DESIGUALDADES SOCIAIS, DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: LUTAS E RESISTENCIAS Rodrigo Cristiano Diehl 1 Marli Marlene Moraes da Costa 2 Resumo: Conjeturar Estado de orientação neoliberal, desigualdades sociais, garantia de direitos e proteção social na América Latina no atual cenário é um desafio instigador. Sendo assim, o objetivo com o presente estudo é analisar as desigualdades sociais e a concretização de direitos na América Latina utilizando por base o processo histórico de construções e lutas até os atuais movimentos de resistências frente aos constantes desmontes dos sistemas de proteção social. Diante desse contexto da pesquisa, questiona-se: quais são as perspectivas que devem ser levantadas para analisar as desigualdades sociais e a não garantia de direitos na América Latina utilizando como base os processos de lutas, resistências e desmontes dos sistemas de proteção social? A metodologia aplicada na pesquisa está dividida em três eixos: para alcançar os objetivos inicialmente propostos será utilizado a pesquisa exploratória- descritiva; para organizar e coletar os materiais utilizar-se-á da pesquisa bibliográfica de caráter quanti-quali e; para o tratamento desses dados o método a ser empregado será o materialismo-dialético. Palavras-chave: América Latina. Direitos. Estado. Proteção social. Resistência. 1 INTRODUÇÃO Construir um processo dialógico com desigualdades sociais, direitos e proteção social hoje, isto é, na fase contemporânea do capitalismo marcada pelo avanço do conservadorismo e pelo domínio do capital neoliberal nos Estados latino-americanos, é um grande desafio. Portanto, pensar em direitos sociais e políticas públicas requer compreender o significado e os fundamentos que os sustentam para que seja possível atuar no combate a extrema desigualdade social, econômica e política. Com base nas críticas ao acordo político que resultou da trajetória do fordismo e do keynesianismo na configuração das políticas da era social, ideias conservadoras (mantendo o status quo) emergiram vitoriosas e, a partir disso, serviram de base para uma grande parte dos países do mundo. Os períodos conhecidos como Tatcherismo (no Reino Unido) e Reaganismo 1 Doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa Capes. Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa Capes. Advogado e professor. E-mail: [email protected]2 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado em Direito pela Universidad de Burgos, com bolsa Capes. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora, psicóloga e advogada. E-mail: [email protected]Anais do IV seminário internacional de políticas públicas, intersetorialidade e família Evento realizado em 23, 24 e 25 de outubro de 2019 ISBN 978-65-5623-002-3
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DESIGUALDADES SOCIAIS, DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO
SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: LUTAS E RESISTENCIAS
Rodrigo Cristiano Diehl1
Marli Marlene Moraes da Costa2
Resumo: Conjeturar Estado de orientação neoliberal, desigualdades sociais, garantia de
direitos e proteção social na América Latina no atual cenário é um desafio instigador. Sendo
assim, o objetivo com o presente estudo é analisar as desigualdades sociais e a concretização
de direitos na América Latina utilizando por base o processo histórico de construções e lutas
até os atuais movimentos de resistências frente aos constantes desmontes dos sistemas de
proteção social. Diante desse contexto da pesquisa, questiona-se: quais são as perspectivas
que devem ser levantadas para analisar as desigualdades sociais e a não garantia de direitos na
América Latina utilizando como base os processos de lutas, resistências e desmontes dos
sistemas de proteção social? A metodologia aplicada na pesquisa está dividida em três eixos:
para alcançar os objetivos inicialmente propostos será utilizado a pesquisa exploratória-
descritiva; para organizar e coletar os materiais utilizar-se-á da pesquisa bibliográfica de
caráter quanti-quali e; para o tratamento desses dados o método a ser empregado será o
materialismo-dialético.
Palavras-chave: América Latina. Direitos. Estado. Proteção social. Resistência.
1 INTRODUÇÃO
Construir um processo dialógico com desigualdades sociais, direitos e proteção social
hoje, isto é, na fase contemporânea do capitalismo marcada pelo avanço do conservadorismo
e pelo domínio do capital neoliberal nos Estados latino-americanos, é um grande desafio.
Portanto, pensar em direitos sociais e políticas públicas requer compreender o significado e os
fundamentos que os sustentam para que seja possível atuar no combate a extrema
desigualdade social, econômica e política.
Com base nas críticas ao acordo político que resultou da trajetória do fordismo e do
keynesianismo na configuração das políticas da era social, ideias conservadoras (mantendo o
status quo) emergiram vitoriosas e, a partir disso, serviram de base para uma grande parte dos
países do mundo. Os períodos conhecidos como Tatcherismo (no Reino Unido) e Reaganismo
1Doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa Capes. Mestre em Política Social e
Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul, com bolsa Capes. Advogado e professor. E-mail: [email protected]
2Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado em Direito pela
Universidad de Burgos, com bolsa Capes. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora, psicóloga e advogada. E-mail: [email protected]
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(nos Estados Unidos) ajudaram a irradiar ideias neoliberais, transformando o Estado, pensado
nesta lógica para ser mínimo, em um Estado hegemônico.
Ao mesmo tempo, nesse período, o consenso social democrático das sociedades abriu
espaço para o Consenso de Washington promover, segundo Matta (2013), uma lista de
contrarreformas estruturais nos serviços e em seus financiamentos. Portanto, as estratégias de
contrarreforma podem ser agrupadas em dois blocos: I) as chamadas contrarreformas de
primeira geração que abordaramas atividades produtivas e os serviços públicos essenciais por
meio, principalmente, de privatizações e; II) contrarreformas de segunda geração voltadas
para os sistemas de proteção social.
Nesse contexto, o objetivo deste estudo é analisar as desigualdades sociais e a
realização dos direitos na América Latina utilizando o processo histórico de construções e
lutas até a atual resistência contra os constantes desmantelamentos dos sistemas de proteção
social. É importante mencionar que, ao dialogar com as desigualdades, direitos e sistemas de
proteção social na América Latina, não se deve esquecer das inúmeras especificidades de cada
Estado, o que neste estudo se faz é buscar reunir elementos próximos que permitam a
construção de vínculos.
Na construção do trabalho, o percurso metodológico utilizado em relação aos objetivos
foi uma investigação exploratória-descritiva; em relação aos procedimentos, uma investigação
bibliográfica quanti-quali e, por sua vez, para a análise dos dados foi utilizado o método
materialismo-dialéticopor permitir aproximações dos fenômenos naturais e sociais a partir do
ponto dialético, fazendo sua interpretação, sua maneira de focalizá-los, na perspectiva de
materializar um movimento real, suas contradições e forças.
Oproblema de pesquisa que circunda toda a discussão é: quais são as perspectivas que
devem ser consideradas na análise das desigualdades sociais e na não concretização de
direitos na América Latina, utilizando como base os processos de lutas, resistências e
desmontes dos sistemas de proteção social?
2 DESIGUALDADES SOCIAIS E PROTEÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO, LUTA E RESISTÊNCIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS
O processo de desconstrução, em nome dos ditames internacionais, dos direitos sociais
que pouco foram construídos vem de vários séculos. Segundo Mattel (2013), a América
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Latina possui inúmeras marcas históricas que remontam ao processo de colonização (ou
exploração), onde o espaço territorial era utilizado para a função de produção agrícola e
fornecimento de bens primários aos interesses da metrópole: portuguesa e espanhola. Essa
lógica da colonização, de estabelecer uma estrutura produtiva, social e econômica voltada
para o exterior, deixa marcas ainda presentes, como a pobreza, a concentração de renda e a
exclusão social.
Nesse campo, é relevante o pensamento de Sen (2010) que, mesmo fazendo a
distinção entre pobreza como falta de capacidade e pobreza como falta de oportunidades,
estabelece que ambos estão intimamente ligados, uma vez que as oportunidades são um meio
importante para atingir a capacidade. No entanto, a atenção deve ser focada na pobreza pela
privação de capacidade, já que o aumento da capacidade de vida de uma pessoa normalmente
aumentaria a capacidade de ser mais produtiva e receber uma renda maior.
Sen (2010), contudo, ao considerar a necessidade de entender a pobreza e a privação
de liberdade, garante que a pobreza se tornou o principal problema da sociedade capitalista e,
como resultado, o foco das políticas sociais. Deste modo, o Estado abandona a possibilidade
de universalizar o acesso à serviços básicos para incorporar a redução ou o enfrentamento da
pobreza por meio da igualdade de oportunidades, direcionamento e seleção de beneficiários e
transferência de renda condicionada.
Entre os sistemas que ainda permanecem, prevalece a identificação com a lógica da
jornada de trabalho, ou seja, a inserção no mercado de trabalho como fonte de bem-estar,
capaz de libertar os pobres da pobreza e, portanto, não criar dependência de indivíduos em
relação aos benefícios sociais. Dessa forma, os sujeitos passivos e ativos dos direitos sociais
são responsáveis por si mesmos e pelo usuário da assistência: de titular do direito a um
simples beneficiário. Segundo Stein (2017), a moralização e a individualização dos sujeitos,
como princípios de ativação, visam mudar comportamentos e atitudes individuais, onde a
cultura empreendedora é marcada como saída e a única alternativa à autonomia econômica.
Os sérios problemas e riscos para os sistemas de proteção social devem ser
reconhecidos diante das desigualdades que o capitalismo produz e reproduz, o que constitui
uma ameaça à ordem e ao trabalho social. Outro ponto de contradição está na tentativa de
contrarreforma dos sistemas de proteção social que, incorporados nas políticas sociais, são o
núcleo rígido dos Estados Democráticos de Direito reconstruídos: a Constituição Federal
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Brasileira de 1988; a Constituição da Nação Argentina de 1994; A Constituição Mexicana de
1917, a Constituição Política da Bolívia de 2006, por exemplo, estão no centro das disputas
político-ideológicas.
A política social foi constituída como uma mediação institucional político-econômica
que resulta, ao mesmo tempo, das contradições e reivindicações das lutas de classes e da
lógica da acumulação capitalista. Quando apresentado como um processo dinâmico explicado
no movimento histórico das sociedades, é possível reconhecer a multiplicidade de
perspectivas, visões e significados das políticas sociais que contestam a construção ou a
(re)construção da hegemonia (SOTO; TRIPIANA, 2014).
Nesse processo de construção das políticas sociais, Cecchini (2015) ensina que nem
todas são predominantemente orientadas para o fim da proteção social, embora todas tenham,
em geral, dimensões de proteção social. Logo, a proteção social é a parte central da política
social e, por sua vez, é a parte essencial dos regimes de bem-estar social, que consideram não
apenas a ação do Estado, mas também, a operação de mercados, das famílias e das instâncias
comunitárias.
A proteção social deve se materializar através de um conjunto de mecanismos e
instrumentos que viabilizem os direitos sociais, como forma de abordar a lacuna no campo
das políticas sociais, especialmente nos últimos anos. No entanto, juntos, é preciso tentar
transpor a fratura histórica que resultou nas desigualdades sociais, políticas e econômicas
observadas na América Latina a partir da relação entre trabalho e capital (MENDES;
WÜNSCH; CAMARGO, 2011).
O estudo das políticas sociais é um fenômeno complexo, pois deve abranger vários
aspectos, como: I) a importância do sucesso nos direitos sociais, culturais e econômicos dos
segmentos mais marginalizados da população, apesar da extensão das políticas
sociaisabranger todos os setores de uma sociedade; II) seus efeitos na qualidade de vida das
pessoas como ser social; III) a aceitação ou não de um determinado governo por meio da
coesão social, que causa, em várias ocasiões, a primazia na concepção dos interesses de
determinados setores e não as reais necessidades da população e; IV) sua ligação direta com o
crescimento e com o desenvolvimento econômico de um país ou região (SOTO; BORREGO,
2018).
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Nesse processo de construção de políticas sociais está a proteção social que, no
contexto latino-americano, pode ser entendida a partir da história de seus modelos de
desenvolvimento e de seus respectivos paradigmas econômicos e sociais. Assim, Stein (2017),
usando Cecchini e Martínez (2011), identifica essa evolução com base em quatro momentos:
o primeiro que começa no século XIX e termina com a crise de 1929, influenciada pelo
pensamento liberal, dominado pelo modelo de exportação primária.
Aqui, os indicadores sociais são caracterizados, por um lado, pela conformação das
sociedades nacionais e pelo sentimento de pertencimento dos cidadãos ao seu país e, por
outro, pela caridade, onde a atenção aos problemas sociais é realizada por meios da ajuda aos
necessitados, seja através de organizações da sociedade civil ou através da igreja. No final da
década de 1920, começaram a surgir os primeiros sistemas de proteção social inspirados no
modelo universal (STEIN, 2017).
O segundo momento se estende do início da década de 1930 ao final da década de
1970 e é caracterizado pelo modelo de substituição de importações, quando as questões
sociais estavam relacionadas à justiça, ordem social e seguridade social, destacando o impacto
e o papel da sociedade civil organizada e dos sindicatos na luta para construir modelos
melhores e mais abrangentes de proteção social.
Segundo Stein (2017), as limitações de cobertura comprometeram a perspectiva
universalista da política social, priorizando a proteção contributiva de funcionários e, em
termos de proteção não contributiva, restrita aos grupos mais vulneráveis. Nesse período, a
gestão das políticas sociais é marcada pelo planejamento central e predominantemente pelo
financiamento estatal, com pouca participação do setor privado.
O terceiro momento na evolução dos sistemas de proteção social ocorre entre o final
dos anos 70 e o início dos anos 80 e tem como principais marcas: a crise da dívida pública, o
déficit fiscal, as transformações do capitalismo industrial nacional para o capitalismo
globalizado, financeiro e de serviços. As recomendações do Consenso de Washington e a
crença de que o mercado é o melhor instrumento para designar bens e serviços caracterizam a
abordagem neoliberal do crescimento externo. Austeridade fiscal, ajuste estrutural, programas
de estabilização econômica destinados a promover o crescimento não levaram em
consideração as desigualdades e a distribuição de renda (STEIN, 2017).
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Para Stein (2017), a proteção social nesse período começa a assumir uma dupla
característica, a saber: proteção contributiva e não contributiva para aliviar a pobreza extrema
por meio do acesso a níveis básicos de bem-estar. Apesar da institucionalidade democrática e
de algumas ações concretas do Estado na área econômica e social, a América Latina
apresentou altos níveis de desigualdades e pobreza nas décadas de 1980 e 1990.
E o quarto momento do desenvolvimento histórico da proteção social construído
por Stein (2017) começa em meados da década de 1990 e se estende até o presente, com base
no paradigma da competitividade sistêmica, onde é necessário incorporar o progresso técnico
no processo produtivo, com vistas ao aumento da produtividade. Assim sendo, as políticas
sociais se tornam muito mais importantes devido às suas contribuições para a formação de
capital humano, razão pela qual é considerada essencial para a competitividade dos países no
médio prazo.
Nesse ambiente de expansão seletiva de políticas que materializam a proteção social
que, diferentemente do que está previsto em vários textos constitucionais da América Latina,
como no Brasil, não constituem uma estratégia de universalização dos direitos sociais. O que
realmente acontece, segundo Barreto (2016), é que o Estado, imbuído de anseios neoliberais,
intensifica o bem-estar, a mercantilização e a privatização da proteção social, ou seja, expande
a assistência social, comercializa a saúde, vigia a educação, censura a cultura e restringe o
acesso à previdência social por meio de contrarreformas, que favorecem a previdência privada
complementar: os famosos fundos de pensão.
Nesse ponto do desenvolvimento do capital neoliberal, não se pode esquecer que a
inserção de países classificados como periféricos no capitalismo também reflete a divisão
internacional do trabalho, que apresenta suas marcas históricas de persistência em sua
formação e desenvolvimento. Segundo Iamamoto (2015), o desenvolvimento dessas novas
condições histórico-sociais metamorfoseia a questão social inerente ao processo de
acumulação capitalista, expressando-a com novas determinações e relações sociais produzidas
historicamente, e impõe o desafio de elucidar seu significado social na atualidade.
A análise dos sistemas de proteção social não pode ser separada de outros elementos,
muito menos dos fundamentos das lutas de classes institucionalizadas (através do
reconhecimento de grupos de capital e de trabalho) e do papel do Estado como garantidor que
essa luta não afete diretamente o princípio da acumulação de mais-valia. Nesse contexto, a
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proteção social aparece como objeto móvel, segundo Valle (2012), uma vez que, por um lado,
existe a lógica da acumulação daqueles que possuem capital e, por outro, a lógica da
distribuição.
Classificada como determinante na regulação das relações econômicas e sociais dos
indivíduos no sistema de produção keynesiano-fordista, a proteção social, como vista, se
expande pela seguridade social e materializa-se por meio de políticas sociais. A previsão
ocorre como o núcleo rígido central dos Estados sociais após a Segunda Guerra Mundial. Os
direitos nele previstos, baseados no modelo bismarckiano (alemão) ou no
modelo beveridgiano(inglês), têm como parâmetro as relações trabalhistas e, em sua fase
inicial, a garantia de benefícios básicos para quem perdeu a capacidade de trabalhar,
momentânea ou permanentemente (BOSCHETTI, 2009).
Um dos desafios nesse cenário inicial foi a construção da articulação entre o problema
social e a política de proteção social, para que juntos eles possam entender o contexto
sociopolítico das vulnerabilidades e dos riscos sociais. O que torna relevante esse processo de
reestruturação da proteção social é o fato de que, no século passado,
segundo Fernandes (2007), a humanidade foi responsável, por um lado, pelo excelente
progresso científico e tecnológico em diversas áreas, que proporcionou impactos positivos na
qualidade de vida dos cidadãos. Por outro lado, na América Latina, esse progresso foi lento e
extremamente desigual.
Sob esse manto de contradições, com base no trabalho de Valle (2012), é possível
estabelecer três observações centrais: a primeira se refere ao desenvolvimento de sistemas de
proteção social na América Latina, que tem como característica comum o princípio da
subsidiariedade que até então orientava a ação e apenas "autorizava" o Estado a intervir na
questão social quando as instituições mais próximas do cidadão, por exemplo, a igreja e
outras associações religiosas falhassem.
A segunda observação indica que, desde o início da história da proteção social, ela foi
segmentada em diversos microssistemas, o que acabou por privilegiar e garantir o acesso, em
particular, aos funcionários que estavam vinculados a esses sistemas. Para ter essa
possibilidade de ingresso, foram estabelecidos níveis de serviço devido à condição
profissional e, com o desenvolvimento de mecanismos de representação, a prestação de
serviços relacionados ao bem-estar individual e social passou a ser do tipo corporativo
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(VALLE, 2012). E a terceira observação sobre os sistemas de proteção social no contexto
latino-americano é que seu principal objetivo era proteger o provedor da família (geralmente o
marido/pai), subtraindo os outros membros da casa da falta de proteção do Estado.
Atualmente, a proteção social, incorporada na seguridade social e nas políticas sociais,
pode ser constituída como elemento central da proteção, considerando o mecanismo legítimo
de reconhecimento e enfrentamento das desigualdades sociais e econômicas na América
Latina, proporcionado por padrões de disparidades em relação à produção, à acumulação e à
concentração da riqueza socialmente produzida (MENDES; WUNSCH; SILVA, 2014). Isso
demonstra a importância de entender a relação entre sociedade, Estado e classes sociais nas
mais diversas interfaces de interlocução.
De maneira diferente, Cortés e Flores (2014) definem a proteção social a partir de três
dimensões e indicadores principais: o primeiro seria a cobertura horizontal ou a proporção da
população que de alguma forma está coberta pela seguridade social; o segundo seria a
cobertura vertical ou benefícios oferecidos aos membros (no sistema de beneficiários)
e; terceiro, proteção social financiada ou mensurada para que as despesas não aumentem a
desigualdade de renda.
Como elemento presente no desenvolvimento social, a proteção social deve ser
entendida em um contexto de tratamento da dívida social herdada do capitalista, que é
transcendida com uma abordagem de totalidade capaz de capturar a diferenciação e superá-la
para alcançar a justiça social. Nesse contexto, o projeto corporativo socialista não reduz a
proteção dos indivíduos, mas o coloca como protagonista do desenvolvimento social com o
objetivo de expandir seu potencial (COUTO, et al., 2018).
Mendes e Wünsch (2011) apontam que as contínuas mudanças que envolvem a esfera
do trabalho na sociedade atual guardam repercussões diretas na proteção social e que também
estão relacionadas a mudanças no papel e na orientação dos Estados, principalmente se
contextualizadas no início das décadas de 1980 e 1990, com o advento do paradigma
neoliberal. Esse novo paradigma oferece a oportunidade de revelar a incompatibilidade no
tripé capital-trabalho, Estado e proteção social, liderada pela urgência de criar novas formas
de produção.
Esse não-fechamento é o que permite uma ampla análise dos fenômenos envolvidos,
como a visualização das duas consequências mais sérias das políticas neoliberais na América
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Latina: a expansão das desigualdades sociais e o colapso do aparato industrial nacional
(SALAMA, 1995). Os efeitos negativos, em grande parte gerados pelos governos neoliberais,
podem ser apresentados como o resultado claro do fracasso do próprio Estado em manter a
superexploração, por um lado, e, por outro, a luta infrutífera contra as desigualdades sociais.
O passo inicial para sua problematização é discutir os principais modelos de
materialização da proteção social na América Latina, levando em consideração o centro de
ação, os momentos históricos listados acima e os ensinamentos de Fleury (1994), que são:
assistência, seguro e a seguridade. O primeiro modelo tem seu núcleo formado na Assistência
Social e surge em contextos socioeconômicos nos quais o mercado é o agente controlador das
demandas sociais, e cabe a cada indivíduo perseguir seus interesses individuais, como a
aquisição de bens e serviços, que conduzem a uma cidadania invertida. Os valores
predominantes são liberdade e individualismo, visando à igualdade de oportunidades
(FLEURY, 1994).
O segundo modelo, chamado de Seguro Social, tem como elemento central a
possibilidade de cobrir determinados grupos ocupacionais por meio de uma relação
contratual, ou seja, uma cidadania regulada. A única característica distintiva do seguro
privado é o órgão que o sancionou, neste caso o Estado. O atendimento aos trabalhadores é
realizado por meio de contribuições anteriores, o que não elimina uma forte burocracia que
busca a lealdade dos beneficiários (FLEURY, 1994).
O terceiro e último modelo tem como elemento constitutivo da proteção social a
Seguridade Social, na qual o Estado, através de um conjunto de políticas públicas3,
governamentais e unificadas, visa garantir as condições básicas da humanidade e o ideal de
justiça sociais, incluindo renda, bens e serviços. Esse sistema, segundo Fleury (1994), permite
a redistribuição da riqueza socialmente produzida e, portanto, a correção de desigualdades
sociais extremas, vinculando a cidadania universal aos povos latino-americanos.
3Utiliza-se o termo política pública neste trabalho com base no seguinte conceito: políticas públicas são respostas
do poder público à problemas políticos. Ou seja, as políticas designam as iniciativas do Estado (governos e
demais poderes públicos) para atender demandas sociais referentes às questões comuns à população, sendo
executadas diretamente por órgãos públicos ou delegadas às organizações da sociedade civil ou privadas
(SCHMIDT, 2018).
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TABELA 01: Modelos de proteção social (assistência, seguro e seguridade)