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JOO GABRIEL ALVES DOMINGOS
DIFERENA E SENSIBILIDADE EM
GILLES DELEUZE
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
2010
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JOO GABRIEL ALVES DOMINGOS
DIFERENA E SENSIBILIDADE EM
GILLES DELEUZE
Dissertao apresentada ao Curso de
Mestrado da Faculdade de Filosofia e Cincias
Humanas da UFMG como requisito para a
obteno do Ttulo de Mestre em Filosofia
Linha de Pesquisa: Esttica e Filosofia da Arte
Orientadora: Virginia Figueiredo de Arajo
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
2010
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AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Gabriel Domingos; minha me (por me ensinar o valor da educao), Dorotea
Alves; aos meus irmos
minha me, Laura Alves; aos meus irmos
minha querida orientadora, ProfessoraVirginia Figueiredo
Aos meus amigos, mas, sobretudo, queles que marcaram de um modo muito singular as
vivncias mais importantes dos anos de faculdade: Celso Neto, Daniel Pucchiarelli, Mara
Nassif, Rmulo Dornelas,, William Mattioli
Professora Lvia Guimares do Departamento de Filosofia da UFMG pela solidariedade
Aos dedicados funcionrios do Departamento de Ps-Graduao em Filosofia da UFMG
Ao Osias e Crislida Livraria e Editora
Rosa
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SUMRIO
RESUMO/ABSTRACT...............................................................................................................8
INTRODUO CRIANDO MONSTROS: DELEUZE E A HISTRIA DA
FILOSOFIA...............................................................................................................................10
CAPTULO 1 IDENTIDADE E DIFERENA, ANALOGIA E MULTIPLICIDADE.....22
1.SELETIVIDADE, HIERARQUIA, DISTRIBUIO.............................................22
2.O MTODO DA DIVISO......................................................................................26
I. O DRAMA DE UM NOIVADO........................................................................26
II. PLATO E OS GREGOS..............................................................................30
III. POR QUE NO H MITO NO SOFISTA?...........................................................31
IV. MOTIVAO DO PLATONISMO.......................................................................36
3.ARISTTELES CONTRA PLATO.......................................................................37
4.A FORMA DA QUESTO...................................................................................40
5.A IDEIA....................................................................................................................436. IDEIA COMO MULTIPLICIDADE.........................................................................48
7.ENTRE A ONTOLOGIA E O TRANSCENDENTAL.............................................57
8.DIFERENA E SENSIBILIDADE................................................ ..........................60
CAPTULO 2 EMPIRISMO TRANSCENDENTAL ........................................................63
1. INTRODUO........................................................................................................63
2. EM BUSCA DAS CONDIES DA EXPERINCIA REAL ................................65
3. EMPIRISMO TRANSCENDENTAL.......................................................................67
I. TEORIA DA REPRESENTAO....................................................................... .68
II. A INTENSIDADE...................................................................................... .......74
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III. O TRANSCENDENTAL...................................................................................79
4.KANT CONTRA O (SEU) EMPIRISMO ...............................................................83
I. FORMA PURA DO TEMPO.............................................................................85
II. O SUBLIME...........................................................................................................89
III. ETERNO RETORNO E UNIVOCIDADE DOSER...........................................91
IV. SENSIBILIDADE E MEMRIA EM PROUST.....................................................96
CONCLUSO DELEUZE, ENTRE FILOSOFIA E ARTE.................................................106
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................114
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RESUMO
Abordamos o problema da arte na filosofia de Deleuze atravs de uma
contextualizao da sensibilidade em um projeto de pensar a diferena nela mesma. Na
introduo, abordamos o procedimento utilizado por Deleuze para fazer sua histria da
filosofia. Logo aps, mostramos como Deleuze desenvolveu uma crtica da analogia atravs
de sua leitura do mtodo da diviso presente nos dilogos platnicos (Poltico, Sofista,
Fedro). Na segunda parte, lemos Kant, mostrando como sua doutrina das faculdades 1tambm
realiza uma imagem do pensamento como representao. Mas, em ambos os casos, a
interpretao de Deleuze ambgua. Ele encontra, nesses sistemas representacionais, um
momento no qual a diferena pensada. Em Plato, quando no Sofistao filsofo grego prope
a aventura de pensar o no-ser(indicando ele mesmo o que significa a expresso nietzschiana
reverter o platonismo) e em dois momentos da obra kantiana: (1) na Crtica da Razo Pura,
quando um terceiro elemento (a forma pura do tempo) inserido na lgica de dois termos do
cogitocartesiano e (2), na Crtica da Faculdade do Juzo, quando o sublime capaz de levar
as faculdades at os seus respectivos limites, produzindo acordos contingentes (isto , no
pressupostos) entre elas. Segundo Deleuze, a teoria das condies abandonada para a
assuno da perspectiva gentica; as condies de possibilidade so abandonadas para a
assuno das condies da experincia real. A noo de repetio encontrada no conceito
nietzschiano de eterno retorno, como repetio intensiva da diferena, crucial para a
perspectiva gentica porque este conceito expressa uma lgica que no faz apelo a nenhuma
forma de transcendncia.
Palavras-Chave: Diferena - Deleuze - Esttica - Ontologia
1 Segundo a qual pressuposto o exerccio harmonioso de todas as faculdades fundada no sujeito pensantetido como universal e se exercendo sobre o objeto qualquer (DELEUZE, G. Diferena e Repetio).
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Personne ne sait ni ne prtend dire ce qu'est 'la' philosophie de Deleuze ; nous nous sentons affects
par Deleuze, nous autres ses explorateurs, pour autant que nous essayons de faire aujourd'hui de
la philosophie ; nous prsumons que la philosophie ne sortira pas indemne de l'aventure
deleuzienne, mais nous savons que c'est nous de le montrer et de l'accomplir (Franois
Zourabichvili,Deleuze. Une Philosophie de l'vnement).
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INTRODUO
CRIANDO MONSTROS: DELEUZE E A HISTRIA DA FILOSOFIA
Os procedimentos tpicos na obra de Deleuze assemelham-se muito queles utilizados
em arte moderna. Por exemplo, a sua histria da filosofia pode ser entendida como uma
colagem por realizar deliberadamente deslocamentos de conceitos e noes de outras obras,
produzindo assim atualizaes de sentidos e usos. Como a colagem, outras imagens da
histria da filosofia proliferam em sua obra como, por exemplo, o retrato. Poderamos, ainda,
somar mais uma no menos apropriada: a do ventrloquo. Todas essas imagens expressam o
aspecto essencial do modo de funcionamento e do contedo de sua filosofia: o privilgio da
criatividade sobre a permanncia, da produo sobre a reproduo, da diferena sobre a
identidade, do nmade sobre o sedentrio 3. Ao ler o que Deleuze diz sobre outros filsofos,
h a impresso que o seu olhar volta-se para aspectos no convencionais desses filsofos,
como se ele entrasse nas obras cannicas por uma via incomum. E, no final das contas, isso
parece legtimo, pois ele consegue, ainda assim, oferecer leituras rigorosas (de acordo com a
letra dos textos), mas que repousam a sua unidade sobre pontos at ento insuspeitos.
Poderamos, portanto, nos perguntar: as leituras de Deleuze realmente repetem os filsofos ou
criam a partir deles? E no ser a indistino entre criar e repetir o convite mais profundo
desse autor?
A noo de conceptual breakthrough, em fico cientfica, descreve os momentos nos
quais o conjunto de referncias significativas de um personagem, que sustentam o seu modo
3 Entre parnteses colocaremos a data da primeira edio da obra de Gilles DELEUZE ou, quando for o caso, adata indicada pelo prprio autor. "Seria preciso que a resenha em Histria da Filosofia atuasse como umverdadeiro duplo e que comportasse a modificao mxima prpria do duplo. (Imagina-se um Hegel
filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente glabro, do mesmo que uma Gioconda bigoduda)"(DELEUZE, 1988, p.19[DELEUZE, 1993 (1968), p.5]).
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de apreenso da realidade, desfeito por um elemento perturbador. Ento, o personagem
lanado em uma busca por conhecimento s que agora sob um outro ponto de vista. A partir
desse instante traumtico, ele descobre, por exemplo, que ele mora em uma cidade onde, com
exceo dele mesmo, todas as pessoas ao seu redor so atores e a vida comum , na verdade,
uma grande encenao. Em um outro contexto, algo similar ocorre com dipo. Alm da fico
cientfica e da tragdia, o efeito do conceptual breakthroughpode ser encontrado tambm em
romances policiais ou mesmo nas mitologias religiosas. Em suma, o processo em que o
personagem (e por tabela o leitor) tem a sua viso do mundo modificada e recebe o primeiro
vislumbre de outra viso, geralmente mais complexa, fascinante, at assustadora, que vir
substitu-la 4. Em termos deleuzianos, o conceptual breaktrough o inverso da recognio,
ou seja, o reconhecimento de um objeto como sendo sempre o mesmo em momentos e
condies distintas. O que Deleuze quer mostrar o fundo diferencial em que repousa toda
assuno de identidade. No basta ento recorrer a pensadores clssicos para encontrar os
conceitos a partir dos quais seja possvel pensar diferencialmente, preciso que a prpria
repetio desses filsofos, a saber, o prprio mtodo de leitura, seja ele mesmo diferencial.
No entanto, no h posio mais avessa das obras de Deleuze do que tomar a
diferena como algo sem sentido, como se a sua teoria fosse uma hipstase da
ininteligibilidade das coisas 5. Parece claro que, com esse conceito, Deleuze quer levar em
considerao o mais singular, a novidade mais radical, porm toda sua argumentao seria v
se acreditssemos que a diferena merece ateno justamente por sua falta de sentido. Falando
sobre a estratgia terica de referir toda a inteligibilidade de um fenmeno a uma conscincia
4 TAVARES, 2006, p.67.5 BRYANT radical sobre esse ponto, posicionando-se no outro extremo dos comentadores de DELEUZE ao
afirmar a tese segundo a qual DELEUZE um hiper-racionalista (!). Thus, far from being a sense-dataempiricist who bases the formations of being on the irrational surds of experience, Deleuze is in fact a hyper-rationalist who discovers intelligibility even in the apparent chaos of the matter of intuition (BRYANT,2008,p.41).
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capaz de fornecer-lhe sentido, Deleuze argumenta contra a tendncia de sermos obrigados a
aceitar a alternativa que compromete inteiramente ao mesmo tempo a psicologia, a
cosmologia e a teologia: ou singularidades j tomadas em indivduos e pessoas ou o abismo
indiferenciado6
. A argumentao de Deleuze sugere-nos que a expectativa de sentido
associada totalidade (individual, por exemplo, mas tambm qualquer tipo de transcendncia)
que nos leva a tomar o singular e a diferena como um abismo indiferenciado ou um
infinito ruim. Seramos ento como o espectador desavisado de obras de arte abstrata que
procura a figuratividade de todas as formas. Devemos, ao contrrio, levar a srio a sua
proposta e supor que a sua obra nos oferece ferramentas conceituais para pensar a diferena
nela mesma.
Essa problematizao da identidade, por exemplo, pode ser pensada nas cincias
humanas, o que nos auxiliaria a especificar melhor essa proposta. O belo elogio de Deleuze ao
estruturalismo ( A quoi reconnat-on le structuralisme ? 7) consiste no fato de autores como
Claude Lvi-Strauss e Jacques Lacan proporem um tipo de interpretao de fenmenos
sociais e psquicos a partir de uma rede de elementos que s produzem efeitos de sentido na
sua relao diferencial uns com os outros. Longe de tomar o simblico como a ordem na qual
se dramatiza um enredo de personagens determinados de antemo, o texto de Deleuze nos
convida a pens-lo como a ordem onde elementos sem designao extrnseca ou significao
intrnseca se determinam reciprocamente. Por outro lado, o reconhecimento da identidade
subjetiva, de objetos exteriores, as produes ideolgicas ou os personagens mitolgicos so
da ordem do imaginrio e ocorreriam como efeitosde uma complexa articulao simblica 8.
6 DELEUZE, 1974, p.105-106 (DELEUZE, 1971 [1969],p.125).7 No texto originalmente publicado em um livro sob o ttulo de Histoire de la Philosophie, DELEUZE faz
questo de observar estamos em 1967 (DELEUZE, 2006, p.221-247 [DELEUZE, 2002 (1967), p.238-269]).
8 Uma boa hiptese tomar a relao do virtual com o atual como sendo da mesma natureza que a relao dosimblico com o imaginrio.
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Em seu artigo A Estrutura dos Mitos, o que Lvi-Strauss recusa veementemente a
pesquisa de um significado originrio de um mito em favor de uma leitura a partir da relao
entre unidades constitutivas chamadas de mitemas. O mesmo pode ser encontrado na lgica
do significante de Lacan e sua recusa da ego psychology.
Poderamos afirmar que Deleuze quer constranger as nossas expectativas de
reconhecimento e talvez seja esse o caminho mais correto para situarmos o potencial crtico
de sua filosofia 9. Quem poderia, por exemplo, querer encontrar teses comuns ao
estruturalismo francs e ao empirismo de Hume 10? No ambiente intelectual francs dos anos
50 e 60, dominado por figuras como Marx ou Heidegger, Hume no era um filsofo muito
frequentado. De todo modo, reencontramos uma tese fundamental do estruturalismo na
definio deleuziana do empirismo. No livro sobre Hume, Deleuze define o empirismo pelo
privilgio das relaes sobre os termos que as compem. Ao contrrio do racionalismo que
busca internalizar as relaes, para o empirista, s a associao constante dos elementos que
constitui aquilo que eles so. A inverso consiste em dizer: o modo como as coisas esto
relacionadas confere-lhes inteligibilidade, portanto a relao entre as coisas no uma
expresso de suas essncias 11. Algo como a famosa cena do filme Tempos Modernos(Modern
Times,1936)de Charles Chaplin, em que, a despeito da inteno banal do personagem, ele se
torna um militante poltico. Um outro exemplo o que Lacan expe no seminrio sobre as
psicoses:
9 Sobre esse aspecto, concordamos inteiramente com D'AGOSTINI e devemos voltar a esse ponto mais vezesem nosso texto: em toda a caracterizao do pensamento afirmativo existe um ponto que deve ser
sublinhado com vigor, porque se aproxima das teses ontolgicas de Heidegger, mas tambm das tesesantiontolgicas de Adorno: trata-se da crtica da afirmao como positividade, ou melhor, a crtica dapositividade e a distino, correlativa, entre afirmao e posio ou 'assuno'. D'AGOSTINI, 2002.p.375.Algo muito prximo da direo de leitura de WILLIAMS. Segundo ele,Diferena e Repetio is a book thatclaims that pure differences are the other face of all actual things there is no such thing as a well-definedactual life (WILLIAMS, 2003, p.13).
10 MACHADO, 2009,p.139.11 Denominar-se- no-empirista toda teoria segundo a qual, de uma ou de outra maneira, as relaes decorram
da natureza das coisas (DELEUZE, 2001 [1953], p.123).
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Um dia, a srta. de Montpensier estava nas barricadas, talvez estivesse ali por acaso, e talvez
isso no tivesse importncia numa certa perspectiva, mas o que h de certo que apenas isso
que resta na Histria, ela estava ali, e deram sua presena um sentido, verdadeiro ou no
verdadeiro. No momento em que as coisas acontecem, alis, o sentido sempre um pouco
mais verdadeiro, mas o que se tornou verdadeiro na histria que conta e funciona. Ou isso
vem de um remanejamento posterior, ou ento j comea a ter uma articulao no momento
mesmo em que as coisas acontecem 12.
Assim, de modo anlogo ao empirismo, Deleuze lembra que, para Lvi-Strauss, as
relaes so exteriores aos termos. O sentido sempre um sentido de posio. o lugar que
se ocupa dentro de um espao relacional (chamado por Deleuze de ideia ou estrutura) que
confere sentido a alguma coisa. Os elementos de uma estrutura no tm nem designao
extrnseca nem significao intrnseca. O que resta? Como lembra com rigor Lvi-Strauss,
eles tm to somente um sentido: um sentido que necessria e unicamente de 'posio' 13.
Por outro lado, contrariamente ao que ocorre na ordem dos significantes, a oposio
binria que est em jogo no imaginrio pode ser encontrada na leitura comum da filosofia de
Plato. Nesse caso, os dois termos que entretm uma relao de identificao so a aparncia
12 LACAN, 1988, p.131. Importa pouco as intenes internas e profundas da stra. de Montpensier. Para adeterminao do sentido, interessa mais a relao entre os elementos do que a inteno.
13 DELEUZE, 2006, p.225 [DELEUZE, 2002 (1967), p.243]. DELEUZE refere-se discusso entre ClaudeLVI-STRAUSS e Paul RICOEUR publicada em 1963 na Rvue Esprit.DOSSE pontua corretamente ondese situa a diferena entre DELEUZE e GUATTARI e o estruturalismo, em especial, o RSI [Real-Simblico-Imaginrio] lacaniano: Avec une telle conception, Deleuze et Guattari dplacent le grand schma dominant
du lacanisme qui distingue trois niveaux htrognes dans la relation RSI (Rel - Symbolique - Imaginaire),accordant une prvalence au niveau symbolique, avec des ples Rel - Imaginaire loigns l'un de l'autre etquasiment antithtiques. Deleuze et Guattari insistent au contraire sur la dimension rel de l'imaginaire et surle caractre littral des nonces comme des images (DOSSE, 2007, p.547). Mas inegvel que DELEUZEdesenvolve constantemente uma crtica da imagem, pensada como representao, e uma das suas principaisestratgias tericas nos anos 60 o recurso a autores estruturalistas. Em grande medida, o estruturalismorealiza os critrios da filosofia da diferena. Arriscamos uma hiptese sobre as rupturas no pensamento deDELEUZE preservando o seu carter sistemtico: a adeso e a ruptura com uma teoria no ocorrem emrelao ao mesmo aspecto. Ou seja, enquanto a adeso graas ao aspecto X, a ruptura graas ao aspecto Y.
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modo hegemnico de fazer filosofia, porque a partir deste instante o seu domnio prprio ser
a representao e toda diferena deve estar subordinada a ela para que haja pensamento. Uma
tima forma de ler Diferena e Repetio como uma anatomia dos diversos modos de
confundir o pensamento com a representao e o que h de comum a todos o privilgio da
identidade. No h surpresa em concluir, portanto, que a reverso do platonismo significa
justamente a liberao dos simulacros e o pensamento da diferena nela mesma.
A verso filosfica da liberao dos simulacros e da reverso do platonismo
encontrada em Nietzsche, mas isso est muito longe de ser um consenso entre os leitores de
Nietzsche. Mais uma vez, Deleuze aplica o seu procedimento de leitura. Frequentemente, o
eterno retorno entendido como o eterno retorno do mesmo. Deleuze diz justamente o
contrrio: s a diferena retorna no eterno retorno. O eterno retorno tambm entendido
como uma prova tica. Deleuze afirma que ele no somente uma prova tica da vontade,
mas ele o ser. Desse modo, a teoria do eterno retorno uma teoria ontolgica. Afinal, por
que um filsofo como Nietzsche, que repetidamente elogia o devir, faria uma teoria da
estabilidade e da coerncia radical do mundo? E ser que o eterno retorno compatvel com
um sujeito de vontade para acreditarmos que ele apenasuma prova tica?
O eterno retorno no o efeito do Idntico sobre um mundo tornado semelhante; no uma
ordem exterior imposta ao caos do mundo; ao contrrio, o eterno retorno a identidade interna
do mundo e do caos, o Caosmos. E como o leitor poderia acreditar que Nietzsche implicava
no eterno retorno o Todo, o Mesmo, o Idntico, o Semelhante e o Igual, o Eu [Je] e o Eu
[Moi], ele que foi o maior crtico dessas categorias? Como acreditar que concebeu o eterno
retorno como um ciclo, ele que ops 'sua' hiptese a todo hiptese cclica? Como acreditar que
tenha cado na ideia inspida e falsa de uma oposio entre um tempo circular e um tempo
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linear, um tempo antigo e um tempo moderno? 17.
preciso estar atento ao argumento de Deleuze sobre o eterno retorno. Antes de tudo,
porque Deleuze enxerga nele uma lgica para a ontologia que no faz recurso a qualquer
transcendncia. Com o eterno retorno, o ser imanente. Renovar a noo de repetio atravs
de uma apropriao do eterno retorno crucial para toda a filosofia de Deleuze de uma forma
tal que o seu aspecto central est presente em vrios momentos de sua obra. A preocupao de
Deleuze em relao histria da filosofia no exatamente produzir uma repetio na qual o
que produzido seja uma novidade, uma diferena?
Com Deleuze, devemos pensar a histria da filosofia como um quadro de Andy
Warhol no qual a reiterao de uma figura sempre acompanhada de modificaes de cores e
de intensidade 18. Um dos trechos mais bonitos deDiferena e Repetiodiz que: (...) todos
somos Narcisos, pelo prazer que sentimos ao contemplar (auto-satisfao), se bem que
contemplemos outra coisa que no ns mesmos 19. Acreditamos que o modo como Deleuze
repete os filsofos afirme esse mesmo fracasso do duplo que tem sempre o seu reflexo
distncia, buscando, com isso, elevar-se condio autnoma de um simulacro.
* * *
Ao longo do presente trabalho, no sero encontradas confrontaes entre
interpretaes sistemticas da obra de Deleuze. Para citar um exemplo, recorremos a autores
17 DELEUZE, 1988, p.468-469[DELEUZE, 1993 (1968), p.382].18 (...) na passagem de uma qualidade a outra, mesmo sob o mximo de semelhana ou de continuidade, h
fenmenos de no correspondncia e de patamar, de choques de diferena, de distncias, todo um jogo deconjunes e de disjunes, toda uma profundidade que forma uma escala graduada, mais que uma durao
propriamente qualitativa (DELEUZE, 1988, p.381[DELEUZE, 1993 (1968), p.307]).19 DELEUZE, 1988, p.134[DELEUZE, 1993 (1968), p.102].
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to distintos como Slavoj iek e Roberto Machado, Alain Badiou e Franois Zourabichvili,
Michael Hardt e Peter Hallward. Achamos mais prudente, considerando as exigncias de uma
dissertao de mestrado, privilegiar tanto quanto possvel apenas a capacidade descritiva dos
comentadores de Deleuze. Ou seja, considerando que os comentrios, em geral, fazem leituras
sistemticas, o nosso recurso bibliografia secundria ser pautado pela descritividade de
passagens locais, mais do que pela avaliao de leituras globais. Por exemplo, no
aprofundaremos no debate entre Badiou e Zourabichvili sobre a existncia de uma ontologia
em Deleuze, mas faremos recurso pontualmente a cada um desses autores para auxiliar-nos na
compreenso de passagens especficas. Obviamente, no somos inocentes sobre a
neutralidade dessas descries. Em contrapartida, no nos furtaremos a reconhecer
posteriormente as consequncias interpretativas de nossas escolhas.
O livro Gilles Deleuze, Um aprendizado em filosofia 20, prope uma srie de critrios
metodolgicos sem os quais no poderamos entender a obra de Deleuze: (1) reconhecer o
objeto e os termos do antagonismo principal, (2) ler Deleuze filosoficamente, (3)
reconhecer a [sua] seletividade e (4) ler o [seu] pensamento como uma evoluo 21.
uma aposta metodolgica de Hardt, e esses critrios podem eventualmente ser colocados em
questo. Porm, ao invs de discutir sobre as dificuldades nas quais se lanam tais critrios,
concordamos totalmente com Hardt (assim como a maioria dos comentadores de Deleuze)
sobre o terceiro ponto (e, consequentemente, sobre o segundo):
A jornada de Deleuze pela histria da filosofia assume uma forma peculiar. Muito embora as
monografias de Deleuze sirvam como excelentes introdues, elas nunca fornecem um
sumrio compreensivo do trabalho de um filsofo; ao invs disso, Deleuze seleciona os
20 HARDT, 1996.21 Idem.
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aspectos especficos do pensamento de um filsofo, que fazem uma contribuio positiva ao
seu projeto naquele ponto 22.
E ele continua:
Se suas leituras so parciais, elas so, no obstante, muito rigorosas e precisas, com
meticuloso cuidado e sensibilidade para tpicos selecionados; aquilo que Deleuze perde em
abrangncia, ele ganha em intensidade de foco 23.
No outra coisa que defende Roberto Machado ao tomar Deleuze como um
historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente 24. Segundo Machado, se sua
atividade criadora liga-se essencialmente histria da filosofia, no sentido de instituir a
leitura do filsofo como parte essencial de seu modo prprio de filosofar 25. Tambm para
Bento Prado Jr., no pensamento de Deleuze, histria da filosofia e filosofia se entrecruzam, a
ponto de se tornarem indiscernveis 26.Em suma, no h outro modo de entrar na filosofia de
Deleuze seno se submetendo aos desvios a que ela nos obriga. Procurando a verdadeira face
de Deleuze, seremos inevitavelmente confrotados com outras.
Portanto, para realizar o nosso objetivo de apresentar alguns dos principais conceitos
da filosofia deleuziana, estabeleceremos uma interseo entre Deleuze e outros filsofos.
22 HARDT, 1996.p.22.23 Idem.p.22.24 MACHADO, 2009,p.19. Foi Hegel quem iniciou esse estilo de Filosofia em que no h praticamente
diferena entre Filosofia e histria da Filosofia ou do pensamento, refletindo a partir da tragdia, doestoicismo, do empirismo, do cristianismo, da Fsica, etc. Apesar das diferenas evidentes, Heidegger emuitos outros tambm esto em continuidade com esse estilo filosfico. Deleuze tambm. A ideia de pensar a
partir de intercessores essencial para ele (MACHADO, R. Interdisciplinaridade para a Filosofia dadiferena. In: Revista Filosofia. Edio 37. Entrevista concedida a Patrcia Pereira. [online] Disponvel nainternet via WWW. URL: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/37/artigo144487-1.asp.Acesso em 05 de agosto de 2010).
25 Idem. p.2126 PRADO JR., 1996.
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Inevitavelmente faremos um percurso por autores importantes da histria da filosofia
apresentando os aspectos relevantes para Deleuze nas suas obras. Esta introduo foi dedicada
a pensar esse procedimento de leitura.
A primeira parte da dissertao voltada analogia como uma das formas de
pensamento do ser que o submete identidade. Plato o exemplo filosfico privilegiado.
Deleuze prope uma leitura original do mtodo da diviso. O seu objetivo ao analisar o
mtodo destacar a motivao do platonismo 27. Como vimos acima, a expulso dos
simulacros o que caracteriza o platonismo, justamente porque, ao invs do simulacro ser
entendido como uma cpia da cpia, ele uma imagem sem semelhana, uma imagem que
no estabelece relao de analogia. O simulacro a instncia que compreende uma diferena
em si, como duas sries divergentes (pelo menos) sobre as quais ele atua, toda semelhana
tendo sido abolida, sem que se possa, por conseguinte, indicar a existncia de um original e de
uma cpia 28. Desse modo, o seu projeto mostrar como o pensamento da diferena coincide
com a reverso do platonismo e a liberao dos simulacros.
Na segunda parte, apresentaremos a leitura de Deleuze da doutrina kantiana das
faculdades, cujo cerne a tese segundo a qual o uso concordante entre elas engendrado e
no natural. Assim, ele pode propor um uso discordante no qual cada faculdade apreende o
objeto que lhe prprio. o caso da sensibilidade. Para Deleuze, o objeto prprio da
sensibilidade (o ser do sensvel ou o que d a sentir) a intensidade envolvida em um signo 29.
27 DELEUZE, 1974, p.259 [DELEUZE, 1971 (1969), p.292].28 DELEUZE, 1988, p.124 [DELEUZE, 1993 (1968),p.95].29 Isso significa que [Deleuze] considera a grande obra de Proust no s um sistema de pensamento, mas
principalmente uma criao literria que se ope filosofia da identidade e da representao. Assim, se eletorna aRecherche um instrumento da formulao de sua prpria filosofia da diferena, por encontrar nelaum tipo de pensamento em que as faculdades entram em num exerccio transcendente, cada uma atingindo oseu limite (MACHADO, 2009, p.194).
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Por que essa importncia dada aos signos e (...) aos signos da arte, na estrutura daRecherche?
A razo a mesma de todos os estudos de Deleuze: o signo ou a partir de Diferena e
Repetio, a intensidade o que fora o pensamento em seu exerccio involuntrio e
inconsciente, isto , transcendental. S se pensa sob presso. Na gnese do ato de pensar est a
violncia dos signos sobre o pensamento 30.
Na concluso, argumentaremos porque a relao entre filosofia e arte na obra de
Deleuze no hierrquica graas natureza mesma dos conceitos desenvolvidos por ele. Ou
seja, ao final do trabalho pretendemos ter elementos para pensarmos a relao entre arte e
ontologia de modo a preservar a singularidade de cada um desses domnios. Haver espao
ainda para levantarmos a questo: existe uma filosofia da arte em Deleuze? uma questo
difcil porque a relao entre arte e filosofia no parece ser orientada no sentido de ser uma
funo filosfica oferecer critrios de legitimidade arte. Nem as fronteiras parecem estar
delimitadas pela atribuio do pensamento ao filsofo e da sensao ao artista. Proust e os
Signos um exemplo de como artistas podem ser lidos como verdadeiros pensadores. Ao
mesmo tempo, obras filosficas como Diferena e Repetio utilizam procedimentos
facilmente encontrados em arte. Portanto pressentimos que, se h uma esttica em Deleuze,
em um sentido muito original.
30 MACHADO, 2009, p.197.
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CAPTULO 1
IDENTIDADE E DIFERENA, ANALOGIA E MULTIPLICIDADE
1. SELETIVIDADE, HIERARQUIA, DISTRIBUIO
Um impasse frequente que o leitor de Deleuze enfrenta : como unir a recusa dos
dualismos proposta pela sua filosofia (em especial, entre essncia e aparncia) com a criao
incessante de dualismos tais como representao/diferena? E isso no tem fim. Dos anos 70
em diante, veem-se surgir outros de natureza no muito distinta dos primeiros como entre
macro e micropoltica, liso e estriado, rizoma e rvore, esquizofrenia e neurose.
Do mesmo modo, a sua posio sobre as metforas parece ambgua. Deleuze no
cansa de repetir a sua recusa das metforas, mas, por toda sua obra, a metfora parece ser o
modo privilegiado de exposio. A proposta de uma ontologia da diferena radicalmente
oposta estrutura metafrica, porque a metfora pressupe um campo significativo tomado
como original e outro como derivado sem os quais no poderamos fazer uso do como se....
Em suma, a metfora analgica, ela deixa subsistir a semelhana com um significado
originrio que a informa.
Lemos algo metaforicamente quando no acreditamos que um discurso possa ser uma
descrio fiel da realidade. Ento, por uma comparao sem correspondncia em um
determinado estado de coisas, o autor de uma metfora d nfase a um aspecto no contido
em uma descrio literal. Ocorre que se Deleuze pretende liberar os simulacros ou a potncia
do falso 31, no h motivo para distinguir sentido literal e sentido metafrico, todo sentido
31 Trata-se do falso como potncia, Pseudos, no sentido em que Nietzsche diz: a mais alta potncia do falso,(DELEUZE, 1974, p.268 [DELEUZE, 1971 (1969), p.303]).
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torna-se literal, justamente porque no h uma forma mais adequada que outra para descrever
a realidade. Por outro lado, ele no deriva disso uma defesa da indiferena ou da indistino
32. De um modo muito original, a sua filosofia no abre mo de critrios. Porm, o critrio no
a adequao ou a descrio. Desse modo, entendemos mal se projetamos na obra deleuziana
raciocnios analgicos como aquele suposto pela estrutura metafrica. Veremos que os
critrios em Deleuze so sempre imanentes e devem ser encontrados, em ltima instncia, nos
desdobramento da tese da univocidade do ser. Talvez isso lance luz tambm sobre a forma de
exposio de sua filosofia.
De fato, um verdadeiro contrassenso algum dizer-se contra as metforas ou, ainda
mais amplamente, contra a representao, porque metfora e representao so fatos. A recusa
de Deleuze , na verdade, voltada contra o tipo de comprometimento ontolgico 33
pressuposto na estrutura da metfora e da representao. Portanto, para continuarmos, se
talvez inevitvel ler a maioria das imagens de Deleuze como metforas, no podemos, porm,
concluir dizendo que ele aceita o tipo de comprometimento ontolgico envolvido nesse uso da
linguagem.
Feita essa observao preliminar, afirmamos que h pelo menos trs imagens s quais
Deleuze recorre para tornar compreensvel o funcionamento de sua ontologia. Seletividade,
hierarquia e distribuio so imagens ou noes descritivas eleitas por Deleuze para
explicitar a forma de relacionamento do ser com os entes. Se no concebermos o ser como
instaurando uma seletividade, uma hierarquia e uma distribuio entre os entes no
entenderemos as aproximaes de Deleuze de teorias importantes, como o mtodo da diviso
ou o eterno retorno.
32 (...) preciso no se deixar enganar com a falsa idia de que o pensador nmade um apologista do caos ouque sua filosofia desordenada e pouco rigorosa (SCHPKE, 2004, p.14).
33 Agradeo ao professor Ernesto PERINI (UFMG) a sugesto da expresso (talvez usada em outro sentido) emsuas valiosas aulas de ontologia.
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Em primeiro lugar, o ser seletivo porque confere cidadania ontolgica a este ou
quele ente. Lembremos da condio do objeto artstico a partir de uma ontologia baseada na
adequao da realidade e da sua descrio. Nesse contexto terico, diramos que a arte no
tem cidadania ontolgica. Ela expulsa nessa seletividade baseada em um critrio de
adequao com a realidade. Em suma, a arte no real. Por outro lado, possvel falarmos em
uma hierarquia de acordo com esse critrio. H uma hierarquia que mede os seres segundo
seus limites e segundo seu grau de proximidade ou distanciamento em relao a um princpio
34. H aqueles que se aproximam mais ou se aproximam menos do ser de acordo com a sua
capacidade de descrever a realidade. Segundo o critrio de adequao, a cincia tem privilgio
sobre a arte justamente porque ela descreve melhor a realidade e no se entrega s derivas da
imaginao.
Se a hierarquia faz pensar em uma espcie de poltica do ser, a distribuio faz
pensar a ontologia sob a perspectiva da questo agrria. Deleuze v na assuno de um quadro
de categorias uma forma de estabelecer divises e partilhas no ser. (...) pois as categorias
pertencem ao mundo da representao, no qual elas constituem as formas de distribuio de
acordo com as quais o Ser se reparte entre os entes segundo regras de proporcionalidade
sedentria 35.
Porm, mais uma vez, encontramos uma dualidade. H uma distribuio sedentria e
uma distribuio nmade, h uma hierarquia por participao e h uma anarquia coroada
(diria-se, um anarquismo ontolgico), e cada uma delas supe uma seletividade especfica.
34 DELEUZE, 1988, p.77 [DELEUZE, 1993 (1968),p.55].
35 Idem,p.447 [Idem, p.364]. O conceito de ser distributivo no sentido em que 'no tem um contedo em si,mas apenas um contedo proporcionado aos termos formalmente diferentes dos quais ele predicado'. ParaAristteles, o sentido do ser no pode ser separado dos sentidos irredutveis que as categorias determinam; aunidade do ser enquanto ser no existe fora das categorias substncia, qualidade, quantidade, relao, lugar,tempo, posio, ao, paixo , que so os sentidos irredutveis do ser, os sentidos primitivos dos quais o serse diz, e que nem podem ser reduzidos unidade nem so radicalmente heterogneos. (). Alm disso, oconceito de ser hierrquico. Os termos, as categorias, no tm uma relao igual com o ser. A sucesso dasdiversas categorias () uma sucesso em que h um primeiro sentido primordial (MACHADO, 2009,
p.54-55).
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O que isso quer dizer?
O que caracteriza a distribuio sedentria dispor os entes de modo fixo em torno do
ser. A semelhana com o ser um critrio de hierarquia dos entes. A participao no ser
determinada pela semelhana do ente com o ser. Semelhana interna e essencial. Por ter um
centro idntico a si mesmo, organizador e fixo, Deleuze chama-a de distribuio sedentria. A
distribuio nmade, ao contrrio, dispe os entes de modo anrquico, sem centro. O critrio
de hierarquia entre eles no a semelhana, mas apotncia. Quanto mais os entes elevam sua
potncia, o que equivale a dizer que quanto mais eles se aproximam deles mesmos
expurgando a relevncia de um critrio exterior, mais eles participam do ser. Por um lado, um
critrio transcendente e fixo de participao, por outro, um critrio imanente e dispersivo 36.
H por outro lado uma distribuio totalmente diferente desta, uma distribuio que preciso
chamar de nomdica, um nomosnmade, sem propriedade, sem cerca e sem medida. A j no
h partilha de um distribudo, mas sobretudo repartio daqueles que se distribuem num
espao aberto ilimitado ou, pelo menos, sem limites precisos. Nada cabe ou pertence a algum,
mas todas as pessoas esto dispostas aqui e ali, de maneira a cobrir o maior espao possvel.(). Tal distribuio mais demonaca que divina, pois a particularidade dos demnios
operar nos intervalos entre os campos de ao dos deuses, como saltar por cima das barreiras
ou das cercas queimando as propriedades 37.
Sem as noes de seletividade, hierarquia e distribuio difcil entender a
interpretao do eterno retorno de Nietzsche. Uma das teses maiores deDiferena e Repetio
aquela segundo a qual a repetio seletiva e o seu objeto a diferena, a diferena retorna
na repetio ou, dito de outro modo, a repetio um processo de afirmao da diferena. O
36Plato e os Gregos (DELEUZE, 1997 [1993], p.154-155).37 DELEUZE, 1988, p.77 [DELEUZE, 1993 (1968),p.54].
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eterno retorno s pode fundar uma distribuio nmade porque ele no dispe os elementos
de acordo com a proximidade de um centro; e sim de acordo com a capacidade de cada
elemento de repetir-se. E essa reiterao intensiva e no qualitativa. Algo como o que ocorre
no romance de William Faulkner, Luz em Agosto38
, em que o modo de compor a histria e
mesmo de mobilizar o destino dos personagens a insero de uma personagem repetitiva,
Lena Grove, que constituda por uma srie de comportamentos estereotipados.
Ao contrrio, encontramos a distribuio sedentria sob duas formas principais na
histria da filosofia: a analogia e a contradio. Deleuze as enquadra em teorias que fazem
uma imagem do pensamento a partir do modelo da representao. Isso o obriga a forjar uma
teoria da representao a partir da qual aspectos essenciais, selecionados das obras de outros
filsofos, so avaliados. Dentre eles, um filsofo marcante por fazer uso de uma distribuio
sedentria em ontologia e por sua posio inaugural: Plato.
2. O MTODO DA DIVISO
I. O DRAMA DE UM NOIVADO
A dialtica platnica pode ser considerada uma dialtica da rivalidade, j que, quando
lanada a pergunta quem o poltico?, a preocupao est em determinar, face aos
diferentes homens da polis que viro para reclamar esta qualidade, quem efetivamente a
merece. Comerciantes, agricultores, atletas e mdicos diro: eu sou o poltico, eu mereo esta
qualidade 39! A dialtica parte constituinte da diviso cujo fim erigir um procedimento no
38 FAULKNER, 2007.39ESTRANGEIRO: Sabes que todos os comerciantes, agricultores, moleiros, inclusive atletas e mdicos,
protestariam energicamente junto a estes pastores de homens a quem chamamos polticos afirmando que eles que cuidam da criao dos homens, no apenas dos membros do rebanho, mas tambm dos governantes?
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qual se torne possvel selecionar, filtrar, dentre as pretenses, a pretenso pura, (...) distinguir
os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autntico e o inautntico 40.
Um dos aspectos irnicos do mtodo nos fazer pensar que ele foi levado a cabo
graas ao abandono da dialtica e insero de um mito. Porm, exatamente o contrrio. O
mtodo no foi finalizado, mito e dialtica so dois procedimentos que o constituem. Ele
rene em si a potncia dialtica e a potncia mtica para realizar a seleo 41. Isso fica claro no
dilogo, porque o mito surge graas incapacidade de a dialtica realizar sozinha a demanda
efetiva de Plato, a motivao de sua filosofia.
O mito (o outro caminho 42, como escreve Plato no Poltico) surge como parte
integrante do mtodo porque, at o momento, o esforo da diviso no conseguiu impedir de
maneira satisfatria que os outros homens da polis dissessem: eu sou o poltico. No foi
possvel impedir que mdicos, agricultores e comerciantes reclamassem, ainda que de maneira
ilegtima, esta qualidade. O mito surge porque o motivo do mtodo da diviso no , como
acreditava Aristteles, dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa
buscada sob a espcie adequada, no entanto, de maneira distinta, a sua finalidade selecionar
os pretendentes. Ou seja, em certo sentido, a questo no exatamente dizer o que o
poltico 43, mas quem o poltico 44. Trata-se muito mais de selecionar, de determinar um
domnio, impedindo tudo que possa vir a bagun-lo, do que, propriamente, analisar esse
(Poltico,268).40DELEUZE, 1974, p.260 [DELEUZE, 1971 (1969), p.293].41 prprio da diviso ultrapassar a dualidade entre o mito e a dialtica e reunir em si a potncia dialtica e a
potncia mtica (Idem, p.260 [Idem, p.294]).
42Poltico, 268.43 ESTRANGEIRO: No teramos ns razes para inquietao quando, ainda h pouco, nos assaltou a suspeitade que talvez houvssemos traado um esboo plausvel do carter real mas que, no entanto, no levramosat o retrato fiel do poltico, pelo fato de no o distinguirmos de todos aqueles que sua volta se agitam e quereclamam uma parte dos seus direitos de pastor? No o separamos suficientemente dos seus rivais paramostra-lo, unicamente, na sua pureza? (Poltico, 268).
44 Plato no divide de modo imperfeito como dizem os aristotlicos o gnero, caador, cozinheiro,ou poltico; no quer saber o que caracteriza a espcie pescador ou caador de lao. Quem ? e no, oque ? Quer descobrir o autntico ouro puro (FOUCAULT, [19--], p.38).
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domnio.
Para realizar a sua finalidade no mtodo da diviso, o mito erige um critrio pelo qual
as pretenses sero avaliadas. a partir desse critrio de medida que os diversos pretendentes
de uma determinada qualidade sero julgados. Ser selecionado, ento, qual dentre eles
pretende de maneira pura e verdadeira (por exemplo, qualidade de poltico) ou, para ser
mais preciso, qual deles tem a sua pretenso fundada.
Segundo Deleuze, os trs dilogos que utilizam o mtodo da diviso so o Fedro, o
Sofista e o Poltico. Neste ltimo, o objetivo encontrar quem o verdadeiro poltico. o
mito dos tempos arcaicos que erige o critrio pelo qual ser realizada a seleo: o verdadeiro
poltico, o verdadeiro pastor dos homens, buscando assemelhar-se ao deus arcaico, deve
cuidar da comunidade humana de uma maneira geral e no apenas de modo especfico
(alimentao, sade, etc.) 45. Porm,
(...) o mito circular mostra que a definio do poltico como pastor dos homens no convm
literalmente seno ao deus arcaico; mas[, apesar disso,] um critrio de seleo da se destaca,
de acordo com o qual os diferentes homens da Cidade participam desigualmente do modelo
mtico 46.
Somente o deus arcaico o fundamento possui a qualidade de poltico em primeiro
lugar. Esse um privilgio nico que nenhum dos demais pretendentes usufrui, nem mesmo
aquele que, dentre os homens da polis, pretende a qualidade de maneira mais legtima (no
caso da qualidade de poltico, o rei47
). O mito faz surgir um fundamento, faz surgir aquele
45 ESTRANGEIRO: Pois bem. Nenhuma arte pretenderia, com maior pressa e maior razo que a arte real, ter asi os cuidados para com a comunidade humana, em seu todo, e constituir-se numa arte de governo doshomens, em geral (Poltico, 276).
46 DELEUZE, 1974, p. 261 [DELEUZE, 1971 (1969), p.294].47 ESTRANGEIRO: Mas a meu ver, Scrates, esta figura do pastor divino ainda muito elevada para um rei;
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que possui a qualidade em primeiro lugar (apenas a Justia justa, apenas a Coragem
corajosa, etc. 48) e que fornece o critrio pelo qual os pretendentes sero julgados. Porm,
ainda falta dizer algo importante sobre a seleo. necessrio dizer que o fundamento o
modelo ao qual os pretendentes devem se adequar para receberem a qualidade. A palavra
fundamento adquire um significado peculiar, a saber, o mesmo que a palavra modelo.
Estar fundamentado estar de acordo com o modelo.
Por serem os pretendentes aqueles que so submetidos a uma adequao e o
fundamento aquele que fornece o critrio de adequao, os pretendentes possuem a qualidade
sempre em segundo lugar, em terceiro, em quarto e assim por diante. por isso que
participar , na melhor das hipteses, ter em segundo lugar 49. Funda-se uma hierarquia ou,
nos termos usados por Deleuze, uma participao eletiva 50. Depois do fundamento, qual
deles merece a qualidade? Qual dos pretendentes que possui a verdadeira e pura pretenso, a
boa potncia, ou para ser mais preciso: qual deles se assemelha mais ao fundamento, ao
modelo?
Temos trs personagens que fazem do mtodo da diviso o drama de um noivado. O
primeiro o pai: o imparticipvel, o fundamento (a Justia, a Coragem, etc.). O segundo a
filha: o participado, o objeto da pretenso (a qualidade de justo, a qualidade de corajoso, etc.).
O terceiro o noivo: o participante, o pretendente (o justo, o corajoso, etc) 51.
O que distingue um pretendente do outro a maior ou a menor semelhana que cada
um tem com o fundamento. Poderamos dizer, no caso do Poltico, aqueles que cuidam mais e
aqueles que cuidam menos da comunidade dos homens de um modo geral e no apenas
os polticos de hoje, sendo por nascimento muito semelhantes aos seus sditos, aproximam-se deles, aindamais, pela educao e instruo que recebem (Poltico, 275).
48 DELEUZE, 1974, p.264 [DELEUZE, 1971 (1969), p.299].49 Idem, p.260 [Idem, p.294].50 Idem. p.261 [Idem. p.294].51 Idem. p.264 [Idem. p.294].
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especificamente, sendo que esse o critrio do modelo que deve ser passvel de ser
assemelhado. porque a semelhana existe em relao ao fundamento, ao pai, que ela uma
relao interior, pois no acontece entre duas coisas, ou seja, entre o pretendente e a
qualidade. Ao contrrio, ela acontece entre uma coisa e a ideia52
da coisa qual se assemelha.
Existe uma mediaopor um terceiro personagem (a essncia, o fundamento, o pai) que serve
como critrio de seleo. Da porque o fundamento pode ser chamado de modelo e os
pretendentes de cpias. O pretendente deve modelar-se no pai, passar pelo critrio de seleo
fornecido a partir dele, para ganhar a filha. Para possuir determinada qualidade, o pretendente
deve assemelhar-se ideia que a possui sempre em primeiro lugar.
II. PLATO E OS GREGOS
Alguns dos principais filsofos interpretados por Deleuze constroem suas filosofias
utilizando um mtodo seletivo. So os casos de Plato e Nietzsche. Para Deleuze, o ser
seletivo. Porm o que distingue esses filsofos em relao a esse mesmo aspecto no apenas
o modo pelo qual, em cada caso, a seleo realizada, enfatiza-se tambm aquilo que ela
seleciona. Em Plato, o modo pelo qual ele realiza a seleo erigindo uma transcendncia e
o que ele seleciona so as boas pretenses, as boas cpias.
A seleo de pretendentes remonta esfera da polis que constitua um espao
horizontal de disputa entre os cidados, onde cada um defendia a sua opinio na tomada de
decises que diziam respeito cidade. No apenas questes polticas, mas toda espcie de
assunto era objeto de discusso. O espao pblico da cidade grega formava campos de
52Por que ideia se no Polticono h uma teoria das ideias? Segundo DELEUZE, o projeto platnico saparece verdadeiramente quando nos reportamos ao mtodo da diviso. Desse modo, mesmo a teoria dasideias tem a sua motivao passvel de ser desvelada a partir do mtodo da diviso. DELEUZE, 1974, p.261[DELEUZE, 1971 (1969), p.292].
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imanncia, no sentido em que a relao estabelecida entre os cidados era horizontal, no
existia nenhuma medida exterior a eles que fosse determinante nessa relao (por exemplo,
um aparelho de Estado). Em contrapartida, apesar de todos serem equivalentes (sociedade de
amigos), esses campos de imanncia eram preenchidos por rivais livres. Os cidados eram
obrigados a se diferenciarem entre si atravs da defesa de sua prpria opinio, de seu prprio
ponto de vista, em suma, buscavam realizar a sua pretenso.
O problema que incomodava Plato no que diz respeito a esses campos de imanncia
que eles permitiam que qualquer um pretendesse a qualquer coisa. No existiam critrios
absolutos que transcendessem disputa entre os cidados e que servissem como medida para
julgar as pretenses. Os critrios percebidos por Plato como sendo os determinantes na
esfera pblica eram, sob seu ponto de vista, relativos demais (por exemplo, a persuaso). O
fato de um discurso ser ou no verdadeiro uma questo secundria em relao sua
capacidade de convencimento. Relativos, porque no dependiam de uma medida exterior e,
sobretudo, invarivel. O que Plato faz instaurar uma transcendncia na seleo dos
pretendentes 53. Dizer que existem padres eternos pelos quais devem ser julgadas (avaliadas)
as pretenses. No mtodo da diviso, o mito assume a funo de erigir tais padres
normativos (os modelos). a necessidade da insero de um mito no dilogo, como substituto
da dialtica, que permite a Deleuze afirmar que o mtodo platnico no aplicado buscando
simplesmente uma definio (dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa
buscada sob a espcie adequada), no entanto, mais do que isso, ele um procedimento
seletivo e buscafazer a diferena.
53 O professor Marcelo MARQUES (UFMG), em seu livro Plato, Pensador da Diferena Uma leitura doSofista (2006), oferece uma descrio da polis como espao habitado por discursos diversos, dentre eles ofilosfico, peculiar pela sua posio de exterioridade. O filsofo socrtico-platnico notrio por exercerum olhar de estrangeiro com relao aos assuntos da cidade; uma perspectiva que pretende 'escapar' das ouultrapassar as obrigaes e determinaes humanas, tomando como referncia uma medida divina, absoluta,que relativiza e subverte os valores humanos comuns, tal como vemos na famosa digresso do Teeteto(MARQUES, 2006. p.22).
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III. POR QUE NO H MITO NO SOFISTA?
At agora o que descrevemos sobre o mtodo da diviso, segundo Deleuze, convm
perfeitamente ao Poltico e ao Fedro. Ambos unem neste mtodo potncia mtica e
potncia dialtica. Mas, e o Sofista? Por que ele est entre os dilogos em que aparece o
mtodo da diviso sendo que nele no h nenhum mito? Neste dilogo, o mito abandonado,
ou seja, ele no evocado para desempenhar o seu papel no mtodo da diviso porque a
pergunta sobre qual dos pretendentes pretende de maneira pura e verdadeira substituda pela
pergunta oposta: qual deles no possui a verdadeira e pura pretenso e ainda assim pretende
54? A questo agora no mais selecionar o verdadeiro pretendente, e sim o falso 55. Ser
possvel, recorrendo ao mito, fazer surgir um modelo do falso pretendente (ou denunci-lo)?
Ou mesmo, possvel uma seleo que selecione (ou condene) os falsos pretendentes?
Nisto consiste toda dificuldade e aventura do Sofista: a seleo lida diretamente com
aquilo que no deve ser selecionado, com aquilo que deve necessariamente ser excludo na
seleo, com o falso pretendente como tal. Paradoxalmente, com a tentativa de aprisionar o
sofista, o mtodo aplicado para selecionar aquilo que , necessariamente, excludo da
seleo: o no-ser. Porm, essa tentativa aponta, ao mesmo tempo, para a motivao da
filosofia platnica e para o que significa revert-la: selecionar de outra forma ou selecionar
no mais aquilo que est sob a ao dos modelos, ao contrrio, o que escapa a essa ao.
Porm, o que escapa a ela? Todos os falsos pretendentes?
No Poltico, o mdico reclama, ilegitimamente, a qualidade de poltico. Ento, ele
54DELEUZE, 1974, p.281 [DELEUZE, 1971 (1969), p.295].55(...) no Sofista, o mtodo da diviso paradoxalmente empregado no para avaliar os justos pretendentes,
mas ao contrrio para encurralar o falso pretendente como tal, para definir o ser (ou antes o no-ser) dosimulacro (Idem, p.281 [Idem, p.295]).
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seria o falso pretendente? Mais ou menos. Por mais que ele no ocupe o lugar do rei, ou seja,
daquele que possui a qualidade em segundo lugar (depois do deus arcaico que possui em
primeiro), de uma forma ou de outra, ele continua sob a ao do modelo, assim ele ocupa um
lugar na hierarquia. Ele uma cpia imperfeita, porm, ainda assim, uma cpia. No caso do
mdico que pretende a qualidade de poltico, poderamos dizer: basta achar um modelo
adequado para ele e o mesmo procedimento para cada pretendente. Existe um modelo para o
mdico que, apesar de pretender a qualidade de poltico indevidamente, pretenderia a
qualidade de mdico de maneira devida. Multiplicaramos os modelos o quanto fosse
necessrio: para o mdico, para o amante, para o justo. No entanto, como aplicar tal
procedimento ao sofista? A que qualidade ele reclama legitimamente, quando sabemos que
exatamente o fato de ele reclamar toda e qualquer qualidade que o caracteriza 56? Como achar
um modelo para o sofista quando sabemos que ele tem por peculiaridade sempre se esquivar
de qualquer modelo? H um modelo do no-ser? impossvel aplicar o mesmo procedimento
do mtodo da diviso ao sofista, porque ele no uma falsa cpia e sim um simulacro57. Por
esse motivo, segundo Deleuze, encontramos a razo da sintomtica ausncia do mito no
mtodo da diviso aplicado no Sofista.
Plato divide a arte mimtica em duas outras artes: a de produzir cpias e a de
produzir simulacros 58. A primeira produz uma imagem a partir de uma semelhana com um
modelo. Em contrapartida, a segunda arte tambm produz uma imagem s que a partir de uma
diferena com o modelo. Nela enfatiza-se a diferena, no a semelhana. O simulacro
constitudo sobre uma disparidade, sobre uma diferena, ele interioriza uma dissimilitude 59.
56A simulao o prprio fantasma, isto , o efeito do funcionamento do simulacro enquanto maquinaria,mquina dionisaca (DELEUZE, 1974, p. 268 [DELEUZE, 1971 (1969), p.303]).
57O prprio sofista o ser do simulacro, o stiro ou centauro, o Proteu que se imiscui e se insinua por todaparte (Idem, p.261 [Idem, p.295]).
58Sofista, 236.59 DELEUZE, 1974, p.263 [DELEUZE, 1971 (1969), p.297].
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Dessa forma, a cpia e o simulacro, para Plato, so duas imagens de naturezas distintas.
Os dois tipos de imagem so pretendentes. O simulacro sempre um falso
pretendente, porque construdo a partir de uma diferena com o modelo, ento ele nunca
passa no critrio oferecido, que se baseia exatamente no grau de semelhana entre a cpia e o
modelo para, dessa forma, fundar uma participao eletiva. O simulacro, de maneira oposta
cpia, pretende por meio de uma diferena. Na sua relao com a qualidade, falta a mediao,
o pai ou o fundamento que sirva como modelo e, consequentemente, produza a semelhana,
parmetro da pretenso. O simulacro pretende a qualidade por baixo do pano, graas a uma
agresso, de uma insinuao, de uma subverso, contra pai e sem passar pela Ideia 60. De
maneira diversa, a falsa cpia construda ainda a partir de uma semelhana com o modelo,
mesmo que distante. O simulacro uma mquina de metamorfoses, no enfatiza a semelhana
com a essncia, ao contrrio esquiva-se dela. A despeito disso, o simulacro possui uma
potncia que lhe garante vir tona. Se procuramos uma proximidade entre o conceito de
simulacro e o de acontecimento, que, por sua vez, d unidade Lgica do Sentido, ela deve
ser encontrada na potncia de furtar-se ao presente, em suma, furtar-se de uma determinao
temporal (atualizao), o que denota a categoria do intempestivo, o devir fora de toda
limitao.
Quando lanada a tarefa de selecionar os simulacros, deve-se levar em conta a
natureza deste pretendente, assim como no mtodo da diviso leva-se em conta a natureza da
cpia. Dessa forma, a seleo dos simulacros deve ser feita no mais visando quilo que
assemelha e sim quilo que difere. A diferena substitui a semelhana na funo de parmetro
para selecionar. Numa tal seleo, a conseqncia o desabamento da hierarquia entre cpias
e modelo. Instaura-se uma horizontalidade: um mundo de simulacros ou anarquias
60 DELEUZE, 1974, p. 261 [DELEUZE, 1971 (1969), p.296].
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coroadas 61. A seleo das cpias j deixa perceber esse afundamento: se nenhuma das cpias
possui a qualidade em primeiro lugar, todas elas conservam uma diferena com o modelo,
assim a imitao adquire de forma necessria um sentido pejorativo 62. As cpias, assim como
os simulacros, tambm no passam, todas, de pura simulao. No seria tambm o rei uma
falsa cpia do deus arcaico, apesar de ser o primeiro da fila dos pretendentes, na medida em
que s o modelo possui a qualidade em primeiro lugar 63? E no a essa concluso que chega
Plato quando admite a distncia do rei com o deus arcaico? No mais possvel falar em
cpias verdadeiras, pois todas as cpias esto destinadas falsidade quando no passam
todas de pura simulao. A semelhana est na superfcie como simulao, enquanto que, em
profundidade e internamente, h apenas diferenas. Este o princpio que rege a reverso do
platonismo: a afirmao da diferena em oposio representao, entendida como o domnio
das cpias e dos modelos e que tem a semelhana como pressuposto, ou, em outros termos, a
liberao dos simulacros.
Costuma-se dizer que, segundo Plato, h dois mundos. Em certo sentido, para
Deleuze, essa afirmao verdadeira, porm, desde que no estejamos nos referindo somente
distino entre o mundo das aparncias e o mundo das essncias. Mas, sobretudo,
distino entre as cpias, das essncias-aparncias, da semelhana interior, o domnio da
representao; e, do outro lado, os simulacros e a diferena interiorizada, o domnio da
filosofia da diferena. Para Deleuze, a primeira distino somente a dualidade manifesta,
aquela que tem como funo tornar possvel uma distino mais importante, a segunda,
denominada dualidade latente.
A motivao da filosofia platnica no (...) distinguir essncia e a aparncia, o
61Idem, p.268 [Idem, p.303].62DELEUZE, 1974, p. 263 [DELEUZE, 1971 (1969), p.298].63E no o mesmo tipo de impasse que coloca Scrates, indistinto em relao ao sofista no final do dilogo?
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inteligvel e o sensvel, a Ideia e a imagem, o original e a cpia, o modelo e o simulacro 64.
Ao procurar a definio do sofista (ou aprision-lo), Plato percebe que o simulacro no pode
ser includo em uma relao com um modelo, como prprio das cpias, sendo assim deve
ser excludo. A dualidade latente existe entre os que devem ser excludos, os simulacros, e os
que devem ser selecionados, as cpias. O papel do platonismo para grande parte da filosofia
foi balizar o seu domnio, isto , em fund-lo, selecion-lo, excluir dele tudo o que viria a
embaralhar seus limites 65. Plato estabelece a representao como o domnio positivo da
filosofia.
Assim o mtodo da diviso, procedimento pelo qual Plato busca selecionar os
pretendentes, mostra-nos qual a motivao de sua filosofia: trata-se de assegurar o triunfo
das cpias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mant-los encadeados no fundo,
de impedi-los de subir superfcie e insinuar-se por toda parte 66.
IV. A MOTIVAO DO PLATONISMO
Analisamos como o mtodo da diviso, utilizado nos dilogos platnicos, busca
responder pergunta quem merece tal qualidade? (quem o poltico?; quem o
amante?). Visto que diferentes homens da polisreclamaro uma mesma qualidade, preciso
erigir um procedimento pelo qual seja possvel selecionar: separar o verdadeiro pretendente
do falso. O mito substitui a dialtica com a funo de construir um modelo que servir de
critrio para a seleo. Os pretendentes devem estar de acordo com o modelo (o pai), eles
devem pretender a qualidade (a filha) tornando-se cpias (noivos). A semelhana ser o
parmetro da pretenso e o que fundar uma hierarquia das participaes, uma fila de
64 Idem. p.262 [Idem. p.295].65 DELEUZE, 1974. p.264 [DELEUZE, 1971 (1969). p.299].66 Idem. p.262 [Idem. p.296].
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pretendentes (participao eletiva).
Porm, no Sofista, o mtodo da diviso paradoxalmente aplicado quilo que, de
maneira necessria, no deve ser selecionado. O mtodo da diviso aplicado ao falso
pretendente. A tentativa achar um modelo para o falso pretendente. Mas um falso
pretendente no maneira do mdico em relao qualidade poltica e sim maneira do
sofista em relao a qualquer qualidade. Aprisionar o sofista tentar achar um modelo para
aquilo que no aceita modelos, pois ele reclama qualquer qualidade (simulao e
mascaramento). O sofista aquele que sempre se esquiva dos modelos, porque ele pretende a
qualidade por meio de uma diferena e no por meio de uma semelhana. Isso caracteriza-o
como simulacro: a diferena como parmetro da sua pretenso.
O Sofistadeixa transparecer um compromisso que a reverso do platonismo assumir
como o seu: selecionar simulacros, tomar a diferena como princpio para a seleo. Se a
motivao da filosofia platnica selecionar cpias, selecionar os pretendentes que
pretendem a partir de uma semelhana com um modelo e excluir os simulacros, a motivao
da reverso do platonismo selecionar exatamente estes ltimos, pois o critrio para a sua
seleo a diferena.
3. ARISTTELES CONTRA PLATO: ESPECIFICAR OU SELECIONAR?
Vimos como Plato ocupa um lugar inaugural na histria da representao. O seu
papel fundar o domnio no qual a filosofia se desenvolver. No entanto, por causa mesmo
desse lugar instaurador, o monstro da diferena ainda se insinua por todos os lados. como o
animal em vias de ser domado; seus movimentos, numa ltima crise, do melhor testemunho,
do que em estado de liberdade, de uma natureza perdida: o mundo heraclitiano freme no
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platonismo 67. Segundo Deleuze, possvel vislumbrar a diferena em estado puro nos
dilogos e a reverso do platonismo assume esta posio ambgua: "que esta reverso
conserve muitas caractersticas platnicas, isto no s inevitvel, como desejvel" 68.
Tambm no motivo para espanto a linguagem psicanaltica de Plato e o Simulacro,
porque o objetivo de Deleuze justamente trazer tona o que est latente nos dilogos sob a
significao manifesta. O ponto encontrar o simulacro ou a diferena no momento mesmo
em que ela deixa de ser o foco da filosofia, ao menos em seus momentos mais clebres. Nesse
sentido, possvel reconhecermos o papel duplo de Plato e tomarmos a sua obra tambm
como uma filosofia da diferena 69.
A crtica de Aristteles ao mtodo da diviso compreende mal o que est em jogo,
porque as suas exigncias so j as exigncias da representao, e exatamente o elemento
frutfero para se pensar a diferena que o filsofo censura no mtodo. Segundo Aristteles, o
problema que, ao pretender dividir um gnero em espcies contrrias para subsumir a coisa
buscada sob a espcie adequada 70, o mtodo opera sem um termo mdio que seria capaz de
nos levar a decidir em qual dos dois lados opostos da diviso a encerraramos. Ento a crtica
que no h necessidade lgica no modo como se opera a diviso 71. Ao contrrio, ela
procede sem mediao, de uma singularidade a outra.
67 DELEUZE, 1988, p.111[DELEUZE, 1993 (1968), p.83].68 DELEUZE, 1988, p.110 [DELEUZE, 1993 (1968), p.82].69 Sem ter Deleuze como referncia, o projeto foi levado a cabo pelo professor Marcelo Pimenta MARQUES
(UFMG) em seu livro Plato, Pensador da Diferena: Uma Leitura do Sofista (2006).70 DELEUZE, 1974, p.259 [DELEUZE, 1971 (1969), p.292-293].71 Para Aristteles, a diviso platnica por dicotomias consiste em dividir os gneros em espcies por suas
diferenas opostas, de modo a explicar as relaes entre as ideias e legitimar a predicao. Plato parte de
uma ideia composta e, por uma diviso metdica e exaustiva, reconstitui racionalmente o real. Trata-se assimde um mtodo sinttico que opera dicotomias sucessivas e eliminaes consecutivas, produzindo umaclassificao. Considerando a diviso platnica um 'silogismo impotente', Aristteles critica-a por noestabelecer uma ligao analtica entre as noes e proceder sem mediao, isto , sem termo mdio, demodo que a concluso no apresenta nenhum carter de necessidade lgica. O mtodo platnico de diviso um mtodo sinttico que pede que se lhe conceda justamente o que ele deve demonstrar, pois precisoconhecer previamente a natureza da coisa a ser definida para escolher as diferenas que vo servir parademonstr-la. Assim, o mtodo da diviso incapaz, segundo Aristteles, tanto de provar quanto de refutar(MACHADO, 2009, p.46).
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Segundo Aristteles, trata-se de dividir um gnero em espcies opostas; ora, este
procedimento no carece apenas de 'razo' por si mesmo, mas tambm de uma razo pela qual
se decida que algo est do lado de tal espcie mais que de outra. Por exemplo, divide-se a arte
em artes de produo e de aquisio; mas por que a pesca com linha est do lado da aquisio?
O que est faltando a mediao, isto , a identidade de um conceito capaz de servir de meio
termo 72.
Lembremos que o mito assumia justamente o papel de erigir uma instncia que
serviria de mediao. O mito instaurava uma transcendncia frente aos elementos tornando
possvel continuar a diviso. Porm, na direo inversa de Deleuze, Aristteles ignora o mito
como parte integrante do mtodo 73, porque o mito no possui um estatuto conceitual; e sim
meramente imaginrio ou fictcio.
Em Aristteles, o problema dividir os gneros em espcies e ele fracassa quando
projeta a expectativa de que funcione da mesma forma em Plato. Pelo contrrio, a
interpretao de Deleuze nos sugere que o objetivo do mtodo selecionar, instaurar um
domnio, evitando ao mesmo tempo tudo aquilo que possa vir a bagun-lo. Nesse sentido,
atravs da representao, h uma continuidade de Plato a Aristteles, porm enquanto um
pretende selecionar ou fundar, o outro quer especificar; enquanto a questo para o primeiro
fundar um domnio, para o outro organizar ou distribuir os elementos em um domnio j
instaurado. Em Aristteles, a diferena inscrita ou mediada no conceito e no mais tomada
imediatamente como em Plato
74
.
72 DELEUZE, 1988, p.111-112 [DELEUZE, 1993 (1968), p.83].73 Mas esta introduo do mito parece confirmar todas as objees de Aristteles: a diviso, carente de
mediao, no teria qualquer fora probante e deveria ser substituda por um mito que lhe forneceria umequivalente de mediao sob uma forma imaginria (Idem. p. 114 [Idem. p.86]).
74 A est um dos elementos que o levam a considerar a obra de Aristteles como uma filosofia da
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A pergunta inevitvel : como possvel proceder sem mediao? Alguma teoria
satisfaz a exigncia da singularidade, do simulacro? Como no submeter a diferena
identidade de um conceito e, ainda assim, conseguir pens-la?
4. A FORMA DA QUESTO
Para Deleuze, h uma concepo de essncia assumida pela filosofia da identidade e
ela, por sua vez, supe um modo especfico de formular um problema filosfico.
A Idia, a descoberta da Idia, inseparvel de um certo tipo de questo. Primeiramente, a
Idia uma 'objetidade' ['objectit'] que, como tal, corresponde a uma maneira de levantar
questes. Ela s responde ao apelo de certas questes. no platonismo que a questo da Idia
determinada sob a forma: Que ...? Esta questo nobre tida concernente essncia e ope-
se a questes vulgares que remetem apenas ao exemplo ou ao acidente 75.
A questo que ?prejulga a Idia como simplicidade da essncia 76. Nos dilogos,
Scrates no cessa de censurar seus interlocutores por responderem com meros exemplos s
suas perguntas. o caso do problema da justia que no bem colocado quando dizemos
quem justo? ou quando se justo?, mas sim quando questionamos o que a justia?.
Porm, ao invs de Plato ser por isso aquele que assume a posio de um essencialismo
abstrato, Deleuze interpreta essa correo da pergunta de um modo muito peculiar. Segundo
ele, Plato no quer tomar a questo o que ? como o verdadeiro problema. Levant-la
representao: o privilgio da identidade sobre a diferena est na concepo do gnero como o quepermanece o mesmo ou idntico para si, tornando-se outro ou diferente nas diferenas que o dividem. Omtodo da diviso tornou-se um procedimento de especificao (MACHADO, 2009. p.52).
75 O Mtodo de Dramatizao (DELEUZE, 2006, p. 130 [DELEUZE, 2002 (1967), p.132]).76 Idem. p. 130[Idem. p.132].
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durante os dilogos apenas um procedimento irnico para apontar para as condies
segundo as quais as questes como quem?ou quando?ganham o seu alcance e sentido ideais.
(...) a questo que ?acaba animando apenas os dilogos ditos aporticos 77. como se,
enquanto os interlocutores inbeis ou os sofistas se satisfazem permanecendo no plano dos
simples exemplos empricos, Scrates buscasse a ideia no como uma essncia 78, mas como
um campo problemtico positivamente determinvel em funo de uma tipologia, de uma
topologia, de uma posologia, de uma casustica transcendentais 79. A pergunta o que ?(por
consequncia, tambm a ironia) tem, para Deleuze, uma funo propedutica de apontar, para
alm das solues empricas, o campo problemtico das ideias. exatamente por isso que ele
interpreta o mtodo da diviso a partir da questo quem? (quem o poltico? quem o
sofista?).
A ambiguidade da leitura deleuziana da obra de Plato reside no fato de encarar ao
mesmo tempo o mtodo da diviso como um procedimento seletivo no qual o simulacro
excludo e como um procedimento para percorrer a ideia como multiplicidade. Como isso
possvel? No uma ambiguidade involuntria. Deleuze assume a afinidade do platonismo
com a sua reverso. Convm levar em conta o fato de que, quando fala positivamente do
mtodo da diviso, Deleuze j no o considera como tentativa de fundar uma mediao graas
transcendncia de uma instncia erigida pelo mito, ou seja, como nos parece habitual em sua
obra, no sobre o mesmo aspecto que reside o elogio e a recusa. Ao contrrio, Deleuze
elogia o mtodo por proceder, sem mediao, de uma singularidade a outra. Assim, a questo
77 Idem [Idem].
78 A Idia de modo algum a essncia. O problema, como objeto da Idia, encontra-se do lado dosacontecimentos, das afeces, dos acidentes, mais que do lado da essncia teoremtica. A Idia desenvolve-senos auxiliares, nos corpos de adjuno que medem seu poder sinttico, de modo que o domnio da Idia oinessencial. Ela se reclama do inessencial de uma maneira deliberada, com tanta obstinao quanto aquelacom a qual o racionalismo, ao contrrio, reclamava a posse e a compreenso da essncia. O racionalismo quisque o destino da Idia estivesse ligado essncia abstrata e morta; e na medida em que a forma problemticada Idia era reconhecida, ele ainda queria que esta forma estivesse ligada questo da essncia, isto , ao'Que ?' (DELEUZE, 1988, p.304 [DELEUZE, 1993 (1968), p.242-243]).
79 O Mtodo de Dramatizao (DELEUZE, 2006, p. 130 [DELEUZE, 2002 (1967), p.132]).
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mostrar como no est em jogo uma arbitrariedade por causa da ausncia de mediao, mas
uma determinao de dimenses singulares, de dinamismos especficos ideia. A questo de
Plato (como na expresso coloquial)fazer a diferena.
O que h de insubstituvel no platonismo foi bem visto por Aristteles, embora ele faa
precisamente disso uma crtica contra Plato: a dialtica da diferena tem um mtodo que lhe
prprio a diviso , mas esta opera sem mediao, sem meio-termo ou razo, age no
imediato e se reclama das inspiraes da Idia mais que das exigncias de um conceito em
geral. verdade que a diviso, em relao suposta identidade de um conceito, um
procedimento caprichoso, incoerente, que salta de uma singularidade a outra. Mas, do ponto
de vista da Idia, no esta a sua fora? E em vez de ser um procedimento dialtico entre
outros, que devesse ser completado ou substitudo por outros, no a diviso, no momento em
que ela aparece, que substitui os outros procedimentos, que rene toda a potncia dialtica em
proveito de uma verdadeira filosofia da diferena e que mede, ao mesmo tempo, o platonismo
e a possibilidade de reverter o platonismo? 80.
Quando Deleuze diz que, de acordo com o mtodo da diviso, passamos de uma
singularidade a outra, no podemos entificar esse termo e entendermos, de modo algum, que
passamos de uma coisaa outra. A objetidade [objectit] da ideia ou o solo sobre o qual a
diviso encontra abrigo deve ser encontrado nos seus dinamismos espao-temporais. Sem
eles [diz Deleuze], permaneceramos sempre nas questes que Aristteles levantava contra a
diviso platnica: e de onde vm as metades? 81. A singularidade uma noo que remete a
uma espcie de operao especfica, interna ideia, toposou lugares ideais. Nesse sentido,
casos como aqueles dos dilogos sobre a pesca com linha (cercar-bater ou bater de cima
80 DELEUZE, 1988, p.111 [DELEUZE, 1993 (1968), p.83].81 Idem. p. 350 [Idem. p.281].
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para baixo ou de baixo para cima) no so determinaes empricas, mas propriedades
internas da ideia, dinamismos singulares e ideais. (...) v-se bem isso no processo platnico
da diviso, que age apenas em funo de duas direes, da direita e da esquerda, e com a
ajuda, como no exemplo da pesca com linha, de determinaes do tipo 'cercar-bater', 'bater de
cima para baixo de baixo para cima' 82. Percebe-se que essas objetidades, s quais
Deleuze pretende dar destaque, so melhor determinadas a partir de questes como quem?
onde? quando? como?, principalmente porque no so entidades, substncias ou essncias,
mas processos ou dinamismos.
Continuaremos explorando a noo deleuziana de ideia. Ela no uma essncia
idntica a si mesma, nem um conceito geral que permite subsumir os casos. Menos ainda ela
estabelece uma relao de analogia com a aparncia. Ento, perguntamos, qual o estatuto da
ideia e quais so os critrios de uma ideia?
5. A IDEIA
At agora, colocamos o problema da seguinte forma: possvel pensar para alm da
analogia? possvel pensar algo sem ir at um significado originrio que o seu princpio de
inteligibilidade? A analogia preserva as caractersticas da filosofia da representao porque ela
supe um significado originrio e idntico a si mesmo a partir do qual outro termo explicado
atravs dele porque participa do seu sentido por semelhana. A tarefa do pensamento
ascender at essa origem, ir rumo a essa identidade primeira. Devemos ir rumo essncia,
alm de todos os acidentes, pequenas diferenas e aspectos inessenciais. Por isso questes
contextuais como quem?, onde?, quando?so irrelevantes perto da questo o que ?, sendo
82 Podemos ter uma noo da complexidade e da sistematicidade do pensamento deleuziano se lembrarmos que,alm desse exemplo platnico, Deleuze relaciona a relao entre fonemas em uma estrutura (por exemplo,
p/d) e o esquematismo kantiano. DELEUZE, 2006, p.132 [DELEUZE, 2002 (1967), p.135].
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elas talvez mais apropriadas s cincias empricas como a histria, a psicologia ou a biologia
83. O filsofo, ao contrrio, deve perguntar: o que algo para alm de todas as suas
manifestaes e aparncias? Obviamente, essa no a tese de Deleuze. Alm de no
encontrarmos nesse autor uma estratgia que consiste em reduzir a filosofia a um outro campo
do saber (como literatura), pois ele apostava na especificidade da filosofia, Deleuze ainda
defende que os grandes filsofos pensaram com questes casusticas ou contextuais 84.
Mas no deveramos supor que a analogia (e, consequentemente, seu essencialismo)
prpria apenas de uma leitura do platonismo, porque certo que algumas categorias modernas
de pensamento podem ser entendidas a partir dela. Por exemplo, no tambm a estruturaum
quadro normativo anterior aos fenmenos? Ela no os determina analogicamente?
justamente esse tipo de raciocnio que levar Deleuze e Guattari a recusarem o complexo de
dipo como um quadro explicativo para as manifestaes do desejo. Tendo-o como drama
explicativo a questo clnica apenas reconhecer os personagens nos fenmenos: o meu
pai, a minha me.
Tambm em Mil Plats, reaparece a crtica da analogia.Deleuze e Guattari falam do
devir-animal nos fenmenos de mimetismo em tribos indgenas, em casos clnicos e em obras
de arte. Eles defendem que os homens no imitam os animais por analogia. No se imita a
figura do pssaro, assim como, lembrando o exemplo de Sodoma e Gomorra de Proust, o
inseto no imita a orqudea. Um devir no uma correspondncia de relaes. Mas
tampouco ele uma semelhana, uma imitao e, em ltima instncia, uma identificao 85.
Eles recusam at mesmo a compreenso atravs de uma homologia estrutural entre dois
83 Foi justamente a posio de Ferdinand ALQUI durante a apresentao de DELEUZE Socit Franaisede Philosophieem 1967 (O Mtodo da Dramatizao).
84 Na sua apresentao Socit Franaise de Philosophie(DELEUZE, 2006, p.129-154 [DELEUZE, 2002(1967), p.131-162]), DELEUZE afirma que talvez apenas HEGEL tenha estabelecido sua filosofia em tornoda questo o que ?.
85 DELEUZE & GUATTARI, 1997 (1980), p.16.
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grupos de elementos (o casamento para a mulher aquilo que a guerra para o homem,
donde decorre uma homologia da virgem que se recusa ao casamento e do guerreiro que se
disfara de moa). Parece-nos que Franca D'Agostini tem toda razo quando diz que Deleuze
recusa toda pr-estruturao lgica normativa86
e procura pensar o acontecimento no
momento mesmo de sua gnese, sem refleti-lo em qualquer outra instncia, seja ela
lingustica, histrica ou metafsica.
A crtica da analogia recorrente na obra de Deleuze. Quando nos dedicarmos a
Proust, veremos como, um pouco antes de O Anti-dipo, a analogia entre dois momentos
distintos no tempo para explicitar o funcionamento da memria em Proust j era questionada.
Mais uma vez, constrangendo a nossa expectativa de reconhecimento dos autores, Deleuze
defende que o essencial daRecherche no a memria 87.
Em Diferena e Repetio, gnese e estrutura no so opostos 88. No entanto, ao
mesmo tempo em que a estrutura no se confunde com o fenmeno, ela no um alm. Ao
contrrio, um estado de coisas uma atualizao da estruturae a atualizao um processo
imanente de diferenao, no de semelhana. Deleuze reinvindica para a estrutura um
estatuto transcendental no sentido de que ela a condio de um estado atual de coisas, assim
ela imanente ao fenmeno, mas sem se confundir com ele 89.
86 D'AGOSTINI, 2002,p.376.87 Os campanrios de Martinville e a pequena frase de Vinteuil, que no trazem memria nenhuma
lembrana, nenhuma ressurreio do passado, tm, para Proust, muito mais importncia do que a madeleine eo calamento de Veneza, que dependem da memria, e, por isso, remetem a uma 'explicao material'(DELEUZE, 1987. p.3 [DELEUZE, 1998 (1964), p.9-10]).
88 (...) a gnese no vai de um termo atual, por menor que seja, a um outro termo atual no tempo, mas vai dovirtual a sua atualizao, isto , da estrutura a sua encarnao, das condies de problemas aos casos desoluo, dos elementos diferenciais e de suas ligaes ideais aos termos atuais e s correlaes reais diversasque, a cada momento, constituem a atualidade do tempo. Gnese sem dinamismo, evoluindo necessariamenteno elemento de uma supra-historicidade; gnese esttica que se compreende como o correlato da noo desntese passiva e que, por sua vez, esclarece esta noo (DELEUZE, 2006, p.262 [DELEUZE, 1993 (1968),
p.237-238]).89 Em Foucault, Deleuze reclama o mesmo estatuto para os enunciados: no visveis e no ocultos (DELEUZE,
2005 [1986], p.27).
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(...) a estrutura correspondente no tem relao alguma com uma forma sensvel, nem com
uma figura da imaginao, nem com uma essncia inteligvel. Nada que ver com uma forma:
porque a estrutura de maneira alguma se define por uma autonomia do todo, por uma
pregnncia do todo sobre as partes, por uma Gestalt que se exerceria no real e na percepo; a
estrutura se define, ao contrrio, pela natureza de certos elementos atmicos que pretendem
dar conta ao mesmo tempo da formao dos todos e da variao de suas partes 90.
No dizemos que uma ideia ou uma estrutura 91 isso ou aquilo. Ela no tem
designao extrnseca, nem significao extrnseca. Ento no tem como funo elementar
um valor descritivo ou denotativo. Mesmo vazia, o que resta ainda muita coisa. A ideia,
para Deleuze, um conjunto de elementos assignificativos cuja produo de sentido
determinada pelas relaes diferenciais entre eles.
como o comeo de um drama policial em que sempre h o confronto dos
personagens com uma cena composta de elementos assignificativos (a dead donkey on a
piano). Eles simplesmente no tm significado, apenas foram o pensamento, do o que
pensar. O que se passou?. E sempre h a polcia profissional precipitada na primeira
sugesto de sentido e um detetive perspicaz que distingue o relevante do ordinrio 92.
tambm muito parecido com a situao analtica, em que o conjunto de sintomas do
analisando no compe um significado evidente. Eles apenas do o que pensar, no so
objetos de recognio.
Uma ideia um sistema e cada domnio tem o seu tipo peculiar. Os elementos ideais
90 DELEUZE, 2006, p.224 [DELEUZE, 2002 (1967), p.242].91 Estrutura e ideia so sinnimos emDiferena e RepetioeLgica do Sentido.92 provvel que as noes de singular e de regular, de relevante e de ordinrio tenham, para a prpria
Filosofia, uma importncia ontolgica e epistemolgica muito maior que as de verdadeiro e de falso, relativas representao, pois o sentido depende da distino e da distribuio de pontos brilhantes na estrutura daIdia (DELEUZE, 1988, p.438 [DELEUZE, 1993 (1968), p.357]).
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podem ser genes, partculas fsicas, mitemas ou fonemas 93. Ter uma ideia, ento, destacar
em um domnio especfico os elementos mnimos que lhe so peculiares e a relao
estabelecida entre eles.
A ideia (ou um objeto) possui duas faces, uma virtual e outra atual. Por isso, ela
composta por dois processos complementares. Virtualmente, a ideia completamente
diferenCIada. Seus elementos se determinam de forma completa uns em relao aos outros.
Mas a ideia se atualiza nesse ou naquele estado de coisa, isso significa que ela produz efeitos
de sentido. Esse ltimo processo chamado por Deleuze de diferenao. No estamos
errados em entend-lo como sinnimo de encarnao. Uma ideia s pode se atualizar porque
s relaes entre os elementos correspondem singularidades. As singularidades se distribuem
na ideia fazendo dela um spatium. Parece-nos que todos esses conceitos de Deleuze esto
muito longe de uma epistemologia. A ideia menos algo que se apreende do que algo que se
experimenta ou mesmo se ocupa. Ela um territrio composto de regies: as singularidades
94.
93 Tal como definida pela Fonologia, a ideia lingustica tem certamente todas as caractersticas de umaestrutura: a presena de elementos diferenciais chamados fonemas, extrados da corrente sonora contnua; aexistncia de relaes diferenciais (traos distintivos) determinando reciprocamente e completamente esseselementos; o valor de pontos singulares assumido pelos fonemas nessa determinao (particularidades