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DIREITO E LITERATURA : CRIME E CASTIGO DE DOSTOIEVSKI Por : Victor Correia A RELAÇÃO ENTRE CRIME E CASTIGO Os conceitos de crime e de castigo conduzem- nos às teorias da culpabilidade, da imputabilidade, e a estas mesmas enquanto pressuposto penal. Tanto umas como outras se caracterizam por uma constante e intensa evolução histórica, indo desde os tempos em que bastava o simples nexo causal entre a conduta e o resultado, advindo daí uma culpabilidade imediata e objectiva, até aos tempos atuais em que a culpabilidade apresenta como elementos essenciais a imputabilidade, a consciência da
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Dostoievski e o Homem

Apr 24, 2023

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Page 1: Dostoievski e o Homem

DIREITO E LITERATURA : CRIME E CASTIGO DE

DOSTOIEVSKI

Por : Victor Correia

A RELAÇÃO ENTRE CRIME E CASTIGO

Os conceitos de crime e de castigo conduzem-

nos às teorias da culpabilidade, da

imputabilidade, e a estas mesmas enquanto

pressuposto penal. Tanto umas como outras se

caracterizam por uma constante e intensa

evolução histórica, indo desde os tempos em que

bastava o simples nexo causal entre a conduta e

o resultado, advindo daí uma culpabilidade

imediata e objectiva, até aos tempos atuais em

que a culpabilidade apresenta como elementos

essenciais a imputabilidade, a consciência da

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ilicitude, os objectivos, e o contexto da

conduta.

Sob o ponto de vista analítico, crime é uma

acção ou omissão típica, ilícita, e culpável.

Sob o ponto de vista sociológico, crime é uma

infracção de um costume ou de uma lei da

sociedade, contra a qual esta reage, aplicando

através das vias legais um castigo ao respetivo

infractor. A culpabilidade constitui um

pressuposto da penalização, e a perigosidade um

pressuposto da medida de coação. Por seu

turno, castigo (também designado por pena,

punição, sanção, expiação, ou disciplina)

constitui um processo a que a pessoa é sujeita,

pontual ou duradouro, inflingido devido a uma

atitude dessa pessoa considerada como

repreensível, imoral, ou imprópria. O castigo,

ao impor algo de desagradável à pessoa, tem a

finalidade de a chamar à ordem, e de a

dissuadir de continuar com a atitude

penalizada. O castigo pode ser infligido do

Estado para com os seus cidadãos, duma armada

para com os seus prisioneiros, dum patrão para

com os seus empregados, dum professor para com

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os seus alunos, dum pai para com o seus filhos,

dum dono para com o seu animal de companhia,

etc.

O castigo enquanto tal não tem

necessáriamente um significado negativo : além

de punidor, corretor e de dissuasor de uma

infração, ou de constituir uma medida de defesa

por parte da sociedade. O castigo está também

pedagogicamente marcado pelo desejo de formar e

de ensinar, a que tradicionalmente não é

alheio o princípio familiar descrito no adágio

: Quem ama bem castiga bem. Naturalmente, tudo

depende do tipo de castigo, pois se for um

castigo físico, na cultura ocidental

contemporânea esse modo de atuar perdeu muito

do seu uso nas práticas quotidianas, e passou

mesmo a ser interdito e punível no âmbito

escolar, e por outro lado, mesmo o castigo

não físico como método de aprendizagem também é

contestado, pela generalidade das correntes

da moderna Pedagogia. Porém, como ato

espontâneo ou planeado, enquanto retaliação de

uma conduta negativa ou julgada negativa, a

tendência para castigar o ofensor continua

Page 4: Dostoievski e o Homem

presente no dia a dia, quer como defesa, quer

como vingança.

O termo talião, de origem latina (talio + onis),

significa castigo na mesma medida da culpa, e

foi a primeira delimitação histórica do castigo

: o crime deveria atingir o seu infrator na

mesma forma e intensidade do mal causado, como

se expressa no célebre adágio olho por olho, dente

por dente. Mas a proporcionalidade do castigo em

relação ao crime não deve ser feita destes

moldes, como ensinou o Direito romano, que

contribuiu para a evolução do Direito Penal,

fazendo distinções no crime : o propósito, o

ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, o

simples dolo, ou o dolo mau. Por outro lado, a

infabilidade da pena em relação àquilo que se

considera crime é-nos negada pela própria

História : algumas condutas que hoje se

consideram como um direito (sob o ponto de

vista do direito subjectivo) , outrora não o

eram, e pelo contrário até eram mesmo

consideradas como um crime, e por outro lado,

mesmo ainda hoje algumas coisas que se

Page 5: Dostoievski e o Homem

consideram como um direito, noutros lugares do

mundo não o são, sendo mesmo um crime.

O princípio de razão estipula que tudo o

que é tem uma razão de ser. Uma justificação é

aquilo que tem um fundamento justo, que é

legítimo, motivado (por exemplo um castigo

justificado). No sentido moral e jurídico uma

justificação é a ação de fundamentar em direito

o que se decidiu ou efectuou, mas nem sempre

assim sucede, podendo chegar-se à ausência

total de quaisqueres justificações, sejam elas

boas ou más, e até mesmo chegar-se à dimensão

do absurdo, como sucede na obra O Processo, de

Kafka, em que há castigo sem crime, e sem ser

apresentada justificação. Distinguimos entre

justificação e crime, pois poderia ter havido

crime e não justificação para o castigo (por

exemplo um castigo injusto, apesar de ter

havido crime), ou uma justificação infundada,

por não ter havido pura e simplesmente crime.

Assim como o facto dos direitos implicarem

deveres (da parte das outras pessoas, também

elas detentoras de direitos), e o facto de ter

deveres implicar ter direitos (de quem os tem

Page 6: Dostoievski e o Homem

ou das outras pessoas), nem sempre suceder,

algo semelhante surge na relação entre crime e

castigo, que não é algo linear, evidente, e

absoluta. Existem casos de crime sem castigo :

por exemplo por favoritismo em relação a

determinadas pessoas ou classes sociais, algo

muito comum no passado, mas que por vezes ainda

hoje chega a acontecer, ou por falta de

provas, devendo então operar-se a distinção

entre crime e condenação, e crime sem

condenação. Pode também haver crime,

condenação, e não castigo : amnistias,

indultos, ou fuga à Justiça por parte do

condenado. Mas também sucede haver castigos sem

ter havido crime : no âmbito jurídico, os erros

judiciais, no âmbito pedagógico, os castigos

dos pais e educadores, no âmbito profissional,

os castigos dos patrões em relação aos

empregados, na prisão, os castigos aos detidos,

na religião, as práticas penitenciais, na

sexualidade, o fetiche sado-masoquista, ou

ainda os castigos de um dono para com o seu

animal de companhia. O próprio castigo pode ser

um crime, quer no âmbito privado (por exemplo

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a violência doméstica), quer no âmbito público

(por exemplo determinados castigos que são

considerados crime contra a Humanidade). Todos

estes exemplos mostram que a relação entre o

crime e o castigo não é algo linear, ou

consequente, destacando-se como o melhor

exemplo os castigos infligidos pelas práticas

pedagógicas tradicionais, os mandados infligir

por algumas religiões, e os de auto-punição

fetichista.

Vamos considerar na nossa análise sobre a

obra Crime e Castigo de Dostoievski por um lado o

crime castigado, e por outro lado a prática do

castigo como não crime, embora mesmo neste

autor a relação entre crime e castigo, e o seu

significado, não seja também algo linear, ou

evidente, como veremos, nomeadamente encarado à

luz do contexto ideológico de Dostoievski.

O CONTEXTO IDEOLÓGICO DE DOSTOIEVSKI

O niilismo (do latim nihil, e que significa

“nada”), é um conceito que afecta as mais

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diferentes áreas do mundo contemporâneo :

Literatura e Arte, Ciências Sociais e Humanas,

Ética e Direito, Ciência e Política, Filosofia

e Religião, e com diferentes significados nos

autores geralmente associados a esse conceito

(Hegel, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger,

entre outros). O seu objectivo (grosso modo, a

experiência do nada), pode ser interpretado

segundo uma perspetiva positiva (por exemplo no

budismo), ou negativa (por exemplo no campo dos

valores éticos).

O conceito de niilismo, como é geralmente

interpretado, significa a desvalorização do

sentido da existência, a ausência de

finalidade, a morte da verdade e dos

princípios, a depreciação dos valores

tradicionais, a dissolução dos critérios

absolutos. A figura do niilista, pela

apropriação do poder de criar e de aniquilar,

que outrora pertencia a Deus, situa-se no

movimento de secularização e de emancipação

como um momento radical e extremo em que se

misturam os conceitos de cético, descrente,

libertário, ateu, utopista, materialista,

Page 9: Dostoievski e o Homem

progressista, etc. Podemos encontrá-lo por

exemplo nos Enciclopedistas do século XVIII,

na Arte (nos surrealistas), e na Política (nos

anarquistas), etc.

O termo niilismo impõs-se historicamente

como classificação dos ideais do activismo

absoluto, que radicavam numa interpretação de

Hegel, de tal modo que na década de 1840-1850

niilismo e niilista eram sinónimos de hegelianismo ou

de hegeliano. Na Rússia do século XIX a

influência da ideologia alemã era dominante,

por exemplo a primeira universidade russa, a de

Moscovo, fundada em 1750, era alemã. A lenta

colonização da Rússia pelos educadores, burocratas

e militaristas alemães, teve o seu início no

reinado do czar Pedro o Grande, e transforma-se

graças aos cuidados do czar Nicolau I em

germanização sistemática.

Nomes de pensadores políticos como os de

Feurbach, Ruge, Marx, Bauer, Stirner, de entre

outros, foram-se impondo na Rússia. Max

Stirner, antigo aluno de Hegel, de Feurbach, de

Fichte, e herdeiro do niilismo de Schopenhauer,

radicalizara e concretizara o conceito

Page 10: Dostoievski e o Homem

hegeliano de negação, convertendo-o em

princípio político de revolução. O niilismo

passivo transforma-se em Stirner num niilismo

ativo, individualista, antecipando não só o

niiilismo anarquista mas a filosofia do super-

homem em Nietzsche. Outros nomes foram surgindo

: Turgenev, Bielinski, Herzen, Pisarev,

Bakunin, fiéis ativistas políticos e

fomentadores do niilismo russo. Estes autores

pretendiam a libertação do peso da História, e

de todos os conceitos e impedimentos herdados,

que segundo eles impossibilitavam o progresso

da Humanidade.

Bakunin, denominado o pai do niilismo prático,

conhecedor do pensamento de Kant, Fichte,

Schopenhauer, e sobretudo de Hegel, punha a

tónica no conceito hegeliano de negação visando

a praxis transformadora da realidade social

existente. A união entre aniquilação e criação

transparecia no pensamento deste autor, para

quem a aniquilação e a destruição eram a

fonte de toda a vida e de toda a criação, e de

reforma da sociedade.

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Dostoievski foi um entusiasta dos ideais

do niilismo russo, e simultaneamente seu

critico. O conhecimento que este autor obteve,

nos seus anos vividos em São Petersburgo,

destas ideologias e movimentos, teve sobre ele

grande influência. Frequentador de um desses

circulos intelectuais, onde se defendiam os

ideais do niilismo, e onde se incluia a revolta

contra os Czares, Dostoievski foi feito

prisioneiro, juntamente com outros elementos

do grupo, e foi condenado à morte, tendo obtido

a alteração da pena no momento em que os

soldados se encontravam já no patíbulo. O

conhecimento que Dostoievski teve, a título

pessoal, dos grupos revolucionários do seu

tempo, a militância em um deles, o malogro

desse mesmo grupo em que Dostoievski militou, a

condenação à morte, e a suspensão dessa pena,

substituida pelo exilio e trabalhos forçados,

marcararam-no profundamente. Na verdade, muitas

das personagens das obras de Dostoievski são

niilistas, como é o caso da personagem

principal de Crime e Castigo : Raskolnikov.

Page 12: Dostoievski e o Homem

A OBRA CRIME E CASTIGO

Fiodor Mikhailovich Dostoievski (Moscovo,

1821 – São Petersburgo, 1881) é considerado um

dos maiores autores da literatura russa e

mundial, e é frequentemente citado e comentado

nos estudos sobre Direito e Literatura. É um

dos percursores do Existencialismo, e da

Psicanálise, e o conceito a que deu origem

(dostoievskiano) significa o mundo da auto-

destruição, do homicídio, do suicídio, da

embriaguez e da loucura. As questões do

ateísmo, do mundo dos libertários, da busca do

sentido da Vida, da angústia existencial, dos

problemas que a Razão e a Ciência não resolvem,

do vazio, do sem sentido, da aniquilação e do

nada, concebidos em sentido depreciativo,

estão presentes nas obras deste autor, de que

um dos melhores exemplos é a obra Crime e Castigo.

Esta obra, publicada em 1866, foi a

primeira deste autor a ser traduzida para

línguas da Europa Ocidental, é a sua obra mais

célebre, e por seu turno é considerada uma das

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obras mais célebres da literatura universal.

Narra a história de Rodin Românovitch

Raskolnikov, estudante de Direito, extremamente

pobre economicamente, e que vive angustiado

pelo desejo de realizar algo de importante,

dividindo os seres humanos em ordinários e

extraordinários, numa tentativa de explicar a

quebra das regras em prol do avanço da

Humanidade. Seguindo na prática esta

classificação, planeia e executa o homicídio de

uma idosa usurária, e de uma irmã desta que

testemunhou o crime, um homicídio executado

portanto não devido a motivos económicos,

apesar do seu executante viver pobre

economicamente, nem muito menos devido a

motivos passionais. De certo modo estamos

próximos do absurdo do Processo de Kafka : em

Crime e Castigo a pessoa assassinada não tinha

feito nenhum mal, o assassino sabia disso,

nem sequer a conhecia, estava lúcido do seu

acto, e embora vivendo pobre economicamente

não tirou qualquer proveito económico disso,

nem de modo nenhum o pretendia. Para acumular o

aburdo, temos o facto de uma pessoa inocente

Page 14: Dostoievski e o Homem

ter sido presa em vez do autor do crime, de não

haver provas contra o autor do crime, e este se

ter ido acusar a si próprio.

O livro relata então, pormenorizadamente,

as lutas psicológicas vividas pelo autor do

crime, os problemas de consciência, o seu

remorso. Raskolnikov acaba por por tomar a

decisão de confessar o seu crime às

autoridades, e é detido, decisão essa que tomou

principalmente devido à influência de Sónia,

que lhe testemunhara a sua fé religiosa, que

progressivamente se foi aproximando dele, e a

quem permaneceu ligada, mesmo já depois de

Raskolnikov se encontrar a cumprir a pena.

Aquele que é aparentemente um mero caso

judicial, torna-se através desta obra de

Dostoievski um modelo denso e rico para a

Psicologia criminal, devido à profundidade da

análise psicológica que apresenta, e às

reflexões importantes para a Filosofia do

Direito. Eis algumas frases extraídas, que

podem considerar-se efectivamente citações-chave

da obra Crime e Castigo, e que constituem o pano

Page 15: Dostoievski e o Homem

de fundo da análise a que procederemos nos

capítulos seguintes :

“O Homem tem tudo nas mãos, e se deixa

escapar tudo é porque tem medo”.

“O que mais receamos é o que nos faz saír

dos nossos hábitos”.

“As coisas mais insignificantes têm, às

vezes, maior importância e é geralmente por

elas que a gente se perde”.

“Bem, e se eu estiver enganado ? (...) Se

de facto o Homem, quero dizer, o género humano,

não for canalha ? Então tudo o mais não passa

de preconceitos, tão somente espalhados para

pôr medo... então não há limites... e é assim

mesmo que deve ser !”

“A Natureza corrige-se, emenda-se; se

assim não fosse, ficava-se sempre amarrado a

preconceitos. Sem isso não haveria grandes

homens”.

“O erro é uma coisa positiva, porque, por

ele, chega-se a descobrir a verdade”.

Page 16: Dostoievski e o Homem

“Para proceder com inteligência, a

inteligência só, não basta”.

“O sofrimento acompanha sempre uma

inteligência elevada e um coração profundo. Os

homens verdadeiramente grandes devem, parece-

me, experimentar uma grande tristeza”.

“A mentira é o único privilégio do Homem

sobre todos os outros animais. (...) Mente, que

vais acabar atingindo a verdade.”

“Se tenho agora tanto medo, que será quando

for de verdade?”.1

O MEDO

O conceito de medo pode ser interpretado

como medo da morte, da velhice, da miséria, do

sofrimento, ou de outros males, ou no sentido

de temor, enquanto sentimento profundo de

reverência e até de respeito. No que concerne ao

conteúdo, pode ser experienciado no sentido1 Fédor DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo, Lisboa, Ed. Portugália Editora,1966. Esta é a edição por nós utilizada. Saiu recentemente uma novaedição em português, em Julho de 2009, feita a partir do russo, porAntónio Pescada, e publicada pela Editora Relógio d’Água.

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moral (ter escrúpulos), religioso (temor a

Deus), filosófico (angústia existencial),

político (prudência na governação), patológico

(ter fobias), e apresenta-se igualmente como

uma área deveras significativa no que diz

respeito à Psicologia Criminal, onde a relação

com o crime é evidente : desde a pressuposta

ausência de medo no criminoso, até à reação

de medo que provoca a figura do criminoso (um

ladrão, um assassino, etc.).

Há vários graus de medo : susto, receio,

fobia, ou pânico. Pode ser exagerado (no caso

dos hipocondríacos), ou mesmo infundado (medo

perante algo que não existe). O medo tem uma

conotação negativa, e o seu inverso é

precisamente apreciado (significando coragem ou

audácia). Mas nem sempre há que encarar de

forma negativa o facto de se ter medo : é

positivo o facto de o ser humano ter medo, como

reação de defesa ou de prudência perante uma

ameaça ou uma situação arriscada, e por outro

lado o medo por vezes parece ser algo

atrativo, como por exemplo sucede na sensação

de prazer que provoca o suspense nos filmes de

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terror. No quotidiano, o medo do desconhecido

por um lado atrai, por outro lado paralisa. Na

Natureza pode associar-se a um certo

fascínio : por exemplo uma tempestade, que por

um lado provoca medo, mas que por outro lado

atrai. Essa ambivalência também sucede nas

tragédias gregas, que provocam uma sensação

tenebrosa e simultanamente grandiosa. Por outro

lado, um certo grau de receio está por vezes

associado a outras realidades, mais

estritamente morais, que podem também ser

consideradas positivas: o pudor, enquanto

protecção da intimidade, ou a vergonha,

associada à não realização de uma conduta

considerada como negativa

Sob o ponto de vista psicológico, a obra de

Dostoievski é uma das obras da literatura

universal onde a análise das personagens é das

mais profundas, mergulhando nos mais recônditos

medos e anseios do ser humano. As personagens

da obra deste escritor, na sua grande parte,

aspiram à supressão daquilo que se pode

designar por medo, como é o caso de

Raskolnikov em Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos

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Karamazov, e Kirilov e Stavroguine em Os

Possessos, que aspiram a vencer o medo e a

transformarem-se num novo homem, no super-homem,

como em Nietzsche. O medo assume aqui um

significado predominantemente moral, pois o

que estas últimas personagens referidas

desejam, no seu íntimo, é encontrarem-se para

além da distinção entre bem e mal, não estarem

sujeitas na sua consciência e na sua conduta a

esta distinção à qual, segundo elas, se vergam

os seres humanos, e poder-se então chegar

mesmo ao ponto de o homicídio não ser

condenável. O novo homem simbolizado nas obras

de Dostoievski em Raskolnik, em Ivan, em

Kirilov, ou em Stavroguine, é o homem que

aboliu o temor, e por conseguinte também a

própria fé religiosa, tendo em conta que o

temor a Deus é a razão de ser da fé religiosa,

e um importante princípio bíblico e

teológico.2

2 Cf. Bíblia Sagrada, Deuteronómio, 10, 12-13. Salmos, 25,12. Provérbios,1,7; 9,10; 14,26-27.Hebreus,12,28-29. Filipenses, 2,12, Lisboa, Ed. Difusora Bíblica, 1980. São TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II, q.130,a.2,ad 1.São Paulo, Ed. Loyola, 1993.

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Ao abolirem no novo homem o temor, os

escrúpulos, e a fé, fica abolida a necessidade

de Deus. Sem a ideia de Deus, os escrúpulos, os

preconceitos, e a própria moral não teriam

razão de ser. Acabar com o temor, com a fé, e

com Deus, significa acabar com a velha moral. O

novo homem, na obra deste escritor, é um homem

que se revolta contra Deus, que pretende

assumir os atributos do próprio Deus, e não

estar condenado à liberdade de escolher e de

ter que optar entre o bem e o mal, mas ser

senhor do bem e do mal, e poder então estar

para além desta dicotomia, uma visão que

influenciará o pensamento de Nietzsche, que

admirava o escritor russo. O novo homem

simbolizado em Raskolnoikov, bem como nas

personagens de outras obras de Dostoievski, é

um homem que no fundo quer ser Deus ou como

Deus, mas acaba por assumir não o papel de Deus

mas do próprio Demónio, (tal como o Demónio,

segundo a Bíblia Sagrada, quis ser Deus) : não

temente, mas demente (demos), não temerário mas

tenebroso, tenebroso e grandioso. A intrepidez

e a revolta irrompem com toda a sua pujança

Page 21: Dostoievski e o Homem

nas personagens das obras deste escritor, indo

ao ponto de se cometerem homicídios e

suicídios, com justificações filosóficas, mas

simultaneamente com torturas da consciência, e

da busca angustiada do Divino.

Em Crime e Castigo, embora Raskolnikov se

encontrasse numa situação de indigência, não

foi devido a condicionamentos de ordem

monetária que cometeu o homicídio, nem sequer

para auxiliar os seus familiares, que se

encontravam em situação de indigência análoga,

a motivação de Raskolnivov era bem distinta :

“(...) Era necessário que eu soubesse o mais

depressa possível se sou um verme como toda a

gente, ou antes um homem. Sou capaz de me

ultrapassar ou não ? Ousarei erguer-me para

tomar o poder, ou não ? Serei uma criatura

trépida ? “.3

Conforme sublinha um estudioso da obra

dostoievskiana, Thurneysen, ao comentar esta

última citação, “As fronteiras da Humanidade

devem ser retiradas. É a pureza dos conceitos

de Deus, de homem e de vida que está aqui em

3 Fédor DOSTOIEVSKI, Crime e Castigo, o.c., pág. 59.

Page 22: Dostoievski e o Homem

jogo”,4 que exprime aliás já uma ideia bstante

presente numa outra obra de Dostoievski, Os

Irmãos Karamazov, onde o parricídio surge também

ele justificado : “se Deus não existe tudo é

permitido”.

Mas continuemos com as palavras de

Raskolnikov, que expõe à jovem Sónia, cuja

indigência levara à prostituição, e de quem se

fez amigo e confidente, as motivações do seu

crime :

“(...) Perguntava sempre a mim mesmo : Já

que os outros são imbecis, porque não tentarei

ser mais inteligente do que eles ? Sabia eu,

Sónia, que o mais inteligente é o que vence.

Os homens não mudam, não se pode alterar esta

regra nem vale a pena gastar esforços para tal.

É uma lei da Natureza. Quem se atreve a muito ,

tem razão aos olhos do povo; o que menospreza a

maior parte das coisas será um legislador, e

aquele que mais ousar, maiores direitos

alcança. Assim tem sido e continuará a ser. Só

um cego é que não vê isto.” 5

4 Eduard THURNEYSEN, Dostoievski ou les confins de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934, p.9.5 Crime e Castigo, o.c., p. 395.

Page 23: Dostoievski e o Homem

Raskolnikov extraiu as consequências da

ideia do homem-deus. Segundo Raskolnikov, para

o homem destemido, para o homem forte, não são

permitides escrúpulos nem preconceitos, tudo é

permitido. Mas este tudo é permitido só desponta

em Raskolnikov como um grito de audácia e de

destemor face à sociedade, exprimindo Crime e

Castigo a convicção de que se torna impossível

encontrar uma solução humana para os problemas

do Homem numa sociedade tão injustamente

constituida. Marmeladov, um dos deserdados da

sorte em Crime e Castigo tem para Raskonikov este

desabafo : “Compreende, senhor, já não ter para

onde ír?”.6 Para atacar a ordem social todos

os caminhos são válidos, inclusive o

premeditado assassinato, e Raskolnikov procura

aí um caminho :

“O poder só é dado àquele que ousa baixar-

se para o tomar. Tudo reside aí : basta ousar !

Os homens dividem-se em dois grupos, os

ordinários e os extraordinários (...) O

segundo grupo compõe-se exclusivamente de

pessoas que violam a lei ou tendem, segundo o

6 Idem, p. 300.

Page 24: Dostoievski e o Homem

seu temperamento, a violá-la : os seus crimes

são, já se vê, relativos e de gravidade

variável.7

Raskolnikov tentou, conforme confessa,

incluir-se na categoria dos segundos : quis ter

a estatura de Napoleão, e por isso matou. “É a

lei deles... sei agora, Sónia, que entre eles é

senhor o que se faz notar pela inteligència e

pela vontade. Quem muito ousa tem, a seus

olhos, razão. Quem os desafia e despreza impõe-

se-lhes ao respeito. Foi o que sempre se viu e

o que sempre se verá”.8

Como afrma Ermilov, um estudioso da obra do

escritor, “Aos olhos de Dostoievski, Napoleão

representava, por um lado, o individualismo

burguês fiel à divisa Tudo é permitido ! e, por

outro, a rebelião contra Deus e as tradições

seculares. Desejando imitar Napoleão,

Raskolnikov exprimia o seu ódio contra as leis

duma sociedade que, sob as próprias ordens de

Napoleão, não hesita em aniquilar cidades

7 Idem, p. 250-252.8 Crime e Castigo, o.c., p. 395.

Page 25: Dostoievski e o Homem

inteiras e lançar bombas contra a população,

sem pensar na sorte horrorosa das crianças”.9

Se a Napoleão tudo foi permitido, e se esta

grande figura histórica atingiu a grandeza e a

glória, também Raskolnikov pretende atingir e

envergadura do grande estadista francês,

aspirando ao papel de super homem, passar para

além da dicotomia bem-mal, válida para o comum

dos mortais, e praticar o mal como pretende ou

permiti-lo. Raskolnikov deseja que o seu

orgulho se imponha ao sentimento de

inferioridade, de medo e de culpabilidade,

tornando possivel o próprio absurdo,

pertinentemente caracterizado por um autor como

Albert Camus :

“O sentimento do absurdo, quando dele se

pretende, em primeiro lugar, extrair uma regra

de acção, torna o homicídio pelo mmenos

indiferente e, por consequência, possivel. Se

em nada se acredita, se nada possui um sentido

e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo se

torna possivel e tudo carece de importância. O

pró e o contra deixam de existir; o assassinato

9 Vladimir ERMILOV, Dostoievski, Paris, Ed. Chapitre, s/d, p.14.

Page 26: Dostoievski e o Homem

nem tem nem deixa de ter razão. Tanto se pode

atiçar os crematórios como dedicar-se seja quem

for ao tratamento dos leprosos. A maldade e a

virtude transformam-se em acaso ou em

capricho”.10

O SOFRIMENTO

O conceito de sofrimento, tal como o de

medo, visto no capítulo anterior, assume

diversas significações, tanto negativas como

positivas : no âmbito judicial (como pena

aplicada a quem cometeu um crime, visando a

reabilitação do indivíduo), no âmbito religioso

(como penitência, que visa a redenção da

pessoa), no âmbito económico (o esforço

laboral, visando obter ganhos com isso), no

âmbito da sexualidade (no sado-masoquismo),

etc.

As obras de Dostoievski são um retrato

deveras profundo no que diz respeito ao

10 Albert CAMUS, O Homem Revoltado, Lisboa, Ed, Livros do Brasil, 1951,p.14.

Page 27: Dostoievski e o Homem

sofrimento do ser humano : a miséria, a

doença, as torturas de consciência, etc.

Perante o sofrimento, são possíveis várias

atitudes, como a indiferença, a aceitação, ou a

revolta, sendo esta última uma característica

peculiar das obras de Dostoievski: figuras

torturadas por escrúpulos, crentes assaltados

por dúvidas, ou personagens desesperadas e

perplexas, que as leva à revolta (por exemplo

a revolta de Ivan em Os Irmãos Karamazov). Uma

questão essencial, despoletadora da revolta

nas obras de Dostoievski, é precisamente o

facto de o ser humano sofrer, físicamente,

psicológicamente, e espiritualmente. Ora,

aquele que pretende abolir o medo é também

aquele que pretende abolir o sofrimento :

“Quem vencer o medo e o sofrimento torna-se ele

mesmo Deus. Existirá então uma nova vida, um

novo homem” – afirma Kirilov, numa outra obra

do autor, Os Possessos.11 Por seu turno, na obra

Os Irmãos Karamazov, são deveras significativas

as palavras de um dos irmãos - Dmitri - sobre

o sofrimento do ser humano :

11 Os Possessos, Lisboa, Ed. Publicações Europa-América, 1981, p. 144.

Page 28: Dostoievski e o Homem

“E o triste olhar de Ceres apenas descobre

por toda a parte a profunda humilhação do

Homem. Meu caro, esta humilhação persiste

ainda. O Homem tem muito que sofrer na Terra.

Que sofrimentos atrozes... Quase só penso

nisso, meu irmão, no Homem humilhado.”12

Ainda nesta obra, um motivo importante da

revolta de Ivan é o sofrimento do ser humano,

principalmente o das crianças, quando esta

personagem afirma por exemplo :

“Dizem que sem isto não poderia o Homem

viver na Terra, porque não conheceria o bem e o

mal. Para quê, querer esta diabólica distinção

do bem e do mal, à custa de tais atrocidades ?

Toda a ciência do mundo não vale a súplica de

uma criatura do bom deus. E nada digo das dores

do adulto. Comeram a maçã, pois que se destruam

e que o diabo os leve ! Mas esses

anjinhos !...”13

Por seu turno, em Crime e Castigo o sofrimento

dos mais pobres desperta em Raskolnikov,

progressivamente, um sentimento de indignação e

12 Os Irmãos Karamazov, Lisboa, Ed. Amigos do Livro (s/d.), p.164.13 Idem, p. 359.

Page 29: Dostoievski e o Homem

de revolta, sofrimento esse representado em

Sónia, que todavia não encara o sofrimento

dessa forma. Sónia é filha do primeiro

matrimónio de um antigo funcionário público,

Simeão Marmeladov, conselheiro titular. Este

tinha desposado pela segunda vez Catarina

Ivanova, uma viúva pobre, “por compaixão”, e

progressivamente envereda pelo alcoolismo,

sendo atingido por diversas desgraças. Crime e

Castigo inicia-se precisamente quando

Raskolnikov encontra Simeão Marmeladov numa

taberna e escuta atentamente da boca deste o

relato pungente da sua miséria e da sua

família. Relata a Raskolnikov como um dia

Catarina Ivanovna, minada pela tuberculose,

tinha censurado a enteada (Sónia), por esta em

nada ajudar e não fazer o que muitas outras

faziam, após o que Sónia saíra sem palavras, e

se entrega à prostituição, visando com isso o

seu sustento e o da sua família. Raskolnikov

virá a conhecer Sónia, a quem fica ligado,

encontrando nela a mesma situação em que ele

próprio se encontra : estar à margem da

sociedade.

Page 30: Dostoievski e o Homem

CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA

A obra Crime e Castigo exprime a concepção de

que se torna impossível encontrar uma solução

humana para os problemas do Homem numa

sociedade tão injustamente constituída, e tem

subjacente uma visão antropológica com raízes

aliás em diversos autores, enquanto concepção

sobre o dado primordial do ser humano : as

pulsões agressivas segundo Lorenz,14 a

agressividade instintiva sugundo Freud,15 a

violência da condição natural dos homens (o

Homem lobo do Homem), segundo Hobbes,16 a

insociavel sociabilidade dos homens, segundo

Kant,17 o ódio universal da violência14 Konrad LORENZ, L’Homme dans le fleuve du vivant, Paris, Ed. Flammarion, 1981, pp. 346-362.15 Sigmund FREUD, Malaise dans la culture, Paris, Ed. PUF, 1995, oo. 51-54.16 Thomas HOBBES, Leviathan, Paris, Ed. Sirey, 1971, pp. 121-126.17 Immanuel KANT, “L’idée d’une histoire universelle du point de vue cosmopolitique”, in Opuscules sur l’Histoire, Paris, Ed. Flammarion, 1990, pp. 74-76.

Page 31: Dostoievski e o Homem

revolucionária, segundo Maquiavel,18 ou o poder

como violência, segundo Arendt.19

Também em Dostoievski o Homem surge

representado de forma pessimista, cada ser

humano é considerado culpado de tudo para com

todos, como n’ O Processo de Kafka : “Toda a

gente tem culpa, toda... Se ao menos o mundo se

convencesse disso! ” – exclama Chatov em Os

Possessos.20 E mais à frente, uma outra

personagem desta obra afirma também : “Oh!

perdoemos, perdoemos primeiro que tudo,

perdoemos a toda a gente e sempre... Esperemos

que nos perdoem também. Sim, porque cada um de

nós , todos nós, somos culpados uns para com os

outros. Somos todos culpados”.21

Em Crime e Castigo afirma Raskolnikov : “O

homem é um ente vil... e vil é também aquele

que, por tal motivo, o classifica dessa forma.

(...) Olhai para os que passam na rua : cada

18 Nicolau MAQUIAVEL, “Des conspirations”, in Discours sur la première décade de Tite-Live, III, cap.VI, Paris, Ed. Frammarion, 1985, pp. 254-269.19 Hannah ARENDT, Du mensonge à la violence, Paris, Ed. Calmann Lévy, 1972, pp. 147-154.20 Os Possessos, o.c., vol. 3, p.114.21 Idem, p. 164.

Page 32: Dostoievski e o Homem

qual é criminoso no seu íntimo, é, pior ainda,

um perfeito imbecil”.22

A perda de confiança nos outros,

despontaram para Raskolnikov como o lado hostil

da existência, e também o influenciaram no

cometimento do homicídio, além dos motivos

apresentados no capítulo anterior : abolir o

medo, os preconceitos, atingir a liberdade

suprema, e tudo ser permitido. Raskolnikov

levava na verdade uma vida completamente à

margem dos outros, como que escondido, numa

espécie de água furtada:

“ (...) quarto esconso, de dimensões

reduzidas e de aspecto miserável, com as

paredes forradas de papel amarelo, sujo e em

parte descolado; a cobertura era tão baixa que

um homem de estatura mediana teria dificuldade

em se mover ali sem bater com a cabeça no

tecto”.23

Raskolnikov sentia-se, de facto, estranho

em relação às outras pessoas : “Sentia tal

aversão a qualquer rosto humano, escondendo-se

22 Crime e Castigo, o.c., pp. 158, e 487.23Idem, o.c., p.33.

Page 33: Dostoievski e o Homem

como uma tartaruga na casca, que até a vista da

criada lhe causava exasperação, embora a

rapariga estivesse encarregada de arrumar o

quarto”.24

A relação de Raskolnikov com os outros

seres humanos era algo impossível, maldito,

demoníaco, e nele foi crescendo o orgulho, que

confessa aliás como a sua característica.25

Deseja atingir a grandeza, e no crime que

comete vê uma forma de atingir essa grandeza, e

por isso não considera que tenha sido um acto

vil ou criminoso aquilo que cometeu,26 e

confessa aliás que não está arrependido do que

cometeu.27 Raskolnikov só reconhecia em si um

erro : o de haver fraquejado ao ter-se

denunciado a si próprio.28 Ao fazê-lo não

significa que estivesse arrependido do seu

acto, e quando alguém lhe perguntou porque se

tinha ido denunciar, respondeu que simplesmente

representara uma farsa, a do arrependimento.29

Raskolnikov foi-se denunciar a si próprio não

24 Idem.25 Idem, pp. 485 e 487.26 Idem, pp. 485, 486, e 507.27 Idem, p. 507.28 Idem, ibidem.29 Idem, p.500.

Page 34: Dostoievski e o Homem

devido a arrependimento própriamente dito, mas

sim devido a remorso. Note-se que existe uma

diferença entre arrependimento e remorso :

enquanto o arrependimento reconhece que se fez

mal e se reconhece a falta para melhor se

distanciar dela e apreciar a graça da

convalescença, o remorso agarra-se à

necessidade doentia de sentir na pele a

dilaceração. O remorso não se arrepende da

falta, alimenta-se dela, como que a deseja

presa a si mesmo para sempre, mergulha numa

espécie de penitência perpétua, quando não se

realizou um acto de contrição e não se deu o

caso por encerrado.30

Ora, Raskolnikov não suportava o remorso, a

tortura da consciência, o peso social a ela

associada, o dever da responsabilidade perante

o seu ato, por isso se denunciou a si próprio,

em consequência do mal que segundo ele

infligiu a si próprio, o que o levou por fim a

30 Cf. esta distinção entre arrependimento e de remorso no pensador russoVladimir JANKÉLÉVITCH,”La Mauvaise Conscience”, in Philosophie Morale, Paris, Ed. Flammarion, 1998, e Fean LACROIX, Philosophie de la Culpabilité, Paris, Ed. PUF, 1977.

Page 35: Dostoievski e o Homem

afirmar : “Não foi a velha que eu matei, foi a

mim próprio”.31

Raskolnikov partiu de uma experiência

negativa no seu relacionamento com os outros,

para chegar a uma experiência negativa consigo

próprio. Na sua revolta assumira o papel de

super-homem, mas ao desejar algo de supremo e

infinito sente-se confuso com aquilo que fez, e

exclama : “Mas, afinal, parece-me que sou mais

vil, mais abjecto do que o parasita que matei”.32

Frustrados os seus anseios, a sua

existência será redimida pela presença de Sónia

na sua vida, uma jovem imbuida de profunda fé

religiosa, e que, conforme sublinha um

conceituado estudioso do escritor, “encontra-se

na mesma posição em que, segundo as palavras de

Cristo, se encontram os pequenos, os

rejeitados, os publicanos e os pecadores.

Partilha um segredo com Cristo. Há um acordo

entre eles. (...) Sónia não justifica a

existência que leva, vive-a e suporta-a. Não

31 Crime e Castigo, o.c., p. 396.32 Idem, p. 265.

Page 36: Dostoievski e o Homem

constrói sobre ela qualquer teoria nem tenta

sequer compreender; deixa-se envolver na sua

teia incompreensível, crendo que o deve fazer.

Tudo adquiriria um aspeto falso, demoníaco,

ilusório, se ela procurasse encontrar uma

justificação, e acabaria então por sucumbir.

Uma vez que Raskolnikov a quer arrastar nas

suas reflexões sobre quem tem o direito ou não

de viver, obtém esta resposta : Sim, é claro que eu

não conheço a Providência de Deus... mas porque pergunta o

que não se deve perguntar ? Qual a razão de perguntas tão

vazias ?”33

O niilismo em Raskolnikov, inerentemente

associado à nadificação dos valores éticos,

experiencia através de Sónia, progressivamente,

uma transmutação do nada negativo que

Raskolnikov cultiva e defende, para o Nada

obscuro mas positivo, que para o crente é

considerado Tudo, que se oferece à experiência

religiosa, e que acaba por tocar Raskolnikov,

como veremos seguidamente.

33 Romano GUARDINI, O mundo religioso de Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973, p.52.

Page 37: Dostoievski e o Homem

A RELIGIOSIDADE

A religiosidade é o ponto de referência

fundamental dos romances de Dostoievski, o seu

ponto de partida e o seu ponto de chegada, uma

visão partilhada genericamente pelos

estudiosos de Dostoievski, como Thurneysen,

que resume bem essa visão ao afirmar que em

Dostoievski “quanto mais se considera a vida

com realismo, mais se desvela um misterioso

irreal. Quanto mais se avance no terrestre , mais

se nota na raíz de todas as coisas uma

realidade supra terrestre. Até ao ponto de , no fim

de contas, toda a existência face aos nossos

olhos acabar por ser envolvida pela tremenda

claridade de uma só questão, duma grande

qustão, a questão de Deus. (...) A questão de

Deus é a única questão que colocam todas as

obras de Dostoievski : Deus, a raíz de toda a

Vida, o fundamento de tudo o que está no mundo,

mas por isso mesmo também o que suspende esse

mundo, o que o interrompe e o inquieta. Todos

Page 38: Dostoievski e o Homem

os heróis de Dostoievski tendem para Deus e

são por ele movidos”.34

Ao invés de Raskolnikov e de outras

personagens das obras do autor, Sónia não se

indigna perante a Vida. Como afirma um outro

autor, Romano Guardini, “ela não se defende,

ela aceita. Nada pedir nem recusar – assim foi uma

vez definido o grau mais sagrado do existir. Em

todo o paradoxo desta grave situação existe de

certo modo este conceito. Ela aceita a horrível

e imerecida miséria que cai sobre a família a

partir do momento em que o pai se entrega à

bebida. Não se defende contra a situação nem

mediante uma revolta interior nem exterior.

Também não se revolta quando a madrasta a

culpa, a ela, Sónia, de toda aquela miséria.

(...) Compaixão inesgotável, aquela abnegação que a

desarma, que faz com que aceite o destino, não

emite opiniões, não julga ninguém”.35

Pergunta-lhe Raskolnikov : “Rezas, portanto,

muito a Deus ?

34 Edouard THURNEYSEN, Dostoievski ou les confins de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934, p. 29.35 Romano GUARDINI, O mundo religioso de Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973.

Page 39: Dostoievski e o Homem

Sónia manteve-se em silêncio, enquanto ele,

de pé, aguardava uma resposta.

Que seria eu sem Deus ? murmurou, pronunciando

as palavrs rápidas e enérgicamente, ao mesmo

tempo que o fitava com um brilho fugaz no olhar

e apertava a mão dele entre as suas...

E o que faz Deus por ti ? – perguntou ele,

aprofundando o interrogatório.

Sónia manteve-se calada durante mais tempo,

como se não encontrasse resposta. O peito magro

subia e descia ao ritmo da respiração agitada.

Exclamou então : Cale-se ! Não pergunte nada ! Não é

digno... gritou repentinamente num tom enérgico e

furioso (...) . – Ele faz tudo por mim!”.36

A atitude de Sónia perante as situações-

limite da existência, nomedamente o sofrimento

do ser humano, é portanto diferente, quando

comparada com a atitude de outras personagens

típicas das obras do escritor (Raskolnikov em

Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos Karamazov, ou

Kirilov em Os Possessos) : não a revolta mas a

aceitação do seu destino, alimentada pela sua

36 Crime e Castigo, o.c,. p.377.

Page 40: Dostoievski e o Homem

fé religiosa, e que acabrá por tocar

Raskolnikov. Porém este último apresenta

frequentes sentimentos de ambivalência face a

essa questão, ora mostrando-se crente, como se

vê por exemplo no diálogo que estabelece com

uma das personagens, Porfírio, a quem confessa

a sua fé religiosa,37 ora mostrando-se

descrente : numa conversa com Sónia, afirma a

determinado passo : “- Quem sabe se Deus não

existe?”,38 e mais à frente diz à irmã :

“- Fé não tenho, mas fui visitar a mãe e

chorei nos braços dela. Não tenho fé... contudo

pedi-lhe que rezasse por mim. Porque será

isto ? Não compreendo os meus pensamentos”. 39

Raskolnikov encontra-se confuso, mas

progressivamente, tocado pelo testemunho de

Sónia, acaba por se abrir à experiência

religiosa de modo mais sólido, acaba por se

abrir a essa possibilidade, e exprime-a, ao

invés de outras personagens paradigmáticas da

mundovivência dostoievskiana : por exemplo Ivan

em Os Irmãos karamazov, ou Kirilov em Os Possessos. A

37Idem,p.252.38 Idem, p. 485.39 Idem, p.485.

Page 41: Dostoievski e o Homem

revolta e a descrença de Raskolnikov acontecem

fundamentalmente em relação à sociedade, aos

homens em geral, embora ele venha a proceder

contra Deus, através da sua aspiração de

situar-se para além do bem e do mal, com o lema

do tudo é permitido, e o culto do super homem. Há

portanto uma ênfase muito forte na questão da

religião, em que acaba por enveredar o próprio

Raskolnikov, devido à influência de Sónia, a

quem pede para lhe ler passagens da Bíblia,

como por exemplo no Novo Testamento o episódio

da resurreição da morte de Lázaro, e ela lê.

Dialogam sobre a fé, e no decorrer da obra

Crime e Castigo Sónia admoesta-o várias vezes sob o

ponto de vista moral, uma moralidade que

apresenta justificada pelas convicções

religiosas.

É célebre nas obras de Dostoievski,

principalmente em Os Irmãos Karamazov, a defesa

feita por algumas personagens, do princípio

segundo o qual “se Deus não existe tudo é

permitido”.40 Smerdiakov Karamazov, em conversa

com o seu meio irmão Ivan Karamazov, confessa

40 Os Irmãos Karamazov, o.c., p. 80.

Page 42: Dostoievski e o Homem

que o que o motivou a matar o próprio pai foi

um artigo que soube ter ele escrito, no qual

defende que “se Deus não existe tudo é

permitido”. Smerdiakov afirma que, na

inexistência de um Criador, de um grande Ser

moral, a sua atitude não lhe inspirava culpa,

nem mesmo se sentia degenerado. Pelo contrário,

sentia-se um daqueles homens-deus sobre os

quais recai uma liberdade infinita, permitindo-

lhe fazer tudo o que for possível, como sucede

com Raskolnikov em Crime e Castigo.

Também nesta última obra o princípio

segundo o qual “se Deus não existisse tudo

seria permitido” surge como fundamento da

condenação do homicídio, principalmente

através de Sónia, que alimenta os problemas de

consciência de Raskolnikov, o que se enquadra

na chamada teoria dos mandamentos divinos. Segundo

esta teoria, Deus deu a conhecer aos homens a

Sua vontade de diversas formas, tendo sido a

Bíblia, ou outro livro sagrado, um veículo

privilegiado dessse conhecimento, como por

exemplo no caso da Bíblia os Dez Mandamentos,

que são um conjunto de regras que pretendem

Page 43: Dostoievski e o Homem

expressar a vontade de Deus e mostrar aos seres

humanos o que devem ou não devem fazer.

O melhor exemplo é o da ordem que, segundo

a Bíblia Sagrada, Deus deu a Abrãao : disse-lhe

que devia matar Isaac, o seu filho único.

Apesar de amar o seu filho, Abrãao prontificou-

se para obedecer à ordem divina, uma vez que

via na palavra de Deus a expressão do bem. Após

Abrãao ter provado a sua fé, Isaac foi salvo

pelas mãos de um Anjo enviado por Deus. Porém,

deveria realmente Abrãao matar Isaac só porque

essa era a vontade de Deus ? Imaginemos que

Deus não tinha impedido a morte de Isaac. Seria

a morte de Isaac moralmente aceitável apenas

por ser ordenada por Deus ?

Um dos Dez Mandamentos contidos na Bíblia

Sagrada, o quinto, afirma : “Não matarás.”

Será que uma coisa é moralmente condenável,

neste caso o homicído, devido ao facto de ser

condenada por Deus ? Determinadas acções,

como o homicídio, são erradas porque Deus

afirma que o são, ou Deus afirma que o são,

porque elas são intrinsecamente erradas ? Não

serão elas erradas independentemente de

Page 44: Dostoievski e o Homem

qualquer perspetiva, mesmo da perspetiva divina

?

O Direito através da lei expressa uma

moral, porém o fundamento do Direito, como

aliás de toda a conduta moral, não têm que

ser a vontade de Deus, o medo do castigo

divino, ou o interesse de alcançar um prémio no

Céu. Como afirma Kant, no início do prólogo à

primeira edição da sua obra A religião nos limites da

simpels razão, a moral enquanto fundada no

conceito do Homem como ser livre, que pela

razão vincula a si leis incondicionadas, não

precisa da ideia de um Ser acima dele para

conhecer o seu dever. A moral não precisa de

modo algum da religião, porque se basta a si

própria em virtude da razão prática, que por

seu turno se basta a si própria para determinar

o agir. A grandeza do homem está em reconhecer

dentro de si mesmo uma lei moral, através da

sua própria racionalidade, sem para isso

precisar da divindade. 41

O motivo porque não se deve matar não está,

ou não deve estar, nos mandamentos divinos, mas

41 Cf. KANT, A religião nos limites da simples razão, Lisboa, Ed. 70, 1992

Page 45: Dostoievski e o Homem

sim na dignidade do próprio ser humano, conforme

defende Kant, e porque o ser humano, enquanto

tal definido, tem direitos, neste caso o

direito à vida, conforme afirma a Declaração

Universal dos Direitos do Homem : “Todo o indivíduo

tem direito à vida, à liberdade e à segurança

pessoal”. 42

Isso não significa não se reconhecer o

papel e a importância que a religião tem ou

pode ter, na vida do ser humano. Isso não

significa pretender excluir a religião da

sociedade, como desejava o niilismo. Isso não

significa deixar de respeitar a religião, mas

sim separar os territórios entre si,

reconhecer a independência e a não necessidade

de um em relação a outro, o que deve

efectivamente ocorrer com os princípios

éticos, políticos, e com o poder judicial.

O condicionamento da religião sobre as

decisões políticas pode conduzir ao extremismo

e ao fundamentalismo, como sucede com as

chamadas guerras santas, e a sua influência pode

aliás existir sobre o próprio poder judicial :

42 Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU, 1948, artigo 3º.

Page 46: Dostoievski e o Homem

por exemplo em Portugal, ainda não há muito

tempo atrás, devido à Concordata entre o Estado

Novo e a Religião Católica, essa influência

fazia-se sentir, por exemplo nas leis sobre o

matrimónio, e mesmo ainda hoje a determinação

dos mandamentos religiosos tem bastante peso

em alguns países islâmicos, quer sobre o poder

político, quer sobre os próprios tribunais.

Ora, conforme afirma ainda a Declaração

Universal dos Direitos do Homem, “Toda a pessoa tem

direito, em plena igualdade, a que a sua causa

seja equitativa e publicamente julgada por um

tribunal independente e imparcial 43 que decida dos

seus direitos e obrigações ou das razões de

qualquer acusação em matéria penal que contra

ela seja deduzida”,44 independentemente da

religião ou de outra influência qualquer (por

exemplo Tribunais políticos).

Se assim não for, e se os princípios que

determinam a prática jurídica forem princípios

religiosos, políticos, ou quaisquer outros,

atenta-se contra a laicidade do Estado,

43 Realçamos a expressão tribunal independent e imparcial.44 IDEM, artigo 10º.

Page 47: Dostoievski e o Homem

procede-se contra a Constituição, desrespeita-se

as disposições deontológicas da Advocacia, e

viola-se os princípios mais elementares do

Estado de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Castigo, Lisboa, Ed. Portugália Editora, 1966.

- IDEM, Os Irmãos Karamazov,Lisboa,Ed. Amigos

do Livro,(s/d).

- IDEM, Os Possessos, Lisboa, Ed. Publicações

Europa-América, 1981.

- CAMUS, Albert, O Homem Revoltado, Lisboa,

Ed. Livros do Brasil,1951.

- ERMILOV, Vladimir, Dostoievski, Paris,

Ed.Chapitre, s/d.

- EVDOKIMOFF, Paul, Dostoievski et le problème du

mal, Paris, Ed. Albin MicheL, 1954.

- GUARDINI, Romano, O mundo religioso de

Dostoievski, Lisboa, Ed. Verbo, 1973.

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- KANT, A religião nos limites da simples razão,

Lisboa, Ed. 70, 1992.

- MURCHO, Desidério (e outros), O Prazer de

Pensar, Lisboa. Ed. Plátano Editora, 2000.

- THURNEYSEN, Edouard, Dostoievski ou les confins

de l’Homme, Paris, Ed. Je Sers, 1934.

- Bíblia Sagrada, Lisboa, Ed. Difusora

Bíblica, 1980.

- Declaração Universal dos Direitos do Homem, ONU,

Nova Iorque, 1948.