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CONTOS DE TERROR

Feb 05, 2016

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Contos de torror alunos 8º ano Gracinha
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Page 1: CONTOS DE TERROR

ContosdeTerror

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Narrativas de mistério com traçosde terror

Língua Portuguesa – 8º ano

Apresentação Assim como em anos anteriores, os alunos dos oitavos anos de 2012 produziram narrati-vas de mistério com traços de terror, entre as quais algumas foram escolhidas pelos próprios alunos e pelos professores de Língua Portuguesa, Isabel Cabral e Marcel Pires, para serem publicadas no blog do Gracinha Vale a pena ler a produção de nossos autores!

A lenda do porão

Apodrecida

Emoldurada

Minha mentalidade mórbida

O amor do espelho

O mistério da bengala

O segredo do espectro

OS Ruídos de culpa

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a lenda do porãoCarolina Bergstein e Diana Jonas

Já passava das dez da noite na R162, a estrada mais sombria, tortuosa e deserta que Charles, um britânico que ganhava a vida vendendo seus quadros, já havia visto. O vento uivava en-tre os pinheiros molhados pela garoa leve e constante que batia contra o vidro dianteiro de sua lata velha parada no acostamento. A neblina o impedia de avistar qualquer ser vivo que pudesse orientá-lo ou até mesmo uma cidade onde pudesse encontrar um mecânico. O som do farfalhar das folhas confundia-se com o de animais irreconhecíveis na noite de lua cheia em que Charles andava sem rumo em busca de ajuda. “Seriam aquilo os duendes irlandeses?” pensou o homem. Depois do que pareceram horas andando, suas curtas pernas, que se esforçavam para segu-rar o peso elevado do corpinho baixo, estavam trêmulas e sua respiração, ofegante. Suava frio e seus olhos estavam atentos a qualquer sinal de perigo. Parou para descansar e se acalmar um pouco para ver se conseguia diminuir o barulho que produzia sua respiração. Nos pou-cos segundos de silêncio que se seguiram, o pintor pensou ter distinguido o som de vozes no ar, porém parecia mais possível que fosse apenas sua imaginação tentando agarrar-se a uma esperança em vão... Esperou mais alguns minutos pelo silêncio do vento e... “São realmente vozes!”, constatou. Seguiu a passo rápido em direção ao som. Ele percebeu que a estrada fazia uma curva acen-tuada para a direita, de forma a impossibilitar a visão do que se ocultava mais adiante. Sua expectativa, que transbordava, só fez aumentar o mistério do que encontraria atrás dos pin-heiros e depois do desvio... Mais uns passos e chegou até a curva. Avistou uma pequena vila. O alívio o invadiu. Mil possibilidades haviam passado por sua mente e essa era, com certeza, uma das melhores!

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A maior aglomeração das casas encontrava-se na parte baixa do vale, que subia até o nível da estrada. Charles começou a descer o morro pela estrada de terra que separava-se da R162 e sentia-se mais empolgado e aliviado a cada passo dado. Percebeu, conforme chegava mais perto, que as casinhas eram feitas de pedra, com chaminés e baixos muros do mesmo materi-al. Um pouco mais afastada, situava-se a maior construção dali, uma igreja gótica com corvos grasnando sobre as telhas quebradas, o que deixou os pelos ruivos do braço do estrangeiro arrepiados. Todas as gárgulas exibiam dentes e feições horripilantes. As igrejas da Inglaterra eram bem maiores e possuíam muito mais gárgulas do que as irlandesas, mas nenhuma havia despertado tanto medo no homem quanto a que acabara de ver. Tudo naquela vila parecia-lhe medonho. Seguiu pela ruazinha gélida em busca de luz, quando viu mais à frente a casa que parecia a mais iluminada e movimentada da vila. O inglês não hesitou, empurrou com força a pesada porta onde se lia “Bar do Lonán”, em busca de calor e estadia. A música, que aparentemente preenchia o ambiente, cessou e todos os olhares das pessoas sentadas às mesas, que pareciam corresponder ao número de habitantes da vila, voltaram-se para ele. - Desculpem-me. - gaguejou no mais fajuto sotaque irlandês - Alguém poderia me apresen-tar o dono do bar? Todos voltaram a falar enquanto um homem alto e forte de cabelos e barba branca, levan-tou e apresentou-se de forma bruta e arrogante. Com receio de seu jeito sombrio e tenebroso, Charles recuou e, com a voz trêmula, perguntou por um mecânico. - Mecânico só amanhã de manhã. - respondeu de má vontade Lonán, com voz rouca e gros-sa. - O senhor sabe de alguma hospedaria onde eu poderia passar a noite? -Não temos uma no vilarejo, mas tenho o porão, onde eu guardava as cervejas, mas agora só tem algumas caixas. - E quanto sairia? -Não se preocupe com isso, meu amigo, para você eu faço de graça - tranquilizou o dono do bar, mudando totalmente suas feições e atitudes - Mas ainda é cedo par ir para a cama, junte-se a nós e beba um pouco. Charles sentou-se em uma mesa perto do balcão e, com a luz das poucas velas que havia no bar, pôde observar as paredes de pedra onde as prateleiras de madeira robusta, tal como os outros móveis, sustentavam as grandes e empoeiradas garrafas de bebida. O inglês estava concentrado nos barris apoiados nas velhas tábuas de madeira. Charles tinha a impressão de estar ouvindo um barulho vindo da escada que descia ao porão, porém, antes que pudesse prestar mais atenção ao som, tocaram em seu ombro...Com um susto, virou-se para ver o que era e se deparou com alguns dos moradores da vila que estavam sentados na mesa ao lado. - Que coragem, cara! - falou alto um dos homens e, ao ver que o viajante não entendera, prosseguiu - Nosso velho amigo Lonán não lhe contou sobre a lenda do porão? Curioso, Charles juntou-se a eles na mesa redonda e esperou por uma explicação. O mesmo homem que havia lhe dirigido as palavras anteriores continuou: - Só não diga a Lonán que lhe contamos...Charles observou a expressão tensa de apreensão de seus companheiros e assentiu com a

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cabeça para que prosseguissem. - Diz a lenda que Fionuir, um bela jovem disputada aqui no vilarejo, foi assassinada por seu marido, pois ele pensava estar sendo traído. O espírito da mulher, então, perseguiu o marido por anos, assombrando-o, até que ele morreu de tanto medo e foi encontrado no porão deste bar, onde eles viviam juntos, com um beijo de sangue na garganta. - Desde então, ninguém se atreveu a passar a noite lá embaixo, já que dizem que Fionuir desenvolveu grande ódio pelos homens, além de acreditarem também que pouco antes de morrer jurou matar qualquer um que lá dormisse. ─ acrescentou um homem loiro enquanto bebia um pouco de sua cerveja.Por alguns minutos, o silêncio pairou naquela mesa. O britânico aproveitava para refletir so-bre o que acabara de ouvir, quando Lonán chegou para servir-lhes um pouco mais de cerveja e tirá-los do devaneio. Esperou que dessem duas da manhã, quando todos já haviam saído do bar e se retirou para o quarto: - Boa noite, Lonán. - despediu-se Charles, direcionando-se para a escada que levava ao porão. - Durma bem, meu jovem, até amanhã se D’us quiser. Espero que tenha uma boa noite - retribuiu o dono do bar com um sorriso no rosto, resmungando algo em tom baixo. Charles dirigiu-se à escada que levava ao porão e desceu cada degrau que rangia e estreme-cia com suas pisadas trêmulas, relembrando-se da lenda que ouvira. Girou a maçaneta e empurrou a velha porta de madeira, que protestou sobre as dobradiças. O ambiente, ilumina-do pela vela ao lado da cama e pela claridade vinda da escada, cheirava a mofo e à umidade e logo o homem estava cercado, não só por aquele aroma como também pelas teias de aranha, que pendiam de um canto ao outro do cômodo. Ainda abalado, começou a andar sobre as velhas tábuas de madeira, apodrecidas pelo tempo. Mesmo baixo, esquivava-se dos fios de seda quando, de repente, reparou nas manchas vermelhas no chão. “Seria aquilo sangue?” Afastou o pensamento e voltou para fechar a porta. Sua mão tremia tanto que ele a bateu mais forte que o necessário e, quando viu, a maçaneta estava no chão. “Há quantas décadas foi feita a última manutenção?”, Charles se perguntou. A sensação de estar preso o assustou; porém, resolveu esperar até de manhã para que alguém notasse sua falta e, cansado, dirigiu-se à cama, que estremeceu ao receber seu peso. O homem apagou a vela que oscilava e caiu no sono. A cama rangia constantemente apesar de Charles não se mexer em cima dela. “O que seria toda essa movimentação?”, perguntava-se aflito. Além disso, o som de uma risada agonizante e doentia atordoava sua mente e, aparentemente, vinha de debaixo da cama. Tentava se acalmar imaginando um caminho para a porta e uma estratégia para sair daquele local abafado pela falta de janelas. Não aguentava mais a angústia que sofria e resolveu tentar pela primeira vez chamar por ajuda ou abrir a porta. Levantou-se da cama bruscamente e, como consequência, as tábuas que a sustentavam estremeceram e desabaram. Dos escombros, ele ouviu uma espécie de gemido, que pensou ser o ranger das tábuas em que pisava. Andan-do de costas para a porta e olhando para o estrago que havia causado, vislumbrou uma forma não muito bem definida e esbranquiçada que surgia dos destroços da cama. Ressaltavam-se nela olhos que transbordavam ódio e lábios vermelhos como o sangue.

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Não sabia, ao certo, se desses lábios saía algum som, pois o batimento cada vez mais forte de seu coração era muito alto. Recuava apressadamente em direção à única saída do local sem dar as costas ao espírito, que o seguia flutuando. Suas mãos encontraram a porta, e nela procuravam a maçaneta, quando tropeçou e as encontrou no chão. Ainda caído, tentava desesperadamente encaixá-la, com as mãos escorregadiças de suor e trêmulas de medo. Fionuir chegava cada vez mais perto... Mais perto... Mais perto... Na manhã seguinte, o mecânico do vilarejo foi procurar pelo viajante no bar de Lonán e foi informado pelo proprietário que o homem estava dormindo no porão. Ele desceu as escadas e encontrou a porta do quarto entreaberta... Bateu uma, duas, três vezes... Nada. Um pouco hesitante, entrou no quarto e se deparou com o corpo de um homem estirado no chão, rosto pálido, feições aterrorizadas e enormes olhos abertos que encaravam o pobre mecânico com assombração. O único detalhe que faltava era o beijo de sangue, que não existia na garganta de Charles...

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apodrecidaHelena Breyton, Isadora Guerra e Sofia Ferraz

Podem até não acreditar, podem me achar louco, mas quando eu finalmente morrer, vocês saberão a razão. Sempre fiz o mesmo caminho da mercearia onde eu trabalho até a minha casa, mas, agora, o que eu menos quero é passar por aquela rua soturna.Era uma noite como todas as outras. Andava em passos lentos e ritmados rumo a minha casa. O vento colidia com a minha face pálida e fria. O único som que eu ouvia era a combinação de meus passos com o farfalhar das folhas, estava cercado pela minha solidão, envolvido por meu próprio silêncio. O desagradável odor de lixo indicava que a ruela estava próxima. Vivia cambaleando por ruas escuras, mas nenhuma delas me deixava tão apreensivo quanto aquela. Era estreita e muito escura, principalmente naquela noite, em que o céu alvacento não refletia nenhuma luz. Ela era completamente cinza, os fundos das casas e prédios, as escadas de incêndio, nem mesmo as pichações reluziam cores. Sua escuridão era uma perfeita veste para um velório, aquele pavoroso ambiente causava em qualquer um a sensação de proximidade com a morte e era verdadeiramente a trajetória para ela. A minha solidão foi quebrada pela primeira vez naquele lugar. Na varanda do segundo andar dos fundos do edifício Flores, havia uma linda mulher. Seus olhos verdes ressaltavam sua face alva e seus cabelos pretos repousavam sobre seus ombros. Desviei o olhar imediatamente, algo naquela mulher me assustou. Logo depois já estava em casa, porém, minha mente havia se perdido naquela ruela escura, estava presa pelo estranho olhar daquela mulher. Tudo refletia sua delicada face, o espelho, o metal da colher. Meus olhos escuros tornaram-se verdes, pois a todo momento via seu olhar. Acordei com um estrondo, arregalei meus olhos e percebi que fora apenas mais um pesade-

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lo, mas a primeira das muitas vezes que sonharia com ela. Já era noite quando passei pela ruela novamente. Senti-me enfraquecido, tomado pelo dese-jo de vê-la, entretanto, com a consciência de que não seria o melhor para mim. Sentia calafri-os e minhas pernas bambas enquanto caminhava cabisbaixo, cercado pelas ásperas e úmidas paredes da rua. Tentei evitar, mas, ao passar pela varanda, não me contive e virei. Sobre ela, estava o imóvel corpo da mulher coberto por um leve vestido preto, estampado com violetas de diversos tons arroxeados. Fiquei perplexo com sua beleza naquele vestido floral, mas não era isso o que me chamava a atenção. Nossos olhares se encontraram, mas dentro de seus esverdeados olhos, não se havia vida. Apertei o passo, precisava sair dali imediatamente, recuperar minha mente roubada. Precisava me livrar de algo que tomaria minha atenção por muitos dias.Meu olhar que, disperso, rodeava o caminho à minha volta, finalmente se fixou. No pequeno jardim em frente à minha casa, descansava um par de flores mortas, as mesmas que já havia visto naquela noite. Violetas. Depois de uma série de devaneios, consegui dormir. Os números vermelhos brilhavam no despertador à minha direita. 6h00. Um pouco mais cedo que o habitual. Acordei indisposto, mas nunca mudava minha rotina. Apanhei o jornal do bairro na frente da porta. Enquanto tomava meu café da manhã sentado na pequena poltrona na sala de estar, folheava-o em busca de uma notícia interessante. En-contrei. Na verdade, não era o que realmente desejava.

Sim, era a mesma mulher que havia visto nos dois dias anteriores. A ladra de mentes era a vítima. Choquei-me no momento em que li cada palavra da notícia novamente. Mulher. Mor-ta. Desorientada. Ontem. No mesmo dia em que a havia visto na janela, aquelas flores mortas representavam a realidade. A imagem daquela misteriosa mulher vinha à tona em minha mente, minuto por minuto ela se repetia, era como se os acordes de uma música misteriosa soassem dentro de mim. Não sabia o que significava ou mesmo o que estava acontecendo, era a primeira vez que sentia aquilo. Queria me certificar da verdade, mas não podia. Havia uma parte dentro de mim dizendo

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Perigo sobre rodasInúmeras mortes ocorrem devido à desatenção dos motoristas em Boston

Emma Robert

A falta de preocupação no trânsito causou, só neste ano, 237 mortes na cidade de Boston. Ontem, 18 de março, no bairro Charlestown, a vítima foi uma mulher de 24 anos que, desorientada, foi atropelada na faixa de pedestres por um desatento motorista.

“Só a vi correndo, olhando para os lados, parecia desorientada. Foi nesse momento, em que ela atravessou a rua, que passou o carro.”. Depôs uma testemunha que se encontrava no local do acidente. “Não posso afirmar que tinha sido culpa do motorista, estava escuro e a difícil visualização pode ter causado desorientação.”.

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que, naquela ruela, poderia encontrar a razão para todos os meus pesadelos. A outra dizia que ali eu encontraria somente a solidão e que, para achar a mulher, teria de ir a outro lugar, ao cemitério Pelas frestas das janelas, entravam feixes de luz roxa em toda a pequena casa. Fechei todas as cortinas e fui ao meu quarto. Deitado, mexia nas bordas dos lençóis amarelados e tapava meus ouvidos com o travesseiro, queria deixar ali minhas lembranças de algum jeito podendo esquecê-la. Quando, depois de um longo tempo, abri meus olhos, já era tarde. Havia perdido a hora do serviço, o que era extremamente incomum, pois não tinha família ou amigos, não tinha ninguém de quem pudesse extrair uma justificativa. Havia embarcado nos nós de meus pens-amentos, no quebra-cabeça de minha memória. Essa foi a primeira vez que me prejudiquei por conta dela. Sendo assim, permaneci em casa o dia todo, dividido entre a notícia e as duas vezes em que a havia encontrado. Pude testemunhar as primeiras cores da noite escapando por entre as cortinas entreabertas da sala. Comi vagarosamente dois biscoitos sem gosto e tomei uma decisão: seria aquela a hora certa para entrar na escuridão da pequena ruela. Andei rapidamente até o meu destino e, chegando lá, fui devagar, meus passos fracos con-fundiam-se com minha respiração e eram os únicos sons que podiam ser escutados naquele momento. Sobre a varanda dos fundos do edifício Flores, havia uma vela acesa, sua chama clara ameaçava apagar com o vento daquela noite. Atrás da luz tênue e sombria, podia-se ver um vulto. Aproximei-me com as mãos tremendo, uma gota de suor escorria pela minha face. O vento frio agitava meus cabelos negros como a noite, desviei o olhar e abaixei a cabeça. “Não, você chegou até aqui.”, murmurei para mim mesmo. Foi nesse exato momento, já em frente à va-randa, que olhei para ela. Sim, a “mulher morta” estava lá, imóvel. Não sabia como agir, estava atordoado e, com a respiração ofegante, saí correndo. Mas algum impulso me fez olhar para trás e agora lhe digo o que eu vi: uma mulher pálida de olhar mor-to em um lindo vestido de violetas dirigindo um sorriso malicioso a mim. Em pouco tempo já estava em casa, o par de violetas mortas continuava sobre o canteiro. Despedacei-as com minha própria mão. A noite foi horrível, acordava de hora em hora devido aos meus pesadelos. Essa foi a pri-meira vez em que desejei ter alguém comigo, um amigo para beber e compartilhar as des-graças que estavam acontecendo. O dia seguiu normalmente até a volta da mercearia. Eis um fato: não consigo controlar nenhum instinto ou impulso que tome meu corpo ou minha mente. Tenho medo deles, pos-so tornar-me louco quando eles me dominam. E foi exatamente isso que aconteceu, senti-me obrigado a passar pela ruela. O meu olhar, dessa vez, foi mais lento, pude observar a janela de madeira com tinta vermel-ha descascada coberta por duas cortinas azul-turquesa velhas e rasgadas. Na verdade, apenas reparei nesses pequenos detalhes para reduzir a atenção ao que estava na frente. Ela estava ainda mais pálida, seu olhar estava perdido entre a escuridão e seu vestido apa-rentava descolorir-se com a fúnebre luz da vela. Meus olhos dirigiram-se à sua mão e nela vi uma série de marcas e furos, queimaduras e sangue, as pontas de seus dedos não estavam

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lá. Ela estava apodrecendo. Não sei por qual razão aquilo me deixou tão apavorado, não é isso que acontece com os mortos? Na verdade, aquela mulher não estava morta. Pude sentir, juntamente com o cheiro de vela, o cheiro de sangue. Sangue vivo. Novamente fugi, mas, dessa vez, contive-me e continuei cabisbaixo. Estava estupefato com o que havia visto. Cheguei a minha casa, cansado. Fiz o mesmo de sempre, esfreguei o pé no tapete em frente à porta e, quando agachei à procura da chave que deixava embaixo dele, deparei-me com aquela cor. O tapete estava roxo violeta. Entrei rapidamente em minha casa e me entreguei à confortável cama, mas, ao mesmo tempo, a uma perturbada e atordoada noite. Por dias consecutivos, passei pela ruela voltando do trabalho. Sempre era tomado por aquele misterioso instinto de olhar para trás e, cada vez, via algo mais aterrorizante. Ela apo-drecia pouco a pouco, seus dedos, braços e pernas iam desmanchando-se, afogada na morte. Seu vestido me chamava cada vez mais a atenção, ia pouco a pouco descolorindo-se e a estampa de violeta ia murchando. Sim, podia-se dizer que tudo naquela mulher estava divid-ido entre a vida e a morte. Cada vez eu reparava em mais um sórdido detalhe, a tinta vermelha combinava perfeita-mente com as manchas de sangue espalhadas pela varanda, seus olhos verdes como esmer-aldas encaravam as noites escuras, seus cabelos pretos sacudiam-se e camuflavam-se com a escuridão, sua face magra empalidecia e se sentia, cada vez mais, aquele cheiro de sangue. Eu havia entrado naquela história como uma criança ingênua que vive procurando aventu-ras e acabei embarcando em uma, aterrorizante. Tinha criado laços inseparáveis com aquela mulher, entregado em suas mãos a minha mente e lhe permitindo controlar-me. Era uma manhã fria, acordei calmamente e me dirigi à mercearia. Os minutos passaram devagar enquanto eu executava meu trabalho, até que a porta se abriu e entraram duas mul-heres conversando. Fui em sua direção para oferecer ajuda, elas me dirigiram o olhar e, no mesmo instante, reconheci-os. Eram olhos verdes esmeralda, olhos mortos. Fui rapidamente ao balcão gaguejando uma resposta, olhei para os lados, as pessoas falavam baixo e me diri-giam olhares ameaçadores, olhares verdes e mortos. Corri em direção à saída, sem nem anunciar. O mundo girava à minha volta, ela estava brincando com minha mente, sei que estava. Olhei para a pequena janela oval da mercearia. Diferentemente do azul soberano que ali se encontrava nos outros dias, pude ver um tom arroxeado. Eu não sou louco. Caminhei com passos fortes. O céu estava encoberto por densas nuvens cinzas e, em pouco tempo, já estava em casa. Liguei a velha televisão e repousei em minha poltrona. Permaneci ali por horas, na mesma posição, até que começou a anoitecer. Na cozinha, sobre a mesa central, uma garrafa de vodka. Bebi no gargalo vários goles. Quando já estava farto, joguei a garrafa sobre a mesa, vesti meu casaco preto e saí de casa. Lá estava eu, cambaleando por ruas escuras, embriagado pelo meu próprio desejo de tê-la junto a mim. As ruas me cercavam e do céu caiam pequenas gotas de chuva. Comecei a caminhar para onde já tinha a certeza de que seria o meu destino aquela noite. Pude sentir o forte cheiro de lixo e a umidade da ruela. Meu coração batia cada vez mais rápido e eu suava por entre as minhas grossas vestes. Olhei para cima e vi a varanda, sobre ela jazia o despedaçado corpo da mulher. Girei meus olhos por todos os cantos da ruela e notei

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uma escada de incêndio, seria ideal para eu subir e alcançá-la, precisava imediatamente entrar em contato com ela. Subi vagarosamente a escada de metal, que rangia a cada toque... Passo a passo eu chegava mais perto da mulher de meus pesadelos, mas aos poucos me arrependia. Quando olhei novamente para a varanda, pude vê-la entrando e fechando as cortinas e janelas. Estava decidido a encontrá-la naquele momento. Desci as escadas em um ritmo rápido e fui em direção à entrada principal do edifício. Nesse momento, pude ver ao longe, na avenida, um vulto. Segui para lá, estava certo de que era ela. Correndo, com a esperança de alcançá-la, senti que os poucos olhares que permaneciam vigiando a avenida aquela hora da noite dirigiam-se a mim. Continuei, já com a respiração ofegante, ela permanecia firme com seus passos longos e de-sajeitados. Atravessei a rua e parei. Não sabia o que estava acontecendo comigo, se a embria-guez havia passado, mas decidi que andaria para o outro lado, faria o que fiz em toda a minha vida, ir no sentido contrário das outras pessoas. Mas era tarde demais, ela se virou em minha direção e veio ao meu encontro. Fechei os olhos e estiquei minhas mãos para me proteger, caso ela tentasse passar por cima de mim. Senti um frio na barriga, minha cabeça girava, ela havia me atravessado. Nesse momento, tropecei na elevação entre a calçada e a rua e me senti enfraquecido, não conseguia adquirir força para levantar. Olhando para trás, pude ver, com um olhar embaçado, os faróis de um carro, cada vez mais perto de mim. Diversos sons chegaram aos meus ouvi-dos, entre eles reconheci o sádico riso da mulher. Embarquei na escuridão e continuei ouvin-do os risos cada vez mais baixos que, aos poucos, confundiram-se com o silêncio. Quando abri os olhos novamente, encontrei-me em uma sala completamente branca na qual havia somente uma porta. Levantei e a forcei, estava trancada. Não sabia onde estava, mas somente sabia que não tinha estado ali antes. Olhei novamente para a cama, na cabecei-ra, um vaso. O que havia ali? Duas violetas. Vivas.

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EMOLDURADAJúlia Caffaro, Julia Bruck e Luciana Fernandes

Eram ainda 5h30 da manhã quando descemos do trem que nos levou até aquele estranho destino. Ficamos paralisadas diante daquela estação vazia cujas luzes falhavam. Após o trem deixar o local, o silêncio predominou novamente. Não havia outros meios para chegar à casa, a não ser a pé. Foi o que fizemos. Quando finalmente nos deparamos com aquela construção afastada, apoiamos nossa ba-gagem sobre a calçada e observamos a moradia. Era uma edificação antiga e razoavelmente grande que abrigava poucas janelas. O som agudo das dobradiças enferrujadas que o pequeno portão produziu quando o abrimos me arrepiou, assim como as plantas mal cultivadas do jardim que traziam um aspecto morto para o exterior da casa. A expressão cansada de minha mãe também transparecia desinteresse pelo estado do lugar em que viveríamos. Entre os cabelos escuros e o olhar meio atordoado, minha irmã encarava com desprezo todo aquele ambiente. Atravessamos o jardim, alcançando a velha sacada que possuía uma cadeira de balanço. A cada sopro do vento, essa cadeira movimentava-se sozinha e o barulho era tão sinistro quanto o do portão que acabáramos de ultrapassar. A maçaneta fria congelava meus dedos finos, enquanto abria a porta de entrada. A primeira visão que tive foi de um imenso salão. Aquilo me trouxe uma impressão semel-hante à de diversos quadros que já havia visto, quadros carregados de tristezas e melancolia. Acima de nossas cabeças, situava-se um enorme lustre de velas gótico um pouco danificado. Um pequeno raio de luz da manhã cortava as janelas e, através dos desenhos dos vitrais, refle-tiam figuras estranhas no chão. Minha mãe foi a primeira a deixar o cômodo. Em seguida, minha irmã fez o mesmo. Eu, entretanto, fixei meus olhos na escada que parecia não ter fim. Direcionei-me aos degraus de

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tábuas de carvalho escuro, os quais rangiam a cada passo. Tentei me apoiar sobre um cor-rimão inexistente e consequentemente, desequilibrei-me. Durante a lenta subida, amedron-tei-me com as pinturas que, provavelmente, retratavam a antiga família residente. Os olhos vidrados dos homens e mulheres horripilantes pareciam alcançar outras dimensões e sair do quadro. Avistei a porta velha do meu quarto. Entrei e me encontrei em um local escuro como o resto da casa. Era amplo, tinha apenas um grande armário com espelho, o que me causava calafrios devido à minha fobia. A cama encostada na parede era de casal, pensar em dormir sozinha num lugar tão grande e desconhecido era apavorante, ainda mais com os reflexos de minha imagem pelo quarto. Desci para a cozinha e ouvi minha mãe e Elizabeth conversando: — Mas mãe, por que você nos trouxe para cá? Para esse lugar horrível? Por que nos tirou do conforto, da felicidade?— Não foi uma escolha, foi nossa única opção. Além do mais, não tínhamos como pagar um lugar melhor!— Também não foi uma escolha sermos abandonadas pelo papai. Como vai ser agora sem ele? Quem cuidará de nós? Notei um silêncio constrangedor no local, senti lágrimas brotarem de meus olhos, o que parecia acontecer com elas também. Cada uma foi para seu aposento. Eu, que temia meu próprio quarto, fui procurar um lugar onde me sentiria mais segura. Acabei por encontrar uma abertura no teto que, provavelmente, dava passagem ao sótão. Ao abrir aquela portinha, uma escada se desdobrou no alto de minha cabeça. Uma nuvem de poeira tomou o local escuro onde estava, atiçando meu olfato e prejudicando minha visão. Com dificuldade, subi a escadinha e constatei estar definitivamente no sótão da casa. O som das goteiras soava tão alto quanto os batimentos acelerados do meu coração. Minha respi-ração estava ofegante e eu tremia de frio. Uma janela oval emoldurava a parede baixa e a luz exterior era imperceptível. Tive de me agachar dado o formato da parede que seguia a linha do telhado. As caixas espalhadas pelo espaço dificultavam o caminho. Dentro delas, havia vários objetos que pertenciam aos antigos proprietários. Escorreguei em uma das poças em que caíam as poças d’água e esbarrei num canto da parede. Notei que o som era oco, queria saber o que havia por trás. Remexi as velhas caixas em busca de algo que me ajudasse a quebrá-la, acabei achando um martelo. Utilizei-o como auxílio para quebrar o gesso e consegui o que queria. Surpreendi-me ao encontrar um quadro lá dentro, que reproduzia uma mulher loira de cabelos bagunçados e que trajava um longo e esvoaçante vestido branco. Tinha uma face pál-ida e olhos assustados, os quais me perturbavam um pouco também. A moldura retangular e toda adornada com detalhes florais estava quase inteiramente corroída. O aspecto clássico parecia ter se transformado em antiquado. Quem havia retratado aquela moça? E por qual motivo havia escondido a obra em uma parede? Por que a havia representado de maneira tão triste e melancólica? Em meio a tantos questionamentos, ouvi minha mãe gritando por mim, e lembrei-me de que deveria arrumar meus pertences. Rapidamente, apoiei o quadro no chão e desci para meu quarto, guardando minhas dúvidas para depois. Na manhã seguinte, enquanto minha mãe e minha irmã deprimiam-se em seus quartos,

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retornei ao sótão. Minhas dúvidas só aumentavam. Quem era aquela jovem mulher? Seria ela alguma conhecida dos antigos proprietários? Minha mente ocupada por perguntas e carente de respostas imaginava a história daquela obra. Analisei-a novamente e, dessa vez, percebi no canto esquerdo a assinatura do autor. Hauffman, esse era o sobrenome. Mais perguntas, per-guntas agonizantes aliás. Decidi pensar em todos os acontecimentos recentes. Encaminhei-me para o jardim, onde sentei na cadeira de balanço. De repente, minha distração interrompeu-se com o tormento de um som áspero. Observei na rua um senhor que varria tranquilamente a calçada. As folhas secas voavam para longe e, por mais estranho que parecesse, começaram a transtornar o vel-ho. As perguntas ainda andavam por minha cabeça, pensei que o único até o momento a ser capaz de respondê-las seria ele. Afinal, aparentava morar ali há algum tempo. Aproximei-me do pequeno portão de minha casa e o ranger silenciou a atividade do idoso. As palavras escaparam de minha boca, e disparei a falar:— Com licença, eu sou a Celine. Acabei de me mudar para a casa 71 e gostaria de saber quem eram os antigos proprietários.O senhor me encarou com desaprovação e parecia tentar formular uma resposta. Alguns segundos depois, gaguejou:— Antigos proprietários...? Pelo que eu me lembre, eram os Hauffman...Então, aquele quadro realmente pertencia a eles. Continuei:— E o senhor sabe onde estão agora?— Por que tanta curiosidade, mocinha?— Achei umas caixas no sótão, pensei que poderia devolver a eles - menti.— Sendo assim, pelo pouco que sei, estão na casa 112, na ruela dos fundos da igreja. Agradeci, já atravessando a rua. À noite, deitada em minha cama, desejava apenas preencher o vazio de minha vida. Meus olhos fechavam para fugir de meu próprio reflexo. Quando não conseguia desviar, assustava-me com minha própria imagem, como se ela es-tivesse transportando-se para fora do espelho. Quando acordei, avisei minha mãe que iria sair para conhecer melhor a vizinhança. Ela concordou, pouco interessada. Andava pela rua com o quadro embaixo do braço. Logo avistei a torre da igreja que sobressaía diante dos telhados baixos. Segui meu caminho pelas ruas desabitadas, buscando por aqueles que me intrigavam. Contornei o terreno da capela, en-contrando-me na rua indicada. Casa 112, ali estava eu. Por fora, aparentava ser uma morada normal, com um jardim proporcional e repleto de plantas bem cuidadas e bonitas, porém uma atmosfera tensa parecia cercar o ambiente. Talvez isso fosse fruto de minha imaginação, repleta de ideias sombrias que começaram a ocorrer desde que chegara àquela cidade. O portão estava entreaberto, atravessei o jardim e fiquei parada frente à porta. Bati a al-drava. Nenhuma reação dos moradores. Durante alguns minutos, aguardei ansiosamente e estava quase desistindo quando uma senhora abriu a porta e veio ao meu encontro. Ela me examinou e, para não parecer indelicada, rapidamente me apresentei. — Bom dia, eu sou Celine Hartrigh e gostaria de falar com os antigos moradores da casa 71... Os Hauffman.— Eu sou Juliet Hauffman. – respondeu, convidando-me a entrar — O que a trouxe aqui?

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Entrei na casa e observei a iluminação amarelada. A semelhança com os móveis de minha casa era perceptível, porém os deles estavam em melhores condições. As cortinas mantin-ham-se fechadas e as paredes da sala eram decoradas pelos quadros mais assustadores.— Eu estava no sótão da sua casa... quer dizer, minha casa... e encontrei este quadro. – segurei a obra com as minhas mãos, exibindo-a a Juliet.A senhora olhou com espanto e soltou um grito:— Adolph, venha cá!Um senhor entrou na sala e, assim que percebeu o motivo do grito, ficou pasmo.— Onde você conseguiu isso, menina?— Meu nome é Celine e eu estou morando onde era sua casa. Achei isso no sótão. Gostei muito do quadro e fiquei curiosa para saber sua história.— Bom... você gostaria de se sentar? Apontou para um sofá vermelho escuro onde eu me sentei junto com a sra. Hauffman. O chamado Adolph se sentou em uma poltrona diante do sofá e começou a contar o ocor-rido. Ele relatou que o quadro fora feito pelo seu falecido filho, Philip, e para guardar uma memória do jovem na casa, a família tinha resolvido colocar sua última obra atrás da parede. De acordo com o que me contaram, aquela obra, além de ter um significado para seu filho, representava uma antiga namorada. Pela frieza e incômodo com que me contaram a história, acreditei que não fosse verdade. Suas falas pareciam muito decoradas, demonstrando esconderem algo. Embora tenha duvidado um pouco da situação, agradeci por me receberem e voltei para casa com o retrato em mãos. Ao chegar a casa, subi ao sótão para escondê-lo novamente. Já ao entardecer, dirigi-me à sala, notei que havia algo diferente. Levei um tempo até perceber a falta das cortinas que antes estavam cobrindo as altas janelas. Por um momento achei que poderiam ter caído com o ven-to. Fui descansar. Levantando-me de manhã, a casa estava vazia, provavelmente minha mãe e Elizabeth estar-iam ainda dormindo. O sol do leste finlandês quase não havia nascido e o frio dominava meu corpo. Ao passar pelo corredor, por um momento, imaginei estar delirando. Seria aquilo um vulto? Um tecido branco sustentava um borrão amarelo e havia cheiro de mofo, os quais sum-iram em rápidos segundos. Assustei-me e prendi a respiração, acreditando que poderia haver um fantasma. Quando voltei à realidade, pensei que pudesse ser minha mãe por causa de seus cabelos claros. Mas por que estaria usando aquele vestido e por que parecia fugir de mim? Mais perguntas. Sua figura me lembrou por um instante a imagem da mulher do quadro, em-bora não tivesse visto o rosto do vulto.Uma série de acontecimentos estranhos perturbou meu dia. Um barulho contínuo de passos leves rondava minha cabeça e aquela fisionomia apagada retornava a meus pensamentos. À tarde, subi ao único lugar com o qual me identificava na casa. Analisei o quadro mais uma vez. Lembrava da imagem do vulto que havia visto pela manhã e, com frequência, asso-ciava-a à da mulher do quadro. Decidi explorar as caixas de papelão que estavam por toda parte e encontrei objetos de decoração e livros. Em uma delas, o nome de Phillip estava gra-vado. Tomada pela curiosidade, abri a caixa e um livro me chamou a atenção. A capa de couro escuro estava envolta por um elástico. Deduzi que o livro pertencia a Phillip, já que estava na caixa com seu nome. Ao anoitecer, após passar algumas horas no sótão remexendo e ob-

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servando cada objeto, voltei ao meu quarto e acomodei alguns livros, incluindo o de Phillip, perto de minha cama. Prestes a dormir, escolhi ler algumas páginas do livro da capa de couro e cheguei à con-clusão de que a obra continha descrições e registros das obras do pintor, feitos por ele mesmo. Cada descrição era complementada por um esboço e pela imagem do quadro. Também en-tendi que Phillip possuía a capacidade de transportar seus sentimentos para suas obras. Além disso, o artista representava suas obras igualmente ao quadro do sótão, com estilo pouco iluminado e constantemente infeliz. Com todas as informações que tive ao ler o livro, deduzi que, provavelmente, Phillip pintara a jovem em um momento de abatimento. Raciocinei que talvez a tela poderia estar descrita naquele mesmo livro e, folheando cada página, encontrei uma caracterização de uma moça loira com vestido branco esvoaçante. “Eva, outono de 1861, óleo sobre tela, 30x20cm. Um quadro que retrata a expressão intro-spectiva de uma moça; seus longos e escorridos cabelos emolduravam sua face pálida causan-do em seus olhos um triste olhar. Para quem a via, era como observar a escuridão, tão vazia quanto o véu da noite. Esse foi o outono mais solitário que passei. Preenchi esse vazio com as leves pinceladas sentidas pela minha alma e representadas por essa linda moça, sonho de qualquer homem solitário. Essa figura poderia representar tudo que sentia, desejava e pos-suía: tristeza, solidão, paixão, indiferença e a arte. Não sabia que tudo isso poderia trazer consequências tão graves. Assim que a finalizei, percebi não ser como as outras pinturas. Era tão real que transparecia ter uma alma, não só por sua aparência, mas também pelo que vi. Ao ir deitar, nessa noite, a imagem de um vulto resplandeceu em meu espelho. Se não fosse pela rapidez do ocorrido, seria até possível afir-mar com toda minha certeza ser Eva. As dúvidas que me cercavam até às três horas da manhã eram: seria essa realmente Eva? Se fosse, como conseguira caminhar em nosso mundo? A esse ponto, parecia enlouquecer. Até que fui à sala e o quadro, que antes estava na parede, agora, jogado ao chão, não continha mais a imagem de Eva. Virei-me procurando o vulto já visto antes, porém, depare-me com uma perfeita imagem daquela que agora me assombra-va. Um calafrio percorreu meu corpo e, por alguns milésimos de segundos, imaginei o pior. Como reflexo, corri na direção contrária e só parei quando os passos que me seguiam se si-lenciaram. Nesse momento, estava no sótão, onde permaneço até agora, esperando pelo meu fim.” Aquela leitura me deixou tonta. Tinha a opção de acreditar nesse absurdo ou no que cer-tamente era uma mentira. Uma mentira para encobrir o absurdo. Pensando agora, havia um motivo para a tal Eva estar dentro da parede. Mais que guardar uma memória, seria uma precaução. Assim, onde foi encontrada deveria permanecer. Apesar da certeza que tinha de estar totalmente sozinha em casa, ouvi passos se aproxi-marem, o que me fez fugir em uma direção qualquer. Os passos continuavam atrás de mim, fazendo-me correr cada vez mais. Fui parar no sótão, onde, até pouco tempo era, para mim, um lugar seguro. Em alguns segundos, arrependi-me.Procurei pelo quadro e, ao encontrá-lo, confirmei a história: Eva não estava lá. Minha respi-ração estava mais rápida do que nunca, o cheiro de poeira não me deixava em paz. O que mais me agoniava era o som do ranger da madeira cada vez mais alto, porém meu enjoo não

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me permitia encontrar quem o produzia. Logo a vi. Seus cabelos bagunçados mexiam-se com o vento gelado vindo da pequena janela. Sua pele branca aproximava-se da minha. Não havia para onde fugir, nem o que fazer. Fiquei imóvel, sem nenhuma reação, até que seu toque gela-do chegou a mim. Minha face congelou. Senti seus dedos me apertarem e meus pés saírem do chão, levando-me para um outro lugar, um outro mundo, o qual desconhecia. Aos poucos, a nuvem de pó dava lugar a um cheiro terrível de tinta. Estava eu, parada ali, não sei bem onde, mas a vista era do teto daquele lugar de que tanto gostei, reconheci cada detalhe, contudo, sem poder tocá-los. Não sentia mais o aperto e os de-dos frios em meu braço, o pouco que conseguia me movimentar era o suficiente para sentir a presença de Eva ao meu lado, parada, como posava na tela de P.Hauffman. Apesar de sempre ter gostado da solidão, essa agora me causava dor.

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MINHA MENTALIDADE MóRBIDAFlávia Pereira e Fernanda Zilio

Dentre todos aqueles meninos e meninas brincalhões, eu era diferente. Ninguém tinha cor-agem de me chamar de normal. Toda noite era a mesma situação. Bastava me deitar em minha cama velha, apagar as fracas luzes de meu aposento e esperar poucos minutos que os ruídos aterrissavam em meu ouvido. Não apenas ruídos, também observava o movimento de sombras, à luz débil de meu abajur. “Dormir” não era uma ação muito praticada na minha rotina. Eu só descansava quando meu pai se sentia obrigado a acalmar-me de meu desespero. Esses sonhos intensificaram-se numa conversa entre meu pai e eu. Ele me passou a infor-mação que tiraria minha felicidade e acrescentaria angústia à minha vida. “Ben...”, disse calma e pacientemente, esse era seu modo de agir. “Você sempre me pergunta sobre sua mãe. Acho que já está na hora de lhe dizer a verdade. Ela... ela morreu no seu parto, Ben. Já estava muito fraca e doente. Mas você teve sorte, porque nasceu direitinho! Olhe só para você!”, uma lágrima caiu de seus olhos. “Não se chateie comigo, eu não lhe contei antes por medo... medo de você se sentir culpado.” Por fim, abraçou-me fortemente, como nunca me abraçara antes. “Você tem os olhos da sua mãe”. Quis olhar para meus próprios olhos, mesmo sabendo a impossibilidade dessa ação sem o auxílio de um espelho. Meu pai lançou-me um olhar estranho, desconfiado. Não prestei atenção, só continuei tentando. Apesar da reviravolta em meu cérebro, no fundo me senti lisonjeado. Geralmente, papai e eu só tínhamos conversas rápidas, sem importância. Ele nunca olhara nos meus olhos fixam-ente. Eu nunca mais dormira tranquilamente. As lembranças de minha mãe ao meu lado vinham à tona. Na primeira vez em que vi todas aquelas imagens aterrorizantes passeando pelo quar-

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to, senti um desconforto imenso. Diariamente, elas apareciam. Uma das silhuetas que me era mais comum surgia ao meu lado todas as noites. Era de uma mulher, uma sombra mais detalhada que as outras. Enquanto umas eram vultos barulhentos e agitados, ela era calma, linda e bem familiar. Vestia uma longa saia azul, com barra de crochê e uma camiseta branca. Além disso, segurava uma flor. Uma flor rosa-chá amarrada a uma fita violeta. Eu tinha vontade de apanhá-la, mas meu medo era maior e me dominava. Então, decidia acalmar-me e esperar a luz da manhã iluminar meu rosto mais que a luz fraca do aba-jur o fazia. O amanhecer chegava e um alívio contraditório apertava meu peito. Isso porque, ao mesmo tempo em que o medo era enorme, minha curiosidade só aumentava. Eu queria tanto saber quem era aquela mulher. Recorri a meu pai. Contei-lhe tudo o que me acontecia todas as noi-tes, mas ele voltou a ser frio como antes, não acreditava em mim. Decidi, então, criar uma ligação mais forte com essa mulher, que me parecia uma protetora de meus medos. A única ligação entre mim e ela era a flor. Desenhei-a diversas vezes, com-prei uma flor igual à que tinha visto e amarrei-a com uma fita violeta. Era um vício contínuo. Guardei-a em meu quarto, perto dos quadros de palhaços, os quais eu adorava de dia e temia de noite. Várias noites depois, eu já me acostumara com os acontecimentos de minha conturbada rotina noturna. Aos poucos, passava a conhecer melhor a mulher. As tentativas de comu-nicação, porém, não obtiveram sucesso. Pela primeira vez eu estava gostando de ser assim diferente! Contudo, numa noite, todas as minhas opiniões se voltaram para o desespero. A energia em meu quarto não estava boa, o frio dominava o espaço, mesmo sendo verão. Senti que estava sendo observado a todo minuto, mas não me importei porque a moça teria de aparecer em algum momento, ela só poderia estar escondida, querendo brincar. Muito bem escondida. Permaneci calmo. Ela desistia da brincadeira gradualmente. Mas eu não tinha pressa. O sono também me dominava. Consegui pregar o olho. Já estava num sono profundo, mas foi, de repente, interrompido por um carinho em minha coxa. Abri os olhos e percebi a mudança no ambiente. O quarto estava repleto de velas acesas e, em sua parte mais escura, havia uma mulher sentada. Uma idosa, com roupa branca e olhos claros, como a água de uma piscina. Ela ria debochadamente de minha face surpresa. Arrepiei-me. Involuntariamente, gritei pelo socorro de meu pai, cujo sono era leve. Ele veio correndo. “O que é isso, Ben?!”, disse, gritando. Ele nunca gritava. “Pai! Quem é essa mulher? E essas velas?! Você que colocou aqui?” “Que velas, filho? Que mulher?”, agora ele estava mais calmo. Já eu estava totalmente transtornado. “Você não consegue vê-la?”, uma lágrima brotou em meu olho. Eu estava ficando lou-co? “O que eles querem comigo, pai?” “Eles quem, filho?” Não respondi, só pousei a cabeça no travesseiro. “Não se preocupe, amanhã a gente vai ao doutor Rogério...” Passei o resto da noite em claro ao lado de meu pai. Finalmente, amanheceu e o horário

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da consulta chegou. A secretária foi simpática. Mesmo com vários pacientes à espera de atendimento, ela me passou na frente e logo fomos chamados. “Oi, doutor Rogério! O Ben está um pouco diferente”, meu pai disse com naturalidade. “Você pode conversar com ele?” “Claro que sim, Jack!”. Deu um sorrisinho para mim e lhe pediu que nos deixasse a sós. Papai me deu um abraço e saiu da sala. “Conte-me tudo o que você anda vendo, Ben.” Segui a instrução e falei de todos os acontecimentos desde o dia em que meu pai me falara da morte de minha mãe, mas não tive coragem de falar sobre a noite anterior. A visão da velhinha ia e vinha na minha mente. Ele estava anotando. “Eu preciso fazer alguns exames em você, Ben... eu acho que isso tudo é fruto de sua imaginação. Não se preocupe, vai dar tudo certo”. Houve um silêncio que deu pausa à nossa conversa. Ele pareceu pensativo, mas logo recuperou a pose. “Seu pai me con-tou brevemente sobre o que você falou ontem. Você pode me explicar?” Senti-me envergon-hado, e se ele pensasse que estava realmente louco? O doutor percebeu que eu estava nervoso. Acalmou-me, mas me pressionou a lhe contar sobre a minha visão. Senti uma tontura tomar conta de mim, próxima a um frio incessável. Devo ter desmaiado, porque acordei num lugar calmo, todo branco e com uma agulha no braço, provavelmente tirando sangue. Aquilo era um... hospício? Levantei-me rapidamente, tentando relacionar tudo aquilo. Gritei por ajuda. Gritei tanto que minha voz sumiu. Logo, doutor Rogério chegou para me acudir. De repente, peguei-me contando a ele aquela informação que lhe faltava, sobre a velha que me assustara tanto naque-la noite de terror. Novamente, ele fez anotações. Dias se passaram e eu odiava cada vez mais aquele hospício, que as pessoas insistiam em chamar de ‘clínica de repouso’. Num dia chuvoso, o doutor veio a meu socorro: “Ben! Meus parabéns! Sua recuperação foi inacreditável! Você não está vendo mais nada, está? Se estiver, pode me contar! Eu preciso saber de tudo para poder curá-lo.” Ele dizia aquilo como se eu fosse um psicopata. “Não sinto mais nada, doutor. Agora eu posso ir para casa?”, meus olhos brilharam. Ele confirmou e saiu da sala. O caminho para casa pareceu mais demorado que o período de recuperação. Chegando ao lar, meu pai pediu para eu fechar os olhos. “Uma surpresa!”, exclamou. Conduziu-me até meu quarto. Confesso que dei umas espiadinhas. No momento em que acendeu a luz, senti o que já vinha sentindo há tempos: alguém estava me observando. Eu nunca estava sozinho. Onde estavam meus quadros de palhaços, meu abajur fraco, minha luz piscante, minhas estrelas brilhantes no teto? Papai me olhou – mais uma vez – com uma expressão estranha. Senti meus olhos revirarem. Caí no chão. Contudo, logo que acordei estava na cama. Quantas vezes eu ainda teria que passar por isso?! Alguns ruídos voltaram a me incomodar. Mas dessa vez pareciam reais. Era a voz de meu pai. Ele conversava com uma mulher. Aproximei-me para ouvir melhor. “Ainda bem que você chegou... eu não sabia o que fazer. Ontem, quando apresentei o quarto para o Ben, aconteceu uma coisa que ninguém conseguia explicar. Eu acho realmente que um espírito se apoderou de seu corpo”. Houve uma pausa. “Quando acendi a luz, seus olhos revir-

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aram e estavam avermelhados. Seu rosto empalideceu. Suas mãos entraram numa tremedeira sem fim. E seus lábios ficaram escuros. Eu não sei o que fazer”. “Será que fui eu que causei tudo isso, Jack? Eu estou tentando me comunicar com o Ben, mas está difícil! Eu só quero que ele saiba que eu não quero assustá-lo. Sou espírita, e não achei outro jeito de falar com ele. Parece que ele não me vê... e nem me escuta”. “Eu sei que nosso relacionamento passou por desentendimentos nesses nove anos, desde que Ben nasceu. Eu tive que inventar que você morreu. Não pude deixá-lo sem resposta...”, meu pai estava quase chorando. “Mas você voltou, se arrependeu de ter me deixado” Fui até a sala e a reconheci prontamente. Ela vestia uma saia longa azul com barra de crochê e uma camiseta branca. E segurava uma flor. Uma flor rosa chá amarrada com uma fita viole-ta... a minha flor. Então minha mãe estava viva? Ela que tinha me causado tudo isso? Com essa informação, senti meu estômago revirar, era raiva mortal. Eu iria me vingar. E iria reagir desde já. Peguei os estúpidos quadros de palhaço e joguei-os no chão. Meu pai tinha deixado um buquê das rosas chás que pedi. Atirei-as perto dos quadros quebrados. Destruí o espelho com a força de minha cabeça. O barulho foi alto, porque ouvi passos em direção do quarto. Olhei para o braço, sangrento. Uma vontade de sorrir me veio, com a ausência de dor. Atendi-a e abri o maior sorriso que já havia dado anteriormente. Peguei um caco no chão e enfiei contra meu peito. A última fala que ouvi foi o grito de minha mãe, minha suposta mãe.

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O AMOR DO ESPELHOAna Gabriela, Artur Souza, João Montechi e Larissa David

Temos dois olhos para ver, dois pulmões para respirar, dois ouvidos para escutar, mas só um coração para amar. Dizem que nossa missão na vida é achar nossa alma gêmea, o outro coração. Eu, felizmente, já concluí a minha. O nome dela era Linda. Sua aparência fazia jus ao nome. Era alta, magra e tinha longos ca-belos pretos e olhos azuis como o mar. Já eu era apenas seu humilde namorado. “O doce Lucas”, nas palavras de minha amada. Sou perfeitamente normal, exceto pela doença que me impede de sentir dor, essa enfermidade me perturbou por toda a vida, impediu-me de fazer coisas que desejava. Principalmente, porque ninguém podia saber e muito menos ver um de meus ataques que são surtos onde tenho uma vontade intensa de sentir dor. Eles não acontecem frequentemente, mas, quando acontecem, são devastadores. Perco minha cabeça e acordo envolto em sangue. Como disse, a doença me perseguiu a vida inteira. Eu era um bebê incomum, não chora-va quase nunca e, quando pequeno, não reclamava de dores. Mas o auge da estranheza veio aos quatro anos, quando meus pais chegaram em casa e a ponta dos meus dedos estavam em carne viva, sangrando, e eu continuava roendo-os e rindo. Eu ria alto, ria da expressão de pavor de meus pais. A partir daquele dia, eles nunca me trataram da mesma forma. Foi assim que eles descobriram minha doença, mas a primeira crise, realmente, aconteceu quando tinha quatorze anos e foi muito mais trágico. Era uma noite sombria e chuvosa, eu voltava de minha aula de violino pela ruela vazia em que vivíamos, passei pela casa 44, onde vivia a senhora Johnson. A mansão era assustadora, as janelas estavam sempre fechadas, a pintura era cinza e desgastada e o jardim, repleto de flores mortas, tinha aspecto de abandonado. Apressei o passo, pois as histórias de que a velha

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era má e havia assassinado seu marido circulavam pelo bairro. Estava me sentindo estranho, como se um vazio se apoderasse de mim. As luzes dos postes começaram a piscar e ouvi o ranger dos portões da casa se abrindo. A velha saiu com uma capa preta, tinha aparência exausta e sua mão tremia ao segurar com dificuldade seu guarda-chuva. Ao dar o primeiro passo em direção à cerca, ela escorregou no piso molhado e pude ouvir o barulho de sua perna quebrando e seu osso espetado para fora de sua pele. O último som que a senhora emitiu foi um fraco e rouco grito de dor. Ao olhar para trás, vi a velha no chão, seu sangue se misturava com a água da chuva. Ela me pediu ajuda, mas não ajudei, fiquei imóvel, sorrindo, vendo-a sofrer, ela merecia aquilo. Sentia-me bem e poderoso assistindo a sua agonia, mas, aos poucos, o sorriso em meu ros-to começou a se fechar. Comecei a sentir inveja dela, queria estar em seu lugar, descobri que tudo que desejava era sentir dor. Apanhei uma pedra e cortei meu braço. Não sentia nada. Fiquei revoltado, joguei-me no chão, soquei e chutei sem parar o asfalto frio e meus olhos começaram a se fechar... Acordei em casa, com a minha mãe cuidando de mim. Achei que aquele episódio não se repetiria, mas estava errado, aquilo me acompanharia a vida inteira. De volta à realidade. Eu estava tendo uma noite muito feliz. Era dia 13 de setembro, Linda e eu arrumávamos a sala de minha casa, que passaria a ser nossa após o casamento, quando ela me pediu a chave do porão para buscar os talhares de prata. O porão era um lugar muito sombrio, lá dentro eu tive um de meus piores ataques, mas por aquela mulher faria qualquer coisa até entrar na sala que tanto odeio. Então, agarrei a chave tremendo e começamos a descer a escada. Calafrios tomaram o meu corpo e senti náuseas. Linda sabia de minha doença, porém, nunca havia presenciado um de meus ataques, fiquei preocupado que ela assistisse um deles agora, mas a raiva de tudo e de todos crescia em meu peito. Ela desceu e se deparou com uma sala pequena de paredes ásperas, sem nenhum móvel. Tinha um cheiro forte de velas, e o tapete com a mancha de sangue chamava atenção. Além dele, havia um espelho grande e antigo, com uma moldura dourada e desbotada. Sempre gostei daquele espelho e, enquanto Linda procurava a caixa de talheres, eu observava meu reflexo. Perdi-me em meu reflexo e, passados alguns minutos, ouvi um grito de Linda. Virei e vi a cena que me puxou para o abismo da escuridão. Em uma de suas mãos, tinha sangue e, na outra, uma das facas de prata. Não acreditava no que via. Ela sabia de minha doença e, mesmo assim, cortara-se de propósito. Os seus gritos eram falsos; por dentro, tenho certeza de que estava rindo, não, pior, gargalhando. A dor que sentia me afetou e a mulher a quem eu tanto amava, comecei a odiar. Fui até ela, arranquei a faca de sua mão e cortei sua perna. Logo que a primeira gota de sangue escorreu de sua pele, toda a raiva se transformou em prazer. Fui tomado por uma sensação que nunca havia experimentado antes, a dor. Uma euforia explodiu de meu coração. Entendi que ela não estava zombando de mim, sabia que se ela sentisse uma dor muito forte, eu sentiria também, devido ao amor intenso que nos ligava. Cortei-a mais uma vez e, logo em seguida, fiz o mesmo em mim, a sensação era agonizante e, ao mesmo tempo, prazerosa. Para torná-la mais intensa, quebrei seu pescoço e não precisei

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repetir o gesto em mim para sentir o mesmo. De repente, não ouvia mais seus gritos e seus olhos estavam fechados. A dor também havia passado, ela estava morta. Fiquei desesperado, porém aqueles minutos de deleite compensariam, em minha mente, a atrocidade que acabara de cometer. Por um momento, fiquei sem ação, não sabia se ria ou chorava. Percebi que teria de escon-der o corpo. Olhei ao redor e me deparei com o espelho. Isso! Perfeito! Lembrei-me de que atrás dele ficava o cofre da família, grande e secreto o bastante para esconder um corpo. Abri e coloquei o corpo de Linda cuidadosamente dentro do cofre. Fechei, tranquei e me compro-meti a me esquecer daquela noite. No dia seguinte, expliquei à sua e à minha família como ela tinha sumido, assim como aos convidados do casamento. Disse que nós havíamos brigado. Disse também que se alguém a achasse, que não me dissesse nada e que eu não queria saber dela nunca mais. Dois dias depois, saí à noite para andar pelas redondezas de minha casa. O relógio da torre da Igreja deu 12 badaladas, era meia-noite. Vi um carro de polícia, desviei de meu caminho e me escondi em uma rua sem saída. Pouco tempo havia se passado após a trágica morte de Linda e eu, como mentor do assassinato, estava preocupado, pois tinha medo de ser pego, minhas mãos suavam, apressei o passo, as luzes fracas dos postes começaram a falhar e eu ouvi alguém gritando. Olhei ao meu redor e não vi ninguém. O grito soou novamente, mas dessa vez me pareceu mais familiar. Aproximei-me de uma velha loja de espelhos e me lembrei de como Linda era vaidosa, vivia mirando seu reflexo. A porta de madeira estava aberta, entrei e pisei no as-soalho, ouvi o vento soprar fortemente e a porta bater atrás de mim; tentei abri-la, mas estava trancada. O lugar tinha aspecto lúgubre e era repleto de espelhos de todas as formas. Ouvi de novo o grito e reconheci a voz de minha noiva. Não era possível, Linda estava morta, eu a havia matado. — Quem está aí? —perguntei. Não obtive resposta. Segui a direção da voz. Um pequeno espelho no final do estreito corre-dor me atraiu. Minhas mãos estavam tremendo e eu suava, mesmo assim, aproximei-me. Olhei-me no espelho e, atrás de meu ombro esquerdo, apareceu o rosto de Linda. Ela estava gritando e vestida de noiva, sua roupa estava cheia de sangue. Reconheci que era a cena de sua morte, apesar de estar usando o vestido. Apavorei-me. Com um alto estalo, o espelho se rachou no meio de se seu pescoço, mas a imagem permaneceu lá. Virei-me para ver se ela realmente estava atrás de mim e me deparei com a loja vazia e escura. Tremendo de medo, corri até a porta, chutei-a e ela se escancarou. Fui até minha casa e fiquei lá a noite toda, pen-sando... Ela apareceu de propósito, queria vingança, não ia parar até me ver morto. Tinha certeza. Não sou louco, nunca fui. Ela sim, ela é completamente louca! Provocou-me e conseguiu me tirar do sério, matei-a e agora ela quer vingança. Ao contrário do que pensei, ela não me am-ava, ela me usava. Era eu quem teria motivos para desejar vingança e, mesmo assim, deixei-a descansando em paz. Afinal, a morte chega, uma hora ou outra, para todos nós.Naquela noite, dormi pesado. Eu vagava sozinho por uma rua deserta muito escura e não sabia onde estava. Continuei caminhando até enxergar uma luz saindo de um algum lugar.

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Fui em sua direção e me deparei com o reflexo tão temido no vidro da vitrine de uma loja. Lá estava ela, vestida de noiva e gritando de dor logo atrás de mim. Fiquei perplexo, senti a raiva tomando meu corpo, cerrei os punhos e, num ato desesperado, quebrei o vidro. Minha mão sangrava, mas eu não sentia absolutamente nada. Nem Linda, que só escorregou um pouco para a direita e continuou gritando. Acertei um outro ponto do vidro, que rachou, e ela escapou novamente. Ficamos nisso até que a vitrine estivesse destruí-da. Achei que havia me livrado dela, porém ela se refletia nos cacos de vidro que eu havia derrubado no chão. Corri para longe da loja e, quando parei para recuperar o fôlego, descobri que ela estava me acompanhando o caminho todo, e apareceu na janela de um carro, com certeza, por dentro, rindo, porque a aparência estava exatamente igual à da vitrine, aquela expressão sofredora que não me enganava. Não sabia que estava prestes a me casar com uma atriz. Continuei correndo e, de repente, a rua se encheu de gente... Não... De Lindas. Ela estava por todo lado, não tinha para onde fugir, encolhi-me atrás de um poste, fechei os olhos, tam-pei os ouvidos e acordei. Tudo havia sido um sonho, respirei aliviado, levantei e fui ao banheiro, joguei água em meu rosto suado e quando o levantei... O alívio logo foi embora e o branco tomou conta de minha pele. Ela estava lá, atrás de mim, gritando. Tirei o espelho da parede, coloquei-o em cima da pia e, com minha própria mão, fiz uma rachadura. Ao ver que a imagem ia se dissolvendo, eu ria cada vez mais alto e, ao final, gargalhava. Contudo, parei quando vi que ela estava se refa-zendo. Desesperado, quebrei o espelho e, mais uma vez, ela surgiu nos diversos cacos espalha-dos pelo chão. Isso eu não podia tolerar, ela não ia me assombrar dentro de minha própria casa. A raiva que sentia havia se tornado pavor. Percebi que não havia nada que pudesse fazer para parar aquela maníaca, só a minha desgraça e isso eu não lhe daria. Ela não ia ganhar a guerra. Então, pensei na única coisa que me veio à mente para destruí-la. Mais gente precisava saber daquilo. Corri para a delegacia e contei a história inteira ao delegado. Levei-o até minha casa e mostrei o corpo. O delegado entendeu tudo, entendia que eu tinha razão, afinal, mes-mo que eu houvesse cometido um crime, o que ela estava fazendo era muito pior, eu a havia matado em legítima defesa, ela estava me provocando. O delegado e eu deixamos o porão repleto de homens da perícia e fomos até seu carro. En-trei no banco de trás, ele no da frente. Rodamos cinquenta minutos, até que ele me entregou a um homem que eu não conhecia. Fiquei em uma cela por um mês, ela tinha grades e nen-hum espelho. Ignorava todos que falavam comigo, mas sabia que estavam sendo realizados os julgamentos, pois, de vez em quando, eu era levado a alguns prédios fora da prisão. Finalmente, ao final do segundo mês, fui removido do presídio e levado a um lugar, onde fui recebido por dois homens de branco. Não sei por que me colocaram nesse lugar. É feio. Inteiro branco, com corredores imensos repletos de salas numeradas. E o pior são as pessoas. Sempre falam sozinhas e às vezes gritam sem parar, parecem loucas. Não sei por que estou aqui. Não pareço com estes doentes. As pessoas não entendem que eu fiz o bem para Linda, quem não gosta de sentir dor? Precisa-mos dela, e a morte... Doce morte... Está reservada a todos nós...

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O MIstério da bengalaMaria Cecchini e Mariana Bernicchi

A história que vou contar agora pode parecer bizarra, mas devo-lhes afirmar que é real. Como poderia eu, um homem sério, inteligente e corajoso, imaginar que acontecimentos so-brenaturais realmente fossem possíveis? Tudo começou quando minha mulher, na época ainda viva, e eu fomos visitar uma casa com a intenção de comprá-la. Ao chegarmos lá, um velho muito estranho nos recebeu. Ele era carrancudo, não olhava nos nossos olhos em hipótese alguma e tinha unhas gigantescas que mais se pareciam com garras de gavião. Entretanto, senti pena, pois ele parecia estar à beira da morte, magro, fraco, apoiava-se em uma antiga bengala e, nas poucas vezes em que abriu a boca para falar, sua voz soou rouca e baixa. O velho disse que queria vender a casa, pois es-tava prestes a morrer e não tinha nenhum herdeiro. Ao entrar na casa, confesso que senti certo desconforto. Havia poucas janelas e por isso o ambiente era escuro; a casa estava mal cuidada, empoeirada e cheirava a mofo, mas, mesmo assim, comprei-a, pois minha mulher ficou encantada, achou a casa grande o bastante para que vivêssemos confortavelmente com os filhos que pretendíamos ter. Após duas semanas, já havíamos nos mudado. Nos primeiros dias, durante a noite, quando estava deitado em minha cama, sentia algo me tocando, via vultos no escuro e ouvia barulhos de passos subindo as escadas que pareciam estar cada vez mais próximos de mim. Em uma manhã bem cedo, enquanto minha mulher dormia, decidi revisitar a casa à procura de algo que explicasse esses estranhos acontecimentos. Sem hesitar, desci ao porão. A cada passo, a escada rangia lentamente, eu olhava para as paredes e via cada vez mais teias de aranha. O cheiro de bolor era quase insuportável, mas era adequado ao ambiente. Um lugar velho, apodrecido e muito sombrio. A impressão que eu

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tinha era de estar em um pesadelo. Dei uma breve olhada ao meu redor e acabei me dando conta de que havia uma porta es-condida debaixo da escada. Como não era um homem covarde, fui andando até a porta, girei a maçaneta e me vi em um quarto abafado. Ratos e baratas corriam de um lado para o outro e uma mescla de cheiro de sujeira e mofo chegava às minhas narinas. Manchas de sangue no chão formavam um caminho até um armário que, à primeira vista, não parecia esconder algo. Notei que as manchas continuavam até mesmo debaixo do armário, arrastei-o com a esperança de encontrar algo sob ele, mas na verdade o que eu encontrei foi um quadro todo empoeirado na parede. Resolvi tirá-lo do lugar para vê-lo melhor, mas, quando o fiz, fiquei atônito por causa de outra coisa, havia um buraco na parede onde se encontrava uma cabeça humana intacta, porém sem corpo. Quando de repente a porta bateu, o quadro que estava em minhas mãos caiu no chão e eu saí correndo dali. Quando me vi em meu quarto, estava ofegante e meu coração batia muito forte. Com o barulho dos meus passos subindo as escadas rapidamente, minha mulher acordou. Quis mostrar-lhe o que eu acabara de encontrar, mas, quando descemos ao porão e entramos no quarto abafado, o quadro ainda estava no chão, porém a cabeça não estava mais no buraco. Após algumas semanas, já havia superado o temor, pois acreditava que tudo havia sido um devaneio, e, como já disse, não acreditava em acontecimentos sobrenaturais. No entanto, em uma noite, deitado em minha cama, avistei um vulto no escuro, porém continuava a não querer acreditar que tudo aquilo fosse real. Tentava dormir, mas comecei a sentir dedos me tocando. Olhei para minha mulher achando que ela estava querendo me dizer algo, até perce-ber que ela permanecia imóvel, dormia profundamente, e se não era ela, quem poderia ser? Acendi a luz e avistei um corpo sem cabeça segurando uma bengala que me pareceu famil-iar, tive a impressão de já tê-la visto antes, mas não me lembrava onde exatamente. Apavora-do, acordei minha esposa e perguntei se ela também estava vendo o corpo ao meu lado e ela disse que não, porém eu continuava enxergando-o. Ela pareceu não se importar, virou para o outro lado e voltou a dormir, deve ter pensado que eu estava enlouquecendo. Procurei o cor-po novamente, mas dessa vez, não o vi. Pronto! Foi ali que comecei a ficar fora de mim, não era mais aquele homem corajoso, que não temia nada, tornei-me um fracote.

Passei a noite em claro, pensando em tudo que já havia me acontecido naquela casa. Con-tinuava olhando para o lado para ver se aquela figura monstruosa aparecia novamente, virava de um lado para o outro, mas tudo aquilo não saía da minha mente. Queria saber se a cabeça havia retornado ao porão, não aguentava mais ficar ali parado. Sem pensar muito no que estava fazendo, desci as escadas e entrei no quartinho. A cabeça se encontrava novamente no buraco. Em meio ao desespero, lembrei-me de que, quando a tinha visto pela primeira vez, tinha me esquecido de observar a imagem que o quadro escondia sob a poeira. Com as mãos trêmulas, ergui o quadro do chão e limpei o retrato com as mangas da camisa. A imagem que vi me deixou pasmo, era do antigo dono da casa, aquele velho estranho e carrancudo, que segurava uma bengala, a mesma que eu havia visto naquele corpo em meu quarto. Olhei mais atentamente para a cabeça e percebi que ela assemelhava-se à do velho. Agora tudo se encaixava, sem dúvida havia um fantasma me perturbando. Supus que aquele maldito velho estava morto e que tentava tornar a minha vida um inferno, entretanto, não entendia o moti-vo. Apenas decidi que não deixaria com que isso acontecesse.

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Fui correndo ao meu quarto, peguei algumas peças de roupa e comecei a guardá-las numa mala. As roupas caíam no chão, o zíper emperrava, parecia que algo não queria que eu deix-asse aquele lugar. Finalmente, as malas estavam prontas. Sacudi minha mulher violentamente e ela acordou confusa, sem entender o que estava acontecendo. Puxei-a pelo braço e a arrastei pela escada, gritando que tínhamos de sair dali. Já estávamos na porta da casa quando ouvi o som de passos, como se alguém estivesse de-scendo as escadas lentamente, degrau após degrau. Tentei tirar minha atenção daquilo para me concentrar em achar a chave da porta. Encontrei-a em um dos bolsos da calça com meus dedos nervosos e a levei até a fechadura, mas não conseguia encaixá-la no buraco e acabei deixando-a cair. Os passos pareciam estar cada vez mais próximos, até que, finalmente, abri a porta. Com pressa, fui até o carro, pus minha mulher no banco da frente e a mala no por-ta-malas. Sentei no banco do motorista e bati a porta bruscamente. Notei que aqueles passos misteriosos já eram inaudíveis. Quando tentei dar a partida no carro, ele não pegou e senti o perigo se aproximando. Quase sem tempo para respirar, tentava dar a partida a todo o custo. Até que, por sorte, o automóvel ligou e começou a andar, e pude distanciar-me da casa. Imaginava ter me livrado finalmente do demônio que tanto me assombrava. Contudo, quando olhei para o retrovisor, percebi que estava enganado. No banco de trás havia um objeto que me era familiar. Uma bengala, para ser mais exato...

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O SEGREDO DO ESPECTROAlice Barion, Eduardo Badaoui e Sofia Weber

A duquesa chorava o máximo que podia, ao lado do corpo sem vida de seu marido, Charles. Havia rumores de que sua misteriosa morte fora causada por ação de um veneno, mas nin-guém sabia ao certo o que realmente acontecera. Levantando-se lentamente, a jovem se deparou com sua dama de companhia - a doce e preocupada Annie. Charles gostava muito dela. — Minha senhoria, está pronta para o funeral de Charles? — perguntou, numa voz neutra — estão lhe esperando — Estou — balbuciou, trêmula. A moça seguiu com passos curtos até o cemitério, logo em frente à densa floresta, sempre coberta de névoa. Assim que o caixão desceu ao subterrâneo, Elizabeth sentiu vibrações nega-tivas e um cubo de gelo pareceu instalar-se na sua espinha. Tentou ignorar a terrível sensação e retornou aos seus aposentos. Na mesma tarde, a bela ruiva de olhos azuis caminhava em seu florido jardim tentando apagar as memórias de sua vida com Charles... por mais que desejasse para sempre manter as melhores lembranças de sua vida, decidiu que esquecer seria o melhor a fazer. De repente, sentiu novamente a espinha gelar. Olhou para seus lados e não notou nada fora do comum.“É apenas uma brisa”, pensou, levantando-se, “nada mais”. Já longe do jardim de tulipas, o cemitério estava numa temperatura anormal. Seguiu-se uma série de fortes e geladas ventanias, enquanto a névoa parecia acumular-se em um único lugar. Aos poucos, era possível distinguir uma imagem distorcida na nuvem, que, aos poucos, as-sumiu uma forma assustadoramente humana, um homem um tanto curvado, cabelos grisal-hos e cacheados. Como os de Charles.

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Já no escuro, à noite, Elizabeth sentiu algo desconhecido. Uma sensação péssima, que lhe dava a impressão de que um par de olhos espionava seu sono. Olhou ao seu redor, não encon-trando algo incomum, fora a grande concentração de poeira nos antigos móveis do castelo. Esse processo se repetia todas as noite e o resultado era o mesmo: nada. Porque, então, sentia tantos calafrios na espinha? Ao início da semana seguinte, o frio era tão intenso que Elizabeth mal pôde sair do castelo. A névoa era tão densa que não era possível enxergar um metro à frente. Ao abrir a janela pela manhã, a moça sentiu um vento forte o suficiente para fazer com que os papéis no quarto e a saia que usava esvoaçassem. —Não abra a janela, senhora— advertiu Harry, o mordomo, talvez o único dos funcionários de que soubesse o nome — o frio está extremo este ano. Mal começou o outono e já estamos neste clima horrendo! — Não — afirmou a duquesa— Não pode ser somente o inverno. Nunca esteve tão frio! É algo mais, tenho certeza. Vá acender a lareira! — O clima muda, Elizabeth. Hoje em dia o cl... — Mandei você fazer algo! E não ouse me chamar pelo meu nome! Saia. Agora! — Gritou a duquesa, estendendo seu braço direito em direção a porta. O mordomo, cabisbaixo, deixou o cômodo. — E avise as cozinheiras para apressarem a comida! — completou, furiosa. —Certamente, madameElizabeth observou o mordomo enquanto caminhava em passos longos. Harry, no auge de seus 17 anos, fora contratado por Charles para servir de mordomo no castelo . Aquele dia passou muito lentamente, assim como todos os outros desde a morte do nobre. A parca luz da lua invadia o quarto, reduzindo nas paredes brancas. Elizabeth se remexia na cama, que rangia, mais alto do que nunca, o que apenas dificultava suas vãs tentativas de dormir. Quando finalmente adormeceu, pesadelos invadiram seu sono. Acordou em desespero, su-ando frio e ofegante. Havia sonhado com seu marido, interpretando no piano sua música fa-vorita. Aclamou-se ao notar que estava em seu quarto, ouvindo o som leve e aconchegante da garoa fina. Mas a felicidade não durou por muito tempo. A janela se abriu durante seu sono. Ao levantar-se para fechá-la, arrepiou-se, devido ao contato de sua pele fina com o solo frio. Assim que voltou para sua cama, ouviu um som familiar, a música de seu sonho. Como era possível? Somente Charles conhecia a partitura! Alguém estava tocando, talvez havia encon-trado a partitura. Decidiu, em um ato de coragem, descer à sala de música para investigar. Inquieta, calçou as suas pantufas e desceu as escadas em espiral que davam acesso aos seus aposentos. Na escuridão que marcava a noite,a escada tinha mínima iluminação. Apenas a luz fraca das lamparinas assegurava que Elizabeth não tropeçasse. O frio tomou conta da duquesa antes que chegasse à sala de música. O som tornava-se mais claro e alto a cada passo que dava. A música soava com tanta perfeição que Charles em pes-soa parecia tocá-la. A duquesa, rapidamente, livrou-se do pensamento e se libertou da prisão gerada pelo frio. “É apenas este inverno. Harry estava certo”, pensava.

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Finalmente, ao chegar à sala de música, abriu cautelosamente a porta. Assim que entrou, a música cessou. Não havia ninguém. O único movimento presente era o das leves chamas das velas dos candelabros ao lado do piano. Utilizando a luz das velas, analisou o piano. Nada. Nenhuma marca que indicasse a presença de alguém. Decidiu acender uma vela para si própria. Enquanto tateava as paredes, pensou em quem havia tocado a música. No entanto, nunca foi capaz de concluir seu pensamento. Assim que a sala se iluminou em sua frente, a música retornou, mas não era a calma e doce melodia de antes. Agora, as notas esvoaçavam e batiam contra as paredes, criando estilhaços de uma violenta serenata. Como se todo o ódio de alguém estivesse expresso na melodia. Elizabeth congelou com o pânico da cena. Quando viu as teclas brancas de marfim se moverem sozinhas e as velas terem suas chamas transfor-madas do laranja para o azul, a jovem sabia que era demais. Correndo sobre as escadas, as notas da música a perseguiam. Ao entrar em seu quarto, trancou a porta. Ninguém a tiraria de seu refúgio. De manhã, os raios do sol invadiram o quarto. A duquesa, já acordada, imaginava o que fazer. Finalmente, decidiu sair. Demorou quase dez minutos para descer as escadas. Ao abrir a porta da sala de música, não havia indícios do incidente na noite anterior, o que aterrorizou e aliviou a duquesa ao mesmo tempo. Assim que fechou a porta, ouviu um estilhaço. Sem pen-sar duas vezes, saiu correndo para o salão principal. Ao chegar, viu tudo em perfeita ordem. Entretanto, continuou correndo, como se uma força invisível a empurrasse. — Senhora, pare! Por favor, Eliza, você irá se ferir— advertiu Annie, a dama de companhia.Um segundo estilhaço. Com ele, o candelabro central despencou, interceptando o caminho da duquesa, quase esmagando seu crânio. —Eliza! Ah, meu Deus, a senhora está bem! Não tem noção de como me assustei, com esse candelabro caindo... vou chamar os empregados! Como ele pôde simplesmente despencar assim? Que ridículo! Charles odiaria isso, certo Elizabeth? —perguntou. Não houve resposta — Senhora? Está bem? Esse acidente a assustou, certo? Vou levá-la ao seu quarto, pode descansar mais, o café ainda não está pronto e...Elizabeth estava paralisada. Nenhuma mente fragilizada pela morte de um amado poderia aguentar tamanho tormento. Logo, perdeu o controle sobre si mesma. Com um golpe brusco, afastou Annie com os braços, e correu para a floresta, o local proibido. Lá estaria a sós. Em sua mente, seria um local seguro. Antes de sair pelos portões, Annie, que já havia se recuperado, alcançou-a. — Madame! Não deve sair e sabe disso! —Cale a sua boca, Annie! — berrou a duquesa, surpreendendo a dama de companhia a ponto de ela arregalar os olhos castanhos e ficar boquiaberta. —Você não manda em mim! Não cuide de mim! Não é sua função. —Minha senhora — disse calmamente — É essa sim minha função!Elizabeth soltou um urro de desespero e agarrou as próprias madeixas ruivas. Perdera com-pletamente a aparência adorável e inocente que tinha. Estava com a aparência de uma besta, animalesca e insana. Correu para longe, em direção a floresta —Não, na floresta— ouviu alguém gritar — é perigoso demais! Elizabeth se pôs a ignorar os gritos. No momento de maior delírio de sua vida, virou-se,

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observando o castelo. Lá estava Annie, disposta a alcançá-la. Annie era veloz, e logo alcançou Eliza. Nesse ponto da corrida, ela já estava próxima à en-trada da floresta. — Pare, Eliza! — gritou a dama, em desespero, segurando os ombros da jovem— Você só precisa dormir um pouco. — Já disse para ficar calada— berrou de volta— Eu faço o que quero, e você me obedece! —Mas senhora, devo protegê-la! A dama deu um grito de dor quando uma pedra atingiu sua têmpora. Com o último sus-piro de Annie, uma louca gargalhada saltou da boca da insana duquesa.Correu para a floresta, em uma seção onde tudo era mais escuro e a névoa cobria todo o am-biente. Depois disso, nada mais se soube da duquesa. Foi encontrada somente uma pedra, de tamanho grande, onde havia o desenho de uma caveira e dois ossos cruzados. O símbolo do veneno. O espírito de Charles, satisfeito, pronunciou uma frase ao corpo da duquesa: —Já que queria me matar, poderia ter escondido aquele veneno em um lugar melhor do que no seu armário. Mas foi sim, algo ótimo para se ver. Quem ri por último ri melhor, ElizabethMal ele soube o verdadeiro assassino. Harry, o mordomo.

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OS RUídos de culpafernanda s.

“Nada!”, exclamou um paramédico enquanto pressionava o dedo contra o pescoço da víti-ma. “Alguém sabe da identidade desse homem?”, perguntou o oficial Garret. “Esse é Arthur”, replicou outro oficial, “Arthur Radley, ele frequentava a mesma biblioteca que eu.” Ouviu-se o farfalhar das folhas à distância. Sem contar a luz que saía pela janela da velha casa, na qual a vítima morava, que piscava constantemente e iluminava o gramado destruído devido à tempestade, com árvores sem folhas, grama arrancada e galhos esparramados. A área estava um breu. O corpo de Arthur Radley acabava de ser encontrado no assoalho de sua própria casa. “Olhem para isso,” um agudo piar de coruja preencheu o cômodo. Ele se aproximou do cor-po pálido e frio, seu cabelo era branco e curto. Seu nariz era levemente arrebitado e ele era tão magro que dava a impressão que seria levado pela próxima brisa. “É uma carta.”

Sábado, dia 29 de dezembro de 1904, A agonia pairava em meus ouvidos. Aqueles mesmos sons que me tiravam o sono diariamente continuavam ecoando em minha mente. Como sempre, eles desapareceram somente quando o simples soar de uma batida leve na porta de entrado foi ouvido pelos meus sentidos, era o homem que me entregava o jornal todas as manhãs, Steve Rogers. Ao abrir a porta, ofereci-lhe uma xícara de chá, a qual ele teve de recusar já que tinha a obrigação de entregar os jornais para as demais casas da rua. Porém, ele prometeu-me passar para me fazer uma visita ao pôr-do-sol. Aproveitando o momento a sós, tomei minha decisão e atravessei o vasto gramado de minha

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propriedade até a casa vizinha. Bati à porta e tenho que dizer que, ao abri-la, meu vizinho parecia espantado.

Depois de cumprimentá-lo, perguntei se ele escutava certos barulhos assustadores à noite que só paravam quando Steve batia à porta, escutando um não como resposta e recebendo um olhar que demonstrou desentendimento. Além disso, ele me contou que ninguém batia em sua porta quando o jornal era entregue, o que, dessa vez, fez um olhar de dúvida surgir em meu rosto. Passei o restante do dia lendo o jornal e andando em volta de meu gramado, que estava dec-orado por cores vivas e plantas frescas, a grama, por exemplo, tinha a tonalidade verde mais bo-nita que já vi. Odiava esse sentimento de solidão que vinha sentindo há algum tempo, sentia-me inseguro e sem qualquer fonte de proteção, portanto, estava mais do que ansioso pela chegada de Steve, a única pessoa a qual eu podia considerar um amigo. Logo, o sol fraco indicou o fim da tarde e eu estava sentado em meu sofá, encarando-o. Tomei mais um gole de meu chá levemente açucarado.

Tivemos uma conversa interessante. Perguntei-lhe algo que estava preso em minha cabeça desde que falara com meu vizinho. Perguntei se ele batia à porta de todas as casas enquanto entregava jornal. Não. E sua explicação foi que os outros moradores não o veriam como eu o via. Nessa hora, não dei muita atenção ao que ele disse, mas será que deveria ter dado? Será que ele sabia de algo que me ajudaria a descobrir o que vinha acontecendo comigo? Após essa conversa, preparei meu jantar, mal sabia que seria minha última refeição. Mesmo sendo verão, a noite estava consideravelmente fria. A brisa batia lentamente contra as janelas de minha casa. A onda de sono que senti foi o suficiente para me fazer levantar e seguir em direção a meu quarto. ‘Blick’, ‘Blick’ era o barulho das gotas que passavam por uma falha no teto e, finalmente, che-gavam ao chão. Elas e o “tic tac” do relógio eram os únicos ruídos que chegavam a meu ouvido. A cada passo que dava, o assoalho rangia embaixo de meus pés. As nuvens escuras do lado de fora da janela indicavam tempestade. O vendo soprava forte, balançado todas as árvores ao redor da propriedade.

Quando alcancei meu quarto, troquei de roupa e entrei embaixo do cobertor. ‘CRUCH!’ Mas é claro! Mal havia me deitado e os ruídos que tanto me apavoravam começaram novamente! Fechei os olhos e os mantive fechados, por mais acordado que estivesse durante horas. Era ape-nas impressão minha ou alguém realmente tinha girado uma chave na fechadura de casa? En-trou. Os passos foram ficando cada vez mais próximos, mais próximos, mais próximos... Puxei o cobertor até cobrir minha boca. Os passos cessaram ao alcançar meu quarto. Dei uma rápida olhada ao redor, não havia nada com que eu pudesse me defender. A maçaneta começou a virar, o que me fez sentar repentinamente, imaginei que esse era meu fim, minha respiração ficou mais rápida, mas... nada aconteceu! Aquela porta nunca se abriu e os passos apareceram novamente. Soltei um suspiro de alívio, mas meu sangue ainda corria pelas minhas veias em alta velocidade.

Quando os passos se distanciaram, uma onda de curiosidade percorreu meu corpo, não pode-ria deixar o medo me vencer. Levantei-me e segui a direção que as pegadas daquela alma me guiaram. Não havia dado nem cinco passos e posso jurar que o rádio foi ligado, mas, com cer-teza, não tinha sido por mim. Com o susto, dei um pulo, o que fez com que o assoalho rangesse alto. O invasor, provavelmente, ouviria-me agora, isso é, se ainda não tivesse me ouvido antes.

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Continuei meu caminho até a sala de estar. Respirei fundo sem tirar os olhos da maçaneta dourada e gasta. Abri a porta apenas o suficiente para minha cabeça passar. Não sabia se recua-va ou avançava, mas não podia desistir agora. Passei minha cabeça pelo vão da porta e dei uma boa olhada na sala, então, entrei. Nada! Nem uma alma preenchia seu vazio. O rádio, completamente desligado. Porém, havia algo diferente, uma corrente de vento passou pela janela e veio diretamente em minha direção, deixando não só a mim, mas o cômodo incrivelmente frio. O que me fez abraçar a mim mes-mo. A cortina vermelha desbotada, já altamente danificada, dançava em um ritmo apressado. Tinha mais que certeza de que havia fechado a janela antes de me deitar. Atravessei a sala, fechei-a novamente e segui para meu quarto. No momento em que abandonei a sala, ouvi um rangido familiar. Ao me virar, deparei-me com a cadeira de balanço que ia para frente e para trás lentamente.

O medo me venceu e corri para o quarto, entrando o mais rápido possível embaixo do cober-tor. O que estava acontecendo? Já ouvira diversas vezes esses ruídos ao redor de minha proprie-dade, mas eles nunca estiveram tão fortes, tão próximos, tão assustadores... As próximas horas foram preenchidas por passos, rangidos, portas se abrindo e se fechando e sussurros que, mesmo sem conseguir identificar, causavam-me arrepios. Um alto e agudo grito perfurou meus tímpanos. O que aconteceu? Levantei-me brutamente. Meu coração ficou acelerado, minha respiração, pesada e rápida e um suor frio preenchia minha testa. O medo me petrificou, permaneci assim até o sol nascer. O sol? Por que os ruídos ainda não pararam? Por que Steve ainda não bateu à porta? Porque o jornal ainda não chegou? Bom, meu amigo deveria ter uma boa explicação para isso, mas meu único desejo no momento era que a campainha tocasse e os barulhos espantasse.

O entardecer, finalmente, chegou e não havia me movido nem um milímetro desde o poderoso grito. E os ruídos ainda não haviam cessado. De que adiantava eu permanecer imóvel? Se esses ruídos não iriam me deixar tão cedo, não deveria permanecer escondido, afinal, seja o que for, já sabia que eu estava ali. Levantei-me, preparei uma xicara de café e decidi dar uma volta pelo meu vasto gramado, para limpar minha mente. Ao abrir a porta, levei um susto. O gramado estava destruído, as árvores, sem folhas e o vento soprava tão fortemente que quase me desequilibrei. Mas o pior era o corpo que estava jogado à frente da porta. Era recente, claro que era. Provavelmente, era ele que havia gritado, mas eu havia sido medroso demais para levantar e ajudá-lo. Agora, o homem jovem de cabelos claros e bagunçados estava morto em minha frente. Frio, pálido... E era culpa minha. Culpa minha que Steve estivesse morto. Por que logo ele? Justamente a única pessoa que me entendia e me ouvia, a única pessoa que não me deixava completamente sozinho, a única pessoa que fazia a minha vida permanecer o mais normal possível devido às circunstâncias. Mas a culpa era minha, por que havia sido tão medroso? Se tivesse me levantado e procurado pelo grito, provavelmente poderia tê-lo salvo.

Eu acabei com a vida de um homem inocente, como pudera ser tão individualista? Por isso escrevi esta carta que espero que alguém considere lê-la, pois não gostaria de partir sem uma explicação. Eu cravei essa faca em meu peito, pois não aguentaria viver a agonia tanto dos barulhos que, provavelmente, nunca cessariam, como de culpa. Então, darei fim a isso e, se

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forem culpar alguém por ambas as mortes, esse alguém serei apenas eu. Arthur Radley

O silêncio preenchia a sala naquele momento. Nenhum homem sabia ao certo o que dizer. “O que devemos fazer agora?”, perguntou um dos paramédicos. “Vamos levá-lo e, depois, voltamos para investigar o caso,” disse o oficial Garret. “Ele mencionou um tal de Steve, quem é esse homem?” Outro oficial indagou curioso. “O que aconteceu com seu corpo?” “Não há registros de ninguém com esse nome em toda Inglaterra, Steve Rogers.” Garret afir-mou: “E não faço a menor ideia do que tenha acontecido com o corpo, mas é melhor irmos agora.” Todos seguiram em direção à porta. Enquanto o último homem passava pela porta, um grito cortou o silêncio. “O que foi isso?”

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