DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA AO LABELING APPROACH: ROMPIMENTO
PARADIGMTICO OU MERA EVOLUO
DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA AO LABELING APPROACH: ROMPIMENTO
PARADIGMTICO OU MERA EVOLUO?Alina Mourato Eleoterio
Jos Ferreira Coelho Neto
SUMRIO: 1. Introduo. 2. Das principais caractersticas do
rompimento paradigmtico. 3. A criminologia positivista (paradigma
etiolgico). 4. A crise e a o perodo de transio paradigmtica. 5. Da
superao representada pelo labeling approach (teoria do
etiquetamento ou da reao social). 5. Concluso. 6. Referncias
bibliogrficas.RESUMO: O presente artigo tem como objetivo
compreender se a teoria do labeling approach representa uma quebra
de paradigma na Criminologia, em relao ao paradigma positivista a
ela anterior. Para isto, so explanadas as principais caractersticas
de uma ruptura paradigmtica, a partir das lies de Thomas Kuhn e
Boaventura de Sousa Santos. Em seguida, com base nas premissas de
cunho epistemolgico previamente fixadas, trabalha-se com a
apresentao e posterior comparao entre os caracteres da Criminologia
positivista, das teorias que representam uma crise neste modelo e,
finalmente, do labeling approach, para entender se realmente esta
ltima representa ou no uma verdadeira revoluo cientfica dentro da
Cincia Criminolgica. Palavras chave: Criminologia positivista;
labeling approach; Epistemologia; ruptura paradigmtica.ABSTRACT:
This article aims to understand if the labeling theory approach
represents a paradigm shift in Criminology, in relation to the
older positivist paradigm. For this are explained the main features
of a paradigmatic rupture, based on the lessons of Thomas Kuhn and
Boaventura de Sousa Santos. Then, based on epistemological
assumptions fixed just before, works with the presentation and
later comparison between the characters of positivist criminology,
theories that represent a crisis in this model and, finally, the
labeling approach, to understand whether this last theory
represents or not a true scientific revolution in the
Criminological Science.
Keywords: Positivist Criminology; Labeling approach;
Epistemology; Paradigmatic rupture.
1. INTRODUOA criminologia por muito tempo foi estudada pelos
penalistas como uma disciplina meramente auxiliar do Direito Penal,
agregando seus conhecimentos dogmtica penal a fim de facilitar a
compreenso do crime e do criminoso, suas causas e origem. A
criminologia surge, assim, como cincia que investiga o crime de um
ponto de vista no normativo, diferenciando, portanto, seu campo de
estudo do campo prprio do Direito Penal.
Porm, a Criminologia no se relaciona apenas com o Direito Penal,
tendo, por caracterstica, uma faceta multidisciplinar. Seus
conhecimentos so produzidos, ao longo da histria desta disciplina,
com o recurso a outras cincias, como a biologia, antropologia,
sociologia e a psicologia.
Esta caracterstica interdisciplinar, contudo, terminou se
impondo, em princpio, como um obstculo ao reconhecimento e
autonomia da Criminologia enquanto cincia, diante das incertezas na
definio de seu mtodo e objeto prprios (VERAS, 2010, pp. 01-02).
Esta dificuldade inicial, todavia, foi superada com o
reconhecimento de que esta caracterstica deriva das prprias feies
do objeto de estudo, o crime enquanto fenmeno, e que a dependncia
de outras cincias no impede que a mesma forme um conjunto
cientfico, perfeitamente delimitado em sua configurao (CASTELO
BRANCO, 1975, p. 26).Este processo de consolidao da Criminologia
enquanto cincia autnoma partiu, apesar das referncias Escola
Clssica de Beccaria, da Criminologia positivista. O estudo do crime
passa a ser realizado com base no mtodo das cincias naturais, o que
poderia conferir a ele a cientificidade pretendida. Assim, o mtodo
causal naturalista o preferido no estudo das causas e dos fatores
da criminalidade, com o foco destacado na figura do criminoso (ou
delluomo delinqente, como preferiria Lombroso). Apesar das crticas
a este modelo, impossvel negar a sua importncia para a formao da
disciplina (VERAS, 2010, p. 06).Mesmo sob a tica positivista,
contudo, a interdisciplinaridade da matria propiciou diversos
olhares diferentes sobre o mesmo objeto, o que torna a Criminologia
uma disciplina bastante efervescente, com teorias em geral
contraditrias e uma dificuldade terminolgica significativa. A
depender do enfoque proposto, tem-se uma nova denominao ou uma nova
concluso sobre a causa da criminalidade ou sobre a resposta estatal
conferida.
Todavia, todas estas diferenas de posio foram produzidas dentro
do paradigma etiolgico, seguindo os parmetros positivistas de
pesquisa. Roberto Lyra, pontuando o mtodo a ser utilizado,
categoricamente aduz que Ou a cincia positiva, ou no cincia. Seu
mtodo sempre o mtodo cientifico ou positivo (1995, p. 68).
Observa-se, neste exemplo, quanto o mtodo positivista permaneceu
impregnado na disciplina, mesmo para os crticos das concluses
iniciais advindas de sua introduo na Criminologia.
Apesar destas consideraes, um momento especfico no
desenvolvimento da Criminologia requer, sob o aspecto metodolgico,
uma maior compreenso. Trata-se da nova abordagem inaugurada pela
teoria do labeling approach (ou teoria do etiquetamento). Este
ponto em que os principais autores apontam uma eventual ruptura
paradigmtica no estudo da disciplina (BARATTA, 2002, pp. 85-89).H
autores, como Hassemer e Munz Conde (1989, pp. 63-65), que divergem
desta considerao, apontando que no h de fato uma ruptura
paradigmtica, nos moldes de uma revoluo cientfica. No mximo,
poderia se reconhecer um enriquecimento da disciplina, mas no uma
mudana to profunda ao ponto de revolucionar as bases e diretrizes
da Criminologia.
Diante de consideraes to profundamente divergentes, surge
inevitavelmente o interesse por esclarecer quais os elementos devem
ser levados em considerao para apontar, de fato, se a teoria do
labeling approach representa ou no uma ruptura paradigmtica no
mbito do estudo da Criminologia. Esse o problema que direciona o
presente artigo.Para tal tarefa, num primeiro momento sero
estudadas e elencadas as principais caractersticas para que, no
mbito de uma cincia, proceda-se a uma ruptura paradigmtica. Nesta
tarefa, tem-se o recurso a Thomas Kuhn (2000) e Boaventura de Sousa
Santos (2006), autores que pontuam, o primeiro de modo mais terico,
o segundo num vis mais prtico, os elementos primordiais a serem
observados neste aspecto.
Num segundo momento, proceder-se- a uma definio do paradigma
etiolgico, com a definio de seus interesses de investigao, dos
conceitos fundamentais formulados e de como se empreende a relao
entre objeto e mtodo de abordagem.No terceiro tpico, ser abordada a
crise do paradigma etiolgico, a partir do estudo das principais
teorias que levantaram crticas significativas contra aquele. Estas
teorias, a saber, a teoria criminolgica da anomia e teoria das
subculturas criminais, so localizadas nesse artigo como
pertencentes a um perodo de transio paradigmtica, pois, embora
sejam responsveis por uma importante evoluo do pensamento
criminolgico, no representam, ainda, uma ruptura com o paradigma
etiolgico.
No quarto tpico, o estudo se volta para a caracterizao da teoria
do etiquetamento, perpassando, tal qual o que foi empreendido com a
Escola positivista, por seus conceitos fundamentais, esfera de
interesses e, neste caso, pelas diferenas metodolgicas que lhe
conferem a originalidade e criticidade necessrias para, ao menos,
levantar o questionamento acerca da eventual existncia de uma
ruptura metodolgica.
Cumpridas estas tarefas, de maior aproximao com os contedos
necessrios ao trabalho, ser chegado o momento de analisar a superao
do paradigma etiolgico pelo do labeling approach tendo como prisma
as caractersticas de uma ruptura paradigmtica, apontadas ainda no
primeiro tpico.Deste modo, espera-se chegar a uma concluso que
permita compreender e solucionar o problema proposto, estabelecendo
uma posio slida na divergncia doutrinria sobre o tema. Esta,
frisa-se, de salutar importncia para a melhor definio dos parmetros
bsicos de uma Criminologia que deve assumir um papel cada vez mais
destacado na compreenso do fenmeno criminal e na orientao da
Poltica Criminal, numa aproximao cada vez mais intensa entre o ser,
da realidade social, e o dever ser, da norma penal. 2. AS
CARACTERSTICAS DE UMA RUPTURA PARADIGMTICA
Thomas Kuhn acredita que o desenvolvimento das cincias no se d
por um processo de acumulao de conhecimentos, teorias, descobertas
e invenes. Segundo o autor, equivocada a impresso de que o
desenvolvimento cientfico seria uma sntese de construes tericas
pretritas absorvidas por concepes atuais com a superao das
eventuais deficincias das primeiras. O progresso ocorre, em
verdade, por meio das chamadas revolues cientficas, nas quais um
paradigma mais antigo total ou parcialmente substitudo por um novo,
incompatvel com o anterior. (KUHN, 2006, p. 125).
No entanto, a substituio de um paradigma por outro no se conclui
da noite para o dia, um processo gradativo, marcado por fortes
tenses ideolgicas. Esse processo se inicia a partir de uma crise
gerada pelo fracasso recorrente das concepes tericas dominantes em
solucionar os problemas e alcanar os resultados pretendidos. Essa
crise marcada por debates profundos a respeito de mtodos, problemas
e padres de soluo legtimos (KUHN, 2006, p. 73), pois reina uma
insegurana profissional em relao aos padres at ento aceitos.
Nesse perodo, ocorrem, ainda, os primeiros ataques ao paradigma
dominante por meio da proliferao de teorias crticas. Estas surgem,
geralmente, uma ou duas dcadas antes do enunciado da nova teoria
que representar uma resposta direta crise e que, portanto, ser a
responsvel pela ecloso de um novo paradigma. (KUHN, 2006, p. 103 e
ss.).
A mudana de paradigmas, portanto, no significa uma articulao
entre dois modelos contrapostos. Ela representa, mais precisamente,
uma reconstruo da rea de estudos a partir de novos princpios,
reconstruo que altera algumas das generalizaes tericas mais
elementares do paradigma, bem como muitos de seus mtodos e aplicaes
(KUHN, 2006, p. 116). Portanto, em razo da profundidade que essa
transio representa, haver um intenso embate de posies ideolgicas
contrrias, pois, naturalmente, ocorrer uma forte tendncia de
conservao do paradigma em crise por meio da tentativa de absoro das
crticas e reformulao das concepes dominantes.
Saliente-se, por fim, que essa ruptura paradigmtica no decorre,
necessariamente, de revolues cientficas de grandes propores. A obra
de Thomas Kuhn se presta, justamente, a demonstrar a existncia de
revolues grandes e pequenas, algumas afetando apenas os estudiosos
de uma subdiviso de um campo de estudos (KUHN, 2006, p. 74). Um dos
exemplos significativos de uma Revoluo Cientfica de grandes
propores narrado por Boaventura (SANTOS, 2006) ao analisar a
transio paradigmtica que estamos vivenciando de uma Cincia Moderna
para uma Cincia Ps-moderna.
Embora o objetivo do presente artigo seja demonstrar, apenas, a
ruptura paradigmtica representada pela Teoria do Labeling approach
em relao ao paradigma etiolgico da Criminologia Positivista (uma
pequena revoluo), a transio paradigmtica diagnosticada por
Boaventura afeta sobremaneira o presente estudo, na medida em que a
pequena revoluo aqui apresentada se insere ou pelo menos fruto da
influncia desse perodo de transio para uma Cincia Ps-Moderna.
Portanto, as consideraes de Boaventura permearo o corpo do presente
estudo, dada a relao intrnseca entre os dois fenmenos.
3. A CRIMINOLOGIA POSITIVISTA (PARADIGMA ETIOLGICO)
Segundo Boaventura (2006, p. 20 e ss.), o paradigma da Cincia
Moderna foi desenvolvido basicamente no domnio das cincias
naturais. Nesse contexto, a matemtica ocupou um lugar central na
cincia moderna e disso derivaram duas conseqncias principais: em
primeiro lugar, o rigor cientfico pautado no rigor das medies
(conhecer significa quantificar); em segundo lugar, o mtodo
cientfico se dirige reduo da complexidade: Conhecer significa
dividir e classificar para depois poder determinar relaes
sistemticas entre o que se separou.
Essa tentativa de reduo da complexidade do mundo vai transformar
o determinismo mecanicista de Newton na base terica fundamental da
Cincia Moderna. Assim, a racionalidade hegemnica marcada por um
conhecimento causal que aspira formulao de leis, luz de
regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro
dos fenmenos (SANTOS, 2006, p. 29). Por outro lado, paulatinamente
ocorreu a transposio desse modelo para as cincias sociais, numa
tentativa de aplicar, na medida do possvel, ao estudo da sociedade
os pressupostos metodolgicos correntes no estudo da natureza
(SANTOS, 2006, p. 33-34).
Inseridas nesse contexto delineado por Boaventura, as diretrizes
tericas da Criminologia Positivista surgem em 1876 com a obra O
Homem Delinquente, de Cesare Lombroso, e so fruto da manifesta
influncia do determinismo mecanicista que pautou o paradigma
cientfico da Modernidade. De fato, uma de suas caractersticas mais
marcantes a incorporao dos mtodos inicialmente desenvolvidos como
prprios das cincias naturais. Essa incorporao seria essencial para
atribuio do necessrio carter cientfico s cincias sociais. Em outras
e precisas palavras, O mtodo cientfico adotado para o estudo da
sociedade seria uma alternativa apoltica para abordar problemas
sociais como objetos neutros governados por leis universalmente
vlidas (DEL OLMO, 2004, p. 36-37).
A Criminologia, deste modo, surge sob robustas influncias do
evolucionismo de Darwin, do determinismo mecanicista de Newton e,
por bvio, do positivismo de Comte. A criminologia positivista tem
por objeto, assim, no propriamente o delito, mas sim o homem
delinqente, considerado como um indivduo diferente e, como tal,
clinicamente observvel. Entendia-se, ademais, que era possvel
individualizar sinais antropolgicos da criminalidade e observar os
indivduos criminosos no crcere ou no manicmio judicirio, um
universo de coleta de dados no mnimo questionvel. (JAY-GOULD, 1999,
p. 130-132)Tais influncias conduziram formulao das denominadas
teorias patolgicas da criminalidade. Estas teorias so baseadas
sobre as caractersticas biolgicas e psicolgicas que diferenciariam
os sujeitos criminosos dos indivduos normais[...] (BARATTA, 2002,
p. 29). No por coincidncia e sim por uma orientao poltico-racial
bastante clara, a figura do criminoso nato era fatalmente
identificada com caractersticas fsicas dos homens negros ou das
classes mais humildes. Na Amrica Latina, em especial, a figura do
delinqente estaria identificada com a maioria da populao,
representada pelas heranas antropolgicas negras e indgenas. Como
triste exemplo, as palavras de Nina Rodrigues. (apud DEL OLMO,
2004, p. 174):
A civilizao ariana est representada no Brasil por uma fraca
minoria de raa branca a quem coube o encargo de defend-la [...]
contra os atos anti-sociais das raas inferiores, sejam estes
verdadeiros crimes no conceito dessas raas ou sejam, ao contrrio,
manifestaes de conflito, de luta pela existncia entre a civilizao
superior da raa branca e os esboos da civilizao das raas
conquistadas e dominadas. As causas da criminalidade deveriam ser
procuradas, portanto, na totalidade biolgica e psicolgica do
indivduo e na totalidade social que determina a vida do indivduo. O
delito, segundo Lombroso, seria determinado por causas biolgicas de
natureza, sobretudo, hereditria, o que colocaria o criminoso numa
posio anterior na escala evolutiva regular da espcie humana.
(BARATTA, 2002, p. 30).
Com base nesta explanao, h uma reao ao conceito abstrato de
indivduo, negando a considerao de que o delito seja fruto de um ato
de livre vontade. Tratando da Criminologia positivista, bem pontua
Ryanna Pala Veras (2010, p. 05):Negava o livre arbtrio e seus
pressupostos, pois entendia que, assim como acontecia com os
fenmenos da natureza, havia determinismo no comportamento dos
indivduos. Se a regularidade observada na natureza pudesse ser
encontrada no comportamento humano, existiria previsibilidade e
alguma chance de prevenir com eficcia o crime se fossem conhecidas
as causas do comportamento desviante. A Escola Positiva assume o
pressuposto terico da regularidade/previsibilidade da conduta
humana e, com base nele, desenvolve suas teorias. A viso
predominantemente antropolgica de Lombroso seria depois ampliada
por Garfalo, com a acentuao dos fatores psicolgicos, e por Ferri,
com a acentuao dos fatores sociolgicos. Estes novos enfoques, porm,
no traziam qualquer alterao substancialmente mais profunda, na
medida em que todos consideravam o crime como algo patolgico e
partiam de uma concepo do fenmeno criminal segundo o qual este se
colocava como um dado ontolgico preconstitudo reao social e ao
direito penal, a criminalidade, portanto, podia tornar-se objeto de
estudo nas suas causas[...] (BARATTA, 2002, p. 40).
Tais enfoques, assim, convergiam no sentido de que o objeto de
estudo da Criminologia seriam as causas do crime, recorrendo aos
mtodos cientficos das cincias naturais para apont-las e desenvolver
solues, curas, correes. Exatamente por este motivo so
doutrinariamente inseridos, conjuntamente, no mesmo paradigma
etiolgico.Assim, portanto, surge a Criminologia moderna. Bebendo no
mtodo das cincias naturais, buscando a causa ou as causas do crime
em fatores deterministas, sejam eles bioantropolgicos, sociais ou
psicolgicos, negando por conseqncia o livre arbtrio e cumprindo, em
grande medida, uma funo scio-poltica de reafirmao do status quo
poltico, econmico e, destacadamente, racial.4. A CRISE E A O PERODO
DE TRANSIO PARADIGMTICA
Ao reverso do que deixava entrever a Criminologia positivista, a
criminalidade um fenmeno altamente complexo. O fracasso do
paradigma etiolgico reside, em grande medida, exatamente na
tentativa de reduo dessa complexidade ao circunscrever as explicaes
das causas da criminalidade a fatores biopsicolgicos. medida que
esse fracasso vai se tornando manifesto, surge uma pluralidade de
teorias que formulam crticas efusivas ao paradigma etiolgico.
Essa crise paradigmtica marcada, sobretudo, pela influncia da
teoria criminolgica da anomia e das teorias das subculturas
criminais. Estas teorias foram predominantes nas dcadas de quarenta
e cinqenta do sculo XX e tem como ponto em comum o fato de que se
baseiam em um modelo funcionalista de Sociedade. (LARRAURI, 1992,
p. 02)
O marco inicial destas concepes se encontra em Durkheim,
responsvel por diagnosticar a irrefutvel normalidade que rodeia o
fenmeno criminal. Para Durkheim, o crime consiste num ato que
ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma
clareza particulares e, assim como no pode existir uma sociedade
onde no existam divergncias individuais em relao s posturas
coletivas, tambm inevitvel que, entre essas divergncias, haja
algumas que apresentem um carter criminoso. (DURKHEIM, 2006, pp.
83-85). O crime , portanto, um fenmeno normal de toda estrutura
social.
Para alm de normal, o crime til e funcional estrutura da
sociedade. Ele teria uma dupla utilidade: por um lado, serviria
para fortalecer o consenso da comunidade em torno de determinados
valores; por outro lado, em determinados momentos, o crime
demonstra que chegada a hora de renovar esses valores e, nesse
caso, pode ser um fenmeno decisivo para a evoluo de uma sociedade.
Segundo Durkheim (2006, pp. 86-87) o crime:
[...] No apenas ele implica que o caminho permanece aberto s
mudanas necessrias, como tambm, em certos casos, prepara
diretamente essas mudanas[...].Quantas vezes, com efeito, o crime
no seno uma antecipao da moral por vir, um encaminhamento em direo
ao que ser! De acordo com o direito ateniense, Scrates era um
criminoso e sua condenao simplesmente justa. No entanto seu crime,
a saber, a independncia de seu pensamento, era til, no somente
humanidade, mas sua ptria. Pois ele servia para preparar uma moral
e uma f novas, das quais os atenienses tinham ento necessidade,
porque as tradies segundo as quais tinham vvido at ento no mais
estavam em harmonia com suas condies de existncia. Ora, o caso de
Scrates no isolado; ele se reproduz periodicamente na histria. A
liberdade de pensar que desfrutamos atualmente jamais poderia ter
sido proclamada se as regras que a proibiam no tivessem sido
violadas antes de serem solenemente abolidas [...]. A livre
filosofia teve por precursores os herticos de todo tipo que o brao
secular justamente perseguiu durante toda a Idade Mdia, at as
vsperas dos tempos contemporneos.
Nesse sentido, Durkheim esvazia a distino entre sujeitos
criminosos e sujeitos normais que caracteriza o paradigma
etiolgico. O criminoso no aparece mais como um corpo estranho
introduzido no seio da sociedade, mas sim como um agente regular da
vida social. Dessa forma, se o crime no uma doena, a pena no pode
ter como objetivo cur-lo, e sua verdadeira funo deve ser procurada
noutro lugar (DURKHEIM, 2006, pp. 87-88)
Partindo das formulaes de Durkheim, Merton desenvolve a teoria
criminolgica da anomia. Sob a perspectiva desta teoria, os crimes
seriam fruto das presses das estruturas sociais sobre determinados
indivduos. Merton considera, em sntese, que a estrutura social
define as metas ou fins que os indivduos devem atingir e, por outro
lado, a estrutura institucional regula e controla os meios
aceitveis de se alcanar estes fins. No entanto, uma sociedade que
exerce uma forte presso sobre metas culturais sem a correspondente
exigncia do cumprimento das normas institucionais reguladoras,
poder ser marcada por um perfil de indivduos orientados apenas pela
eficincia de seus atos. Esse desequilbrio entre meios e fins gera
um processo de relativizao contnua das regras institucionais e esse
processo faz desenvolver na sociedade o estado de anomia (ausncia
de normas). Nesse contexto, o crime seria a reao do criminoso
produzida pelo estado de anomia. (VERAS, 2010, p. 51 e ss.)
Como se pode perceber, a teoria criminolgica da anomia
representa uma crtica incisiva ao paradigma etiolgico, na medida em
que desloca as causas da criminalidade do delinqente para a
estrutura social.
As teorias das subculturas criminais, por sua vez, compartilham
com a teoria da anomia o pressuposto de que a delinqncia um
problema criado pela estrutura social. No entanto, questiona dois
aspectos essenciais daquela teoria: primeiro, faz objeo ao
enunciado de que toda uma sociedade compartilha dos mesmos valores;
por outro lado, questiona o fato de que a resposta ao conflito
entre meios e fins culturais se d necessariamente atravs de
comportamentos individuais isolados. (LARRAURI, 1992, p. 06)
As teorias das subculturas criminais partem da idia de que o
comportamento criminoso, como qualquer outro comportamento, fruto
de uma aprendizagem. Nesse sentido, o foco recai sobre as formas de
associaes entre indivduos por meio das quais se transmitem tanto as
tcnicas de cometimento de delitos quanto as justificaes necessrias
para essas prticas. (LARRAURI, 1992, p. 07).
Um dos principais expoentes dessas teorias Sutherland e seus
estudos em relao aos crimes de colarinho branco. Segundo esse
autor, a delinqncia aprendida a partir da associao direta ou
indireta com aqueles indivduos que cometem delitos e os indivduos
que aprendem esse comportamento criminoso geralmente no tem
contatos freqentes e estreitos com o comportamento conforme a lei
(BARATTA, 2002, p. 73). Albert Cohen desenvolve a hiptese geral
levantada por Sutherland (a delinqncia decorre da aprendizagem),
buscando explicar porque determinados comportamentos criminosos so
valorizados por determinados grupos (as subculturas criminais).
Cohen elabora suas concluses a partir do estudo dos bandos juvenis.
Segundo o autor, os jovens das classes sociais subalternas esto em
condies desfavorveis de competio na busca pelo triunfo pessoal (o
status de vencedor, muito presente nas sociedades capitalistas, em
especial na estadunidense the american dream; a conquista dos fins
culturais definidos por uma sociedade).
A constatao de que a competio que tero de travar com os jovens
dos grupos mais abastados uma batalha perdida, faz com que os
jovens das classes subalternas se juntem a outros em condio similar
formando os chamados bandos juvenis. No interior desses grupos,
estabelecem outros valores com base nos quais possam medir o seu
status, ou seja, invertem os valores dominantes, criando uma
subcultura. Nesse sentido, a delinqncia juvenil uma forma de
adquirir reputao e status frente aos outros membros do grupo e de
se fazer respeitar. (LARRAURI, 1992, p. 07). Em suma, sob a
perspectiva dessas teorias, a resposta ao conflito entre os fins
culturais definidos por uma sociedade e a ausncia de meios legtimos
para alcan-los conduz ao desenvolvimento de subculturas criminais.
Esses grupos seriam responsveis pela transmisso das formas de
aprendizagem do cometimento de delitos, e estes, por sua vez,
seriam justificados por meio da reformulao dos valores dominantes.
Portanto, assim como ocorre com a teoria da anomia, conclui-se que
a delinqncia um problema criado pela estrutura social.
Em que pese a inegvel contribuio que essas teorias representaram
para a evoluo do pensamento criminolgico, no podem ser consideradas
como um rompimento em relao ao paradigma etiolgico da criminologia
positivista, pois compartilham com esta ltima algumas das
caractersticas prprias do paradigma mecanicista da cincia Moderna,
delineado por Boaventura (2006) em tpicos anteriores.
De fato, a utilizao de mtodos prprios das cincias naturais para
o estudo da sociedade ainda uma caracterstica marcante tanto da
teoria da anomia quanto da teoria das subculturas. Uma anlise
acurada demonstra que as referidas teorias se baseiam quase que
exclusivamente em observaes empricas, a partir das quais so
extradas determinadas concluses que se pretendem de aplicao geral
para a explicao das causas da criminalidade. Desse modo, os mtodos
de observao e investigao utilizado por essas teorias da fase de
transio paradigmtica se identifica com as tcnicas empregadas por
Lombroso, Garfalo e Ferri nas suas investigaes, com a sutil (mas
importante) diferena de que deslocam o foco de observao e as causas
da criminalidade do delinqente para a estrutura social
(desigual).
Por outro lado, a fixao na tentativa de identificao das causas
da criminalidade, ainda que no sejam buscadas em sinais biolgicos
ou psicolgicos dos indivduos, sinaliza o apego ao causalismo,
prprio de uma concepo do paradigma moderno de cincia.
Ademais, uma concepo funcionalista se basa en la similitud de la
sociedad con el resto de los organismos vivos e, segundo essa
premissa, tambin la sociedad, debido a las relaciones de
interdependencia existentes en ella, es susceptible de ser
estudiada con las mismas leyes causales que rigen el mundo de la
naturaleza. (LARRAURI, 1992, p. 13). De fato, no existe diferena
substancial entre a analogia sociedade/organismos vivos e aquela
idealizada por Newton em relao ao mundo/mquina, analogia esta que,
segundo Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 31), se transformou na
grande hiptese universal da poca Moderna: o mecanicismo.
5. DA SUPERAO REPRESENTADA PELA TEORIA DO LABELING APPROACH
(TEORIA DO ETIQUETAMENTO OU DA REAO SOCIAL)A teoria do labeling
approach, traduzida para o portugus como teoria do etiquetamento,
surge aproximadamente na dcada de 60 do Sculo XX e se ocupa
principalmente da reao das instncias oficiais de controle social,
analisando e considerando seu papel constituinte da prpria
criminalidade. Deste modo, o problema da definio do delito,
realizada pela ao do sistema penal desde a elaborao abstrata das
normas at a ao concreta das instncias oficiais atravs de seus
agentes pblicos, passa, pela primeira vez, a ser determinante. Por
esta razo, inclusive, tambm denominada de Teoria da reao social.
(BARATTA, 2002, p. 86).O primeiro passo para compreender a teoria
do etiquetamento o reconhecimento de que o crime no constitui, em
si, uma realidade ontolgica. Esta reflexo, que como j foi dito
anteriormente foi introduzida por Durkheim, o princpio do
rompimento com a viso do crime e do criminoso como uma patologia
social. Ao revs, trata-se de um fato social normal e, em certa
medida, til e necessrio evoluo social.Esta concepo, agora
desenvolvida com o olhar do labeling approach, conduz concluso de
que o crime depende, para existir como tal, dos processos sociais
de definio, variando, pois, a depender do tempo e dos contextos
sociais e culturais. (GOMES e MOLINA, 2007).
O comportamento criminoso, assim, no apresenta nenhuma diferena
significativa em relao a qualquer outro comportamento, exceo de que
aqueles foram definidos como criminosos e estes no. Logo, o desvio
no uma qualidade do ato em si, seno uma conseqncia do controle
social e da aplicao de suas regras e sanes (LARRAURI, 1992, p.
29).
O que primeiro se destaca nesta teoria, portanto, a redefinio do
objeto de investigao Criminolgica. Enquanto para a Criminologia
positivista o objeto de estudo era a figura do delinqente, para o
labeling approach o foco a ao das instncias oficiais de controle,
responsveis no pela resposta ao crime, mas pela prpria criao da
delinqncia. O questionamento central da disciplina, ento, muda de
quem o criminoso para quem considerado criminoso. Nas palavras de
Gabriel Ignacio Anitua (2008, p. 588):Dessa maneira, o enfoque da
criminologia mudaria totalmente, pois as definies legais ou
institucionais deixariam de ser assumidas acriticamente como algo
natural, e a nfase seria colocada exatamente nessas definies. O
objeto de estudo da criminologia deixar de ser o delinqente e
comear a ser as instncias que criam e administram a delinqncia. O
labeling approach se credencia, deste modo, enquanto uma verdadeira
mudana paradigmtica, que rompe com o paradigma etiolgico exatamente
pela promoo de uma mudana do objeto de estudo, ao tempo em que se
distanciava at mesmo da concepo da sociologia tradicional no que
tange relao entre o delito e o controle social. Elena Larrauri
(1992, p. 28) destaca estes dois aspectos:
El propio Lemert (1967:v) al explicar su trabajo argy:
Representa un viraje respecto de la sociologa antigua la cual asuma
que el control social era una respuesta a la desviacin. He llegado
a pensar que la idea opuesta, esto es, que la desviacin es una
respuesta al control social, es igualmente viable y una premisa
potencialmente ms rica para el estudio de la desviacin en las
sociedades modernas.
Con la expresin cambio de paradigma se describe, por
consiguiente, un viraje en el objeto de estudio: de estudiar al
delincuente y las causas de su comportamiento (paradigma etiolgico)
se estudian los rganos de control social que tienen por funcin
controlar y reprimir la desviacin (paradigma de la reaccin social).
Estos rganos de control social abarcan desde asistentes sociales,
hasta polica, jueces, psiquiatras, etc..
Esta modificao significativa no que tange ao objeto da
disciplina possvel e se desenvolve graas a uma robusta modificao de
ordem metodolgica. O mtodo etiolgico de determinao causal de
objetos naturais abandonado em favor de um mtodo mais adequado ao
estudo de objetos sociais (SANTOS, 2005, p. 01). Neste particular,
a teoria do etiquetamento parte das influncias do interacionismo
simblico e da etnometodologia, de fundo fenomenolgico (BARATTA,
2002, p. 87). Segundo o interacionismo simblico, a sociedade se
constitui a partir de diversas interaes entre os indivduos,
portanto, De acordo com esta perspectiva interacionista, no se pode
compreender o crime prescindindo da prpria reao social, do processo
social de definio ou seleo de certas pessoas e condutas etiquetadas
como delitivas (GOMES e MOLINA, 2007). Este enfoque interacionista
de construo social do crime ser o grande responsvel pela mudana de
objeto do indivduo para o sistema de reao social e servir,
inclusive, como base metodolgica para escolas Criminolgicas
posteriores, como a Criminologia Crtica (SANTOS, 2005, p. 02).Por
sua vez, a etnometodologia estuda a construo de raciocnios e mtodos
resultantes do convvio social, ou, nas palavras de seu destacado
expositor, Garfinkel (apud STAMFORD, 2006, p. 07), uso o termo
ethnomethodology para me referir investigao das propriedades
racionais de expresses de indexao e outras aes de prticas contnuas
e contingentes organizadas na vida cotidiana.
Afirma-se, com esta base, que a sociedade no pode ser conhecida
no plano objetivo, mas o produto de um processo de construo social
(BARATTA, 2002, p. 87). Isto representa, ademais, um rompimento com
a sociologia positivista, que estuda o fato social como algo
previamente dado, pois a etnometodologia considera que o convvio
social produz uma viso dos fatos sociais, rejeitando a figura do
ator social desprovido de livre arbtrio (STAMFORD, 2006, p.
09).Este pensamento e, por conseqncia, o da teoria da reao social,
tambm sofre influncia decisiva da Fenomenologia de Husserl. Este
autor prope uma atitude investigativa diferente da atitude natural,
reaproximando o sujeito do objeto e tornando o investigador capaz
de olhar o mundo de outra forma, mais livre. Neste contexto, a
reflexo sobre o mtodo fundamental:[...] a fenomenologia tem por
essncia reivindicar o direito de ser filosofia primeira e de
oferecer os meios para toda crtica da razo que se possa almejar; e
que, por isso, ela requer a mais completa ausncia de pressupostos e
a absoluta evidncia reflexiva sobre si mesma. [...] Por essas
razes, os cuidadosos esforos para chegar evidncia sobre os
componentes fundamentais do mtodo, ou seja, sobre aquilo que
metodologicamente determinante para a nova cincia [...]. (HUSSERL,
2006, p. 144)Nas esclarecedoras palavras de Stamford (2006, p.
10):Husserl realiza uma mudana de atitude na teoria do
conhecimento: o investigador deve procurar afastar-se do que tido
por aspecto ntico, apodtico, como a idia de atitude natural do ser
humano, pois a ateno do pesquisador se desloca do mundo mesmo (da
sua realidade) para os fenmenos com os quais esse mundo se anuncia
e se apresenta na conscincia, isto , na conscincia mesma e nas suas
estruturas essenciais.Esta premissa, diretamente buscada na
fenomenologia, foi fundamental para que a teoria do labeling
approach ganhasse os contornos crticos que a marcam e pudesse
investigar a questo criminolgica por um prisma totalmente diverso
do anterior. Este embasamento metodolgico, destarte, representa um
profundo rompimento com o paradigma etiolgico, de base positivista
e causal naturalista. Toda esta virada metodolgica e a mudana do
objeto de estudo produziram, nos dizeres de Larrauri (1992, p. 29),
uma srie de concluses chocantes para a criminologia
positivista.
A teoria do etiquetamento, assim, ora desenvolve crticas inditas
ao sistema penal ora conjuga e sistematiza diversos elementos
crticos que j tinham sido, de modo menos organizado, apresentados
anteriormente. Destacam-se, a seguir, apenas as principais.
O primeiro aspecto a ser evidenciado o carter seletivo do
sistema penal. Neste sentido, pontua-se que a [...] desviao no uma
qualidade intrnseca da conduta, seno uma qualidade que lhe atribuda
por meio de complexos processos de interao social, processos estes
altamente seletivos e discriminatrios (GOMES e MOLINA, 2007).H
muito que a doutrina aborda o carter seletivo do sistema penal, que
termina por escolher a sua clientela entre a massa de
marginalizados e excludos. Nestes termos, afirma o professor Paulo
Queiroz (2001, pp. 95-96):
Significa dizer, em outros termos, que o direito penal tende a
privilegiar os interesses da classe dominante e isentar do processo
de criminalizao comportamentos socialmente danosos tpicos dos
indivduos pertencentes a elas e ligados funcionalmente existncia da
acumulao capitalista, e tende a orientar o processo de criminalizao
sobretudo at formas de desviao das classes inferiores. Exerce-se,
portanto, por essa via, uma funo ativa, de reproduo e produo de
desigualdades.
Destaca-se, outrossim, o carter crimingeno da pena, responsvel
pelo reforo da condio de excluso, estigmatizao e criao do
esteretipo do criminoso, num ciclo vicioso que, ao invs de cumprir
as funes oficiais de preveno ou de reinsero social, aprofunda sua
condio de marginalizado.
Alm disso, os questionamentos do labeling approach tambm se
voltaram para as estatsticas criminais. Os positivistas as
consideravam dados objetivos que seriam a priori aptas a definir a
quantidade de crimes praticados em determinado local e quem seriam
os criminosos de determinada sociedade.Para a teoria do
etiquetamento, contudo, as estatsticas tambm so uma construo social
e, considerando a desvelada seletividade do sistema, refletem no os
ndices reais da criminalidade, mas as diferentes respostas dos
agentes estatais a depender das diferentes condutas. As estatsticas
oficiais mostram, ento, uma sobrerrepresentao da criminalidade das
classes baixas, ao passo em que os crimes do colarinho branco e as
cifras ocultas evidenciam que o crime, enquanto comportamento
humano, ocorre indistintamente em todas as classes sociais, apesar
de que nem sempre recebem idntica resposta do aparato repressivo
estatal (LARRAURI, 1992, p. 87).
Enfim, observa-se que a teoria do labeling approach representa
um profundo questionamento do paradigma positivista, suas premissas
e bases metodolgicas. Razo suficiente para que parte significativa
dos criminlogos considerem a existncia de uma verdadeira ruptura
paradigmtica, nos termos propostos por Thomas Kuhn. 6. CONCLUSO
O paradigma do labeling approach est longe de constituir uma
mera evoluo ou enriquecimento da Criminologia como pretendem Muoz
Conde e Hassemer (1989, p. 63). Tambm no exagerado ou pretensioso o
diagnstico que considera a existncia de uma ruptura paradigmtica,
como afirmam os supracitados autores, acompanhados nesta posio por
Gabriel Ignacio Anitua (2008, p. 588-589).
A teoria do etiquetamento representou uma ruptura com o
causalismo caracterstico do paradigma da Cincia Moderna, tarefa que
conduziu atravs do questionamento dos mtodos de estudo prprios das
cincias naturais equivocadamente utilizados de forma acrtica na
investigao de uma cincia social. Neste sentido, por exemplo,
examinou as estatsticas criminais, produzidas por meio de
investigaes baseadas em mtodos empricos, refutando a sua pretensa
universalidade e determinismo.
Ao contrrio, evidenciou que somente a partir desses dados no
seria possvel extrair concluses aplicveis a todos os fenmenos
criminais, justamente porque esses dados so capazes de captar
apenas uma parcela da realidade e no do conta da complexidade do
fenmeno criminal. Por esta razo, prope uma confluncia de mtodos
explicativos, como o interacionismo simblico e a fenomenologia de
Husserl, embora sem descartar a importncia (restrita) da observao
emprica. Esta pluralidade se mostra essencial para que se possa
abarcar a complexidade que rodeia o fenmeno da criminalidade.
Outro ponto que refora a concluso aqui proposta o radical
deslocamento do objeto de investigao das causas da criminalidade
para as instncias de definio da criminalidade. Essa mudana de olhar
teve conseqncias drsticas, revolucionando os estudos futuros da
Criminologia. Explica-se.
No paradigma etiolgico, a Criminologia possua um papel
subordinado e auxiliar dogmtica penal, angariando passivamente
elementos para sua legitimao. Porm, com o paradigma do labeling
approach, a Criminologia, enquanto disciplina, passou a formular de
modo autnomo seu objeto de investigao, assumindo um vis crtico e um
papel questionador do direito penal. O papel da disciplina e sua
posio em relao ao Direito Penal, portanto, foram completamente
alterados: da usual subservincia a uma criticidade latente; da funo
subordinada funo crtica; do papel passivo ao papel ativo.O labeling
approach e as teorias a ele posteriores (reunidas sob a denominao
geral de Nova Criminologia ou Criminologia Crtica), que
inevitavelmente bebem total ou parcialmente em seus mtodos e objeto
de estudo, passaram a exercer uma nova influncia nos campos da
Poltica Criminal e da Dogmtica penal. A ttulo de exemplo,
observa-se a manifesta influncia que tais constataes representam em
relao Teoria do bem jurdico, pois uma das celeumas centrais da
dogmtica penal contempornea reside em saber quais os bens jurdicos
passveis de proteo penal e como e quem deve realizar esta
definio.
No entanto, Hassemer e Muoz Conde fundam suas crticas exatamente
numa supostamente reduzida utilidade prtica do novo paradigma, ou,
em suas palavras, el labeling approach es ms importante para la
teora que para la praxis del Derecho penal [...], ya que lo que
para la teora es fructfero puede ser perturbador para la praxis.
(CONDE e HASSEMER, 1989, p. 60). Ademais, pontuam que a teoria do
etiquetamento pode ter enriquecido a Criminologia, mas no se
trataria de uma revoluo na medida em que seu modelo no teria
logrado xito em ocupar totalmente o campo do paradigma etiolgico
(CONDE e HASSEMER, 1989, p. 63).
Obviamente, salutar que se observe, a teoria do etiquetamento no
preencheu todos os espaos outrora ocupados pelo paradigma
etiolgico, nem o direito penal internalizou e laborou com todas as
crticas e incongruncias evidenciadas. Na prtica do direito penal, e
isto evidente, inmeros institutos e instituies permanecem gozando
de franca sade, mesmo tendo sido gestados sob a gide do paradigma
etiolgico.
Porm, apesar de bvia, esta constatao no invalida o aspecto
cientificamente revolucionrio da teoria do etiquetamento. Primeiro,
porque a superao de um paradigma no se faz de modo abrupto e total,
como alerta Thomas Kuhn. Sempre ho de permanecer problemas que sero
solucionados tomando por base o antigo paradigma. Seu carter
cientificamente dominante, todavia, ter sido definitivamente
perdido.Em segundo lugar, a suposta ausncia de efeitos prticos
questionada no se daria no mbito da prpria disciplina, a
Criminologia. Os crticos esperavam que o novo paradigma
Criminolgico gerasse imediatos e profundos efeitos prticos na
dogmtica penal. Seria de fato salutar se isto fosse conseguido com
maior intensidade, mas a determinao de modificao do sistema penal
perpassa antes por revolues ocorridas no campo da prpria dogmtica,
dependentes, por sua vez, de uma mudana de orientao poltica
bastante especfica.No seria de se acreditar, portanto, que a
dogmtica penal, no contexto poltico que a informa, adotasse
amplamente no plano prtico as consideraes tericas de um paradigma
criminolgico a ela profundamente crtico, qui deslegitimador. Por
esta razo, mesmo tendo ocorridos reflexos prticos no mbito da
dogmtica, especialmente na reaproximao, ocorrida a partir da dcada
de 70, entre dogmtica e poltica criminal e na teoria do bem jurdico
penal, revela-se mais importante que sua observao se d no mbito
interno da Criminologia, e a, como demonstrado, eles se deram em
profuso.
Por todo o exposto, considera-se que a teoria do labeling
approach representa, nos termos indicados por Thomas Kuhn, uma
verdadeira ruptura paradigmtica com a anterior Criminologia
positivista. Esta concluso deriva da inequvoca constatao de que
significou uma ampla e profunda reconstruo da disciplina em
comento, que partiu da redefinio dos mtodos empregados, mudou
completamente seu objeto de estudo, e passou pela formulao de novos
princpios e postulados, at alcanar uma completa redefinio de seu
papel enquanto cincia.
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Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Advogada Criminalista em Salvador,
Bahia. Graduada em Direito e Mestranda em Direito Pblico (Direito
Penal) pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Cincias
Criminais pelo Jus Podivm.
Advogado Criminalista em Salvador, Bahia. Professor de Direito
Penal e Processo Penal da Faculdade Regional da Bahia (UNIRB).
Graduado em Direito e Mestrando em Direito Pblico (Direito Penal)
pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do
Estado e Ps-graduando em Cincias Criminais pelo Jus Podivm.
Um determinado ramo cientfico, num determinado momento histrico,
adota um conjunto relativamente padronizado de concepes tericas
para suas aplicaes conceituais e instrumentais. A essas noes
compartilhadas pelos membros de uma comunidade cientfica se atribui
a denominao de paradigma (KUHN, 2006, p. 67). Um paradigma adotado
em razo da sua capacidade de solucionar problemas tericos e prticos
e de produzir os resultados esperados.
Ademais, um fator decisivo nesse processo o consentimento da
comunidade cientfica relevante. No basta, portanto, apenas o
impacto da natureza e da lgica, mas igualmente as tcnicas de
argumentao persuasiva que so eficazes no interior dos grupos muito
especiais que constituem a comunidade dos cientistas (KUHN, 2006,
p. 128). Em outras palavras: o confronto entre dois paradigmas
revelar a existncia de problemas que podem ser solucionados mais
adequadamente pelo velho paradigma e outros tantos para cujo novo
paradigma mais eficaz, de modo que os debates entre paradigmas
sempre envolvem a seguinte questo: quais so os problemas que mais
significativo ter resolvido?
Esta referncia temporal a mencionada pela maioria dos autores.
Porm, Rosa Del Olmo (2004, p. 171) faz meno a outro marco, que
seria o I Congresso de Antropologia Criminal, ocorrido em Roma, em
1885. Para a origem do termo Criminologia, a mesma autora (2004, p.
38) menciona a obra de Paul Topinard, datada de 1889.
Segundo a mecnica newtoniana, o mundo da matria uma mquina cujas
operaes se podem determinar exatamente por meio de leis fsicas e
matemticas, um mundo esttico e eterno a flutuar num espao vazio, um
mundo que o racionalismo cartesiano toma cognoscvel por via da sua
decomposio nos elementos que o constituem. Esta idia do
mundo-mquina de tal modo poderosa que se vai transformar na grande
hiptese universal da poca moderna, o mecanicismo. (SANTOS, 2006, p.
31)
No Direito penal contemporneo, esse critrio, geralmente, tem
sido buscado com o recurso s diretrizes constitucionais. Por todos,
Seabstian Borges de Albuquerque Mello: Diante do carter extremo que
representa a interveno penal, imprescindvel se faz que a Constituio
selecione os bens jurdicos mais importantes. Da infinidade de bens
jurdicos, apenas alguns justificam a proteo penal. Qual deve, ento,
ser o critrio de seleo? Roxin afirma que a proteo de bens jurdicos
no se realiza somente atravs do direito Penal, mas sim da cooperao
de todo o ordenamento jurdico. Desta maneira, o Direito Penal
apenas a ltima medida protetora a ser considerada e por isso se diz
que a proteo penal subsidiria, ou se define a pena como ultima
ratio de poltica social. Assim, para justificar a interveno penal,
como medida residual e extrema, imprescindvel que haja leso ou
ameaa a um bem jurdico com dimenso constitucional.... (MELLO, 2010,
p. 68). De fato, tem prevalecido o entendimento encabeado por Roxin
de que a interveno penal subsidiria (ROXIN, 2009, p. 16 e ss.). No
entanto, a celeuma relatada permanece ainda que sob a gide deste
critrio, pois, sob essa perspectiva, ainda resta sem resposta
satisfatria o seguinte problema essencial: Se verdade que a definio
dos bens jurdicos merecedores de tutela penal pode ser buscada na
parcela mais importante dos bens jurdicos descritos na Constituio,
qual seria essa parcela mais importante? A resposta a esse problema
tem sido conduzida por concepes doutrinrias diametralmente opostas,
ainda que assentadas sob a mesma premissa de proteo dos bens mais
importantes dentre aqueles protegidos pelo texto constitucional: De
um lado, h a defesa fervorosa de que a tutela penal se restrinja
queles bens clssicos herdados da ideologia liberal (vida,
propriedade, etc); Por outro lado, defende-se que a tutela penal
abranja os chamados bens jurdicos supraindividuais, dada a dimenso
coletiva dos danos ocasionados pela violao destes. Enfim, estes e
outros problemas que rodeiam a Teoria do bem jurdico so
decorrentes, em grande medida, da mudana de foco ocasionada pelo
labeling approach.
Para melhor esclarecimento a respeito desta posio do autor, vide
nota 04.
Roxin, criticando Von Lizt por conferir ao Direito Penal um
carter hermtico e impermevel aos influxos da poltica criminal,
defende a necessidade de sntese entre estes dois campos de estudo:
Con todo esto se pone de manifiesto que el camino acertado slo
puede consistir en dejar penetrar las decisiones valorativas
poltico-criminales en el sistema del Derecho penal, en que su
fundamenitacin legal, su claridad y legitimacin, su combinacin
libre de contradicciones y sus efectos no estn por debajo de las
aportaciones del sistema positivista formal proveniente de Liszt.
La vinculacin al Derecho y la utilidad poltico-criminal no pueden
contradecirse, sino que tienen que compaginarse en una sntesis,
delmismo modo que el Estado de Derecho y el estado social no forman
em verdad contrastes irreconciliables, sino una unidad dialtica. a.
Un orden estatal sin uma justicia social, no forma un Estado
material de Derecho, como tampoco un Estado planificador y tutelar,
que no consigue la garantia de la libertad como con el Estado de
Derecho, no puede pretender el calificativo de constitucionalidad
socioestatal (ROXIN, 2002, p. 49)