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Colocando a ciência para trabalhar * David Miller Tradução de Júlio Fontana RESUMO O propósito deste artigo é esclarecer a relação entre as ciências teóricas por um lado, e a tecnologia e a engenharia por outro. A minha tese é a de que essa relação é bastante assimétrica e, que, a influência da tecnologia sobre a ciência é geralmente positiva, enquanto a influência da ciência sobre a tecnologia é inteiramente negativa. Não se quer diminuir a importância do serviço prestado pela ciência teórica à tecnologia, mas situá-lo corretamente. Isso nos permite, também, identificar em que sentido a tecnologia se constitui numa aplicação da ciência e como ela compartilha plenamente de sua racionalidade. 0. Introdução O meu artigo trata precisamente da questão da relação entre a tecnologia e as ciências básicas, e a influência * Tit. orig.: “Putting science to work”.
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Colocando a ciência para trabalhar

Mar 29, 2023

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Page 1: Colocando a ciência para trabalhar

Colocando a ciência para trabalhar*

David Miller

Tradução de Júlio Fontana

RESUMO

O propósito deste artigo é esclarecer arelação entre as ciências teóricas por umlado, e a tecnologia e a engenharia poroutro. A minha tese é a de que essa relaçãoé bastante assimétrica e, que, a influênciada tecnologia sobre a ciência é geralmentepositiva, enquanto a influência da ciênciasobre a tecnologia é inteiramente negativa.Não se quer diminuir a importância doserviço prestado pela ciência teórica àtecnologia, mas situá-lo corretamente. Issonos permite, também, identificar em quesentido a tecnologia se constitui numaaplicação da ciência e como ela compartilhaplenamente de sua racionalidade.

0. Introdução

O meu artigo trata precisamente da questão da relação

entre a tecnologia e as ciências básicas, e a influência*Tit. orig.: “Putting science to work”.

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que elas exercem uma sobre a outra. A interação delas é

raramente bem descrita, e por trás dos usuais mal-

entendidos pode-se vislumbrar um erro filosófico muito

antigo e de grande notoriedade. Tenho a intenção, nesse

artigo, de lançar alguma luz sobre a questão, e resolvê-la

de uma modo agradável e interessante.

Todos, eu espero, podem provisoriamente concordar com a

caracterização da diferença entre ciência básica e

tecnologia dada pelo cientista político canadense Jack

Grove, que escreveu (1989, p. 46): “A tecnologia,

diferentemente da ciência, não trata das coisas como elas

são, mas das coisas como elas poderiam ser.” O filósofo

Henryk Skolimowski afirmou num sentido semelhante: “Na

ciência nós investigamos [...] a realidade; na tecnologia,

criamos uma realidade conforme nosso projeto.” O que essas

observações não explicam é como a ciência é utilizada na

tecnologia, ou como a tecnologia é usada na ciência.

Compreender o envolvimento da ciência com a tecnologia é o

nosso principal problema aqui.

A ciência e a tecnologia certamente tem muito em comum.

Ambas são dedicadas a solução de problemas, mas isso não

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nos diz muito. A atividade política também é dedicada a

solução de problemas, assim como, às vezes, o casamento. As

ciências básicas e suas aplicações práticas são

habitualmente confundidas pela opinião pública e pela

imprensa, a ponto da ciência receber tanto os elogios como

as censuras que pertencem, a rigor, à tecnologia. A relação

entre as duas, porém, não é simétrica. Embora eu mantenha

que, de fato, a influência das ciências básicas sobre a

tecnologia é quase universalmente mal compreendida, em

detrimento da tecnologia, não possuo nenhuma intenção de

menosprezar a importância prática da ciência. Espero que

aquilo que eu virei a expor lance uma luz satisfatória (e

mais verdadeira) sobre ambas as atividades, a a ciência

básica e as ciências aplicadas.

1. As ciências básicas e as ciências aplicadas

Devo dizer que eu tenho usado os termos “ciências

básicas” e “ciências aplicadas” com muito receio. Juntos,

eles sugerem que a ciência precede lógica e temporalmente a

tecnologia, e que o engenheiro não faz nada mais do que

aplicar a ciência básica, assim como, por exemplo, eu

emprego um saca-rolhas para abrir uma garrafa de vinho, ou

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utilizo um processador de textos para formatar o que

digitei no teclado. Se fosse tão simples assim! Até eu

poderia ser um engenheiro sob essas condições. Mas, como

vocês sabem, e eu realmente não preciso dizê-lo, a situação

é muito diferente. Eu prefiro a expressão “ciência teórica”

e “ciência explicativa” ou, quando não há perigo de

confusão, simplesmente “ciência”. Evitarei, de agora em

diante, a expressão “ciência aplicada”. Quanto aos termos

“tecnologia” e “engenharia”, distinguirei mais adiante o

desenvolvimento de artefatos que são próprios da produção

em massa, que chamarei de “tecnologia”, e o empreendimento

particular de construção de projetos, que chamarei de

“engenharia”. Por enquanto, os dois termos podem ser

comprendidos intercambiavelmente.

Antes de tudo, apresentarei quatro considerações que

põem em questão a precedência lógica e temporal da ciência

em relação à tecnologia. A primeira consideração é ingênua

e zoológica, a segunda é informal e cotidiana, a terceira é

extraída da história da ciência. A consideração final, que

é a mais eloquente, consiste numa inspeção, simples mas

reveladora, da forma lógica das teorias científicas. As

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duas primeiras considerações (§ 1.0, § 1.1) sugerem que o

conhecimento científico não é necessário para a tecnologia;

as outras duas (§ 1.3, § 2) sugerem que não é suficiente.

1.0. Os passáros, castores e toupeiras

Os passáros constroem seus ninhos para abrigar seus ovos

e suas crias. Os castores constroem represas para controlar

e redirecionar os riachos. As toupeiras, tatus, e outros

animais, cavam sistemas intricados de túneis subterrâneos –

isto é, eles também tentam adaptar o mundo as suas

necessidades. Essas criaturas são engenheiros, mas não são

cientistas.

Podemos admitir que “não há animais que usam fogo, nem há

animais que construam regularmente novas ferramentas,

melhorem o design dos antigos utensílios, utilizem

utensílios para fazer outros utensílios, ou passem o

conhecimento técnico acumulado aos seus descendentes.”

[Basalla, 1988 (2001), p. 13 (14)] Devemos resistir à

conclusão (enunciada por Basalla mas não sancionada por ele

explicitamente), de que “a tecnologia não é necessária para

se satisfazer as necessidades dos animais [do homem]” (loc.

cit).

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1.1. A culinária, a música e o cabeleireiro

Um ramo da tecnologia que é familiar a todos é a

culinária, que é uma atividade que não é essencialmente

diferente de outras intervenções humanas no meio ambiente.

Como afirmou Grove, a culinária “não trata das coisas como

eles são, mas das coisas como poderiam ser”, embora,

infelizmente, ela frequentemente falhe em alcançar a

aspiração de Skolimowski de criar “uma realidade conforme

nosso projeto”. A culinária pode certamente ser descrita

como química aplicada, mas essa descrição manifesta

exatamente o sentido do verbo “aplicar” que tenho objetado.

Poucos cozinheiros de sucesso conhecem os elementos da

química (ou da física de materiais, ou da anatomia). O

mesmo, pode-se dizer sobre a agricultura, apicultura,

pecuária, metalurgia, e outros ramos da tecnologia que

surgiram numa época anterior ao alvorecer da ciência

teórica.

Outro exemplo, mas, um pouco diferente, é a música. A

música talvez seja melhor descrita como uma técnica em vez

de uma tecnologia, porém, ela revela um contraste

semelhante entre teoria e prática. A ciência que é

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relevante para a música é em parte uma teoria matemática

(conhecida pelos gregos antigos), e em parte uma coleção de

teorias físicas (das ondas, da elasticidade, do som e da

acústica). O que é verdade, nesse caso, é que algum

conhecimento da teoria musical é geralmente uma vantagem

para um músico, se intérprete ou compositor. A música

folclórica mostra, no entanto, que esse conhecimento não é

essencial. Não devemos nos esquecer que, a poucos meses de

sua morte prematura aos 31 anos de idade, Schubert

inscreveu-se num curso de contraponto (Gombrich 1982/1996,

p. 563).

O que esses exemplos mostram é que nós não podemos

caracterizar os casos corriqueiros de tecnologia como sendo

aplicações do conhecimento científico. Os animais não

possuem conhecimento científico, mas podemos supor que eles

possuam uma competência inconsciente que se desenvolveu

evolutivamente. Mesmo que haja um conhecimento teórico que

afete o seu trabalho prático, é improvável que o cozinheiro

esteja ciente dele, implícita ou explicitamente, e,

certamente não o aplica direta e automaticamente. No caso

do cozinheiro, em contraste com o caso do músico, não é

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evidente que seja proveitoso aprender o conhecimento

científico que explique suas façanhas, como, por exemplo,

uma assado bem feito. Um antigo colega, um engenheiro que é

atualmente membro da Sociedade Real de Londres [Fellow of the

Royal Society of London, FRS], relatou-me que na sua juventude

teve que ministrar um curso intitulado “A química para

cabeleireiras”. Às vezes, me pergunto, se as suas alunas

tornaram-se melhores cabeleireiras por entenderem melhor os

efeitos das tinturas e dos peróxidos utilizados no salão de

beleza. Embora os diligentes estudantes fossem capazes de

aplicar substâncias químicas com algum conhecimento

científico, não se pode dizer que, assim procedendo,

aplicavam as teorias científicas da química.

1.2. Kelvin, Rayleigh e Rutherford

Há vários exemplos na historia da ciência de cientistas

ilustres que tinham ideias inteiramente erradas quanto às

potencialidades práticas inerentes às suas teorias. Lord

Kelvin [William Thomson] e Lorde Rayleigh, que fizeram

contribuições independentes e significativas à ciência da

hidrodinâmica, não acreditavam na possibilidade de voo de

máquinas mais pesadas que o ar, ou seja, na viabilidade dos

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aeroplanos (Meuring Thomas 2001, p. 105). Em 1902,

juntamente com o seu colega Frederick Soddy, Lorde

Rutherford usou a teoria da desintegração espontânea do

átomo para explicar o misterioso fenômeno da

radioatividade, e uma década depois, eles propuseram a

teoria nuclear do átomo. Em 1933, não obstante, Rutherford

escreveu (loc. cit.): “Alguém que espera uma fonte de poder

da transformação dos [núcleos dos] átomos está falando

disparates”. A propósito dessa afirmação de Rutherford, é

interessante ressaltar que ele não possuía uma reputação

especial pelo pensamento abstrato, divorciado da realidade

material. Pelo contrário, era um homem profundamente

prático, de quem disse Niels Bohr uma vez: “Rutherford não

é um homem inteligente; ele é um grande homem”. [Veja

Crowther e Whiddington 1947, p. 22]

Não obstante sua compreensão intuitiva de como funciona o

mundo, esse grande homem não foi capaz de imaginar uma

técnica pela qual a energia dentro do átomo pudesse ser

liberada. Fala-se o mesmo de Max Planck, Albert Einstein e

Niels Bohr. Um exemplo menos extremo é encontrado nas

contribuições individuais do engenheiro britânico Thomas

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Newcomen e do cientista francês Denis Papin para o

desenvolvimento do motor a vapor. Segundo Basalla,

Newcomen não tinha nem a educação nem ainclinação para levar por diante um estudodesinteressado do vácuo, e Papin não tinhanem o interesse, nem o conhecimento técnicoe nem a imaginação para transformar a suademonstração de laboratório num motorprático. [1988 (2001), pp. 95f. (100)]

Tais exemplos certamente deixam em dúvida o clichê de que

a ciência fornece inspiração para a tecnologia. Como afirma

Basalla,

Seria um erro concluir que Papin, aodescobrir o princípio do motor atmosférico,deu mostras de maior originalidade e gêniodo que Newcomen [...]. Nem é corretopressupor que Newcomen se limitou a pôr emprática a teoria, que fez o óbvio ao seguiro trabalho de Papin. (loc. cit.)

Resumidamente [op. cit., pp. 91f. (p. 96)]: “Os

proponentes da pesquisa científica têm exagerado a

importância da ciência, afirmando que ela é a raiz de

praticamente todas as principais todas as principais

mudanças tecnológicas.”

1.3. Resumo

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Existem muitos outros exemplos que lançam dúvida sobre a

opinião comum de que “a invenção [consiste] ...

exclusivamente na aplicação do conhecimento científico à

tecnologia”, como Hatfield escreve incredulamente no seu

livro muito informativo O Inventor e seu mundo (1948, p. 59).

Ele continua:

Não existe caso mais instrutivo nahistória da tecnologia que odesenvolvimento dos aeroplanos. É muitoduvidoso se Lilienthal [...] já sonhava coma possibilidade de voar por horas a fio semmotores. Este desenvolvimento não era demaneira alguma o resultado da aplicação deprincípios científicos ... .

Na mesma página, ele menciona o caso dos barcos Vikings,

cujas “linhas [...] quase não podem ser aperfeiçoadas hoje”

e o do motor a vapor. Nesses casos, foi a ausência de uma

teoria científica que forçou o inventor a proceder sem

ajuda teórica, mas há um exemplo mais vigoroso de

independência da ciência. Escrevendo em 1948, Hatfield

convidou seus leitores a considerarem “os avanços na

utilização de catalisadores que têm ocorrido nos últimos

anos. Existem muitos compêndios sobre as teorias (dos

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catalisadores), mas alguém já encontrou o catalisador

correto por meio dela?” (op. cit., p. 146)

Além disso, a sugestão de que a ciência não tem

relevância para a tecnologia não é crível. Não me atrevo a

desafiar de maneira tão radical suas experiências como

alunos de engenharia. Para iluminar mais este tema, é

preciso investigar brevemente alguns dos aspectos lógicos

do problema.

2. As leis e as teorias da ciência

Desde o tempo de Aristóteles se sabe que o nosso

conhecimento científico consiste não apenas de uma grande

coleção de fatos singulares, mas também de generalizações

empíricas e leis universais. Essas generalizações ou leis

são universais por afirmarem algo sobre todos os elementos

de uma determinada classe. Um exemplo simples é a lei

putativa ‘Todos os asnos são teimosos’. Para os nossos

propósitos hoje, não importa se escolhermos exemplos que

não são leis genuínas; se há asnos serviçais, então temos

de encontrar outro exemplo. Evidentemente, nem o princípio

da gravitação de Newton é universalmente verdadeiro, mas é

conveniente considerá-lo como uma lei. O que importa para

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nós é que a ciência aspira a formular leis universais;

inicialmente as leis empíricas (como ‘Todos os asnos são

teimosos’), que lidam com as coisas cotidianas, e

posteriormente, as leis teóricas (como a lei da gravitação

e a mecânica quântica) que lidam com coisas fora da nossa

experiência ordinária. Uma lei típica da física moderna

assevera algumas relações funcionais entre quantidades

matemáticas. Deve-se notar que, em muitos campos da física

e da biologia (a genética, por exemplo) parece que o

objetivo determinado é muito ambicioso e inacessível;

nestes campos intencionamos mais propriamente leis

estatísticas. Esse ponto, porém, não é importante. O mal-

entendido sobre o papel das leis e das teorias científicas

na tecnologia não se dissolveria se essas leis fossem

assertivas estatísticas.

2.0. Uma amostra da lógica formal

Para escrever uma sentença universal na lógica formal

utilizamos vários caracteres familiares da matemática e

dois símbolos técnicos especiais: um símbolo que

representa a expressão condicional ‘se ... então’, e um

símbolo que representa o quantificador universal

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‘todos’. Por meio destes símbolos podemos escrever a lei

‘Todos os asnos são teimosos’, como x (Ax Cx), onde a

letra ‘x’ é chamada de variável, que percorre um domínio de

valores (aqui não estabelecido explicitamente). Qualquer

letra pode servir essa função, assim como podemos

substituir ‘j’ na expressão ∑j=0

100yi e ‘y’ na expressão

∫0

f(y)dy por outras letras. Alerto que a sentença ‘Todos os

asnos são teimosos’, na linguagem natural afirma algo

categórico ou universal sobre todos os asnos (a saber, que

eles são teimosos) é representando no formalismo pela

sentença que afirma algo condicional sobre todos os

elementos do domínio (a saber, que eles são asnos se são

teimosos). Num juízo similar, podemos dizer a sentença

‘Todos os asnos são teimosos’ como ‘Algo é asno é

serviçal’, e escrevê-lo como x (Ax Cx). O símbolo é

chamado de quantificador existencial, e , com o qual

podemos representar o oposto não-C de uma expressão C, é

chamado de negação.

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As teorias científicas podem ser formuladas como

condicionais universais, embora a maioria são condicionais

de forma mais complexa. A lei da gravitação de Newton, por

exemplo, pode ser expressa da seguinte forma: Se x e y são

dois corpos distintos, então a força f entre x e y é o

produto da constante G e as massas mx e my das massas de x e

y, dividido pelo quadrado da distância dxy entre x e y;

resumidamente, xy [B(x) B(y) x y) fxy = Gmxmy/dxz2

]. Uma formulação mais estreitamente correta dessa lei toma

a forma de um misto de quantificação: ‘ se x e y são

quaisquer dois corpos distintos, então há uma força f entre

x e y cujo valor é ... ; em símbolos, xy [B(x) B(y) x

y) f [F(f) fxy = Gmxmy/dxz2 ]. Outras formulações, mais

explícitas e mais exatas, são possíveis. A versão

simplificada é exata o bastante para nossos propósitos.

Na expressão formal a fórmula representada por

chama-se antecedente do condicional, e a fórmula

representada por é seu consequente. Os lógicos afirmam

que o antecedente é condição suficiente para o consequente, e o

consequente é uma condição necessária para o antecedente.

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2.1. Causa e efeito

O que é crucialmente importante para uma compreensão

precisa da função que as leis científicas desempenham na

tecnologia é que, na maioria das leis naturais que

conhecemos o antecedente lógico A é também um antecedente

temporal do consequente C, ou, mais genericamente, o

antecedente A fornece, em princípio, um meio através do

qual podemos obter o consequente C. Diz-se usualmente que o

antecedente de uma lei natural descreve uma causa do efeito

descrito por C. A ordem temporal certamente não é

reversível: se A é anterior a C, ou é uma causa de C, então

C não é anterior a A e não é uma causa de A. Podemos

assumir também que na maioria dos casos, a ordem

instrumental não seja igualmente reversível.

Um exemplo meramente ilustrativo é a lei ‘Sempre que um

automóvel A rodopia fora de controle numa ruma movimentada,

ocorre uma colisão C’. Soltar o freio de um carro sem

condutor por um tempo é suficiente para produzir uma

colisão num momento posterior. A é suficiente para C, e

pode causar C por meio de A. Um exemplo de uma lei y (Ay

Cy) cujo antecedente Ay e consequente Cy são

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simultâneos, é a lei psicozoológica formulada

anteriormente: ‘Todos os asnos são teimosos’. Talvez

forçamos um pouco o uso linguístico ao dizer que ser um

asno é uma causa para ser teimoso, mas, se a lei é

verdadeira, ela fornece um método eficaz, mesmo que não

eficiente, de se obter um animal teimoso; ou seja, de se

obter um asno. Em contrapartida, não há nada na lei que

sugira um método para se obter um asno. Não é suficiente

para se obter um ser que é teimoso; há outros seres

teimosos, por exemplo, todas as mulas e alguns animais

semelhantes. Como eu disse há pouco, a ordem instrumental

geralmente não é reversível.

3. Por que a ciência não nos diz o que devemos saber?

Uma lei ou teoria científica nos diz qual o efeito se

segue (lógica e cronologicamente) de uma determinada causa.

Na prática, porém, numa situação típica, o que conhecemos,

mais ou menos, é o efeito que queremos produzir, mas não

conhecemos nenhuma causa desse efeito. Caso tenhamos muita

sorte, conhecemos uma lei y (Ay Cy) que atribui o

efeito desejado C a uma causa anterior A que podemos

implementar. Nesta situação afortunada, o problema

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tecnológico já está resolvido, pelo menos em princípio. O

que é mais provável é que não conheçamos nenhuma lei

relevante. Ou conheçamos somente uma lei cujo antecedente

não podemos colocar em prática; em suma, conhecemos uma

causa do efeito desejado, mas não sabemos como ocasionar

essa causa. Apesar de o problema tecnológico ter certamente

mudado, dificilmente foi resolvido.

Dado um efeito C, como podemos descobrir uma lei y (Ay

Cy) cujo consequente é o mesmo C e cujo antecedente A é

realizável? É aqui, sugere a crença popular, que a ciência

pode nos ajudar.

Minha resposta é: Absolutamente não!

Não estou dizendo que a ciência nunca implica tais

generalizações empíricas como y (Ay Cy). Pelo

contrário, uma invenção bem sucedida não seria explicável

cientificamente se não existisse tal consequência lógica,

verdadeira ou aproximadamente verdadeira das teorias

científicas em nossa posse. O que eu afirmo é que a ciência

pode ajudar só em circunstâncias bastante incomuns. Admito,

também, que a ciência (como a natureza, a literatura, o

mito, e até mesmo os sonhos) pode fornecer sugestões

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frutíferas para a prática. Mas, são apenas sugestões, não

inferências: a teoria atômica sugere a presença de um vasto

estoque de energia não liberada, porém, não indicou como

podemos liberá-la. A situação do engenheiro é uma forma

aguda do problema de alguém que quer identificar uma

pintura, ou um poema, ou uma melodia. Se o título da peça é

conhecido, um catálogo ou uma enciclopédia expõe

rapidamente como parece ou como soa. Contudo, o catálogo é

de uso limitado se o que se conhece é como a pintura se

parece ou como a melodia soa, e o que você quer, é

identificar o seu título.

Neste momento já deve estar evidente que a ciência é

tecnologicamente estéril.

Embora as leis e teorias da ciência nos deem permissão

para inferir os efeitos das causas, o que precisamos é de

permissão para inferir as causas dos efeitos. Seja T nossa

teoria, e C o efeito desejado. Identificar um estado de

coisas realizável A tal que T implique y (Ay Cy) não é

uma tarefa da lógica dedutiva. Há somente duas

possibilidades a se seguir: a primeira é enumerar as

consequências lógicas de T até que se encontre um

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condicional cujo consequente é C, e a outra é tentar

conjeturar um antecedente apropriado A. A primeira

possibilidade, embora operacionalizável, não é uma tarefa

sensata, por razões bem conhecidas. Produziria uma

quantidade avassaladora de condicionais sem nenhum

interesse concebível; por exemplo, a teoria T implica um

condicional y (Ay Cy) quando T afirmar que nada possui

a propriedade A. Fazer uma conjetura, ou seja, ter uma

ideia brilhante, é a única opção realista.

Essa afirmação pode ser colocada de modo diferente se

levarmos em conta que a contrapositiva y (Ay Cy) de

uma lei y (Ay Cy) é logicamente equivalente a ela. Se

Ay precede temporalmente Cy, então o antecedente Cy da

contrapositiva vem após seu consequente Ay. Entretanto,

nós não podemos empregar a contrapositiva diretamente,

visto que o antecedente é simplesmente vago demais para ser

utilizado. Para aplicar nosso conhecimento científico a fim

de enviar o homem a Marte, por exemplo, ... . Uma teoria

científica pode ser aplicada somente se existir algo

específico ao qual aplicá-la.

Page 21: Colocando a ciência para trabalhar

Por isso, chegamos a uma conclusão que todos vocês já

conhecem. Para ser um engenheiro bem sucedido, é preciso

ser preceptivo, imaginativo e arguto. Como também já sabem,

ser apenas inventivo não basta. Não se esqueçam de que,

além de possuir estas propriedades lógicas, o antecedente

tem que ser algo realizável na prática. Tem que funcionar

também.

Antes de explicar a maneira pela qual a ciência pode

servir à tecnologia, apesar dessa conclusão negativa, vou

citar alguns exemplos, tanto característicos como

excepcionais.

3.0. Cervejas e boliches

Uma leitura atenciosa de um manual de química teórica não

ajudará muito a quem quiser manufaturar a maioria dos

coloides que se consomem no lar: nem o pão, nem a manteiga,

nem a geleia, nem o sabão, nem a cola, nem a tinta, nem a

cerveja. Você não encontra num livro texto nenhuma lei da

natureza que afirma ‘Se você fizer A, então terá cerveja’.

Assim que um método de fazer cerveja for desenvolvido, você

pode formular uma receita cheia de orientações detalhadas;

e quando um mestre-cervejeiro segue a receita, aplica essas

Page 22: Colocando a ciência para trabalhar

orientações. Mas ele não aplica as leis da química teórica,

exceto no sentido de que não as viola.

Esse caso é típico. Nossas teorias não nos instrui a

como produzir os analgésicos, nem os arranha-céus, nem os

chips de memória, nem os chips de tortilha, nem as petecas,

nem os boliches, nem inúmeras outras coisas e substâncias

sem as quais a vida moderna não seria reconhecível.

3.1. O pêndulo

Há exemplos, entretanto, de leis na física e em outras

ciências que estabelecem uma condição A como necessária e

suficiente para um efeito C. Podemos representar essas leis

com a ajuda de um bi-condicional: A C é definido como a

conjunção (A C) (C A). Pode-se lê-la ‘se, e somente

se’. Um exemplo familiar a todos é a lei do pêndulo: ‘todos

os pêndulos simples de comprimento l têm um período

t = 2π√(lg), que tem uma forma mais explícita: ‘cada

pêndulo simples tem o comprimento l se e somente se tem o

período t = 2π√(lg)’. Podemos aplicar essa lei [que é no

máximo uma aproximação, como observa Wilson (1993, nota 7)]

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para obter um pêndulo de período t, porque cada período t é

associado com um comprimento l=t2g4π2. Indubitavelmente é

mais natural dizer que o comprimento l é ‘uma causa’ do

período t do que o contrário, por ser mais fácil arranjar o

comprimento que o período. No entanto, poderia se um

exercício interessante de projeto mecânico chegar ao

período de um pêndulo ao determinar o seu comprimento.

Devo mencionar que há uma maneira trivial de

transformarmos qualquer sentença condicional na forma

bicondicional: y (Ay Cy) é equivalente a y (Ay (Ay

Cy)). Em outras palavras, ‘todos os asnos são teimosos’ se

e somente se o conjunto de ‘todos os asnos’ e o conjunto de

‘todos os asnos teimosos’ coincide. Parece óbvbio que tal

reformulação não serve a nenhum propósito tecnológico.

Não há outro sentido no qual podemos aplicar a lei do

pêndulo diretamente aos problemas tecnológicos; parece que,

eventualmente, José Arcadio Buendía realizou isso (García

Márquez 1967/1972, p. 79; perto do fim do capítulo que

começa ‘A nova casa, branca como uma pomba, ...). Se ele

imaginou que o pêndulo era um móvel perpétuo que poderia

Page 24: Colocando a ciência para trabalhar

providenciar trabalho ilimitado, então ele estava errado em

mais de uma opinião sobre as potencialidades da lei do

pêndulo.

3.2. A vida

Finalmente deve ser admitido que existem algumas leis

causais y (Ay Cy), em biologia, em cosmologia, e em

outras ciências históricas, em que aquilo que acontece num

certo momento é necessário, mas insuficiente, para o que

ocorre a seguir, ou seja, o consequente C, que é uma

condição necessária para a ocorrência de A, é anterior no

temporalmente a A. Até a invenção da inseminação

artificial, o coito era necessário para a concepção. Os

casais que queriam procriar sabiam bem o que tinham que

fazer. O problema usual não era a ignorância do modus

operandi, mas a sua falibilidade. Da mesma forma, para se

desfrutar de um carvalho majestoso no quintal, é

necessário, mas não suficiente, haver plantado uma semente

muitos anos antes. Se tomarmos o cuidado de evitar qualquer

sugestão de que a natureza de comporta intencionalmente,

podemos dizer que ela já resolveu, através de uma variedade

extraordinária de diferentes métodos, o problema

Page 25: Colocando a ciência para trabalhar

tecnológico da produção dos novos organismos. Nós não

fazemos mais do que clicar um botão.

Esses exemplos não perturbam a minha tese de modo algum.

Em qualquer caso, eles não esclarecem muito sobre o papel

da ciência na tecnologia. Eu sustento que tais exemplos são

atípicos e que na maioria dos casos de interesse

tecnológico nós somos compelidos a ampliar nosso

conhecimento de modo a realizar nossos objetivos práticos.

Que é, nós pensarmos em alguma coisa que não havíamos

pensado antes.

Deixe-me repetir algo que eu disse acima, que o mundo

natural, como a ciência teórica podem fornecer muita

inspiração para a prática. A tarefa do engenheiro é

inventar maneiras de transformar essas inspirações em

propostas concretas. Mais que um conhecimento da teoria

eletromagnética é necessário para o envio de mensagens por

rádio. Desde Dédalo, os homens quiseram voar como pássaros,

mas a aviação é um empreendimento sensivelmente diferente

do bater de asas com penas. Dizer que os pássaros e os 747s

obedecem aos mesmos princípios de aeronáutica não nos diz

nada, pois as pedras obedecem-nos também.

Page 26: Colocando a ciência para trabalhar

4. Como a ciência pode servir à tecnologia e a engenharia

Apontei que a posse de uma teoria T, e de uma descrição C

de um estado futuro de mundo, não nos dá qualquer pista

sobre uma condição inicial A tal que a lei y (Ay Cy)

esteja entre as consequências de T. No entanto, se a teoria

implica y (Ay Cy), então T, juntamente com C, implica

diretamente a negação A do antecedente A. A regra de

inferência aqui usada, que nos permite inferir a conclusão

Ay de y (Ay Cy) e Cy, é conhecida como a regra modus

tollendo tollens. O seu significado para o nosso problema é

enorme.

Se sabemos que o nosso objetivo C não foi alcançado na

ocasião em que fizemos a intervenção A, então podemos

concluir a partir de C, sem qualquer dificuldade, que A,

como forma de produzir C, é um fracasso. Nós não devemos

concluir que podemos produzir C por meio de A (ou

excluindo A).

Em circunstâncias onde temos uma teoria T que implica o

condicional y (Ay Cy), não há nenhuma necessidade de

implementarmos A para descobrirmos se C ocorre ou não,

quando A ocorre. Mais genericamente, para determinar se A é

Page 27: Colocando a ciência para trabalhar

um passo útil, basta considerar as consequências na

presença de T. Se algumas dessas consequências são

inaceitáveis, então novamente devemos descartar a

intervenção A. Em outras palavras, as leis e teorias da

ciência não nos dizem o que devemos fazer, mas do que

devemos abster-nos. A ciência não prescreve, mas proscreve.

A verdade é que a engenharia e a tecnologia utilizam o

conhecimento científico para diagnosticar, controlar e

eliminar erros em suas iniciativas práticas, não para gerar

essas iniciativas. A ciência serve a uma função crítica, ao

invés de uma função construtiva.

4.0. A análise científica dos problemas tecnológicos

A descrição acima do papel da ciência teórica como

crítica e proibitiva em relação à tecnologia é exata

comparando-se nesses casos àqueles onde a análise

científica é capaz de lançar luz sobre um problema prático

antes de qualquer solução ser vislumbrada. A investigação

microbiológica de um resfriado comum, por exemplo, mostra

que a doença é viral mais propriamente do que bacteriana, o

que sugere (embora possa não implicar) que a administração

de antibióticos não é o medicamento apropriado para tratá-

Page 28: Colocando a ciência para trabalhar

la. Um grupo substancial de possíveis soluções pode ser

excluído simultaneamente. Conclusões similares se seguem

para muitos outros exemplos da medicina. Uma análise das

causas ocultas de todos os sintomas de uma doença não

revela, ela mesma, uma cura possível (a menos que a cura já

seja conhecida por outro contexto), mas é possível indicar

que muitas linhas de combate não surtirão efeito.

4.1. A tecnologia contrastada com a engenharia

No começo desta conferência sugeri uma distinção entre

engenharia, que tem por tarefa resolver um problema que é

mais ou menos único ou sui generis, e a tecnologia, que tem

por tarefa resolver, por assim dizer homogêneo, uma turba

de problemas similares. Nessa terminologia, que está sendo

adotada por conveniência, o engenheiro projeta e constrói

pontes suspensas e aceleradores lineares, e o tecnólogo

inventa e produz remédios, computadores, pistolas e

liquidificadores. O tecnólogo que projeta e constrói um

dispositivo que resolve adequadamente um problema prático,

testa o dispositivo, e prepara um guia ou manual (que

deveria consistir de instruções que podem em princípio

serem seguidas automaticamente) para seu uso. Em resumo, o

Page 29: Colocando a ciência para trabalhar

tecnólogo produz um novo tipo de objeto físico, e formula

em termos universais uma lei empírica (uma generalização

tecnológica) esboçando os detalhes de sua operação. O único

aspecto universal de um projeto de engenharia pode ser, em

contraste, um universalidade quase-temporal. Uma vez que um

artefato que funcione tenha sido desenvolvido, entretanto,

nós podemos tentar formular leis empíricas adequadas, e um

dia então dar uma explicação científica de suas funções.

Em outros termos, a farmacologia é um ramo da ciência

teórica, a farmácia é um ramo da tecnologia, mas a

medicina, especialmente cirúrgica, é um ramo da engenharia.

4.2. A explicação científica do sucesso tecnológico

O trabalho de integrar na ciência teórica uma lei

empírica que descreve a operação de uma descoberta é

raramente urgente, e pode não ser plenamente realizado por

muitos anos. Há uma ilustração divertida no maravilhoso

artigo “Uma análise de estresse de um vestido de noite sem

alças” [‘A Stress Analysis of a Strapless Evening Gown’] (Siem 1956)

que se publicou muitos anos depois da elaboração bem

sucedida do primeiro vestido nesse estilo. Outro exemplo

interessante de uma “solução tecnológica que desafia a

Page 30: Colocando a ciência para trabalhar

compreensão atual” [Basalla op. cit., p. 28 (); ver também

Boon 2006, §3.1] encontra-se na resposta dada em 1954 por

Sir Alexander Fleming a um pedido de cura eficaz para o

resfriado comum: “Um bom trago de uísque quente na hora de

deitar” – não é muito científico, porém, ajuda”. Há uma

abundância de casos desse tipo, por exemplo, o mecanismo no

qual o hidróxido de alumínio, quando utilizado como um

coadjuvante farmacêutico em algumas vacinas, contribui para

a produção de uma grande quantidade de anticorpos

(Bhattacharya 2008).

5. Por que isso não é bem conhecido?

Em 1935 Karl Popper comentou que “quanto mais um

enunciado proíbe, mais ele diz acerca do mundo da

experiência” [1959, § 35 (p. 129)]. Isto é, o poder

proibitivo de uma lei ou de uma teoria é uma medida de seu

conteúdo (e seu interesse). Em 1944, escreveu no seu livro

A miséria do historicismo [1944, § 20 (49)] que:

... qualquer lei natural pode ser expressapor meio de uma assertiva de que determinadacoisa não pode ocorrer, ou seja, por umasentença em forma de provérbio: ‘Você nãopode transportar água em umapeneira.’Assim, a lei da conservação da

Page 31: Colocando a ciência para trabalhar

energia pode assumir a forma: ‘Não épossível construir máquina de movimentoperpétuo’; e a da entropia, a forma: ‘Não épossível construir uma máquina cem porcento eficiente’. Essa maneira de formularas leis naturais torna óbvia a suasignificação tecnológica e pode, portanto,ser chamada de “forma tecnológica” de uma leinatural.

A doutrina de que as leis científicas têm uma força

puramente negativa (de interdição) não é propriamente nova.

Ninguém, contudo, parece perceber o seu grande alcance.

Mesmo Popper passou a invertê-la quando, pouco antes da

passagem citada acima, afirmou que “uma tarefa

característica de qualquer tecnologia é a de apontar aquilo

que não pode ser concretizado” (loc. cit.). E na sua idade

avançada, quando discutiu o chamado “problema pragmático da

indução”, falou insistentemente (como o fizeram todos os

outros filósofos) das teorias científicas como uma “base

para a ação” [1972, capítulo 1, § 9 (p. 32)]. É a ciência

que tem por tarefa característica apontar o que não pode

ser feito. A tarefa característica da tecnologia é mostrar

(por exemplo) o que pode ser feito.

Page 32: Colocando a ciência para trabalhar

Parece-me que nós podemos encontrar quatro razões para

essa incompreensão geral: uma histórica, uma psicológica,

uma sociológica e uma filosófica.

5.0. A história da tecnologia

A explicação histórica deriva do fato lógico de que, nos

casos mais familiares, o uso das leis e teorias da ciência

para excluir uma proposta tecnológica nunca é essencial. Em

vez disso, é sempre possível simplesmente testar a proposta

de maneira empírica, como um alfaiate faz um terno. Se você

acredita que uma peneira possa carregar água, tente fazê-

lo. Não há necessidade de uma lei proibitiva para mostrar

que a sua ideia deve ser descartada. No século passado,

porém, métodos teóricos de crítica tornaram-se

recomendáveis, e em muitos casos, imprescindíveis, por

causa do aumento dos custos e dos riscos de testes diretos.

Anos antes, a situação era diferente. Um estudo da história

da interação da ciência com a tecnologia, destacando a sua

dimensão crítica, seria muito valioso. Como outros

escritores, Bassalla observou [op. cit., p. 102 (107)] que

“antes do Renascimento, e durante vários séculos depois, os

avanços tecnológicos foram alcançados sem a ajuda do

Page 33: Colocando a ciência para trabalhar

conhecimento científico.” Tal como os outros, Basalla não

ofereceu a explicação simples que, em épocas passadas, o

trabalho de eliminação (de soluções) desempenhou-se mais

facilmente por um teste empírico do que por uma análise

teórica.

Eu sugiro que, para uma grande parte da história, a

tecnologia aprendeu pouco da ciência, e que o intercâmbio

se dava, na maioria dos casos, na direção oposta; por

exemplo, no projeto de um equipamento de laboratório.

Basalla é perspicaz para investigar “a natureza da

interação da ciência e da tecnologia” [op. cit., p. 92

(96)], mas em nenhum ponto ele fornece aos seus leitores os

detalhes de qualquer ação científica. Sobre o trabalho do

Newcomen, quem ele mencionou um pouco mais a frente, ele

escreve: “Há muito pouco no instrumento de Papin que

tivesse servido de guia ao inventor inglês, enquanto este

planeava a construção do motor atmosférico a vapor” [op.

cit., p. 95 (100)]. A afirmação de que “a ciência dita os

limites da possibilidade física de um artefato, mas não

prescreve a forma final do artefato” [op. cit., p. 92 (96)]

agrada-me, mas não sei se o que ele se refere é a proibição

Page 34: Colocando a ciência para trabalhar

física ou a uma proibição teórica. Sem dúvida “A lei de Ohm

não ditou a forma e os pormenores do sistema de iluminação

de Edison” [loc. cit.], porém, não há dúvida que o mundo é

igualmente descrito por essas leis que ditaram os “limites

da possibilidade física”. Outra questão é em qual extensão

as elucubrações imaginativas de Edison foram revisadas e

refinadas pela contemplação intelectual das leis de Ohm.

Assim, a influência potencial crítica da ciência, como a

influência crítica da matemática tem sido quase invisível.

O mito de que a ciência seja mais básica do que a

tecnologia tem sido insidiosamente reforçado com a

conclusão inevitável de que a ciência tem os méritos dos

sucessos instrumentais da tecnologia e a responsabilidade

por suas falhas e horrores.

5.1. A repressão

Outra explicação para o anonimato da força negativa (de

interdição) da ciência vem da nossa propensão em considerar

a perpetração de erros, não como um constituinte essencial

da aprendizagem, mas como algo vergonhoso.

Consequentemente, quando finalmente nós atingimos um

objetivo intelectual ou prático, estamos ansiosos para

Page 35: Colocando a ciência para trabalhar

esquecer-nos de quantas vezes erramos. “É tão óbvio”,

dizemos, e não nos lembramos das dificuldades que

experimentamos previamente. Talvez possamos explicar

científica ou teoricamente o conteúdo de nosso sucesso e

supomos erradamente que podemos explicar de maneira as

nossas descobertas. Essa aversão aos erros é ela mesma um

erro grave, mesmo que seja um erro natural.

5.2. O cientista hoje

Uma terceira explicação sobre o equívoco de como a

ciência é aplicada é o fato de que atualmente, a maioria

daqueles que são chamados de cientistas, até nas

universidades, são tecnólogos ou engenheiros disfarçados.

Eles participam de uma atividade que Thomas Kuhn no seu

livro A Estrutura das Revoluções Científicas batizou de “ciência

normal” [1962, capítulo 3 (p. )]; não no desenvolvimento de

novas teorias, mas na resolução de quebra-cabeças e na

ampliação do domínio explicativo das teorias que já são

comuns. Quando lemos num jornal que os cientistas fizeram

um avanço, por exemplo, no tratamento do câncer, podemos

estar confiantes de que a descoberta é de fato uma invenção

tecnológica. A mesma confusão é evidente na expressão

Page 36: Colocando a ciência para trabalhar

“ficção científica”. Não há dúvida de que este gênero

literário deve ser chamado de “ficção tecnológica” ou

“ficção de engenharia”.

Aqui está um exemplo que é mais cômico do que profundo.

“Cientistas fazem um ovo que avisa quando está pronto”,

anuncia uma manchete na página 3 da edição de 31 de julho

de 2006 do jornal Metro, que é distribuído gratuitamente

aos passageiros de transportes públicos por toda a Grã-

Bretanha. Segundo o jornalista John Higginson, o truque

consiste em usar uma tinta que é sensível a uma determinada

temperatura, mudando de cor quando o ovo está pronto.

Para ser justo, e mostrar que a distinção entre ciência e

engenharia não está totalmente turva, posso mencionar

alguns outros exemplos relevantes de notícias na mesma

edição de Metro.

(a) No item (p. 09) na seção intitulada “A ciência e a

descoberta de hoje em resumo” relata, a sugestão do

eternamente fascinante Harry Potter, que “engenheiros estão

trabalhando num escudo que faz as coisas invisíveis devido

a curvatura da luz.” (Acrescenta de maneira tranquilizadora

Page 37: Colocando a ciência para trabalhar

que “o objeto ainda existiria, porém, estaria oculto para a

visão ...”.

(b) Em outra coluna, chamada “Mitando” (p. 19) refuta “o

mito” que uma moeda deixada durante a noite em Coca-Cola

‘derreterá’.” Como dissipar este mito? Simplesmente

testando. Não se verifica. Para aqueles que tem disposição

científica, a Coca-Cola contém ácido cítrico e ácido

fosfórico, porém os ácidos contidos não são tão fortes para

dissolver uma moeda numa noite. Decepcionantemente, o

diário não faz relação entre esta revelação com a

informação de fundo da coluna acerca dos ovos, que, “se um

ovo cru é submergido em vinagre por 3 dias, a casca se

dissolverá”.

Evidentemente, esse uso popular do termo “cientista” pode

ser um efeito assim como uma causa do mal-entendido da

relação entre a ciência explicativa e a tecnologia. Os maus

hábitos frequentemente florescem em pares.

5.3. O justificacionismo1

1 Na versão original (em inglês e espanhol) deste artigo a presenteseção discute a questão do indutivismo. Porém, por sugestão do próprioautor, a discussão do justificacionismo representa mais de perto suasideias atuais.

Page 38: Colocando a ciência para trabalhar

Para concluir, voltemos por um momento à doutrina

filosófica que está no fundo de todos esses equívocos, a

velha doutrina do justificacionismo. O justificacionismo

sustenta que o nosso conhecimento, se é conhecimento

autêntico, deve ser confiável, seguro, em outras palavras,

justificado – ou pela razão ou pela evidência empírica. Esta

doutrina provém de Platão, e tem constituído o núcleo da

teoria do conhecimento desde então.

A tradição justificacionista afirma que o nosso

conhecimento matemático assenta-se numa lógica dedutiva,

enquanto o nosso conhecimento empírico baseia-se numa

lógica indutiva, ou seja, um sistema de regras que permite

inferir as causas dos efeitos e as leis naturais da

experiência. Há muitas confusões nisso, as quais não tenho

tempo para expor e desmascarar aqui. Devo remeter-lhes às

obras do meu mestre Karl Popper que mostrou com uma força

incomparável os erros e as inadequações de toda forma de

justificação, especialmente de todos os ensaios para se

desenvolver uma lógica indutiva. A ciência, segundo Popper

(1959, 1963), é um sistema de conjecturas audaciosas que

não são de nenhuma confiabilidade. As atividades principais

Page 39: Colocando a ciência para trabalhar

da ciência consistem nos testes empíricos, cuja meta é

descartar essas conjecturas, e na invenção de novas

conjecturas que, com sorte, estarão mais próximas da

verdade do que as anteriores.

Contudo, a crença geral é a de que nosso conhecimento

prático tem que ser seguro. A conclusão natural é a de que

a ciência teórica desempenha o papel das agências de

segurança. Infelizmente, as teorias científicas não são

dignas de confiança, e portanto, não podem fornecer nenhuma

segurança às iniciativas tecnológicas cujo sucesso

explicam. As ligações entre ciência e (algumas partes) da

tecnologia podem ser dedutivas, mas a ciência, ela mesma

não é segura.

Na sua forma indutivista, o justificacionismo assume que

a ciência teórica surge a partir da experiência, e que está

baseada firmemente nela. Por razões lógicas, essa crença é

equivocada. Como Popper anunciou com muito vigor, na

ciência a experiência não é uma fonte de ideias, nem uma

garantia de verdade; sua função principal é eliminar erros.

Na sua forma dedutivista, o justificacionismo assume que a

tecnologia e a engenharia surgem a partir da ciência

Page 40: Colocando a ciência para trabalhar

teórica e que estão baseados firmemente nela. Essa crença é

igualmente equivocada. Na tecnologia e na engenharia, a

ciência teórica não alimenta nenhuma fonte de ideias, nem é

garantia de sucesso; sua função principal é eliminar os

erros. Nem a experiência na ciência, nem a ciência na

tecnologia podem determinar como um problema seja resolvido

de maneira ideal. O melhor que podemos dizer é que

poderíamos ter feito pior.

Essas duas doutrinas do justificacionismo, a indutivista

e a dedutivista, são expressões de preconceitos

superficiais e perigosamente enganosos. Sugiro abandoná-

las.

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REFERÊNCIAS