DIREITO E LITERATURA : CRIME E CASTIGO DE DOSTOIEVSKI Por : Victor Correia A RELAÇÃO ENTRE CRIME E CASTIGO Os conceitos de crime e de castigo conduzem- nos às teorias da culpabilidade, da imputabilidade, e a estas mesmas enquanto pressuposto penal. Tanto umas como outras se caracterizam por uma constante e intensa evolução histórica, indo desde os tempos em que bastava o simples nexo causal entre a conduta e o resultado, advindo daí uma culpabilidade imediata e objectiva, até aos tempos atuais em que a culpabilidade apresenta como elementos essenciais a imputabilidade, a consciência da
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DIREITO E LITERATURA : CRIME E CASTIGO DE
DOSTOIEVSKI
Por : Victor Correia
A RELAÇÃO ENTRE CRIME E CASTIGO
Os conceitos de crime e de castigo conduzem-
nos às teorias da culpabilidade, da
imputabilidade, e a estas mesmas enquanto
pressuposto penal. Tanto umas como outras se
caracterizam por uma constante e intensa
evolução histórica, indo desde os tempos em que
bastava o simples nexo causal entre a conduta e
o resultado, advindo daí uma culpabilidade
imediata e objectiva, até aos tempos atuais em
que a culpabilidade apresenta como elementos
essenciais a imputabilidade, a consciência da
ilicitude, os objectivos, e o contexto da
conduta.
Sob o ponto de vista analítico, crime é uma
acção ou omissão típica, ilícita, e culpável.
Sob o ponto de vista sociológico, crime é uma
infracção de um costume ou de uma lei da
sociedade, contra a qual esta reage, aplicando
através das vias legais um castigo ao respetivo
infractor. A culpabilidade constitui um
pressuposto da penalização, e a perigosidade um
pressuposto da medida de coação. Por seu
turno, castigo (também designado por pena,
punição, sanção, expiação, ou disciplina)
constitui um processo a que a pessoa é sujeita,
pontual ou duradouro, inflingido devido a uma
atitude dessa pessoa considerada como
repreensível, imoral, ou imprópria. O castigo,
ao impor algo de desagradável à pessoa, tem a
finalidade de a chamar à ordem, e de a
dissuadir de continuar com a atitude
penalizada. O castigo pode ser infligido do
Estado para com os seus cidadãos, duma armada
para com os seus prisioneiros, dum patrão para
com os seus empregados, dum professor para com
os seus alunos, dum pai para com o seus filhos,
dum dono para com o seu animal de companhia,
etc.
O castigo enquanto tal não tem
necessáriamente um significado negativo : além
de punidor, corretor e de dissuasor de uma
infração, ou de constituir uma medida de defesa
por parte da sociedade. O castigo está também
pedagogicamente marcado pelo desejo de formar e
de ensinar, a que tradicionalmente não é
alheio o princípio familiar descrito no adágio
: Quem ama bem castiga bem. Naturalmente, tudo
depende do tipo de castigo, pois se for um
castigo físico, na cultura ocidental
contemporânea esse modo de atuar perdeu muito
do seu uso nas práticas quotidianas, e passou
mesmo a ser interdito e punível no âmbito
escolar, e por outro lado, mesmo o castigo
não físico como método de aprendizagem também é
contestado, pela generalidade das correntes
da moderna Pedagogia. Porém, como ato
espontâneo ou planeado, enquanto retaliação de
uma conduta negativa ou julgada negativa, a
tendência para castigar o ofensor continua
presente no dia a dia, quer como defesa, quer
como vingança.
O termo talião, de origem latina (talio + onis),
significa castigo na mesma medida da culpa, e
foi a primeira delimitação histórica do castigo
: o crime deveria atingir o seu infrator na
mesma forma e intensidade do mal causado, como
se expressa no célebre adágio olho por olho, dente
por dente. Mas a proporcionalidade do castigo em
relação ao crime não deve ser feita destes
moldes, como ensinou o Direito romano, que
contribuiu para a evolução do Direito Penal,
fazendo distinções no crime : o propósito, o
ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, o
simples dolo, ou o dolo mau. Por outro lado, a
infabilidade da pena em relação àquilo que se
considera crime é-nos negada pela própria
História : algumas condutas que hoje se
consideram como um direito (sob o ponto de
vista do direito subjectivo) , outrora não o
eram, e pelo contrário até eram mesmo
consideradas como um crime, e por outro lado,
mesmo ainda hoje algumas coisas que se
consideram como um direito, noutros lugares do
mundo não o são, sendo mesmo um crime.
O princípio de razão estipula que tudo o
que é tem uma razão de ser. Uma justificação é
aquilo que tem um fundamento justo, que é
legítimo, motivado (por exemplo um castigo
justificado). No sentido moral e jurídico uma
justificação é a ação de fundamentar em direito
o que se decidiu ou efectuou, mas nem sempre
assim sucede, podendo chegar-se à ausência
total de quaisqueres justificações, sejam elas
boas ou más, e até mesmo chegar-se à dimensão
do absurdo, como sucede na obra O Processo, de
Kafka, em que há castigo sem crime, e sem ser
apresentada justificação. Distinguimos entre
justificação e crime, pois poderia ter havido
crime e não justificação para o castigo (por
exemplo um castigo injusto, apesar de ter
havido crime), ou uma justificação infundada,
por não ter havido pura e simplesmente crime.
Assim como o facto dos direitos implicarem
deveres (da parte das outras pessoas, também
elas detentoras de direitos), e o facto de ter
deveres implicar ter direitos (de quem os tem
ou das outras pessoas), nem sempre suceder,
algo semelhante surge na relação entre crime e
castigo, que não é algo linear, evidente, e
absoluta. Existem casos de crime sem castigo :
por exemplo por favoritismo em relação a
determinadas pessoas ou classes sociais, algo
muito comum no passado, mas que por vezes ainda
hoje chega a acontecer, ou por falta de
provas, devendo então operar-se a distinção
entre crime e condenação, e crime sem
condenação. Pode também haver crime,
condenação, e não castigo : amnistias,
indultos, ou fuga à Justiça por parte do
condenado. Mas também sucede haver castigos sem
ter havido crime : no âmbito jurídico, os erros
judiciais, no âmbito pedagógico, os castigos
dos pais e educadores, no âmbito profissional,
os castigos dos patrões em relação aos
empregados, na prisão, os castigos aos detidos,
na religião, as práticas penitenciais, na
sexualidade, o fetiche sado-masoquista, ou
ainda os castigos de um dono para com o seu
animal de companhia. O próprio castigo pode ser
um crime, quer no âmbito privado (por exemplo
a violência doméstica), quer no âmbito público
(por exemplo determinados castigos que são
considerados crime contra a Humanidade). Todos
estes exemplos mostram que a relação entre o
crime e o castigo não é algo linear, ou
consequente, destacando-se como o melhor
exemplo os castigos infligidos pelas práticas
pedagógicas tradicionais, os mandados infligir
por algumas religiões, e os de auto-punição
fetichista.
Vamos considerar na nossa análise sobre a
obra Crime e Castigo de Dostoievski por um lado o
crime castigado, e por outro lado a prática do
castigo como não crime, embora mesmo neste
autor a relação entre crime e castigo, e o seu
significado, não seja também algo linear, ou
evidente, como veremos, nomeadamente encarado à
luz do contexto ideológico de Dostoievski.
O CONTEXTO IDEOLÓGICO DE DOSTOIEVSKI
O niilismo (do latim nihil, e que significa
“nada”), é um conceito que afecta as mais
diferentes áreas do mundo contemporâneo :
Literatura e Arte, Ciências Sociais e Humanas,
Ética e Direito, Ciência e Política, Filosofia
e Religião, e com diferentes significados nos
autores geralmente associados a esse conceito
(Hegel, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger,
entre outros). O seu objectivo (grosso modo, a
experiência do nada), pode ser interpretado
segundo uma perspetiva positiva (por exemplo no
budismo), ou negativa (por exemplo no campo dos
valores éticos).
O conceito de niilismo, como é geralmente
interpretado, significa a desvalorização do
sentido da existência, a ausência de
finalidade, a morte da verdade e dos
princípios, a depreciação dos valores
tradicionais, a dissolução dos critérios
absolutos. A figura do niilista, pela
apropriação do poder de criar e de aniquilar,
que outrora pertencia a Deus, situa-se no
movimento de secularização e de emancipação
como um momento radical e extremo em que se
misturam os conceitos de cético, descrente,
libertário, ateu, utopista, materialista,
progressista, etc. Podemos encontrá-lo por
exemplo nos Enciclopedistas do século XVIII,
na Arte (nos surrealistas), e na Política (nos
anarquistas), etc.
O termo niilismo impõs-se historicamente
como classificação dos ideais do activismo
absoluto, que radicavam numa interpretação de
Hegel, de tal modo que na década de 1840-1850
niilismo e niilista eram sinónimos de hegelianismo ou
de hegeliano. Na Rússia do século XIX a
influência da ideologia alemã era dominante,
por exemplo a primeira universidade russa, a de
Moscovo, fundada em 1750, era alemã. A lenta
colonização da Rússia pelos educadores, burocratas
e militaristas alemães, teve o seu início no
reinado do czar Pedro o Grande, e transforma-se
graças aos cuidados do czar Nicolau I em
germanização sistemática.
Nomes de pensadores políticos como os de
Feurbach, Ruge, Marx, Bauer, Stirner, de entre
outros, foram-se impondo na Rússia. Max
Stirner, antigo aluno de Hegel, de Feurbach, de
Fichte, e herdeiro do niilismo de Schopenhauer,
radicalizara e concretizara o conceito
hegeliano de negação, convertendo-o em
princípio político de revolução. O niilismo
passivo transforma-se em Stirner num niilismo
ativo, individualista, antecipando não só o
niiilismo anarquista mas a filosofia do super-
homem em Nietzsche. Outros nomes foram surgindo
: Turgenev, Bielinski, Herzen, Pisarev,
Bakunin, fiéis ativistas políticos e
fomentadores do niilismo russo. Estes autores
pretendiam a libertação do peso da História, e
de todos os conceitos e impedimentos herdados,
que segundo eles impossibilitavam o progresso
da Humanidade.
Bakunin, denominado o pai do niilismo prático,
conhecedor do pensamento de Kant, Fichte,
Schopenhauer, e sobretudo de Hegel, punha a
tónica no conceito hegeliano de negação visando
a praxis transformadora da realidade social
existente. A união entre aniquilação e criação
transparecia no pensamento deste autor, para
quem a aniquilação e a destruição eram a
fonte de toda a vida e de toda a criação, e de
reforma da sociedade.
Dostoievski foi um entusiasta dos ideais
do niilismo russo, e simultaneamente seu
critico. O conhecimento que este autor obteve,
nos seus anos vividos em São Petersburgo,
destas ideologias e movimentos, teve sobre ele
grande influência. Frequentador de um desses
circulos intelectuais, onde se defendiam os
ideais do niilismo, e onde se incluia a revolta
contra os Czares, Dostoievski foi feito
prisioneiro, juntamente com outros elementos
do grupo, e foi condenado à morte, tendo obtido
a alteração da pena no momento em que os
soldados se encontravam já no patíbulo. O
conhecimento que Dostoievski teve, a título
pessoal, dos grupos revolucionários do seu
tempo, a militância em um deles, o malogro
desse mesmo grupo em que Dostoievski militou, a
condenação à morte, e a suspensão dessa pena,
substituida pelo exilio e trabalhos forçados,
marcararam-no profundamente. Na verdade, muitas
das personagens das obras de Dostoievski são
niilistas, como é o caso da personagem
principal de Crime e Castigo : Raskolnikov.
A OBRA CRIME E CASTIGO
Fiodor Mikhailovich Dostoievski (Moscovo,
1821 – São Petersburgo, 1881) é considerado um
dos maiores autores da literatura russa e
mundial, e é frequentemente citado e comentado
nos estudos sobre Direito e Literatura. É um
dos percursores do Existencialismo, e da
Psicanálise, e o conceito a que deu origem
(dostoievskiano) significa o mundo da auto-
destruição, do homicídio, do suicídio, da
embriaguez e da loucura. As questões do
ateísmo, do mundo dos libertários, da busca do
sentido da Vida, da angústia existencial, dos
problemas que a Razão e a Ciência não resolvem,
do vazio, do sem sentido, da aniquilação e do
nada, concebidos em sentido depreciativo,
estão presentes nas obras deste autor, de que
um dos melhores exemplos é a obra Crime e Castigo.
Esta obra, publicada em 1866, foi a
primeira deste autor a ser traduzida para
línguas da Europa Ocidental, é a sua obra mais
célebre, e por seu turno é considerada uma das
obras mais célebres da literatura universal.
Narra a história de Rodin Românovitch
Raskolnikov, estudante de Direito, extremamente
pobre economicamente, e que vive angustiado
pelo desejo de realizar algo de importante,
dividindo os seres humanos em ordinários e
extraordinários, numa tentativa de explicar a
quebra das regras em prol do avanço da
Humanidade. Seguindo na prática esta
classificação, planeia e executa o homicídio de
uma idosa usurária, e de uma irmã desta que
testemunhou o crime, um homicídio executado
portanto não devido a motivos económicos,
apesar do seu executante viver pobre
economicamente, nem muito menos devido a
motivos passionais. De certo modo estamos
próximos do absurdo do Processo de Kafka : em
Crime e Castigo a pessoa assassinada não tinha
feito nenhum mal, o assassino sabia disso,
nem sequer a conhecia, estava lúcido do seu
acto, e embora vivendo pobre economicamente
não tirou qualquer proveito económico disso,
nem de modo nenhum o pretendia. Para acumular o
aburdo, temos o facto de uma pessoa inocente
ter sido presa em vez do autor do crime, de não
haver provas contra o autor do crime, e este se
ter ido acusar a si próprio.
O livro relata então, pormenorizadamente,
as lutas psicológicas vividas pelo autor do
crime, os problemas de consciência, o seu
remorso. Raskolnikov acaba por por tomar a
decisão de confessar o seu crime às
autoridades, e é detido, decisão essa que tomou
principalmente devido à influência de Sónia,
que lhe testemunhara a sua fé religiosa, que
progressivamente se foi aproximando dele, e a
quem permaneceu ligada, mesmo já depois de
Raskolnikov se encontrar a cumprir a pena.
Aquele que é aparentemente um mero caso
judicial, torna-se através desta obra de
Dostoievski um modelo denso e rico para a
Psicologia criminal, devido à profundidade da
análise psicológica que apresenta, e às
reflexões importantes para a Filosofia do
Direito. Eis algumas frases extraídas, que
podem considerar-se efectivamente citações-chave
da obra Crime e Castigo, e que constituem o pano
de fundo da análise a que procederemos nos
capítulos seguintes :
“O Homem tem tudo nas mãos, e se deixa
escapar tudo é porque tem medo”.
“O que mais receamos é o que nos faz saír
dos nossos hábitos”.
“As coisas mais insignificantes têm, às
vezes, maior importância e é geralmente por
elas que a gente se perde”.
“Bem, e se eu estiver enganado ? (...) Se
de facto o Homem, quero dizer, o género humano,
não for canalha ? Então tudo o mais não passa
de preconceitos, tão somente espalhados para
pôr medo... então não há limites... e é assim
mesmo que deve ser !”
“A Natureza corrige-se, emenda-se; se
assim não fosse, ficava-se sempre amarrado a
preconceitos. Sem isso não haveria grandes
homens”.
“O erro é uma coisa positiva, porque, por
ele, chega-se a descobrir a verdade”.
“Para proceder com inteligência, a
inteligência só, não basta”.
“O sofrimento acompanha sempre uma
inteligência elevada e um coração profundo. Os
homens verdadeiramente grandes devem, parece-
me, experimentar uma grande tristeza”.
“A mentira é o único privilégio do Homem
sobre todos os outros animais. (...) Mente, que
vais acabar atingindo a verdade.”
“Se tenho agora tanto medo, que será quando
for de verdade?”.1
O MEDO
O conceito de medo pode ser interpretado
como medo da morte, da velhice, da miséria, do
sofrimento, ou de outros males, ou no sentido
de temor, enquanto sentimento profundo de
reverência e até de respeito. No que concerne ao
conteúdo, pode ser experienciado no sentido1 Fédor DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo, Lisboa, Ed. Portugália Editora,1966. Esta é a edição por nós utilizada. Saiu recentemente uma novaedição em português, em Julho de 2009, feita a partir do russo, porAntónio Pescada, e publicada pela Editora Relógio d’Água.
moral (ter escrúpulos), religioso (temor a
Deus), filosófico (angústia existencial),
político (prudência na governação), patológico
(ter fobias), e apresenta-se igualmente como
uma área deveras significativa no que diz
respeito à Psicologia Criminal, onde a relação
com o crime é evidente : desde a pressuposta
ausência de medo no criminoso, até à reação
de medo que provoca a figura do criminoso (um
ladrão, um assassino, etc.).
Há vários graus de medo : susto, receio,
fobia, ou pânico. Pode ser exagerado (no caso
dos hipocondríacos), ou mesmo infundado (medo
perante algo que não existe). O medo tem uma
conotação negativa, e o seu inverso é
precisamente apreciado (significando coragem ou
audácia). Mas nem sempre há que encarar de
forma negativa o facto de se ter medo : é
positivo o facto de o ser humano ter medo, como
reação de defesa ou de prudência perante uma
ameaça ou uma situação arriscada, e por outro
lado o medo por vezes parece ser algo
atrativo, como por exemplo sucede na sensação
de prazer que provoca o suspense nos filmes de
terror. No quotidiano, o medo do desconhecido
por um lado atrai, por outro lado paralisa. Na
Natureza pode associar-se a um certo
fascínio : por exemplo uma tempestade, que por
um lado provoca medo, mas que por outro lado
atrai. Essa ambivalência também sucede nas
tragédias gregas, que provocam uma sensação
tenebrosa e simultanamente grandiosa. Por outro
lado, um certo grau de receio está por vezes
associado a outras realidades, mais
estritamente morais, que podem também ser
consideradas positivas: o pudor, enquanto
protecção da intimidade, ou a vergonha,
associada à não realização de uma conduta
considerada como negativa
Sob o ponto de vista psicológico, a obra de
Dostoievski é uma das obras da literatura
universal onde a análise das personagens é das
mais profundas, mergulhando nos mais recônditos
medos e anseios do ser humano. As personagens
da obra deste escritor, na sua grande parte,
aspiram à supressão daquilo que se pode
designar por medo, como é o caso de
Raskolnikov em Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos
Karamazov, e Kirilov e Stavroguine em Os
Possessos, que aspiram a vencer o medo e a
transformarem-se num novo homem, no super-homem,
como em Nietzsche. O medo assume aqui um
significado predominantemente moral, pois o
que estas últimas personagens referidas
desejam, no seu íntimo, é encontrarem-se para
além da distinção entre bem e mal, não estarem
sujeitas na sua consciência e na sua conduta a
esta distinção à qual, segundo elas, se vergam
os seres humanos, e poder-se então chegar
mesmo ao ponto de o homicídio não ser
condenável. O novo homem simbolizado nas obras
de Dostoievski em Raskolnik, em Ivan, em
Kirilov, ou em Stavroguine, é o homem que
aboliu o temor, e por conseguinte também a
própria fé religiosa, tendo em conta que o
temor a Deus é a razão de ser da fé religiosa,
e um importante princípio bíblico e
teológico.2
2 Cf. Bíblia Sagrada, Deuteronómio, 10, 12-13. Salmos, 25,12. Provérbios,1,7; 9,10; 14,26-27.Hebreus,12,28-29. Filipenses, 2,12, Lisboa, Ed. Difusora Bíblica, 1980. São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II, q.130,a.2,ad 1.São Paulo, Ed. Loyola, 1993.
Ao abolirem no novo homem o temor, os
escrúpulos, e a fé, fica abolida a necessidade
de Deus. Sem a ideia de Deus, os escrúpulos, os
preconceitos, e a própria moral não teriam
razão de ser. Acabar com o temor, com a fé, e
com Deus, significa acabar com a velha moral. O
novo homem, na obra deste escritor, é um homem
que se revolta contra Deus, que pretende
assumir os atributos do próprio Deus, e não
estar condenado à liberdade de escolher e de
ter que optar entre o bem e o mal, mas ser
senhor do bem e do mal, e poder então estar
para além desta dicotomia, uma visão que
influenciará o pensamento de Nietzsche, que
admirava o escritor russo. O novo homem
simbolizado em Raskolnoikov, bem como nas
personagens de outras obras de Dostoievski, é
um homem que no fundo quer ser Deus ou como
Deus, mas acaba por assumir não o papel de Deus
mas do próprio Demónio, (tal como o Demónio,
segundo a Bíblia Sagrada, quis ser Deus) : não
temente, mas demente (demos), não temerário mas
tenebroso, tenebroso e grandioso. A intrepidez
e a revolta irrompem com toda a sua pujança
nas personagens das obras deste escritor, indo
ao ponto de se cometerem homicídios e
suicídios, com justificações filosóficas, mas
simultaneamente com torturas da consciência, e
da busca angustiada do Divino.
Em Crime e Castigo, embora Raskolnikov se
encontrasse numa situação de indigência, não
foi devido a condicionamentos de ordem
monetária que cometeu o homicídio, nem sequer
para auxiliar os seus familiares, que se
encontravam em situação de indigência análoga,
a motivação de Raskolnivov era bem distinta :
“(...) Era necessário que eu soubesse o mais
depressa possível se sou um verme como toda a
gente, ou antes um homem. Sou capaz de me
ultrapassar ou não ? Ousarei erguer-me para
tomar o poder, ou não ? Serei uma criatura
trépida ? “.3
Conforme sublinha um estudioso da obra
dostoievskiana, Thurneysen, ao comentar esta
última citação, “As fronteiras da Humanidade
devem ser retiradas. É a pureza dos conceitos
de Deus, de homem e de vida que está aqui em
3 Fédor DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo, o.c., pág. 59.
jogo”,4 que exprime aliás já uma ideia bstante
presente numa outra obra de Dostoievski, Os
Irmãos Karamazov, onde o parricídio surge também
ele justificado : “se Deus não existe tudo é
permitido”.
Mas continuemos com as palavras de
Raskolnikov, que expõe à jovem Sónia, cuja
indigência levara à prostituição, e de quem se
fez amigo e confidente, as motivações do seu
crime :
“(...) Perguntava sempre a mim mesmo : Já
que os outros são imbecis, porque não tentarei
ser mais inteligente do que eles ? Sabia eu,
Sónia, que o mais inteligente é o que vence.
Os homens não mudam, não se pode alterar esta
regra nem vale a pena gastar esforços para tal.
É uma lei da Natureza. Quem se atreve a muito ,
tem razão aos olhos do povo; o que menospreza a
maior parte das coisas será um legislador, e
aquele que mais ousar, maiores direitos
alcança. Assim tem sido e continuará a ser. Só
um cego é que não vê isto.” 5
4 Eduard THURNEYSEN, Dostoievski ou les confins de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934, p.9.5 Crime e Castigo, o.c., p. 395.
Raskolnikov extraiu as consequências da
ideia do homem-deus. Segundo Raskolnikov, para
o homem destemido, para o homem forte, não são
permitides escrúpulos nem preconceitos, tudo é
permitido. Mas este tudo é permitido só desponta
em Raskolnikov como um grito de audácia e de
destemor face à sociedade, exprimindo Crime e
Castigo a convicção de que se torna impossível
encontrar uma solução humana para os problemas
do Homem numa sociedade tão injustamente
constituida. Marmeladov, um dos deserdados da
sorte em Crime e Castigo tem para Raskonikov este
desabafo : “Compreende, senhor, já não ter para
onde ír?”.6 Para atacar a ordem social todos
os caminhos são válidos, inclusive o
premeditado assassinato, e Raskolnikov procura
aí um caminho :
“O poder só é dado àquele que ousa baixar-
se para o tomar. Tudo reside aí : basta ousar !
Os homens dividem-se em dois grupos, os
ordinários e os extraordinários (...) O
segundo grupo compõe-se exclusivamente de
pessoas que violam a lei ou tendem, segundo o
6 Idem, p. 300.
seu temperamento, a violá-la : os seus crimes
são, já se vê, relativos e de gravidade
variável.7
Raskolnikov tentou, conforme confessa,
incluir-se na categoria dos segundos : quis ter
a estatura de Napoleão, e por isso matou. “É a
lei deles... sei agora, Sónia, que entre eles é
senhor o que se faz notar pela inteligència e
pela vontade. Quem muito ousa tem, a seus
olhos, razão. Quem os desafia e despreza impõe-
se-lhes ao respeito. Foi o que sempre se viu e
o que sempre se verá”.8
Como afrma Ermilov, um estudioso da obra do
escritor, “Aos olhos de Dostoievski, Napoleão
representava, por um lado, o individualismo
burguês fiel à divisa Tudo é permitido ! e, por
outro, a rebelião contra Deus e as tradições
seculares. Desejando imitar Napoleão,
Raskolnikov exprimia o seu ódio contra as leis
duma sociedade que, sob as próprias ordens de
Napoleão, não hesita em aniquilar cidades
7 Idem, p. 250-252.8 Crime e Castigo, o.c., p. 395.
inteiras e lançar bombas contra a população,
sem pensar na sorte horrorosa das crianças”.9
Se a Napoleão tudo foi permitido, e se esta
grande figura histórica atingiu a grandeza e a
glória, também Raskolnikov pretende atingir e
envergadura do grande estadista francês,
aspirando ao papel de super homem, passar para
além da dicotomia bem-mal, válida para o comum
dos mortais, e praticar o mal como pretende ou
permiti-lo. Raskolnikov deseja que o seu
orgulho se imponha ao sentimento de
inferioridade, de medo e de culpabilidade,
tornando possivel o próprio absurdo,
pertinentemente caracterizado por um autor como
Albert Camus :
“O sentimento do absurdo, quando dele se
pretende, em primeiro lugar, extrair uma regra
de acção, torna o homicídio pelo mmenos
indiferente e, por consequência, possivel. Se
em nada se acredita, se nada possui um sentido
e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo se
torna possivel e tudo carece de importância. O
pró e o contra deixam de existir; o assassinato
9 Vladimir ERMILOV, Dostoievski, Paris, Ed. Chapitre, s/d, p.14.
nem tem nem deixa de ter razão. Tanto se pode
atiçar os crematórios como dedicar-se seja quem
for ao tratamento dos leprosos. A maldade e a
virtude transformam-se em acaso ou em
capricho”.10
O SOFRIMENTO
O conceito de sofrimento, tal como o de
medo, visto no capítulo anterior, assume
diversas significações, tanto negativas como
positivas : no âmbito judicial (como pena
aplicada a quem cometeu um crime, visando a
reabilitação do indivíduo), no âmbito religioso
(como penitência, que visa a redenção da
pessoa), no âmbito económico (o esforço
laboral, visando obter ganhos com isso), no
âmbito da sexualidade (no sado-masoquismo),
etc.
As obras de Dostoievski são um retrato
deveras profundo no que diz respeito ao
10 Albert CAMUS, O Homem Revoltado, Lisboa, Ed, Livros do Brasil, 1951,p.14.
sofrimento do ser humano : a miséria, a
doença, as torturas de consciência, etc.
Perante o sofrimento, são possíveis várias
atitudes, como a indiferença, a aceitação, ou a
revolta, sendo esta última uma característica
peculiar das obras de Dostoievski: figuras
torturadas por escrúpulos, crentes assaltados
por dúvidas, ou personagens desesperadas e
perplexas, que as leva à revolta (por exemplo
a revolta de Ivan em Os Irmãos Karamazov). Uma
questão essencial, despoletadora da revolta
nas obras de Dostoievski, é precisamente o
facto de o ser humano sofrer, físicamente,
psicológicamente, e espiritualmente. Ora,
aquele que pretende abolir o medo é também
aquele que pretende abolir o sofrimento :
“Quem vencer o medo e o sofrimento torna-se ele
mesmo Deus. Existirá então uma nova vida, um
novo homem” – afirma Kirilov, numa outra obra
do autor, Os Possessos.11 Por seu turno, na obra
Os Irmãos Karamazov, são deveras significativas
as palavras de um dos irmãos - Dmitri - sobre
o sofrimento do ser humano :
11 Os Possessos, Lisboa, Ed. Publicações Europa-América, 1981, p. 144.
“E o triste olhar de Ceres apenas descobre
por toda a parte a profunda humilhação do
Homem. Meu caro, esta humilhação persiste
ainda. O Homem tem muito que sofrer na Terra.
Que sofrimentos atrozes... Quase só penso
nisso, meu irmão, no Homem humilhado.”12
Ainda nesta obra, um motivo importante da
revolta de Ivan é o sofrimento do ser humano,
principalmente o das crianças, quando esta
personagem afirma por exemplo :
“Dizem que sem isto não poderia o Homem
viver na Terra, porque não conheceria o bem e o
mal. Para quê, querer esta diabólica distinção
do bem e do mal, à custa de tais atrocidades ?
Toda a ciência do mundo não vale a súplica de
uma criatura do bom deus. E nada digo das dores
do adulto. Comeram a maçã, pois que se destruam
e que o diabo os leve ! Mas esses
anjinhos !...”13
Por seu turno, em Crime e Castigo o sofrimento
dos mais pobres desperta em Raskolnikov,
progressivamente, um sentimento de indignação e
12 Os Irmãos Karamazov, Lisboa, Ed. Amigos do Livro (s/d.), p.164.13 Idem, p. 359.
de revolta, sofrimento esse representado em
Sónia, que todavia não encara o sofrimento
dessa forma. Sónia é filha do primeiro
matrimónio de um antigo funcionário público,
Simeão Marmeladov, conselheiro titular. Este
tinha desposado pela segunda vez Catarina
Ivanova, uma viúva pobre, “por compaixão”, e
progressivamente envereda pelo alcoolismo,
sendo atingido por diversas desgraças. Crime e
Castigo inicia-se precisamente quando
Raskolnikov encontra Simeão Marmeladov numa
taberna e escuta atentamente da boca deste o
relato pungente da sua miséria e da sua
família. Relata a Raskolnikov como um dia
Catarina Ivanovna, minada pela tuberculose,
tinha censurado a enteada (Sónia), por esta em
nada ajudar e não fazer o que muitas outras
faziam, após o que Sónia saíra sem palavras, e
se entrega à prostituição, visando com isso o
seu sustento e o da sua família. Raskolnikov
virá a conhecer Sónia, a quem fica ligado,
encontrando nela a mesma situação em que ele
próprio se encontra : estar à margem da
sociedade.
CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA
A obra Crime e Castigo exprime a concepção de
que se torna impossível encontrar uma solução
humana para os problemas do Homem numa
sociedade tão injustamente constituída, e tem
subjacente uma visão antropológica com raízes
aliás em diversos autores, enquanto concepção
sobre o dado primordial do ser humano : as
pulsões agressivas segundo Lorenz,14 a
agressividade instintiva sugundo Freud,15 a
violência da condição natural dos homens (o
Homem lobo do Homem), segundo Hobbes,16 a
insociavel sociabilidade dos homens, segundo
Kant,17 o ódio universal da violência14 Konrad LORENZ, L’Homme dans le fleuve du vivant, Paris, Ed. Flammarion, 1981, pp. 346-362.15 Sigmund FREUD, Malaise dans la culture, Paris, Ed. PUF, 1995, oo. 51-54.16 Thomas HOBBES, Leviathan, Paris, Ed. Sirey, 1971, pp. 121-126.17 Immanuel KANT, “L’idée d’une histoire universelle du point de vue cosmopolitique”, in Opuscules sur l’Histoire, Paris, Ed. Flammarion, 1990, pp. 74-76.
revolucionária, segundo Maquiavel,18 ou o poder
como violência, segundo Arendt.19
Também em Dostoievski o Homem surge
representado de forma pessimista, cada ser
humano é considerado culpado de tudo para com
todos, como n’ O Processo de Kafka : “Toda a
gente tem culpa, toda... Se ao menos o mundo se
convencesse disso! ” – exclama Chatov em Os
Possessos.20 E mais à frente, uma outra
personagem desta obra afirma também : “Oh!
perdoemos, perdoemos primeiro que tudo,
perdoemos a toda a gente e sempre... Esperemos
que nos perdoem também. Sim, porque cada um de
nós , todos nós, somos culpados uns para com os
outros. Somos todos culpados”.21
Em Crime e Castigo afirma Raskolnikov : “O
homem é um ente vil... e vil é também aquele
que, por tal motivo, o classifica dessa forma.
(...) Olhai para os que passam na rua : cada
18 Nicolau MAQUIAVEL, “Des conspirations”, in Discours sur la première décade de Tite-Live, III, cap.VI, Paris, Ed. Frammarion, 1985, pp. 254-269.19 Hannah ARENDT, Du mensonge à la violence, Paris, Ed. Calmann Lévy, 1972, pp. 147-154.20 Os Possessos, o.c., vol. 3, p.114.21 Idem, p. 164.
qual é criminoso no seu íntimo, é, pior ainda,
um perfeito imbecil”.22
A perda de confiança nos outros,
despontaram para Raskolnikov como o lado hostil
da existência, e também o influenciaram no
cometimento do homicídio, além dos motivos
apresentados no capítulo anterior : abolir o
medo, os preconceitos, atingir a liberdade
suprema, e tudo ser permitido. Raskolnikov
levava na verdade uma vida completamente à
margem dos outros, como que escondido, numa
espécie de água furtada:
“ (...) quarto esconso, de dimensões
reduzidas e de aspecto miserável, com as
paredes forradas de papel amarelo, sujo e em
parte descolado; a cobertura era tão baixa que
um homem de estatura mediana teria dificuldade
em se mover ali sem bater com a cabeça no
tecto”.23
Raskolnikov sentia-se, de facto, estranho
em relação às outras pessoas : “Sentia tal
aversão a qualquer rosto humano, escondendo-se
22 Crime e Castigo, o.c., pp. 158, e 487.23Idem, o.c., p.33.
como uma tartaruga na casca, que até a vista da
criada lhe causava exasperação, embora a
rapariga estivesse encarregada de arrumar o
quarto”.24
A relação de Raskolnikov com os outros
seres humanos era algo impossível, maldito,
demoníaco, e nele foi crescendo o orgulho, que
confessa aliás como a sua característica.25
Deseja atingir a grandeza, e no crime que
comete vê uma forma de atingir essa grandeza, e
por isso não considera que tenha sido um acto
vil ou criminoso aquilo que cometeu,26 e
confessa aliás que não está arrependido do que
cometeu.27 Raskolnikov só reconhecia em si um
erro : o de haver fraquejado ao ter-se
denunciado a si próprio.28 Ao fazê-lo não
significa que estivesse arrependido do seu
acto, e quando alguém lhe perguntou porque se
tinha ido denunciar, respondeu que simplesmente
representara uma farsa, a do arrependimento.29
Raskolnikov foi-se denunciar a si próprio não
24 Idem.25 Idem, pp. 485 e 487.26 Idem, pp. 485, 486, e 507.27 Idem, p. 507.28 Idem, ibidem.29 Idem, p.500.
devido a arrependimento própriamente dito, mas
sim devido a remorso. Note-se que existe uma
diferença entre arrependimento e remorso :
enquanto o arrependimento reconhece que se fez
mal e se reconhece a falta para melhor se
distanciar dela e apreciar a graça da
convalescença, o remorso agarra-se à
necessidade doentia de sentir na pele a
dilaceração. O remorso não se arrepende da
falta, alimenta-se dela, como que a deseja
presa a si mesmo para sempre, mergulha numa
espécie de penitência perpétua, quando não se
realizou um acto de contrição e não se deu o
caso por encerrado.30
Ora, Raskolnikov não suportava o remorso, a
tortura da consciência, o peso social a ela
associada, o dever da responsabilidade perante
o seu ato, por isso se denunciou a si próprio,
em consequência do mal que segundo ele
infligiu a si próprio, o que o levou por fim a
30 Cf. esta distinção entre arrependimento e de remorso no pensador russoVladimir JANKÉLÉVITCH,”La Mauvaise Conscience”, in Philosophie Morale, Paris, Ed. Flammarion, 1998, e Fean LACROIX, Philosophie de la Culpabilité, Paris, Ed. PUF, 1977.
afirmar : “Não foi a velha que eu matei, foi a
mim próprio”.31
Raskolnikov partiu de uma experiência
negativa no seu relacionamento com os outros,
para chegar a uma experiência negativa consigo
próprio. Na sua revolta assumira o papel de
super-homem, mas ao desejar algo de supremo e
infinito sente-se confuso com aquilo que fez, e
exclama : “Mas, afinal, parece-me que sou mais
vil, mais abjecto do que o parasita que matei”.32
Frustrados os seus anseios, a sua
existência será redimida pela presença de Sónia
na sua vida, uma jovem imbuida de profunda fé
religiosa, e que, conforme sublinha um
conceituado estudioso do escritor, “encontra-se
na mesma posição em que, segundo as palavras de
Cristo, se encontram os pequenos, os
rejeitados, os publicanos e os pecadores.
Partilha um segredo com Cristo. Há um acordo
entre eles. (...) Sónia não justifica a
existência que leva, vive-a e suporta-a. Não
31 Crime e Castigo, o.c., p. 396.32 Idem, p. 265.
constrói sobre ela qualquer teoria nem tenta
sequer compreender; deixa-se envolver na sua
teia incompreensível, crendo que o deve fazer.
Tudo adquiriria um aspeto falso, demoníaco,
ilusório, se ela procurasse encontrar uma
justificação, e acabaria então por sucumbir.
Uma vez que Raskolnikov a quer arrastar nas
suas reflexões sobre quem tem o direito ou não
de viver, obtém esta resposta : Sim, é claro que eu
não conheço a Providência de Deus... mas porque pergunta o
que não se deve perguntar ? Qual a razão de perguntas tão
vazias ?”33
O niilismo em Raskolnikov, inerentemente
associado à nadificação dos valores éticos,
experiencia através de Sónia, progressivamente,
uma transmutação do nada negativo que
Raskolnikov cultiva e defende, para o Nada
obscuro mas positivo, que para o crente é
considerado Tudo, que se oferece à experiência
religiosa, e que acaba por tocar Raskolnikov,
como veremos seguidamente.
33 Romano GUARDINI, O mundo religioso de Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973, p.52.
A RELIGIOSIDADE
A religiosidade é o ponto de referência
fundamental dos romances de Dostoievski, o seu
ponto de partida e o seu ponto de chegada, uma
visão partilhada genericamente pelos
estudiosos de Dostoievski, como Thurneysen,
que resume bem essa visão ao afirmar que em
Dostoievski “quanto mais se considera a vida
com realismo, mais se desvela um misterioso
irreal. Quanto mais se avance no terrestre , mais
se nota na raíz de todas as coisas uma
realidade supra terrestre. Até ao ponto de , no fim
de contas, toda a existência face aos nossos
olhos acabar por ser envolvida pela tremenda
claridade de uma só questão, duma grande
qustão, a questão de Deus. (...) A questão de
Deus é a única questão que colocam todas as
obras de Dostoievski : Deus, a raíz de toda a
Vida, o fundamento de tudo o que está no mundo,
mas por isso mesmo também o que suspende esse
mundo, o que o interrompe e o inquieta. Todos
os heróis de Dostoievski tendem para Deus e
são por ele movidos”.34
Ao invés de Raskolnikov e de outras
personagens das obras do autor, Sónia não se
indigna perante a Vida. Como afirma um outro
autor, Romano Guardini, “ela não se defende,
ela aceita. Nada pedir nem recusar – assim foi uma
vez definido o grau mais sagrado do existir. Em
todo o paradoxo desta grave situação existe de
certo modo este conceito. Ela aceita a horrível
e imerecida miséria que cai sobre a família a
partir do momento em que o pai se entrega à
bebida. Não se defende contra a situação nem
mediante uma revolta interior nem exterior.
Também não se revolta quando a madrasta a
culpa, a ela, Sónia, de toda aquela miséria.
(...) Compaixão inesgotável, aquela abnegação que a
desarma, que faz com que aceite o destino, não
emite opiniões, não julga ninguém”.35
Pergunta-lhe Raskolnikov : “Rezas, portanto,
muito a Deus ?
34 Edouard THURNEYSEN, Dostoievski ou les confins de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934, p. 29.35 Romano GUARDINI, O mundo religioso de Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973.
Sónia manteve-se em silêncio, enquanto ele,
de pé, aguardava uma resposta.
Que seria eu sem Deus ? murmurou, pronunciando
as palavrs rápidas e enérgicamente, ao mesmo
tempo que o fitava com um brilho fugaz no olhar
e apertava a mão dele entre as suas...
E o que faz Deus por ti ? – perguntou ele,
aprofundando o interrogatório.
Sónia manteve-se calada durante mais tempo,
como se não encontrasse resposta. O peito magro
subia e descia ao ritmo da respiração agitada.
Exclamou então : Cale-se ! Não pergunte nada ! Não é
digno... gritou repentinamente num tom enérgico e
furioso (...) . – Ele faz tudo por mim!”.36
A atitude de Sónia perante as situações-
limite da existência, nomedamente o sofrimento
do ser humano, é portanto diferente, quando
comparada com a atitude de outras personagens
típicas das obras do escritor (Raskolnikov em
Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos Karamazov, ou
Kirilov em Os Possessos) : não a revolta mas a
aceitação do seu destino, alimentada pela sua
36 Crime e Castigo, o.c,. p.377.
fé religiosa, e que acabrá por tocar
Raskolnikov. Porém este último apresenta
frequentes sentimentos de ambivalência face a
essa questão, ora mostrando-se crente, como se
vê por exemplo no diálogo que estabelece com
uma das personagens, Porfírio, a quem confessa
a sua fé religiosa,37 ora mostrando-se
descrente : numa conversa com Sónia, afirma a
determinado passo : “- Quem sabe se Deus não
existe?”,38 e mais à frente diz à irmã :
“- Fé não tenho, mas fui visitar a mãe e
chorei nos braços dela. Não tenho fé... contudo
pedi-lhe que rezasse por mim. Porque será
isto ? Não compreendo os meus pensamentos”. 39
Raskolnikov encontra-se confuso, mas
progressivamente, tocado pelo testemunho de
Sónia, acaba por se abrir à experiência
religiosa de modo mais sólido, acaba por se
abrir a essa possibilidade, e exprime-a, ao
invés de outras personagens paradigmáticas da
mundovivência dostoievskiana : por exemplo Ivan
em Os Irmãos karamazov, ou Kirilov em Os Possessos. A
37Idem,p.252.38 Idem, p. 485.39 Idem, p.485.
revolta e a descrença de Raskolnikov acontecem
fundamentalmente em relação à sociedade, aos
homens em geral, embora ele venha a proceder
contra Deus, através da sua aspiração de
situar-se para além do bem e do mal, com o lema
do tudo é permitido, e o culto do super homem. Há
portanto uma ênfase muito forte na questão da
religião, em que acaba por enveredar o próprio
Raskolnikov, devido à influência de Sónia, a
quem pede para lhe ler passagens da Bíblia,
como por exemplo no Novo Testamento o episódio
da resurreição da morte de Lázaro, e ela lê.
Dialogam sobre a fé, e no decorrer da obra
Crime e Castigo Sónia admoesta-o várias vezes sob o
ponto de vista moral, uma moralidade que
apresenta justificada pelas convicções
religiosas.
É célebre nas obras de Dostoievski,
principalmente em Os Irmãos Karamazov, a defesa
feita por algumas personagens, do princípio
segundo o qual “se Deus não existe tudo é
permitido”.40 Smerdiakov Karamazov, em conversa
com o seu meio irmão Ivan Karamazov, confessa
40 Os Irmãos Karamazov, o.c., p. 80.
que o que o motivou a matar o próprio pai foi
um artigo que soube ter ele escrito, no qual
defende que “se Deus não existe tudo é
permitido”. Smerdiakov afirma que, na
inexistência de um Criador, de um grande Ser
moral, a sua atitude não lhe inspirava culpa,
nem mesmo se sentia degenerado. Pelo contrário,
sentia-se um daqueles homens-deus sobre os
quais recai uma liberdade infinita, permitindo-
lhe fazer tudo o que for possível, como sucede
com Raskolnikov em Crime e Castigo.
Também nesta última obra o princípio
segundo o qual “se Deus não existisse tudo
seria permitido” surge como fundamento da
condenação do homicídio, principalmente
através de Sónia, que alimenta os problemas de
consciência de Raskolnikov, o que se enquadra
na chamada teoria dos mandamentos divinos. Segundo
esta teoria, Deus deu a conhecer aos homens a
Sua vontade de diversas formas, tendo sido a
Bíblia, ou outro livro sagrado, um veículo
privilegiado dessse conhecimento, como por
exemplo no caso da Bíblia os Dez Mandamentos,
que são um conjunto de regras que pretendem
expressar a vontade de Deus e mostrar aos seres
humanos o que devem ou não devem fazer.
O melhor exemplo é o da ordem que, segundo
a Bíblia Sagrada, Deus deu a Abrãao : disse-lhe
que devia matar Isaac, o seu filho único.
Apesar de amar o seu filho, Abrãao prontificou-
se para obedecer à ordem divina, uma vez que
via na palavra de Deus a expressão do bem. Após
Abrãao ter provado a sua fé, Isaac foi salvo
pelas mãos de um Anjo enviado por Deus. Porém,
deveria realmente Abrãao matar Isaac só porque
essa era a vontade de Deus ? Imaginemos que
Deus não tinha impedido a morte de Isaac. Seria
a morte de Isaac moralmente aceitável apenas
por ser ordenada por Deus ?
Um dos Dez Mandamentos contidos na Bíblia
Sagrada, o quinto, afirma : “Não matarás.”
Será que uma coisa é moralmente condenável,
neste caso o homicído, devido ao facto de ser
condenada por Deus ? Determinadas acções,
como o homicídio, são erradas porque Deus
afirma que o são, ou Deus afirma que o são,
porque elas são intrinsecamente erradas ? Não
serão elas erradas independentemente de
qualquer perspetiva, mesmo da perspetiva divina
?
O Direito através da lei expressa uma
moral, porém o fundamento do Direito, como
aliás de toda a conduta moral, não têm que
ser a vontade de Deus, o medo do castigo
divino, ou o interesse de alcançar um prémio no
Céu. Como afirma Kant, no início do prólogo à
primeira edição da sua obra A religião nos limites da
simpels razão, a moral enquanto fundada no
conceito do Homem como ser livre, que pela
razão vincula a si leis incondicionadas, não
precisa da ideia de um Ser acima dele para
conhecer o seu dever. A moral não precisa de
modo algum da religião, porque se basta a si
própria em virtude da razão prática, que por
seu turno se basta a si própria para determinar
o agir. A grandeza do homem está em reconhecer
dentro de si mesmo uma lei moral, através da
sua própria racionalidade, sem para isso
precisar da divindade. 41
O motivo porque não se deve matar não está,
ou não deve estar, nos mandamentos divinos, mas
41 Cf. KANT, A religião nos limites da simples razão, Lisboa, Ed. 70, 1992
sim na dignidade do próprio ser humano, conforme
defende Kant, e porque o ser humano, enquanto
tal definido, tem direitos, neste caso o
direito à vida, conforme afirma a Declaração
Universal dos Direitos do Homem : “Todo o indivíduo
tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal”. 42
Isso não significa não se reconhecer o
papel e a importância que a religião tem ou
pode ter, na vida do ser humano. Isso não
significa pretender excluir a religião da
sociedade, como desejava o niilismo. Isso não
significa deixar de respeitar a religião, mas
sim separar os territórios entre si,
reconhecer a independência e a não necessidade
de um em relação a outro, o que deve
efectivamente ocorrer com os princípios
éticos, políticos, e com o poder judicial.
O condicionamento da religião sobre as
decisões políticas pode conduzir ao extremismo
e ao fundamentalismo, como sucede com as
chamadas guerras santas, e a sua influência pode
aliás existir sobre o próprio poder judicial :
42 Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU, 1948, artigo 3º.
por exemplo em Portugal, ainda não há muito
tempo atrás, devido à Concordata entre o Estado
Novo e a Religião Católica, essa influência
fazia-se sentir, por exemplo nas leis sobre o
matrimónio, e mesmo ainda hoje a determinação
dos mandamentos religiosos tem bastante peso
em alguns países islâmicos, quer sobre o poder
político, quer sobre os próprios tribunais.
Ora, conforme afirma ainda a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, “Toda a pessoa tem
direito, em plena igualdade, a que a sua causa
seja equitativa e publicamente julgada por um
tribunal independente e imparcial 43 que decida dos
seus direitos e obrigações ou das razões de
qualquer acusação em matéria penal que contra
ela seja deduzida”,44 independentemente da
religião ou de outra influência qualquer (por
exemplo Tribunais políticos).
Se assim não for, e se os princípios que
determinam a prática jurídica forem princípios
religiosos, políticos, ou quaisquer outros,
atenta-se contra a laicidade do Estado,
43 Realçamos a expressão tribunal independent e imparcial.44 IDEM, artigo 10º.
procede-se contra a Constituição, desrespeita-se
as disposições deontológicas da Advocacia, e
viola-se os princípios mais elementares do
Estado de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- DOSTOIEVSKI, Fédor Mikhailovitch, Crime e
Castigo, Lisboa, Ed. Portugália Editora, 1966.
- IDEM, Os Irmãos Karamazov,Lisboa,Ed. Amigos
do Livro,(s/d).
- IDEM, Os Possessos, Lisboa, Ed. Publicações
Europa-América, 1981.
- CAMUS, Albert, O Homem Revoltado, Lisboa,
Ed. Livros do Brasil,1951.
- ERMILOV, Vladimir, Dostoievski, Paris,
Ed.Chapitre, s/d.
- EVDOKIMOFF, Paul, Dostoievski et le problème du
mal, Paris, Ed. Albin MicheL, 1954.
- GUARDINI, Romano, O mundo religioso de
Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973.
- KANT, A religião nos limites da simples razão,
Lisboa, Ed. 70, 1992.
- MURCHO, Desidério (e outros), O Prazer de
Pensar, Lisboa. Ed. Plátano Editora, 2000.
- THURNEYSEN, Edouard, Dostoievski ou les confins
de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934.
- Bíblia Sagrada, Lisboa, Ed. Difusora
Bíblica, 1980.
- Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU,