Cosmopolitismo em Walter Benjamin: entre o apelo da rêverie e a experiência do choque. Maria João Cantinho 1 Como o mais esquivo animal, deixando traços à sua passagem, também a linguagem nos escapa e a procura da voz, da nossa voz, assinala a nossa passagem, escrevendo e inscrevendo a nossa experiência. O passado, em todas as suas formas, como Benjamin nos afirma, na tese II , chega-nos pela percepção de que “em torno de nós próprios plana um pouco o ar já respirado pelos defuntos”, pelo mais surpreendente reconhecimento que “a voz dos nossos amigos esconde por vezes um eco das vozes dos que nos precederam sobre a terra” [ist nicht in Stimmen, denen wir unser Ohr schenken, ein Echo von nun verstummten?], lembrando-nos que “há um encontro misterioso ent re as gerações defuntas e aquela de que fazemos parte”. Se a linguagem dá voz ao pensamento, ela dá igualmente figura ao passado e à experiência, no pensamento benjaminiano, entrecruzando-se de forma indissociável. E um dos aspectos que mais atesta essa relação é, sem dúvida, a teoria do traço, que Walter Benjamin desenvolve em Paris, capitale du XXème siècle, abordando a questão da perda da experiência [Erfahrung], que nos interessa aqui abordar. Se habitar [wohnen], para o homem, consistia em deixar rastros, todavia as grandes modificações do século XIX, com a construção das novas avenidas por Haussman e o aparecimento da arquitectura do vidro, com Scheerbart, e a concepção da utilização do aço, pela Bauhaus, criaram “um espaço onde é difícil deixar rastros [Spuren]”. 2 Se a arquitectura moderna não possui aura, aperfeiçoam-se, no entanto, as técnicas de controle, que permitem reencontrar esses rastros perdidos. Esta ideia da desumanização da arquitectura explica, para Walter Benjamin, como a massificação, a partir dos meados do século XIX 1 Professora de Filosofia no Ensino Secundário, no Iade, investigadora no Centre de Philosophie et EsthétiqueContemporaine, na Sorbonne IV e no Centro de Filosofia (FLUL). 2 BENJAMIN. Erfahrung und Armut.In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972g,II.1, p. 218: " sie habenRaümegeschaffen, in denenesschwer ist, Spurenzuhinterlassen" (Tradução da autora). Cf. também a obra de TIEDEMANN, Rolf. Études sur la Philosophie de Walter Benjamin. Trad. de l’allemand par Rainer Rochlitz. Arles: Actes du Sud, 1987. p. 118.
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Cosmopolitismo em Walter Benjamin: entre o apelo da rêverie e
a experiência do choque.
Maria João Cantinho1
Como o mais esquivo animal, deixando traços à sua passagem, também
a linguagem nos escapa e a procura da voz, da nossa voz, assinala a nossa
passagem, escrevendo e inscrevendo a nossa experiência. O passado, em
todas as suas formas, como Benjamin nos afirma, na tese II, chega-nos pela
percepção de que “em torno de nós próprios plana um pouco o ar já respirado
pelos defuntos”, pelo mais surpreendente reconhecimento que “a voz dos
nossos amigos esconde por vezes um eco das vozes dos que nos precederam
sobre a terra” [ist nicht in Stimmen, denen wir unser Ohr schenken, ein Echo
von nun verstummten?], lembrando-nos que “há um encontro misterioso entre
as gerações defuntas e aquela de que fazemos parte”. Se a linguagem dá voz
ao pensamento, ela dá igualmente figura ao passado e à experiência, no
pensamento benjaminiano, entrecruzando-se de forma indissociável. E um dos
aspectos que mais atesta essa relação é, sem dúvida, a teoria do traço, que
Walter Benjamin desenvolve em Paris, capitale du XXème siècle, abordando a
questão da perda da experiência [Erfahrung], que nos interessa aqui abordar.
Se habitar [wohnen], para o homem, consistia em deixar rastros, todavia
as grandes modificações do século XIX, com a construção das novas avenidas
por Haussman e o aparecimento da arquitectura do vidro, com Scheerbart, e a
concepção da utilização do aço, pela Bauhaus, criaram “um espaço onde é
difícil deixar rastros [Spuren]”.2 Se a arquitectura moderna não possui aura,
aperfeiçoam-se, no entanto, as técnicas de controle, que permitem reencontrar
esses rastros perdidos. Esta ideia da desumanização da arquitectura explica,
para Walter Benjamin, como a massificação, a partir dos meados do século XIX
1 Professora de Filosofia no Ensino Secundário, no Iade, investigadora no Centre de Philosophie et
EsthétiqueContemporaine, na Sorbonne IV e no Centro de Filosofia (FLUL).
2 BENJAMIN. Erfahrung und Armut.In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt:
Suhrkamp, 1972g,II.1, p. 218: "sie habenRaümegeschaffen, in denenesschwer ist, Spurenzuhinterlassen"
(Tradução da autora). Cf. também a obra de TIEDEMANN, Rolf. Études sur la Philosophie de Walter
Benjamin. Trad. de l’allemand par Rainer Rochlitz. Arles: Actes du Sud, 1987. p. 118.
2
e o dealbar do novo século, no qual o homem se move anonimamente na
multidão, o conduziram à expropriação de si próprio.1 Sem dúvida que o mais
acabado exemplo é o flâneur, ele próprio desapossado da capacidade de fixar
a sua presença no mundo.2
Dá-se, assim, uma passagem de uma era ou período pré-capitalista, em
que o homem dispõe de experiência [Erfahrung], para uma época em que ele
se abandona à mera vivência [Erlebnis]. O homem provido de experiência
possui a capacidade de, além de deixar os seus vestígios, recorrer à intuição
(como o fruto mais precioso da experiência) para interpretar os rastros dos
outros. Pertence a um mundo antigo onde tudo pode ser reconhecido e se
inscreve numa ordem de familiaridade. O homem sem experiência3 perdeu
essa possibilidade e encontra-se limitado apenas ao poder de assinalar a sua
passagem através de técnicas abstractas científicas (como é o caso da
fotografia, por exemplo) os vestígios que se apagam, através da multidão.
Privado da experiência, ele é também desapossado da história e da sua
capacidade para se integrar na tradição. Experiência e memória, como bem
compreendera Benjamin, a partir da leitura de Klages, de Dilthey e de Jung,
bem como da obra de Bergson, Matière et mémoire, articulam-se de uma forma
indissociável:
Efectivamente a experiência pertence à ordem da
tradição, tanto na vida colectiva, como na vida privada. Ela
constitui-se menos por dados isolados, rigorosamente fixados
na memória, do que dados acumulados, muitas vezes
inconscientes, que se juntam à memória.4
1 BENJAMIN, Walter. Über einige motive bei Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte
Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972l. v. I.2, p. 652.
2 Assinalo aqui o belíssimo texto de ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1990. p. 67-68.
3 E a que poderíamos chamar, como Agamben, ―o homem sem conteúdo‖, sem individualidade e sem
identidade e que tão paradigmaticamente aparece no poema de Baudelaire ―Les sept Veillards‖. Por
outras palavras, ―o conteúdo‖ dissipa-se, desintegra-se, nessa repetição infernal.
4 BENJAMIN, 1972l, I.2, p. 608. Über einige Motive bei Baudelaire: "In der Tat ist die Erfahrung eine
Sache der Tradition, im Kollektivenwie im privatenLeben. Sie bildet sich wenigerauseinzelnen in der
ErinnerungstrengfixiertenGegebenheitendennausgehäuften, oftnichtbewuβtenDaten, die im
3
1 O “ROSTO SURREALISTA” DA HISTÓRIA: RELAÇÃO ENTRE A
IMAGEM DIALÉCTICA E O SONHO
De acordo com Benjamin, também, todos os homens têm o poder de
captar e produzir semelhanças e correspondências. Elas são inscritas
objectivamente na natureza, e a elas corresponde a faculdade subjectiva de
percebê-las. É, sem dúvida, através do dom mimético,1 que possibilitava ao
homem captar essas semelhanças. Todavia, como o diz Baudelaire, no mundo
moderno essa faculdade degradou-se, embora não tivesse desaparecido
totalmente, pois sobrevive na linguagem, que constitui “um arquivo de
correspondências sensíveis”,2 e sobrevive igualmente na arte, capaz de
perceber semelhanças temporais e naturais.
Para a percepção destas correspondências, o que é essencial
compreender é o modo como elas passam diante do observador, com a
rapidez do relâmpago, e se não forem captadas nessa exacta fracção de
segundo dissipam-se, perdendo-se completamente. De facto, é quase da
mesma forma que Benjamin descreve a forma da percepção das imagens
dialécticas:
A imagem dialéctica é uma imagem relampejante.
Assim como a imagem que relampeja deve ser fixada no agora
da sua cognoscibilidade […] mesmo deve acontecer com o
passado. A salvação que se realiza dessa forma, e apenas
Gedächtniszusammenflieβen" (Tradução da autora).
1Cf. um interessantíssimo estudo de PINHO, Amon. Hermenêutica e materialismo histórico na
encruzilhada da história. Revista Philosophica, Lisboa, v. 28, p. 28, 2006. Neste ensaio, nas páginas 263,
264, o autor estabelece uma articulação entre experiência[Erfahrung], mimesis e a teoria da rememoração
em Benjamin, de uma forma muito perspicaz. Amon Pinho vê na experiência da semelhança o
―órganonda experiência [Erfahrung]”, como é também por meio dela que se opera a experiência da
rememoração. Cf. também os estudos de GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Histoire et narration chezWalter
Benjamin. Paris: L’Harmattan, 1994.
2 BENJAMIN, Walter. Über das MimetischeVermögen. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.
Frankfurt: Suhrkamp, 1972j. v. II.1, p. 213. ―einarchivunsinnlicherÄhnlichkeiten,
unsinnlicherKorrespondenzengeworden”.(Tradução da autora)
4
dessa forma, só pode ser obtida pela consciência do que se
perde, além de qualquer perspectiva de salvação.1
Por outro lado, a teoria benjaminiana das imagens dialécticas encontra-
se intimamente articulada com a teoria do sonho, o qual estabelece uma
passagem entre o passado e o futuro. Tal como no sonho individual, o sonho
colectivo utiliza imagens arcaicas, que se integram e afluem nos elementos
contemporâneos e apontam para o futuro. Apesar das críticas de Adorno ao
seu texto, Benjamin manteve a sua concepção da imagem dialéctica de acordo
com o modelo do sonho. Aceita a sugestão adorniana das imagens dialécticas
como “constelações”, mas não abdica da sua teoria, como se pode ler na carta
que dirige a Gretel Adorno, em resposta às críticas de Adorno:
[…] A imagem dialéctica como "constelação", da
mesma forma que certos elementos desta constelação
assinalados por mim me parecem inalienáveis: são as figuras
oníricas. A imagem dialéctica não copia o sonho: nunca o quis
afirmar. Mas ela parece-me conter os traços do despertar, os
pontos de irrupção (Einbruechselle) e, mesmo, não produzir a
sua figura senão a partir destes pontos, tal como uma
constelação celeste o faz a partir dos seus pontos luminosos.
Então aqui um novo arco está tenso, numa dialéctica
necessária entre a imagem e o despertar.2
1BENJAMIN. Gesammelte Schriften 1972h, v.I, p. 591- 592: "Das dialektischeBild ist einaufblitzendes.
So, alsein im Jetzt der ErkennbarkeitaufblitzendesBild, ist das Gewesenefestzuhalten. Die Rettung, die
dergestalt - und nurdergestalt - vollzogenwird, läβt immernur an dem, im
nächstenAugenblickschonunrettbarverlornen (sich) vollziehen." (Tradução da autora)
2 Cf. BENJAMIN. Briefe, II,Frankfurt: Suhrkampf, 1978d, p. 688: "Das dialektisheBild malt den
Traumnichtnach - das zubehaupten lag niemals in meinerAbsicht. Wohlaberscheintesmir, die Instanzen,
die Einsbruchsstelle des Erwachenszuenthalten, jaausdiesenStellen seine FigurwieeinSternbildaus den
leuchtendenPunktenerstherzustellen. Auchhier also willnocheinBogengespannt, eineDialektikbezwungen
werden: die zwischenBild und Erwachen."(Tradução da autora)
5
É sobretudo neste desvio relativamente a Adorno que Benjamin se
diferencia da sua posição. Tal como Adorno, também ele acredita que a
imagem dialéctica exprime a presença do sempre igual, nas estruturas do
capitalismo. Mas, ao contrário de Adorno, Benjamin julga que a imagem
dialéctica revela a latência do novo, encontrando-se alojado nela. Por essa
razão, a Benjamin não choca a utilização do conceito do sonho e não lhe
interessa tanto o aspecto psicologizante, mas sim perceber o sonho como
mediador que permite descobrir o latente no novo, pois o seu conceito permite
ilustrar perfeitamente os dois pólos dessa dialéctica: o sono e o despertar
(possibilidade que se encontra latente).
Como o explica Rouanet,
Na medida em que se limita a repetir conteúdos do
passado, cada produção onírica é na verdade uma
reprodução, pela qual o recalcado retorna monotamente; mas,
na medida em que cada sonho, para exprimir esses
conteúdos, mobiliza sob a forma de restos diurnos os
elementos da vida quotidiana, reordenando-os, criando novas
relações, transfigurando objectos familiares, uma nova
realidade é produzida, e é possível distinguir o novo no
sempre igual: as instâncias do despertar.1
Se o sonho, na sua natureza ambivalente, inclui o sono, não menos
importante é o conceito do despertar, verdadeira “força histórica”.2 As imagens
de sonho descritas no Livro das Passagens têm, como todo o sonho, o poder
de desconstruir e de reorganizar o mundo empírico e o mundo histórico,
1 Cf. ROUANET. Édipo e o anjo, p. 94, 95.
2 Não quero entrar aqui em vastas considerações, mas o conceito de ―despertar‖, associado ao de
―rememoração‖, constituem-se como os momentos despoletadores da verdadeira consciência histórica, a
que só o historiador materialista tem acesso. Veja-se BENJAMIN 1972h, v. V.1,p. 490-491, Gesammelte
Schriften, onde Benjamin fala, a este propósito, em ―revolução coperniciana‖. Em [N 3 a, 3], mais
adiante, p. 579, ele afirma: ―O momento do despertar seria idêntico ao Agora da cognoscibilidade, na qual
as coisas tomam o seu verdadeiro rosto, o rosto surrealista. [Dann wäre der Moment des
Erwachensidentisch mit dem «Jetzt der Erkennbarkeit», in dem die Dinge ihre wahre— surrealistische -
Mieneaufsetzen.]‖ (Tradução da autora)
6
dissolvendo conexões e criando novas correspondências.1 Elas tiram as coisas
do seu lugar e colocam-nas em lugares novos, de acordo com novas
disposições, produzindo assim novas e inesperadas semelhanças, ignorando
as semelhanças visíveis. Esta lógica, que lhe é conferida pelo mecanismo do
sonho, que descobre novas similitudes porque as antigas se tornaram
inutilizáveis e, nessa procura de novas correspondências, como diz Sérgio
Paulo Rouanet, citando Freud, “o sonho cria uma relação fantasmática com o
tempo – o passado é vivido como se fosse o presente – e com o espaço […]”.2
Neste mundo transfigurado pela consciência fantasmática do tempo e do
espaço, “cada coisa é ao mesmo tempo uma outra – as passagens são casas e
estrelas, a cidade ora é quarto, ora é paisagem”. O que, na opinião de
Rouanet, distingue Freud de Benjamin, é o surrealismo benjaminiano,3 que
permite atribuir ao sonho, não apenas uma função cognitiva como também
divinatória (e também histórica),4 estabelecendo, assim, essa capacidade, a
possibilidade de prefigurar a utopia. Deste modo, “As imagens de sonho,
tornam o real irreconhecível, criando correspondências fícticias, e desvendam-
no, revelando correspondências invisíveis à consciência diurna”.5 Enquanto
“imagens de sonho”, as imagens dialécticas são imagens estáticas. Elas
constituem-se como imagens em suspensão, como o próprio o afirma, isto é,
imagens que manifestam e revelam, no seu estado de repouso, a plenitude de
1Rouanet estabelece uma interessantíssima relação entre a teoria benjaminiana e a teoria freudiana do
sonho, que permite trazer uma nova luz ao pensamento de Benjamin. V. RAULET. Gérard. Le caractère
destructeur. Paris: Aubier, 1997. p. 145-149.
2 ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 86.
3 O que, de acordo com Bloch, explica a técnica da montagem em Benjamin. Cf. BLOCH, ERNST.
Héritage de ce temps, Paris, Payot, 1977, p. 210. É muito interessante a relação estabelecida por Bloch
entre Benjamin e os surrealistas, conferindo ao sonho um papel verdadeiramente criador. Mas, como o
salienta Rouanet, ―Todavia, é no tema do ―despertar‖ que a teoria do sonho de Benjamin se distingue
verdadeiramente dos surrealistas. Para Benjamin, não se trata de atribuir um valor cognitivo ao irracional,
mas de despertar o passado do seu sonho mítico, inversamente ao que acontecia nos surrealistas.
4 Cf. o notável texto: BENJAMIN, Walter. Der Sürrealismus. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte
Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972e. v. II.1, p. 298, onde Benjamin fala do conceito de iluminação
profana [profanenErleuchtung], para dar conta desta dimensão ―divinatória‖ e particularmente fecunda
do sonho, para os surrealistas, associada à dimensão da rememoração, em Proust. Cf. também o texto de
BISHOF, RITA; LENK, ELIZABETH, L’intrication surréelle du rêve et de l’histoire dans les Passages de
Benjamin, Paris : Éditions du Cerf, 1986, p. 179-99.
5ROUANET, 1994, P.87. As razões do iluminismo.
7
uma síntese autêntica [N 9 a, 4] ou suspensão dialéctica1 e esse é o estado de
repouso da utopia.
Por outro lado, procurando uma articulação com os textos de Sobre o
conceito de história2 –redigidas no ano de 1940, onde a alegoria é
protagonizada na imagem derradeira do Angelus Novus – e a sua relação com
o procedimento alegórico, o historiador dialéctico tem o dom da verdadeira
mimesis e sabe estabelecer, entre o agora escondido no passado e o agora da
cognoscibilidade, uma correspondência imediata e infalsificável. Ele despertou
do sonho, não abdicou da consciência de que o sonho lhe transmitiu esse
segredo, mas percebeu-o, no entanto, enquanto teia ilusória de
correspondências.
Arrisco aqui a minha interpretação: o segredo do historiador é, com
efeito, o seu olhar alegórico, capaz de destacar-se do “sonho colectivo”,
fazendo-o dissipar, revelando as fantasmagorias aos que sonham e que, por
isso, ainda “não são conscientes do saber”, vivendo, assim, num saber latente,
um “saber sonhado”.3 O aguilhão do “despertar”, fissurando a ilusão do
progresso e das fantasmagorias de uma época que vive na esperança
optimisma do progresso e da sua continuidade, é justamente aquele que
provoca o acontecimento, isto é, o momento da abertura messiânica.
Assim, a imagem dialéctica, fulgurante e irrompendo das profundezas do
sonho, suspende a continuidade e varre o passado à sua passagem como
1BENJAMIN. 1972h, v. V.1, p. 578. Gesamelte Schriften: ―Bild ist dieDialektik im Stillstand‖. Pierre
Missac, na sua obra Passage de Walter Benjamin, p. 118, vê nestas categorias, dialektischesBilde
Dialektik im Stillstand, não antinomias puras, mas ―métaforas surrealistas cujo poder de iluminação
profana desempenha um papel importante no Benjamin dos últimos anos‖ [ (…) métaphoressurréalistes,
dont le pouvoir d'illumination profane joueun si grandrôlechez le Benjamin des dernièresannées"]
(Tradução da autora).
2 Refiro-me especificamente à obra Über den Begriff der Geschichte (BENJAMIN, 1972h, Gesammelte
Schriften, I.2). Essas teses sobre a filosofia da história serviriam de base ou como uma espécie de
introdução epistemológica ao seu trabalho que foi publicado postumamente, Livro das passagens, tal
como o Prefácio de Benjamin à obra Ursprung des deutschen Trauerspiel, onde expõe a sua versão da
Teoria das Ideias.
3BENJAMIN. Gesammelte Schriften, v. V.1, p. 571, 572, [N 1, 9], a propósito do trabalho do historiador,
relativamente aos surrealistas: ―Enquanto que um elemento impressionista – a ―mitologia‖ – permanece
em Aragon […] trata-se aqui [no caso do historiador] de dissolver a ―mitologia‖ no espaço da história.
Isso não se pode fazer, em boa verdade, senão pelo despertar de um saber ainda não consciente do
passado‖ [“Wahrend bei AragoneinimpressionistischesElementenbleibt - die «Mythologie» - (…) -
gehteshier um Auflösung der «Mythologie» in den Geschichtsraum. Das freilichkannnurgeschehendurch
die ErweckungeinesnochnichtbewuβtenWissensvomGewesnen]” (Tradução da autora).
8
“uma bola de fogo”.1 O tempo suspende-se, abrindo-se sob a forma, já não da
sucessão, de acordo com uma concepção linear, mas sob a sua forma
imagética, isto é dialéctica.2 Esta, ao coagular-se, constitui-se como a
apresentação do que não é representável, na voragem da continuidade: o
instante puro, nascente e fulgurante, irradiando a claridade do conhecimento
histórico. Trata-se do tempo na sua dimensão messiânica, “em que cada
segundo era a porta estreita por onde o Messias podia entrar”.3
À luz da concepção benjaminiana, que reconhece o século XIX como um
“espaço de tempo” [Zeitraum] e também, um “sonho de tempo”[Zeit-traum],
trata-se de uma consciência colectiva – aquela que sonha – que se “afunda
cada vez mais num sonho profundo”.4 Por oposição a este estado sonambúlico,
a alegoria comporta consigo a possibilidade do “despertar histórico”, operando
como uma experiência destrutiva e necessária e que prepara a
consciencialização do fenómeno histórico (a sua origem), subtraindo-o às
profundezas do sonho e da fantasmagoria. Todavia, é na teoria do progresso
que encontramos a mais nefasta das fantasmagorias:
Há uma experiência absolutamente única da dialéctica.
A experiência peremptória, radical, que refuta toda a ideia de
“progresso” do devir e faz aparecer toda a “evolução” aparente
como uma inversão dialéctica eminentemente e continuamente
1 Cf. BENJAMIN. Sur le Concept d’Histoire, Écrits Français, p. 348: ―L'image dialectique est une boule
de feu qui franchit tout l'horizon du passé."
2BENJAMIN.1972h, v. V.1, [N 2 a, 3], p. 576, 577. Gesammelte Schriften: ―Não pode dizer-se que o
passado ilumina o presente ou que o presente ilumina o passado; uma imagem, ao contrário, é aquilo no
qual o Outrora encontra o Agora num clarão, para formar uma constelação. Por outras palavras, a imagem
é a dialéctica em suspensão. Porque, enquanto que a relação do presente com o passado é puramente
temporal, contínua, a relação do Outrora com o Agora é dialéctica […] [Nicht so ist es, daβ das
VergangeneseinLicht auf das Gegenwärtigeoder das GegenwärtigeseinLicht auf das Vergangenewirft,
sondernBild ist dasjenige, worin das Gewesene mit dem JetztblitzhaftzueinerKonstellationzusammentritt.
Mit andernWorten: Bild ist die Dialektik im Stillstand. Dennwährend die Beziehung der
GegenwartzurVergangenheiteine reine zeitliche, kontinuierliche ist, ist die GewesnenzumJetztdialektisch
(…)]‖(Tradução da autora).
3BENJAMIN.1972h,V. I.2, p. 704.Gesammelte Schriften: ―Denn in ihr war jedeSekunde die kleinePforte,
durch die der Messiastretenkonnte‖.
4 Cf. BENJAMIN, 1972h, v. V.1, p. 491-492 [K 1, 4].Gesammelte Schrifte: "(…) das Kollektivbewuβtsein
in immertieferemSchlafeversinkt." (Tradução da autora)
9
composta, é o despertar que vos arranca ao sonho. […] O
novo método dialéctico da ciência histórica apresenta-se como
a arte de ver o presente como um mundo desperto ao qual o
sonho que nós chamamos o Outrora se relaciona com a
verdade. Refazer o Outrora na rememoração do sonho! Assim,
rememoração e despertar são intimamente ligados. O
despertar, com efeito, é a revolução coperniciana, dialéctica da
rememoração.1
Se o sonho, por um lado, permite a descoberta das forças históricas
latentes, uma vez que são desfeitas as relações tradicionais (e diurnas) do
esquematismo do espaço e do tempo na experiência moderna, é só
arrancando-se à dimensão do sonho que se torna possível aceder à verdade e
à origem do fenómeno histórico, o qual se apresenta na imagem dialéctica. É,
no entanto, à luz do despertar e da rememoração – dois conceitos que dizem
respeito a duas actividades indistrinçáveis - que é trazida à luz do
conhecimento a verdade histórica.
2 MODERNIDADE; EXPERIÊNCIA DO CHOQUE E ALEGORIA
É no contexto da teoria da perda da aura e da dissipação da experiência
autêntica [Erfahrung] que se integra a análise benjaminiana de Baudelaire.2 O