a figura que assinala a violncia infringida sobre a vida
biolgi-ca pela vida poltica, somos todos refugiados num campo.
Rancire (2004, p. 301) escreve:
Qualquer diferena entre democracia e totalitarismo se desvanece,
qualquer prtica poltica est condenada a ser pega na armadilha
bio-poltica. [...] A poltica reduzida ao poder, um poder que
crescente-mente assimilado a um irresistvel destino
histrico-ontolgico do qual s Deus parece poder livrar-nos.
A vida nua, exposta sem reservas ao poder soberano, encontra-se
efetivamente aqum da poltica (tal como definida por Rancire). Como
assinala o prprio Agamben, nas condies do estado de exceo
per-manente ao qual d lugar o biopoder, sobredeterminada a
humanida-de at os seus fundamentos biolgicos por estruturas
totalizantes, a teoria e a prxis poltica s podem apresentar-se aos
nossos olhos nas formas do negativo, aprisionadas e imveis, a uma
distncia insupe-rvel de qualquer forma de poltica emancipatria.
Nesse sentido, o biopoder agambeniano constitui, para Rancire, uma
forma atualizada do niilismo heideggeriano (estrategicamente
permeado pela filosofia de Hannah Arendt9).
Qualquer tipo de reivindicao de direitos [...] assim encerrada
por princpio na mera polaridade da vida nua e o estado de exceo.
Essa polaridade aparece como uma espcie de destino ontolgico: cada
um de ns se encontraria na situao do refugiado num campo (RANCIRE,
2004, p. 301).
9 Para melhor apreciao da posio de Rancire em relao s crticas de
Arendt e Agamben aos direitos humanos, ver: HEMEL, 2008. Quanto aos
elementos da filosofia arendtiana que permeiam a obra de Rancire,
ver: TASSIN, 2012.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.42
-
Certamente vivemos em ordens policiais oligrquicas, regidos por
princpios de desigualdade, e, em grande medida, essas ordens
encontram-se perpassadas pelos dispositivos do biopoder (e, em
casos extremos, por articulaes que expem sem reservas a vida nua ao
po-der soberano). Rancire poderia estar de acordo com tudo isso,
mas em termos gerais ns no vivemos em campos (RANCIRE, 2005, p.
81). A crtica de Rancire vai ao encontro desse diagnstico, e est
associada a uma recuperao de um conceito de poltica (e de
democracia) que, na medida em que aspira a dar conta da
possibilidade da nossa desincor-porao em relao aos regimes nos
quais vivemos, relana mais uma vez o sonho preterido da emancipao
universal.
* * *
Em segundo lugar, Rancire dialoga, a uma distncia crtica, com a
tentativa de atribuir um contedo positivo biopoltica, ora a partir
de modos no estatais de governo e administrao da vida, ora a partir
de uma ontologia da vida que identifica a questo da subjetividade
poltica com a questo das formas de individuao. A biopoltica
con-funde-se, ento, segundo Rancire, com uma transformao espiritual
ou transfigurao da vida (retomando nisso o modelo dos programas das
vanguardas histricas, que identificavam a realizao da arte com a
sua prpria supresso na elaborao de novas formas de vida), e cuja
consequncia imediata a dissoluo da poltica na tentativa de
articu-lar um novo poder constituinte.
Acho que isso ainda se encontra vivo na viso contempornea de
Hardt e Negri sobre o comunismo franciscano de multides, implantado
atra-vs do poder irresistvel das redes globais, que far explodir as
fron-teiras do Imprio. Em todos esses casos, a poltica e a arte
realizam a sua autossupresso em benefcio de uma nova forma de vida
indivisa (RANCIRE, 2006).
A poltica solapada ento pela ideia de uma sociedade nova, cujos
elementos j se encontrariam formados no seio mesmo da socie-dade
atual. No caso de Hardt e Negri, a esperana da refundao do
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 43
-
comunismo a partir da potncia das multides se apoia no
investimen-to cada vez mais direto do poder na vida dos indivduos e
das coletivi-dades, e nas formas de produo imateriais prprias da
sua intelign-cia coletiva, que nem sequer necessitam ser
expropriadas (tal a boa nova) para fazer explodir a ordem do
Imprio: todo o que necessrio uma autoafirmao ethopoitica.
Rancire irredutvel nisso. Interrogado por Eric Alliez (RANCIRE,
2010, p. 79) sobre a possibilidade de pensar o conceito de
biopoltica a partir de uma espcie de inverso do biopoder, isto ,
enquanto forma de articulao de uma resistncia da vida social em
re-lao aos dispositivos prprios do capitalismo, a sua resposta
categ-rica: no h qualquer possibilidade de articular uma passagem
entre o biopoder (enquanto modo de exerccio do poder) e a poltica
(enquan-to modo prprio de des-subjetivao poltica que nos coloca
necessa-riamente alm de qualquer forma de vida determinada).
Trata-se, para Rancire, de duas lgicas diferentes, de duas dimenses
diferentes: a das relaes de poder e a das verificaes da
igualdade.
A minha posio atual distanciar-me desse tipo de pensamento: no
questo de reapropriar-nos de uma capacidade que se encontra
alie-nada e que constitui o poder do capitalismo. O poder ,
realmente, a coletivizao da capacidade que j possumos, [a
capacidade de] criar uma rede especfica de relaes igualitrias. Para
mim, portanto, esse o ponto principal: diz respeito ao modo em que
pensamos a relao en-tre a pressuposio da igualdade e a ideia de uma
possvel inteligncia coletiva (RANCIRE; POWER, 2010, p. 81).
Para Rancire, a poltica exige renunciar f nos princpios que
pressupe o novo materialismo histrico (mais imaterial que nunca):
as formas de vida produzidas por um sistema de dominao nunca so
mais do que a vida desse sistema, nenhuma sociedade desigual,
ne-nhuma partilha policial do sensvel carrega em si qualquer
sociedade igualitria. As multides no nascem da sua desagregao (de
nenhu-ma das suas partes) nem constituem a subjetividade emergente
de um processo histrico global. Na mesma medida que os campos, o
Imprio est aqum da poltica, que bem pode prescindir de tais
supersties.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.44
-
Pura contingncia que amaa toda a ordem social10, a poltica menos
previsvel e mais precria.
[A poltica] no se funda em natureza alguma das coisas, nem se
encon-tra garantida por nenhuma forma institucional. No sustentada
por necessidade histrica alguma nem sustenta nenhuma. No se
encontra confiada seno constncia dos seus prprios atos (RANCIRE,
2005, p. 106).
A emancipao depende para Rancire da nossa desincorpora-o em
relao s partilhas policiais nas quais vivemos, encontra-se
associada a uma especial forma de subjetivao. Mas trata-se de um
processo de desidentificao e no de um processo de individuao, de um
processo de dessujeio e no de instituio de novas formas de
subjetividade11. Noutras palavras, trata-se da manifestao de uma
di-ferena (entre uma subjetivao e uma identificao), de um
distancia-mento (em relao s partes reconhecidas na diviso do
comum), logo, de um movimento de dessubjetivao, enquanto condio de
possibi-lidade da instaurao de uma comunidade, mesmo que seja
apenas sob a forma do litgio sobre a comunidade e sobre a igualdade
que pressupe toda ordem desigualitria. Problemtica comunidade
(por-que pressupe a igualdade mas s existe pela diviso12) que
colocada a prova (verificada) caso a caso, mas da qual no se deduz
contedo nenhum, forma de vida nenhuma, individuao alguma.
10 Pois o fundamento da poltica, se no natureza, no tampouco
conveno: ausncia de fundamento, a pura contingncia de toda ordem
social. H poltica simplesmente porque nenhuma ordem social est
fundada na natureza, porque nenhuma lei divina ordena as sociedades
humanas (RANCIRE, 1996, p. 30).
11 Mulher em poltica o sujeito de experincia o sujeito
desnaturado, desfeminizado que mede a distncia entre uma parcela
reconhecida o da complementaridade sexual e uma ausncia de parcela.
Operrio, ou melhor proletrio, da mesma forma o sujeito que mede a
distncia entre a parcela do trabalho como funo social e a ausncia
de parcela daqueles que o executam na definio do comum da
comunidade. Toda subjetivao poltica a manifestao de um afastamento
desse tipo. A bem conhecida lgica policial que julga que os
proletrios militantes no so trabalhadores mas desclassificados, e
que as militantes dos direitos das mulheres so criaturas estranhas
a seu sexo tem, afinal de contas, fundamento. Toda subjetivao uma
desidentificao, o arrancar naturalidade de um lugar, a abertura de
um espao de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque o espao
de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela
e uma ausncia de parcela (RANCIRE, 1996, p. 48).
12 A igualdade no um dado que a poltica aplica, uma essncia que
a lei encarna nem um objetivo que ela se prope atingir. E apenas
uma pressuposio que deve ser discernida nas prticas que a pem em
uso (RANCIRE, 1996, p. 45).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 45
-
A poltica no tem objetos prprios, nem sujeitos prprios, nem
sequer questes prprias (RANCIRE, 1996, p. 44). A poltica
sim-plesmente a instituio de um litgio: no d lugar instaurao de um
novo poder constituinte, apenas coloca em causa, torce, fora a
reconfi-gurao da ordem policial existente.
A atividade poltica a que desloca um corpo do lugar que lhe era
desig-nado ou muda a destinao de um lugar; ela faz ver o que no
cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde s tinha lugar o
barulho, faz ouvir como discurso o que s era ouvido como barulho
(RANCIRE, 1996, p. 42).
* * *
Em resumo, a defesa de uma noo de poltica, como interrup-o
eventual (fugaz, intempestiva) dos regimes policiais existentes,
leva Rancire a se opor s tentativas de pensar a poltica na
encruzilhada en-tre o poder e a vida, seja de um modo niilista,
seja de um modo revolu-cionrio. Em ambos os casos, Rancire encontra
a mesma deriva ontol-gica, a mesma sobredeterminao ontolgica da
poltica, quero dizer, o mesmo perigo: porque, mesmo se tratando de
ontologias da vida, ambas conduzem, no no sentido de uma maior
compreenso da poltica, mas no sentido da dissoluo da desordem
poltica na ordem filosfica, na postulao dos princpios que pretendem
regula seu espao ao mesmo tempo que projetam a sua
exterioridade.
Tal o horizonte da denncia da fundao da subjetividade polti-ca
numa ontologia da vida ou da existncia, que Rancire identifica por
igual nas distines entre vida qualificada e vida nua em Agamben,
vida alienada e vida recuperada em Negri, e, mais profundamente,
entre ani-mal laborans e homo politicus em Arendt. Para Rancire,
pensar a poltica corretamente (e distingui-la da polcia) implica
fazer um movimento de desontologizao, recusando deduzir a poltica
de qualquer forma de ontologia (CHAMBERS, 2011, p. 18).
Por outro lado, como j notamos, e reforando os argumentos
contraontolgicos, a crtica de Rancire ao biopoder, e,
especialmente, queles que pretendem conduzir essa anlise no sentido
de uma bio-poltica, passa por uma circunscrio contraintuitiva da
prpria noo
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.46
-
de poltica, que a desliga completamente das questes associadas
ins-tituio do poder, a organizao do estado, a articulao do social,
a ar-bitragem do debate sobre a coisa pblica etc. (aspectos todos
que dizem apenas respeito, segundo Rancire, partilha policial do
sensvel)13.
Isso no significa que Rancire reste toda importncia anlise
crtica da ordem policial nas nossas sociedades (noutras palavras,
po-ltica tal como compreendida ordinariamente). De fato, na medida
em que algum tipo de ordem policial (uma certa constituio simblica
do social) inevitvel, na medida em que no possvel pensar a
institui-o histrica plena da igualdade ou da liberdade (no h fora
absoluto em relao ordem policial), Rancire desenvolve instrumentos
crticos para avaliar, desde dentro, os regimes histricos nos quais
vivemos. Quero dizer que Rancire no remete a partilha policial do
sensvel a um plano de indefinio onde tudo equivalente, onde tudo
vale por igual:
H a polcia menos boa e a melhor no sendo a melhor, alis, a que
segue a ordem supostamente natural das sociedades ou a cincia dos
le-gisladores, mas a que os arrombamentos da lgica igualitria
vieram na maioria das vezes afastar de sua lgica natural. A polcia
pode pro-porcionar todos os tipos de bens, e uma polcia pode ser
infinitamente prefervel a uma outra (RANCIRE, 1996, p. 43).
Agora, mesmo se possvel os regimes policiais serem avalia-dos,
contestados, expostos ao risco da poltica, nada disso muda o
fun-damental: inclusive sendo gentil e amvel, a ordem policial
continua sendo, mesmo assim, o contrrio da poltica, e convm
circunscrever o que cabe a cada uma delas (RANCIRE, 1996, p.
43).
Num sentido similar, tentando delimitar uma noo da esquer-da,
Deleuze afirmava no existir governo de esquerda, argumentando que a
prpria questo do governo no era uma questo da esquerda: No que no
existam diferenas nos governos. O que pode exis-tir um governo
favorvel a algumas exigncias da esquerda. Mas
13 Para uma aproximao singularidade do deslocamento conceitual
proposto por Rancire em relao s noes de poltica e democracia, ver o
texto introdutrio de CHAMBERS, S. Police and oligarchy. In:
DERANTY, J-P. Jacques Rancire: key concepts. Durham: Acumen, 2010.
p. 57-68.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 47
-
no existe governo de esquerda, pois a esquerda no tem nada a ver
com o governo (LABCDAIRE, 2004). Rancire retomar essa fr-mula
polmica; dir: No h, propriamente, governo democrtico. O governo
sempre exercido por uma minoria sobre uma maioria (RANCIRE, 2005,
p. 59). A estrita separao da poltica da polcia proposta por Rancire
responde mesma preocupao manifestada por Deleuze (associada, pela
sua vez, distino da histria e do de-vir, do maior e do menor), e
seguramente est ligada igualmente a eventualizao da poltica, isto ,
a sua inscrio numa ontologia do acontecimento14.
Porque a poltica rara para Rancire. A poltica acontece, ocor-re,
tem lugar cada vez que a lgica da ordem policial dominante
de-safiada em nome de um princpio irracional e irrazovel (logo, no
fun-dante): a igualdade da parte dos sem parte como comunidade de
um litgio. E, quando a poltica acontece, a diviso da comunidade em
suas partes desiguais, a ordem da dominao de umas partes sobre
outras interrompida por um litgio que comum aos que tm parte e aos
que no tm parte.
tambm mediante a existncia dessa parcela dos sem-parcela, desse
nada que tudo, que a comunidade existe enquanto comunidade
po-ltica, ou seja, enquanto dividida por um litgio fundamental, por
um litgio que afeta a contagem de suas partes antes mesmo de afetar
seus direitos (RANCIRE, 1996, p. 24-27).
A poltica tem lugar a partir dessas cenas litigiosas, mas no
ins-titui nada, no pode, fora dessa paradoxal comunidade do litgio
sobre a conta das partes, que cintila nas trevas das relaes
desiguais. Fora dessa instituio, no h poltica (RANCIRE, 1996, p.
27-47). Se essas cenas de emancipao, se essas subjetivaes procuram
institucionali-zar-se de outra forma (mais substancial), s podem
dar lugar a novos estados de dominao.
14 Rancire vai nisso ao encontro de outras formas de pensamento
contemporneo que fazem da noo de acontecimento e da eventualizao da
histria as chaves de uma compreenso renovada da poltica; PELLEJERO,
E. As novas aventuras da dialtica: Holloway, Guattari, Virno.
Cadernos de tica e Filosofia Poltica, n. 13, 2009.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.48
-
Isso quer dizer que no existe sempre poltica. Ela acontece,
alis, mui-to pouco e raramente. O que comumente se atribui histria
poltica ou cincia do poltico na verdade depende, com frequncia
muito maior, de outras maquinarias, que por sua vez provm do
exerccio da majestade, do vicariato da divindade, do comando dos
exrcitos ou da gesto dos interesses. S existe poltica quando essas
maquinarias so interrompidas pelo efeito de uma pressuposio que
lhes totalmente estranha e sem a qual, no entanto, em ltima
instncia, nenhuma delas poderia funcionar: a pressuposio da
igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, ou seja, em
definitivo, a paradoxal efetividade da pura contingncia de toda
ordem (RANCIRE, 1996, p. 31).
* * *
Estabelecida a singular posio de Rancire, em todo o caso,
de-vemos nos perguntar se, em sua vontade de combater a reduo da
po-ltica questo do exerccio do poder, e as supersties ontoteolgicas
sobre as quais se fundam os projetos contemporneos que perseguem a
articulao da disrupo poltica com a fundao de um novo poder
constituinte, Rancire no fica aqum das nossas expectativas, e dos
problemas (sempre em aberto) que levanta o sonho da instituio de
uma ordem menos absurda.
A preservao da poltica, como interrupo igualitria das par-tilhas
policiais desigualitrias, pode constituir um conceito-chave para
manter uma reserva crtica indispensvel perante os regimes
oligr-quicos (mais ou menos duros) nos quais estamos condenados a
viver (RANCIRE, 2005, p. 79), logo, um espao para continuar a
pensar a emancipao universal, em condies nas quais at a nossa vida
bio-lgica aparece inscrita nas malhas do poder. Porm, o que se
resigna nessa reserva muito, a comear pela necessidade premente de
encon-trar uma forma consistente de ligar os momentos de
desincorporao poltica instituio de formas menos desigualitrias de
constituio simblica do social.
Num artigo de 2010, Maurizio Lazzarato assinalava que isolar o
ato poltico como tal, na forma como faz Rancire, comporta o risco
de falhar a especificidade do poder capitalista, que agencia numa
arti-culao complexa a diviso desigualitria da sociedade e a
produo
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 49
-
de modelos de existncia ou formas de vida (LAZZARATO, 2010).
Lazzarato sugeria que, na medida em que o capitalismo contempo-rneo
faz da vida e da subjetividade objetos privilegiados dos seus
investimentos, a mediao tica (no sentido da constituio de um ethos,
da formao de um sujeito) resulta imprescindvel para cobrir a
distncia entre a impugnao da ordem policial e a articulao de
agenciamentos que permitam amadurecer as subjetivaes polti-cas,
conjugando a transformao do mundo com a transfigurao da vida e a
transvalorao de todos os valores (para o qual considera que os
ltimos cursos de Foucault continuam a ser uma referncia
imprescindvel).
Na leitura foucaultiana [...] a igualdade constitui uma condio
neces-sria, mas no suficiente, da poltica. [...] A ao poltica se
produz no quadro das relaes paradoxais que a igualdade mantm com a
dife-rena, cujo resultado a produo de novas formas de subjetivao e
de singularidade (LAZZARATO, 2010).
Evidentemente, a reconsiderao que Lazzarato prope dos processos
de subjetivao desde uma perspectiva foucaultiana ( qual Rancire
restara toda importncia) se apoia na convico de que a reconfigurao
da vida (individual e coletiva) constitui o reto por antonomsia das
lutas polticas (LAZZARATO, 2006). Nas novas condies econmicas e
polticas, no atual estado da situao, isto, , na partilha policial
dominante, a igualdade no exige para Lazzarato apenas sua
verificao, mas sua inveno. A poltica deve desbordar o
reconhecimento (sempre conflitivo) da igualdade, em direo cria-o de
novas formas de vida capazes de escapar ao biopoder, de lhe
resistir por meio de uma dobra das relaes de poder institudas nas
prprias formas da subjetividade, dando lugar a uma verdadeira
bio-poltica revolucionria.
O bios, a existncia, a vida no so conceitos vitalistas aos quais
poderiam opor-se os conceitos da diviso poltica do demos, mas
do-mnios onde se exerce a microfsica do poder e sobre os quais h
luta, litigio, sujeies e subjetivaes (LAZZARATO, 2010).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.50
-
Posto isso, a crtica que Lazzarato dirige a Rancire no
des-conhece certos mal-entendidos: a comear pela assimilao do
prin-cpio de igualdade pressuposio de uma exterioridade em relao s
relaes de poder (ideia incompatvel com a noo da poltica para
Rancire), passando pela acusao de logocentrismo dirigida lgica do
desentendimento (quando o certo que a desincorporao poltica excede
claramente, para Rancire, a questo do logos e se desenvolve no
quadro do que ele denomina de esttica primeira), e concluindo com a
reduo polmica das diversas anlises de casos concretos pro-postas
por Rancire s suas definies tericas da poltica.
No fundo, como admite o prprio Lazzarato, o que se encontra em
jogo so duas concepes radicalmente heterogneas da subjetiva-o
poltica (LAZZARATO, 2010): uma apontando verificao pol-tica da
igualdade, outra dependente da diferenciao tica dos sujeitos. O
suplemento tico s prticas polticas que prope Lazzarato na trilha
aberta por Foucault implica que a luta por outro mundo possvel s
pode passar pela constituio de uma vida diferente, enquanto que,
para Rancire, a subjetivao poltica no se encontra associada a
nenhuma forma de ethos coletivo tomando a voz (RANCIRE, 1996, p.
48) pelo contrrio, o suplemento poltico estruturao do mundo comum a
partir da diferenciao da vida implica, para Rancire, que a luta tem
lugar ao nvel dos artifcios da igualdade, isto , das novas formas
de re-presentao do mundo dado efetuadas pelos sujeitos polticos,
que no legitimam uma outra vida, mas configuram um mundo comum
diferente (RANCIRE, 2010, p. 76).
Um sujeito poltico no um grupo que toma conscincia de si, se d
voz, impe seu peso na sociedade. E um operador que junta e separa
as regies, as identidades, as funes, as capacidades que existem na
configurao da experincia dada, quer dizer, no n entre as divises da
ordem policial e o que nelas j se inscreveu como igualdade, por
frgeis e fugazes que sejam essas inscries (RANCIRE, 1996, p.
52).
Todavia, enquanto a interrupo poltica se encontra imedia-tamente
associada afirmao da emancipao universal (a parte
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 51
-
dos sem parte a parte de todos, o princpio de um processo de
subjetivao que supera todas as divises, de uma conta no totali-zvel
que separa a comunidade poltica da sua partilha policial15), a
afirmao tica sempre singular e posterga o momento poltico de
articulao das diferenas (um movimento de movimentos uma necessidade
assumida, mas a lgica ethopoitica no nos permite entrever como
poderia ser articulado, ficando limitada s suas ma-nifestaes
singulares).
Em ltima instncia, deparamo-nos com perspectivas que focam os
impasses das lutas polticas contemporneas desde ngulos opostos, e
cuja avaliao crtica constitui para ns uma exigncia que no pode-mos
postergar.
Por um lado, no possvel negligenciar a poltica das afir-maes
igualitrias, cujo correlato a instituio de um universal polmico
(RANCIRE, 1996, p. 13), compreendido nas cenas de desincorporao da
ordem policial descritas por Rancire (elas ofe-recem um horizonte,
precrio mas imprescindvel, na disperso das lutas nas quais nos
vemos involucrados no dia a dia). Por outro lado, na medida em que
esse horizonte igualitrio no instituvel numa ordem qualquer, parece
imprudente desatender o paciente trabalho ethopoitico de construo
de territrios existenciais eles fornecem um espao diferencial,
frgil mas consistente, onde os resultados das alteraes produzidas
pelos atos de (des)subjetivao poltica even-tualmente podem
amadurecer, opondo uma resistncia temporria cooptao deles pelos
dispositivos de poder16.
No quero dizer com isso que as duas lgicas se complemen-tem
(isso significaria ignorar a vontade e a inteligncia que os
seus
15 O proletariado no uma classe mas a dissoluo de todas as
classes, e nisso consiste sua universalidade, dir Marx []. A
universalidade da poltica a de uma diferena a si de cada parte e a
do diferendo como comunidade (RANCIRE, 1996, p. 33).
16 Num artigo publicado recentemente em espanhol, Etienne Tassin
coloca isto ltimo de forma contundente: Si las relaciones
paradjicas entre igualdad y diferencia no pueden inscribirse ni en
una constitucin, ni en leyes, si no pueden ser enseadas ni
aprendidas, sino solamente experimentadas, entonces la cuestin de
las modalidades del actuar juntos se vuelve fundamental. Qu pasa
durante la toma de la palabra, despus de ella? Cmo este acto de
diferenciacin vuelve, no solamente sobre el que lo enuncia, sino
tambin sobre aquel que lo acepta? Lo cual equivale a preguntar: cmo
se forma una comunidad ligada por la enunciacin y el artificio que
no est cerrada por su propia identificacin, sino abierta a la
diferenciacin tica? (TASSIN, 2012, p. 42).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.52
-
autores colocaram em seus trabalhos). Entre a impugnao e a
recon-figurao do mundo comum, ainda se impem uma srie de questes
fundamentais, que a prxis poltica e o trabalho terico no deixam de
levantar (a comear pela pergunta sobre a possibilidade de agen-ciar
coletivamente a vida sem produzir pelo mesmo movimento no-vas
relaes de dominao), num exerccio necessariamente paciente, que est
sempre por recomear17.
Nesse sentido, se no comeo assinalei que, na aproximao de
Rancire, aqum da biopoltica tinha pelo menos dois sentidos, pen-so
que agora, conta do exposto, podemos postular um terceiro sentido
dessa expresso. Porque, na tentativa de repensar a polti-ca alm das
relaes de poder, sem recair nos credos progressistas da Modernidade
nem abandonar-se ao luto infinito dos seus ide-ais emancipatrios,
qui Rancire resigna demasiado, pagando pela consistncia terica da
sua posio crtica com o balizamento da sua sensibilidade poltica,
que significativamente deixa de lado certos movimentos que agitam
nosso mundo, suas apostas e suas expectativas18.
Mas aqum designaria, ento, menos uma insuficincia da sua obra
que uma tarefa, que nem os conceitos de Foucault, nem os repa-ros
de Lazzarato podem resolver por ns; uma tarefa na qual acre-dito
todos aqui nos encontramos involucrados, no apenas como pensadores,
mas tambm como homens e mulheres que em todo o momento esto
dispostos a colocar prova (a verificar) a igualdade das
inteligncias, logo, a lutar pela emancipao da vida das malhas nas
quais hoje canalizada, explorada, ou abandonada a morrer.
17 A persistncia desse dano infinita porque a verificao da
igualdade infinita e porque a resistncia de toda ordem policial a
essa verificao principal (RANCIRE, 1996, p. 51).
18 Tassin assinala, nesse sentido, a falha do aparelho
conceitual de Rancire perante certos fenmenos polticos
contemporneos, como a luta as lutas dos sem-papeis que, imagem das
lutas dos sem-direitos ou sem-Estado pelas quais Arendt demostrou
interesse, onde so centrais determinados processos de subjetivao
(TASSIN, 2012, p. 49).
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 53
-
Referncias
CASTRO, E. El vocabulario de Michel Foucault: un recorrido
alfabtico por sus temas, conceptos y autores. Buenos Aires:
Universidad de Quilmes, 2004.
CHAMBERS, S. Introduction to The lessons of Rancire. 2011.
Trabalho apre-sentado no University of Virginia Political Theory
Colloquium, 18 nov. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 5 dez.
2012.
CHAMBERS, S. Police and oligarchy. In: DERANTY, J-P. Jacques
Rancire: key concepts. Durham: Acumen, 2010. p. 57-68.
FOUCAULT, M. Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994.
HEMEL, E.V. D. Included but not belonging - Badiou and Rancire
on human rights. Krisis Journal for contemporary philosophy, n. 3,
2008. Disponvel em: . Acesso em: 2 out. 2013.
LABCDAIRE de Gilles Deleuze. Produo e realizao: Pierre-Andr
Boutang. Participantes: Gilles Deleuze; Claire Parnet. Paris:
Editions Montparnasse, 2004. 3 DVDs (453 min.). Primeira transmisso
realizada pelo Canal Arte, Paris, 1996.
PELLEJERO, E. A lio do aluno: uma introduo obra de Jacques
Rancire. Saberes, v. 2, n. 3, 2009. Disponvel em:. Acesso em: 1
out. 2013.
LAZZARATO, M. Enonciation et politique Une lecture parallle de
la dmocratie: Foucault et Rancire. 2010. Trabalho apresentado na
sesso de 25 de fevereiro de 2010 da Universit ouverte 2009-2010: La
vie militante dans la politique et dans lart. Disponvel em: .
Acesso em: 5 dez. 2012.
LAZZARATO, M. Del biopoder a la biopoltica. Multitudes, n. 1,
mar. 2000. Disponvel em: . Acesso em: 2 out. 2013.
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
PELLEJERO, E.54
-
RANCIRE, J.; POWER, N. Interview with Jacques Rancire. Ephemera,
v. 10, n. 1, 2010. Disponvel em: Acesso em: 5 dez. 2012.
RANCIRE, J. Biopoltica ou poltica? Urdimento: Revista de Estudos
em Artes Cnicas, n. 15, out. 2010. Disponvel em: Acesso em: 1 out.
2013.
RANCIRE, J. O desentendimento: poltica e filosofia. Trad. ngela
Leite Lopes. So Paulo: Editora 34, 1996.
RANCIRE, J. Ten theses on Politics. Theory and Event, v. 5, n.
3, 2001. Disponvel em: . Acesso em: 2 out. 2013.
RANCIRE, J. Who is the subject of the rights of man? South
Atlantic Quarterly, v. 103, n. 2-3, p. 297-310, 2004.
RANCIRE, J. La haine de la dmocratie. Paris: La Fabrique
ditions, 2005.
TASSIN, E. De la subjetivacin poltica.
Althusser/Rancire/Foucault/Arendt/Deleuze. Revista de Estudios
Sociales, n. 43, 36-49, 2012.
Recebido: 10/06/2013Received: 06/10/2013
Aprovado: 14/09/2013Approved: 09/14/2013
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 25, n. 37, p. 35-55, jul./dez.
2013
Aqum da biopoltica 55