INTRODUÇÃO De como mover os ânimos e estabelecer a fé:o discurso ordenado nas Partitiones Oratoriae As Partições Oratórias foram compostas provavelmente no final de 46 aC 1 e aparecem na forma de um diálogo entre Cícero, ele mesmo, e Cícero, seu filho. Essa figura dramatizada do filho aparece em várias considerações críticas contemporâneas; serve, por exemplo, para datar o diálogo 2 e para provar o interesse de Cícero pela educação de seu filho 3 . A cena do diálogo é descrita logo no início: agora que as ocupações públicas suprimidas o permitem, Cícero vai exercitar os conhecimentos retóricos de seu filho 4 : o que o pai costumava perguntar ao filho em Grego, o filho, agora, perguntará ao pai em Latim 5 . Na verdade, o diálogo encena um conhecimento prévio da técnica; os termos, ao serem explicados e comentados, já entram com toda sua carga específica. Nesta circunstância, parece sensato que seja o pai a responder, pois é ele que tem capacidade e, 1 A datação das Partitiones oratoriae é controversa. Além de 46 aC, outras datas possíveis seriam 56 aC ou 44 aC. Cf. a introdução de Henri BORNECQUE às Divisions de l'art oratoire. (Paris, ALes Bellles-Lettres@, 1960), para os argumentos contra e a favor de cada data. 2 O tratado não poderia ser de 56 aC porque nesta data o filho, nascido em 65 aC, não teria ainda idade para estudar retórica. Cf. Henri BORNECQUE. op.cit.. 3 Cf. H. RACKHAM na A Introdução@ a CICERO. De partitione oratoria. Cambridge, Harvard U.P., 1948. 4 Part. orat., 1. 5 Part. orat., 2.
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INTRODUÇÃO
De como mover os ânimos e estabelecer a fé:o discurso
ordenado nas Partitiones Oratoriae
As Partições Oratórias foram compostas provavelmente no
final de 46 aC1 e aparecem na forma de um diálogo entre
Cícero, ele mesmo, e Cícero, seu filho. Essa figura
dramatizada do filho aparece em várias considerações
críticas contemporâneas; serve, por exemplo, para datar o
diálogo2 e para provar o interesse de Cícero pela educação
de seu filho3.
A cena do diálogo é descrita logo no início: agora
que as ocupações públicas suprimidas o permitem, Cícero vai
exercitar os conhecimentos retóricos de seu filho4: o que o
pai costumava perguntar ao filho em Grego, o filho, agora,
perguntará ao pai em Latim5. Na verdade, o diálogo encena
um conhecimento prévio da técnica; os termos, ao serem
explicados e comentados, já entram com toda sua carga
específica. Nesta circunstância, parece sensato que seja o
pai a responder, pois é ele que tem capacidade e,
1 A datação das Partitiones oratoriae é controversa. Além de 46 aC, outrasdatas possíveis seriam 56 aC ou 44 aC. Cf. a introdução de HenriBORNECQUE às Divisions de l'art oratoire.(Paris, ALes Bellles-Lettres@, 1960),para os argumentos contra e a favor de cada data.2 O tratado não poderia ser de 56 aC porque nesta data o filho,nascido em 65 aC, não teria ainda idade para estudar retórica. Cf.Henri BORNECQUE. op.cit..3 Cf. H. RACKHAM na A Introdução@ a CICERO. De partitione oratoria.Cambridge, Harvard U.P., 1948. 4 Part. orat., 1.5 Part. orat., 2.
principalmente, auctoritas para forjar os termos em Latim,
tentando apresentar uma nomenclatura técnica especializada,
ainda não totalmente estabelecida e fixa6.
Partitio é um termo da retórica que designa uma das
partes do exordium do discurso: aquela em que o orador
apresenta uma espécie de resumo do modo de argumentar que
está para usar. No Pro Archia, por exemplo, é na partitio que
Cícero pede licença para, ao defender um poeta, usar um
gênero de argumentação que, em outro caso, poderia não ser
próprio para um discurso forense7. De modo breve, a partitio
incumbe-se de cumprir uma das grandes pretensões do
discurso retórico: "estimular o desenvolvimento de
conceitos através de uma distribuição estratégica das
idéias que vão sendo pensadas"8. É uma técnica de montagem
que simula predispor a distribuição das idéias enquanto
ainda estão em gestação: dado um repertório de possíveis
idéias isoladas, a partitio pretende ensinar a uni-las de
modo concatenado, fazendo com que a própria cadeia gere
novos elos conceituais de ligação9. Está, de alguma forma,
aparentada à dispositio; no entanto, enquanto a última tem
preocupações mais acentuadamente sintáticas10, a primeira
6 Na verdade, a nomenclatura Retórica sempre apresentará flutuações ediscutir os termos será, com freqüência, tarefa a que os retores selançarão com gosto.7 Pro Archia, II.3-4.8 Cf. Armando PLEBE & Pietro EMANUELE. Manual de Retórica. São Paulo,Martins Fontes, 1992, p.78.9 Idem, p.78 ss.10 "Arquitetônicas", como diz Armando PLEBE, op. cit..
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insiste na força genética de modelação de conceitos. A
partitio está simultaneamente ligada à inuentio e à dispositio.No
Brutus, Cícero faz uma rápida referência aos procedimentos
de concatenação das idéias, de grande importância para
manipular a abundância necessária ao bom orador11, como é o
caso de Hortêncio, que era capaz de organizar enorme
quantidade de argumentos, seus e de seus adversários
"Ardia de desejo como em nenhum outro eu tinha vistoesforço mais flagrante. Com efeito, não suportavaque um dia sequer passasse sem que falasse no fórumou, fora dele, meditasse; de modo muito sábio faziaas duas coisas no mesmo dia. Pouco apresentava dogênero de discurso comum; na verdade, ele falava deduas coisas de que nenhum outro falava: das coisasque estava para falar, as partições (partitionesO, edas coleções (collectiones) do que havia sido ditocontra quaisquer coisas."12
A "partição" é, portanto, um instrumento persuasivo
diferenciador do bom orador. Ao dar a seu tratado esse
nome, Cícero já lhe confere um ethos: vai apresentar um
resumo dos conceitos que o orador deve conhecer e saber
manipular, e mais, ao apresentá-los pretende articular
novos elos que, por si só, já valem como novos conceitos;
11 Ao narrar a história dos oradores romanos no Brutus, Cícero vaijulgando-os de acordo com seus modos de efetivarem os preceitos daretórica. Seu critério de juízo parte da análise das cinco partes dodiscurso. As duas carácterísticas apontadas por Cícero comoindicadores de um grande orador são a inuentio, principalmente aabundância de idéias, e a actio, principalmente a modulação da voz.12 Brutus, 302.
3
tudo isso, é claro, em Latim.
Sendo uma retórica acadêmica13, as Partições oratórias
desenvolvem o procedimento da disputatio in utramque partem, da
argumentação a partir de um e outro lado da questão14. É
aqui, neste tipo de argumentação, que se efetiva um
conhecimento "provável".
Contentio, disputatio, disceptatio são termos que designam o
processo de submeter um assunto aos procedimentos metódicos
de obtenção de argumentos, tarefa da retórica, ligada a uma
forma particular de conhecimento, a do conhecimento
provável, que se distingue do conhecimento certo, socrático
ou platônico. Essa retórica tem também a finalidade prática
de persuadir, ou seja, de solicitar uma resposta15. Com o
tempo esses procedimentos foranm-se confundindo e
restringindo a uma técnica de falar bem, entendida, por sua
vez, como falar de modo ornamentado16.
A crença acadêmica de que o provável, balanceado
entre o verdadeiro e o falso, pode fornecer bases
suficientes para uma escolha, decisão ou iudicium, é
particularmente útil à discussão do discurso ficcional. Nem
13 Part. orat., 139.14 A disputatio é importantíssima para a discussão da ficção.15 Cf. Michel MEYER."Censurar o discurso por ser manipulador reduz-sena realidade a censurar o discurso por ser. Porque está na natureza dadiscursividade apresentar-se desde logo como responder." Em AAs basesda Retórica@ in M.M. CARRILHO (org.). Retórica e comunicação. Porto, Asa,1994.16 A retórica restringiu-se à elocutio e esta, ao ornatus. Assim, estavapronto o terreno para apontar o discurso retórico como discurso vazio.
4
a separação pitagórica cabal, presente nas doutrinas
platônicas, entre um mundo inteligível "verdadeiro" e um
mundo de aparências "falso", nem a divisão estóica entre
impressões sensíveis "falsas" e "verdadeiras" permitem a
"posição média" requerida pela ficção. Postado entre o
acontecimento real e a fábula, o argumentum oferece bases
suficientes para a audiência aderir temporariamente à
probabilidade de uma ação17.
A "probabilidade" é um método de aproximação da
verdade que consiste em fazer passar a "questão", tomada
pelos seus vários lados, pelas malhas dos argumentos, com a
finalidade de se atingir a "adesão".
O conhecimento provável da Nova Academia
Saindo de Arpino18, Cícero freqüenta em Roma, a
partir dos anos 90 aC, a casa de L. Licínio Crasso, onde
começa a estudar direito e filosofia, ouvindo, entre
outros, o estóico Diódoto e Filo de Larissa. Diódoto lhe
ensinou dialética; os peripatéticos, que haviam
desenvolvido uma teorização para a retórica, ensinaram-no a
17 Cf. Wesley TRIMPI. Muses of one mind. Princeton, Princeton U.P., 1983,p.323.18 Os detalhes da vida de Cícero são reconstruídos, em geral, a partirde dados oferecidos pelo próprio, em sua correspondência ou emreferências de seus tratados ou discursos. Tomemo-los como umverossímil que já se associou à personagem. De qualquer forma, usamosaqui as indicações de Miriam GRIFFIN ("Introduction" in CICERO. On Duties.Cambridge U.P., 1991) e José GUILLÉN (Actitud filosófica de Cicerón.Helmantica, 12224-126: 33-83, 1990).
5
argumentar dos dois lados de uma questão; os Acadêmicos, a
refutar qualquer argumento19, sendo estes últimos, talvez,
sua auctoritas mais marcante. Depois, teve dois mestres
particularmente carismáticos, Antíoco de Ascalão e
Posidônio, o polígrafo estóico; permaneceu, porém, ligado
aos ensinamentos de Filo, rejeitando a possibilidade de um
conhecimento certo e afirmando seu direito de adotar a
posição mais persuasiva em cada ocasião20.
Para Cícero, a filosofia é a melhor mestra da
eloqüência21. Sua formação filosófica é a da Nova Academia,
relacionada com as doutrinas de Arcesilao e Carneades,
mestres de Filo de Larissa22. Nos quatro livros das
Academicae, dos quais restam dois, expôs o gênero de
filosofia que lhe parecia menos presunçoso e mais útil para
formar o iudicium23. A Antiga Academia compreende os
sucessores imediatos de Platão na direção da escola
(Espeusipo, Xemócrates, Pólemon e Crates) que, em geral,
mantêm-se fiel à orientação dogmática de Platão24.
Pólemon teve três discípulos notáveis: Crates, que o
seguiu na direção da Academia; Zenão, que corrigiu os
19 Cf. Miriam GRIFFIN. op. cit., p.X.20 Cf. De officiis II.7, III.20 e também I.2 e I.6.21 Or.70, De or.I.82, II.160, Part. orat. 79, 114.22 Para a formação filosófica de Cícero, veja, por exemplo, JoséGUILLEN. Actitud filosofica de Ciceron. Helmantica, 124-126: 33-83, 1990.23 Cf. José GUILLÉN (op.cit.) e Tusc.2.4. Para uma discussão sobre aretórica na composição das Academica, veja Michel RUCH. La "disputatio inutramque partem" dans le "Lucullus" et ses fondementes philosophiques".Revue des Études Latines, 47: 310-35, 1969. 24 Acad., I.34.
6
ensinamentos de seu mestre; Arcesilao, que vendo Zenão
exagerar o dogmatismo da Academia25, voltou-se para o
comedimento de Platão, para a confissão de ignorância de
Sócrates, para Demócrito, que afirmava que a natureza
ocultou inteiramente a verdade e, portanto, que não se pode
averigüar como são as coisas26, para Anaxágoras e
Empédocles e quase todos os antigos que afirmavam que não
se pode perceber ou saber nada, que os sentidos são
limitados, o ânimo débil, a vida curta, que tudo depende de
opiniões, que não há lugar para a verdade e que todas as
coisas mostram-se rodeadas de trevas27. Assim, as coisas
permanecem obscuras, nada se pode perceber ou entender,
ninguém pode afirmar nada, deve-se discutir com todos,
propor as sentenças de todos e, vendo-as contrárias entre
si, não confirmá-las e suspender o juízo28.O sábio pode
tomar decisões na vida prática usando o critério do razoável.
Carneades sucede a Arcesilao na direção da Academia,
defendendo que as representações (uisum) verdadeiras não
tinham características diferentes das falsas, conforme
defendiam os estóicos. Zenão afirmava que o processo
cognitivo passa por quatro momentos: uisum(phantasia), o que
se vê, percepção visual, representação; adsensus (syntálepsis),
o assentimento; comprehensio (catalepsis), a compreensão e scientia
(epistéme), a ciência29. Contra as representações catalépticas
e acatalépticas dos estóicos, Carneades propunha os
"prováveis" e "não prováveis", persuasivos ou não
persuasivos, relacionados à teoria do "razoável" de
Arcesilao. Inventa, assim, a doutrina da "probabilidade"30
e distingue três tipos de coisas prováveis: as simplesmente
prováveis (dóxa pithanai), as irrefutáveis por apoiarem-se em
algum argumento (pithanai kai aperíspastoi) e as inteiramente
irrefutáveis (aperíspastoi kai periodenménai)31.
Quando se observa uma representação (uisum), deve-se
assegurar que a mente se encontra em estado normal e que se
está situado à devida distância do objeto, para que a
representação (uisum) seja persuasiva, parecendo, então,
verdadeira. Mas como muitas representações assim recebidas
são falsas, embora a maioria seja verdadeira, o sábio não
pode ter evidência de nada, apenas probabilidade. Pode
aquietar-se com esta probabilidade se nada a contradiz,
conduzir-se segundo ela e, com base nela, tomar suas
resoluções para fazer ou não fazer algo. O sábio neo-
acadêmico não pode ter certeza dogmática de nada; mas, sem
possibilidade de afirmar algo como certo e seguro, quando
só o vê como provável, pode dar uma resposta e tomar uma
decisão segundo a probabilidade de um e outro lado da
questão. Isto basta para proceder com prudência na vida.
29 Cf. Acad. II.145 e José GUILLÉN. op.cit.,p.58.30 De or. III.68.31 Sexto Empírico, citado por José GUILLÉN . op.cit., p. 59.
8
Filo de Larissa sucede a Carneades na direção da
Academia e dá um passo a mais em relação ao probabilismo.
Tenta reafirmar a continuidade da escola de Platão,
seguindo uma direção mais dogmática. Admite que há
"evidência" em algumas sentenças que formulem a convicção
de sua verdade, mas o homem não pode ter certeza de possuí-
la, porque não pode conhecê-la exatamente; o mais que pode
fazer é tentar acercar-se dela. Ainda que a maioria das
representações captáveis como prováveis seja verdadeira,
algumas são falsas; do que resulta impossível poder saber
se determinada representação concreta é absolutamente
verdadeira32.
Antíoco sucede a Filo na direção da Academia,
tentando impor uma retomada do dogmatismo de Platão. Cícero
mantém-se fiel à doutrina de Filo; não é um cético, mas sim
um probabilista:
"Com efeito, ainda que todo conhecimento estejaobstruído por muitas dificuldades e haja talobscuridade nas próprias coisas e tal fraqueza nosnossos juízos que mesmo homens muito antigos e muitodoutos desconfiaram de que não podiam encontrar oque desejavam, todavia, nem aqueles abandonaram, nemnós, porque fatigados, abandonaremos o esforço deinvestigar; nossas discussões(disputationes) não fazemoutra coisa senão, falando em uma e outra parte(dicendo in utramque partem), fazer surgir e como queextrair algo que ou seja verdadeiro, ou aproxime-sedisso o máximo possível. E entre nós e os que julgamsaber não há outra diferença senão que eles nãoduvidam de que sejam verdadeiras as coisas que
32 Cf. José GUILLÉN. op.cit., p.61.
9
defendem, nós tomamos muitas coisas como prováveis,as quais podemos seguir facilmente, com dificuldadepodemos afirmar; por outro lado, somos mais livres esoltos, porque temos íntegra a potência de julgar enão somos arrastados, por necessidade alguma, adefender todas as doutrinas que foram prescritas ecomo que impostas por alguns. Pois os outros jáestão primeiramente coagidos antes de poder julgar oque pode ser melhor; depois, no momento mais frágilde sua vida, ou submetidos a algum amigo, oucativados por um só discurso de alguém que ouvirampor uma primeira vez, julgam a respeito de coisasdesconhecidas e, qualquer que seja a disciplina paraa qual foram arrastados como que por uma tempestade,a ela se agarram como a uma pedra. Pois o que dizem- que crêem totalmente em alguém que julgam ter sidosábio - eu o aprovaria se isto mesmo pudessem julgaros rudes e indoutos (com efeito, estabelecer quemseja sábio, parece ser acima de tudo próprio dosábio); mas, para que o pudessem, deveriam podersomente depois de ouvidas todas as coisas, deconhecido mesmo o pensamento dos outros; por outrolado, julgam pela coisa ouvida uma única vez erefugiam-se na autoridade de um único. Mas não seicomo a maioria prefere permanecer no erro e defendercom muita veemência o mesmo pensamento queinicialmento o captou, a investigar, sem teimosia, oque é dito com muita firmeza."33
Cícero faz objeções, portanto, ao dogmatismo de
Antíoco, usando mesmo o método da discussão em um e outro
lado (disputatio in utramque partem), que apresenta uma estrutura
facilmente adaptável à análise da experiência efetivada
pela ficção, na qual a crença deve ser mantida suspensa até
que a solução mais provável possa ser identificada.33 Acad., II.7-9.
10
O conhecimento provável: estabelecer a fé, comover os
ânimos
A teoria probabilista depende, assim, desse
assentimento em relação a uma determinada aproximação de
verdade, se nada se apresentar em contrário. Sua aplicação
desde sempre esteve ligada ao exercício do discurso
ordenado, como tratado pela Retórica, em busca da
persuasão.
Ao estudar a noção de fides no mundo romano, até a
época de Augusto, Freyburger34 divide a etimologia do termo
em dois grandes grupos: "confiança" e outras etimologias
que não "confiança". No último grupo apareceriam os
sentidos de "garantia", "laço constrangedor", "poder de
sujeição", "renúncia"35. No entanto, defende que a
etimologia que parece ser a mais correta é mesmo a de
"confiança"36. Segundo Benveniste37 a família do termo
latino fides corresponde à do grego peíthomai, "obedecer", de
onde teria sido construído tardiamente pheito, "persuadir".
A tradução mais freqüente do termo fides seria "confiança";
mas, segundo o autor, apontam para o sentido de "crédito"
34 Gérard FREYBURGER. FIDES - Étude sémantique et religieuse depuis les origines jusqu'àl'époque augustéenne. Paris, ALes Belles Lettres@, 1986.35 Idem, p.13-25.36 Idem, p.29-35.37 Emile BENVENISTE. O vocabulário das instituições indo européias. Vol. I.Campinas, EDUNICAMP, 1995, p.114-120.
11
expressões correntes como fides est mihi apud aliquem, fidem habere
e fidem facere alicui.
"A tradução literal de fides est mihi apud aliquem passa aser: 'tenho crédito junto a alguém'; é, então, oequivalente de 'eu lhe inspiro confiança' ou 'eletem confiança em mim'. Dessa forma, a noção latinade fides estabelece entre os parceiros uma relaçãocontrária à que rege, entre nós, a noção de'confiança'. Na expressão 'tenho confiança emalguém', a confiança é algo meu que coloco entresuas mãos e de que ele dispõe; na expressão latinamihi est fides apud aliquem, é o outro que coloca suaconfiança em mim, e sou eu que disponho dela."38
Fidem habere e fidem facere:"Dessa vez é o verbo que sedeve considerar: habere entra em diversas locuçõesidiomáticas. De fato, a frase fidem habere alicui deveser entendida da mesma maneira que honorem habere alicui'atribuir uma honra a alguém', e significa,portanto, 'atribuir a alguém a fides que lhepertence'.(...) Vê-se assim a relação entre hic mihifidem habet e o antigo est mihi fides apud illum. Por umdesenvolvimento fácil passa-se na linguagem daretórica à expressão fidem facere orationi 'criar a fidespara um discurso', isto é, aqui, a credibilidade. Agoraé a palavra que possui uma fides e pode-se dizer estorationi fides apud auditorem 'o discurso possui essa fidesdiante do ouvinte', e torna-se assim capaz depersuadi-lo. Daí, por abreviação, fidem auditori facere,literalmente 'fazer credibilidade para o ouvinte'."39
Em "fazer credibilidade para o ouvinte", a noção de
fides, segundo Benveniste, mistura a confiança que se
38 Idem, p.116.39 Idem, p.117.
12
desperta em alguém com a confiança que se deposita em
alguém. Estabelece-se uma relação bilateral, com duas
partes envolvidas e negociando a fides; os parceiros da
"confiança", no entanto, não ocupam a mesma posição. Em sua
forma primitiva, "depor a fides em alguém" proporcionava, em
troca, sua garantia e seu apoio: é uma autoridade que se
exerce simultaneamente a uma proteção sobre aquele que se
lhe submete, em troca e na medida dessa submissão, e que
está presente na palavra latina foedus, "pacto"
originalmente estabelecido entre contratantes de poder
desigual. O discurso ordenado, portanto, negocia a fides,
estabelecendo um "pacto" entre as partes. O orador produz
"credibilidade", não para si, mas para o discurso (fidem
facere orationi), e esta deve ser atribuída ao discurso pelo
ouvinte (fidem facere auditori), ou seja, o orador faz com que o
ouvinte atribua "credibilidade" ao discurso40. Se há uma
desigualdade entre as partes envolvidas no pacto, a posição
hierarquicamente superior é de quem recebe a fides, ou seja,
40 BENVENISTE (op.cit., p.119-120) discute rapidamente a passagem parao sentido atual de "fé": "Notou-se já há muito tempo que fides em Latimé o substantivo abstrato de um verbo diferente: credo. Essa relaçãosupletiva foi estudada por A. Meillet, que mostrou que a ligaçãoantiga entre credo e fides se reavivou com o cristianismo: foi então quefides, termo profano, evoluiu para o sentido de >fé religiosa=, ecredere, >crer= para o de >confessar sua fides>.(...) Credo, como veremos,significa literalmente >colocar o *kred=, isto é, o >poder mágico= numser do qual se espera proteção, e por conseguinte >crer= nele. Ora,evidenciou-se que fides, em seu sentido primeiro de >crédito,credibilidade=, designa uma noção muito próxima da de *kred.Compreende-se facilmente, então, que perdendo-se em Latim o velhonome-raiz *kred, fides pôde ocupar seu lugar como substantivocorrespondente a credo."
13
o discurso.
Freyburger aponta "persuasão" como uma das traduções
possíveis de fides, e justifica-a indicando, principalmente,
os usos do termo nos tratados de retórica41. Fides não é
sinônimo de persuasão: ao conseguir estabelecer uma fides, o
discurso, em conseqüência disso, consegue a persuasão.
Nas Partições oratórias o termo fides aparece dezessete
vezes42, inclusive em expressões como fidem conciliare (53),
fidem constituere (31) e fidem facere (5,9,27,33,40,71,118). Em
Part. orat.9, Cícero diz que vai ensinar a "fazer a fé" e a
"comover os ânimos". Alguns comentadores43 propõem traduzir
fidem facere por "persuadir". Mouere animos também é uma forma
de persuasão, diferente, no entanto, de fidem facere. Cícero
define aqui fides como uma "opinião firme" e a "comoção dos
ânimos" como uma incitação. Em 53, afirma que a
"amplificação" é uma "afirmação" mais grave, já que
conseguirá, ao dizer, "conciliar a fé" por meio da "comoção
dos ânimos". Cícero descreve dois modos de se apresentar a
argumentação das questões44, uma vez que se tenha escolhido
uma divisão (partitio): uma apela ad fidem, ou seja, para o
crédito na probabilidade lógica dos argumentos; outra apela
ad mouendos animos, deixando em suspenso a proposição a ser
41 Gérard FREYBURGER. FIDES - Étude sémantique et religieuse depuis les originesjusqu=à l=époque augustéenne. Paris, ALes Belles Lettres@, 1986, p.75.42 Part. orat. 5,8,9,13,15,27,31,33,40,44,45,46,53,55,68,71, 118.43 Cf. Gérard FREYBURGER. op.cit., p.38, por exemplo.44 As ordenações dos argumentos ad fidem e ad motum foram tambémdiscutidas no Capítulo 1, do presente trabalho.
14
demonstrada até que as premissas estejam suficientemente
confirmadas para serem tomadas como conclusões. O último
método explicita o que fica implícito no próprio
procedimento da "partição": o material que constituirá um
argumento persuasivo é obtido por meio de análise, enquanto
o poder de comoção é efetivado por uma síntese.45 Os dois
procedimentos são indispensáveis à constituição de um
conhecimento provável. Comover os ânimos, no caso da
"amplificação", procedimento básico do discurso
demonstrativo, pode ser um meio para se estabelecer a fé.
Tal relação poderia ser um eficaz instrumento de leitura e
análise da ficção antiga46.
Uma Retórica acadêmica
Nas obras que apresentam a suposta Crítica Literária
na Antigüidade, a Retórica de Cícero aparece como
importante instrumento no estudo do chamado "estilo" e dos
gêneros do discurso. Sua retórica, portanto, fica limitada
à elocutio e, mesmo com esta restrição, a contribuição de
45 Cf. Part.orat. 46 e também Wesley TRIMPI. Muses of one mind. Princeton,Princeton U.P.,1983, p.302.46 Cf. ALLEN(1950) aponta fides como o termo retórico que poderia darconta, ao se tratar da poesia antiga, de algo que a moderna TeoriaLiterária, imbuída de preceitos românticos, chama de sinceridade. Cf.ACHCAR(1994) para uma apresentação da discussão de Allen e a presençado tema na crítica contemporânea, principalmente na que trata dacaracterização do gênero lírico. Cf. também VASCONCELLOS (1991), parauma tentativa de separar fides e sinceridade na poesia de Catulo.
15
Cícero seria pequena diante da de Aristóteles e Platão.47
E, no conjunto da obra retórica de Cícero, os tratados
ditos técnicos (De Inuentione, Topica, Partitiones oratoriae) seriam
atualmente48, desse ponto de vista, totalmente desprovidos
de interesse, a não ser para os juristas e os profissionais
da retórica, quem quer que sejam tais profissionais nos
dias de hoje. George Kennedy49 diz que as Partitiones oratoriae
têm interesse principalmente para a reconstrução da teoria
retórica como pensada pelos filósofos helenísticos e
discute o tratado apenas em seu livro dedicado à persuasão
entre os gregos.50
Neste tratado ciceroniano, toda a doutrina do dizer
aparece dividida em três partes: a força do orador (uis
oratoris, 1-26), o discurso (oratio, 27-60) e a questão
(quaestio, 60-138). A terminologia empregada difere da de
grande parte dos manuais antigos. Apenas como exemplo
47 Cf., por exemplo, J.W.H. ATKINS . Literary Criticism in Antiquity. London,Methuen & CO, 1952. "Não se pode ver a contribuição de Cícero àcrítica literária como algo de valor substancial e permanente", p.45.48 G.M.A. GRUBE. The greek and roman criticis. London, Methuen & CO, 1965."Os três tratados são de interesse principalmente do historiador daretórica profissional e da prática das cortes de lei, e certamente umadvogado ainda poderia achar aí muita coisa de seu interesse, mas eles(os tratados) contribuíram pouco para a história da crítica literáriaou para questões mais gerais das controvérsias de seu própriotempo."(p.191) Lembrar que Bulmario REYES CORIA trata de apresentaras Partitiones oratoriae como uma guia de composição de novos discursoshoje.Cf. La retórica en ALa partición oratoria@ de Cicerón. Mexico, UniversidadNacional Autónoma de México, 1987, p.69. 49 George KENNEDY.The art of rhetoric in the Roman World. Princeton, PrincetonU.P., 1972, p.230.50 George KENNEDY. The art of persuasion in Greece. Princeton, PrincetonU.P., 1963.
16
prévio desta diferença, note-se que os três gêneros de
discurso, classificados quanto à elocução, referência de
interesse marcante na bibliografia moderna51, geralmente
apresentados como "alto", "médio" e "baixo", são chamados
aqui de probabile, illustre e suaue. Probabile é a elocução que dá
ênfase à argumentação; illustre52, a que dá ênfase ao jogo
ethos/pathos, e suaue, a que enfatiza a ornamentação (19-21).
A força do orador engloba as coisas (res) e as
palavras (uerba) e trata do que outros manuais trazem como
as cinco partes da retórica: inuentio, collocatio, elocutio, actio,
memoria. As partes do discurso são quatro: exordium, narratio,
confirmatio, peroratio53. A questão está dividida em não limitada
(propositum, thesis) e limitada (causa, hypothesis) e repropõe a
doutrina da stasis, ou seja, do estabelecimento do "estado
da questão": conjectura, definição, qualidade. De modo
geral, o tratado apresenta traços distintivos54: o uso do
termo uis pode-se referir à dynamis de Aristóteles,
definição também aceita pelos Acadêmicos55; a breuitas é
51 Em geral, Aalto@, Amédio@ e Abaixo@ são apresentados como os "trêsestilos do discurso".52 Illustrare é o termo latino que, juntamente com euidentia, traduz ogrego enargeia, aquilo que dá "vivacidade" ao discurso, o que cria aimpressão de colocar a coisa diante dos olhos. Cf. Part. orat. 20, ondeinlustris oratio é definida como "haec pars orationis quam rem constituat paene anteoculos".53 Os retores pós-aristotélicos haviam aumentado para cinco as partesdo discursos, incluindo a digressio como parte obrigatória.54 Cf. George KENNEDY. The art of persuasion in Greece. Princeton, PrincetonU.P., 1963, p.329.55 De oratore, II.30.
17
incluída como uma das virtudes da elocutio56, o que indica
alguma apropriação estóica, admissível na Academia, que
admitia também a comoção das paixões57, repudiada pelos
estóicos. Não aparecem as famosas listas de figuras e fala-
se muito pouco sobre o ritmo da prosa58, o que, como já
dito, faz com que parte da crítica contemporânea
classifique o tratado como "técnico" e desprovido de
interesse. É reintroduzida a divisão aristotélica do
auditório em juízes e ouvintes e, dos assuntos, em passados
futuros e presentes (10); divisão que classifica os três
gêneros de discursos. Os gêneros demonstrativo (70-82) e
deliberativo(83-97) recebem tratamento mais extenso que o
comum. Os três gêneros são discutidos tanto do ponto de
vista da collocatio, ao se falar da força do orador (12-15),
quanto no ponto de vista da questão (68-138). O final do
tratado indica claramente como ele deve ser lido e o que
pretende discutir:
" Foram expostas para ti todas as partiçõesoratórias que, por certo, florescem em meio àquelanossa Academia, sem a qual não poderiam serencontradas, entendidas e tratadas. Pois, o própriopartir-se e o definir e dividir as partições doambíguo, conhecer os lugares dos argumentos,concluir a própria argumentação e, a partir dascoisas que foram assumidas, julgar e distinguir ascoisas verossímeis das inacreditáveis, censurar as
coisas mal assumidas ou mal concluídas e discuti-lasrapidamente, como aqueles que são chamadosdialéticos, ou, como convém ao orador, mostrá-lasdemoradamente, tudo isso é próprio daquelaexercitação da arte de argumentar sutilmente e falarcopiosamente."59
É uma Retórica acadêmica que pretende ensinar as
partições das coisas duvidosas, ou seja, a formulação de
conceitos a partir do elenco de conceitos já estabelecidos,
reordenados numa cadeia particular. Depois, ensinar a
reconhecer os lugares dos argumentos, concluir a
argumentação e, a partir disso, julgar (as coisas
verossímeis e as inacreditáveis), censurar (as coisas mal
assumidas ou mal concluídas) e discutir, rápida ou
demoradamente. A discussão rápida é própria dos chamados
filósofos dialéticos, a demorada é própria do orador. Os
três gêneros do discurso aparecem com suas funções no
debate filosófico: o gênero judiciário é próprio para o
estabelecimento da aproximação de verdade possível, o
demonstrativo serve para censurar as falsas verdades
dogmáticas, e o gênero deliberativo é apto para apresentar
o conhecimento provável, aquela excitante aproximação de
verdade, seja para persuadir um auditório como faz o
orador, seja para entrar no modo de discussão que os
dialéticos adotam.
59 Part. orat., 139.
19
A doutrina do status quaestionum
Uma das grandes contribuições da retórica
helenística foi o desenvolvimento da doutrina da stasis por
Hermágoras, no séc.II aC. Sua obra está perdida, mas seu
sistema pode ser reconstruído a partir de citações
posteriores, principalmente do De inuentione de Cícero e da
Institutio oratoria de Quintiliano. Pode-se-lhe atribuir alguma
apropriação da lógica estóica e dos ensinamentos de
Aristóteles e Teofrasto60. Os nomes das quatro staseis de
Hermágoras provavelmente são: a)stokasmós (Agostinho, De
rhetorica, 142), em Latim coniectura; b)horós, "definição", em
Latim definitiua (De Inuentione I.10) ou proprietas (Quintiliano
3.6.56); c) katá symbebekós (Quintiliano 3.5.14),
"contingente", ou poiótes, "qualidade", em Latim generalis (De
Inuentione 1,10) ou qualitas (Quintiliano 3.1.56); d)metálepsis
(Agostinho, De rhetorica, 143), "objeção", em Latim translatiua
(De Inuentione 1.10) ou translatio (Quintiliano 3.1.56).61
Ao determinar a stasis de um caso, Hermágoras diz que
alguém apresenta uma katáphasis, acusação, que gera uma
aítion, causa de ação. O defensor responde com uma apóphasis,
rejeição, que provoca uma synékon, a necessidade de
julgamento em relação ao conflito básico. Ao longo desse
60 Para uma reconstrução da retórica de Hermágoras, veja GeorgeKENNEDY. The art of persuasion in Greece. Princeton, Princeton U.P., 1963,p.303-21.61 Cf. George KENNEDY. op. cit., p.307-8.
20
processo, aparece uma skétema, questão, ou krinómenon,
matéria sob julgamento, que então deve ser classificada sob
uma das quatro staseis. Deve-se eliminar sucessivamente cada
uma das staseis: a apophasis do defensor deve-se centrar,
primeiro na questão sobre o feito, se for possível ("você
fez"; "eu não fiz"); se não for, na definição ("você fez";
"...mas não foi um roubo") e apenas então na qualidade
("você fez"; "mas eu tive que fazer").
Para a stasis de conjectura é necessário provar os
motivos, a capacidade e a vontade. O caráter da pessoa
fornece evidências para indicar a probabilidade da ação
alegada: Cícero indica uma lista que compõe o caráter
contendo nome, natureza, modo de vida, fortuna, hábitos,
cuidados e propósitos62. O próprio ato alegado também
fornece evidências: seus atributos necessários, sua
execução, seus acessórios e seus resultados63. Tais itens
foram apresentados por Hermágoras como uma lista, e a
principal qualidade do orador seria a sutileza ao construir
argumentos com seus vários tópicos.
De acordo com Cícero64, na stasis de definição o orador
deve definir o crime, provar a definição, comparar esta com
o ato da pessoa acusada, usar os lugares-comuns sobre a
gravidade, ou não, do crime. O defensor deve também tratar
da utilidade e honestidade do crime, atacar a definição do
62 De inuentione II.28ss. Part.orat. 34-40.63 De inuentione II.38 ss. Part. orat. 34-40, 110-122. 64 De inuentione II.53ss. Part. orat. 41, 123-128.
21
oponente, comparar casos similares, atacar o próprio
oponente.
A stasis de qualidade65 é usada quando as partes
envolvidas concordam sobre o que aconteceu e sobre o nome a
atribuir a isto, mas discordam sobre a qualidade da ação,
incluindo sua importância, justiça e utilidade. Hermágoras
divide esta stasis em quatro partes: deliberativa,
demonstrativa, judicial e pragmática. Tais nomes não
indicam aqui tipos de oratória, mas sim tópicos que
poderiam ser incluídos numa discussão sobre a qualidade que
justificaria uma ação. A tópica da oportunidade pode ser
considerada deliberativa; o que é louvável ou vergonhoso em
alguém faz parte do material demonstrativo; o justo e o
injusto são os lugares do judiciário e, por fim, o que é
praticável ou não faz parte do pragmático. Assim, um
defensor poderia usar o argumento de que o ato alegado foi
mesmo cometido, mas naquelas circunstâncias não havia
outra coisa possível, honrável, justa ou praticável a se
fazer.
A quarta stasis, a metalépsis, na qual o defensor afirma
que o acusador não tem direito de apresentar a queixa, ou
que a corte não tem direito de ouvir o caso, ou quando há
qualquer objeção ao processo legal, embora comum na Grécia,
não foi adaptada ao processo romano, pois, neste último, as
questões de jurisdição eram definidas no início do caso.66
65 Part. orat. 42-43, 129-131.66 De inuentione, II.57ss.
22
Nas Partitiones oratoriae a doutrina da stasis ou status
quaestionum é apresentada na terceira parte do tratado (61-
138), a que trata da questão propriamente dita, mas já
havia sido referida na segunda parte, a que trata do
discurso, ao se discutir a confirmatio (34-43), ou seja, os
procedimentos de argumentação.
Nessa última parte, os lugares da coniectura (34)
estão apoiados no que o tratado chama de uerisimile67, ou
seja, quod plerumque ita fiat, como o adolescente inclinado ao
prazer, e nos sinais, como a fumaça indicando fogo. Os
verossímeis devem ser encontrados nas partes da narração:
pessoas, lugares, circunstâncias, etc. Se tais verossímeis
parecem, quando isolados, exíguos para conseguir a
persuasão, são extremamente poderosos quando reunidos (40).
Neste agrupamento há marcas que são certas e peculiares às
coisas, mas, além dessas, ajudam a estabelecer maximam
fidem numa aproximação do verdadeiro, primeiro o exemplum,
depois, a introducta similitudo rei, e a referência a algo
semelhante ao discutido, e mesmo a fabula, desde que comova
67 O eikós da Retórica de Aristóteles. Para este, as duas fontes depremissas entimemáticas são o sinal e o eikós. "Porque o eikós é o quesucede a maioria das vezes, mas não absolutamente, como algunsafirmam; apenas que, tratando-se de coisas que também podem ser deoutra maneira, guarda com aquilo a respeito do qual é eikós a mesmarelação que o universal guarda com o particular. Quanto aos sinais,uns guardam uma relação como o do individual ao universal e, outros,como a do universal para o particular. Dos sinais, os necessáriosdenominam-se tekmérion ("indício certo") e os não necessários carecem dedenominação que nomeie esta diferença."(Retórica, I.22) O exemplo deCícero, fumaça indicando fogo, estaria na categoria do Aindíciocerto@.
23
os homens (40). A definitio é uma questão de classificação
(41), ou seja, é a apresentação de uma coleção de
propriedades comuns a um gênero, por meio da qual as
propriedade particulares em observação podem ser vistas.
Neste caso, são muito úteis as descrições, a enumeração das
conseqüências e a explicação dos termos e dos nomes. Na
"questão de qualidade" (43), a discussão pretende
estabelecer se o ato foi executado de acordo com a lei,
honestamente ou não, o que deve ser feito a partir da
descrição dos lugares de argumentação68.
A terceira parte do tratado divide inicialmente a
questão (61) em propositum (quaestio indefinita) e causa (quaestio
finita). O propositum pode ser uma cognitio (tese, digamos,
especulativa) ou uma actio (tese que pretende lograr algum
efeito). Na cognitio é referido novamente o status quaestionum
(64-66). Na cognitio ligada à coniectura (64), discute-se se
algo existe ou não ("Tal resultado é possível?", "de que
modo se engendra a virtude, pela natureza, pela razão ou
pela prática?"). A definitio (65) aparece quando se pergunta o
que é a coisa sob observação ("A teimosia e a perseverança
são a mesma coisa?", "O que é um orgulhoso?"). Na cognitio
que se refere à qualidade, deve-se discutir a honestidade,
a utilidade e a eqüidade, sendo que, em tal questão, a
referência moral é imediata. A honestidade e a utilidade
são o assunto dos dois primeiros livros do De officiis, onde
68 Os lugares da argumentação são discutidos extensamente na Topica, deCícero.
24
se discute quais os deveres morais decorrentes do
reconhecimento do honestum e do utile. O livro III dessa
mesma obra discute a comparação do honesto como útil,
principalmente quando os dois parecem conflitar. Mostra-se
que o conflito é apenas aparente ("nada pode ser útil sem
ser honesto") e pode ser resolvido, em cada caso,
aplicando-se a noção de eqüidade.
O status quaestionum volta a ser discutido na questão
judiciária levada diante do tribunal (101-108). O próprio
texto adverte que o que se pretende preceituar não fica
restrito à cena do tribunal, mas pode ser estendido a
qualquer ocasião em que duas partes pretendem formar um
juízo (110). O tratamento da coniectura está aqui dividido
entre acusador e defensor. O acusador deve apresentar os
eventos, estabelecendo-os como "causa" e "resultado" (110),
entendendo-se "causa" como um motivo para se fazer alguma
coisa e "resultado" como a coisa feita. As "causas" são, em
geral, as "paixões" (111-113). Os "resultados" são as
evidências, apresentadas como conseqüências das paixões
(114-116) ou como testemunhos (117). O defensor deve
rebater a construção "causa/resultado" apresentada pelo
acusador (118-122). Nesta contraposição dos preceitos
referidos ao acusador e ao defensor, evidencia-se a
disputatio in utramque partem, e a aproximação da verdade que lhe
deve ser conseqüente.
Na definitio (123-128), o mesmo é preceituado para as
25
duas partes, vencendo aquele cuja análise e delimitação dos
termos tiver penetrado mais profundamente na opinião do
juiz (123). A questão de "qualidade" (129-131) trata da
ação considerada correta e, portanto, deve pensar na
natureza e na lei, no sentido divino e humano. A religião
trata do primeiro e a eqüidade do segundo (130). A questão
de qualidade, dependendo da flutuação envolvida na
conceituação do que é eqüitativo, é a que mais aproxima a
causa do propositum.Ao tentar estabilizar uma determinada
ação apresentada como eqüitativa, deve-se, necessariamente,
perscrutar a honestidade e a utilidade das ações em geral
e, mais ainda, deve-se saber ajustar o conflito aparente
que pode ocorrer entre essas duas coisas.
Desse ponto de vista, a construção exigida pelo
discurso judiciário pode ser estendida para os discursos
ficcionais que passam, assim, a ter um status diferenciado
no procedimento de aproximação da verdade. O método de
argüir alternadamente dos dois lados da questão faz parte
do estabelecimento de certo grau de probabilidade
suficiente para permitir a escolha e ação. As conclusões
obtidas, embora nunca certas, podem, até certo ponto, ser
verificadas na prática e oferecer fundamento para
deliberações sobre o futuro. Tal método de debate exige
suspensão da crença que é típica dos discursos
ficcionais69, analisa situações forjadas a partir do que se
69 Talvez seja curioso lembrar que os formalista russos falam,relativamente à ficção, em "supensão da descrença".
26
esperaria que acontecesse.
Foi particularmente útil para a validação retórica
da doutrina da probabilidade que, ao apresentar o esboço do
orador ideal, Cícero tenha incorporado e transmitido as
mais importantes relações éticas da Poética de Aristóteles70.
Não é de surpreender que uma epistemologia dependente da
análise e síntese do provável esteja tão próxima da ficção.
A aliança entre os dois saberes, no entanto, estende-se
para os próprios processos de percepção. No esforço de
descobrir a verdade, argüindo dos dois lados da questão, os
filósofos acadêmicos devem manter certos padrões.
"Nossa posição não é a de afirmarmos que nada éverdadeiro, mas de afirmar que todas as sensaçõesverdadeiras estão associadas com sensações falsastão de perto que não contêm nenhuma marca infalívelpara guiar nosso juízo e escolha. Disso, segue-se ocorolário que muitas sensações são prováveis, istoé, embora não ocupando totalmente a percepção, elaspossuem, todavia, uma representação distinta e clara(uisum quendam haberent insignem et illustrem) e, assim,podem servir para dirigir a conduta do homemsábio."71
Como já dito, estas afirmações divergem das estóicas
que diziam que as impressões sensoriais poderiam ser
distinguidas como verdadeiras ou falsas por sinais
catalépticos. Para os acadêmicos, nenhuma percepção
70 Cf. Wesley TRIMPI. Muses of one mind. Princeton, Princeton U.P., 1983,p.287.71 De natura deorum I.12.
27
sensorial (uisum) pode seguramente resultar numa percepção
verdadeira (perceptio), mas pode ser provável o suficiente
para permitir a escolha e a ação. O homem sábio usará
qualquer aparência de provável que encontrar (specie
probabile), se nada se apresentar contrário a esta
probabilidade72. A partir disso, conduzirá sua vida73. A
probabilidade depende não só da razão, mas da imaginação;
não só de proposições a serem definidas, mas também de
impressões sensoriais a serem verificadas.
O esforço de encontrar, no mundo nebuloso do
provável, suficiente clareza intelectual para manter o
equilíbrio de ânimo necessário à ação ética faz com que
seja problematizada a dependência característica das artes
liberais em relação à percepção e à vontade. Talvez este
esforço, somado à autoridade da análise estóica da
percepção, tenha produzido certas restrições helenísticas a
alguns tipos de narrativa, o que em muitos lugares aparece
retomado como uma desqualificação da ficção. O primeiro
tipo de narrativa restringido foi a fabula, na qual os
eventos não são nem verdadeiros nem verossímeis74; a
segunda é a historia, um conjunto de ocorrências reais,
remotas no tempo; a terceira é o argumentum, uma ocorrência
ficcional que poderia acontecer. Sexto Empírico refere-se a
72 De inuentione I.27.73 Acad. II..99.74 Cf. Part. orat. 40. Cícero diz que a fabula pode ser útil paraconstruir um verossímil se for capaz de comover os ânimos dos homens.
28
tais narrativas, alterando a ordem, como historia (historia),
plasma (argumentum), mythos(fabula)75. A recusa estóica em
considerar, entre o falso e o verdadeiro, uma impressão
sensorial "provável" suficiente para a ação é paralela à
antiga separação entre acontecimento real e fabula, que
tende a excluir o verossímil forjado (narrativa de ficção)
como um tipo diferente de narrativa, que hoje seria
correspondente, em parte, ao que chamamos de literatura. O
argumentum passa a ser visto cada vez mais, na preceptiva
antiga, pela proporção do verdadeiro (feitos e doutrinas) e
falso (mentiras e entretenimento) e passa a ser julgado
como utile ou dulce, respectivamente. A antítese, presente em
certas discussões antigas, nega para a ficção a suspensão
da crença acadêmica, o uso das percepções sensoriais como
"hipóteses afetivas" a se verificar. Nega também a
apresentação, a partir de uma discussão in utramque partem,
da imago como modelo ético. O desejo de certeza, quanto à
verdade ou à falsidade de uma afirmação, caracterizou certa
interpretações pedagógicas de textos poéticos, efetuadas
por gramáticos e professores de disciplinas
especializadas.76
Até aqui discutiu-se a constituição do provável do
75 Sexto Empírico citado por Wesley TRIMPI. Cf. Muses of one mind.Princeton, Princeton U.P., 1983, p.291.76 Por exemplo, Plutarco, Vidas, Estrabão Geografia, comentando aexatidão das afirmações geográficas de Homero. Para análise dessestrechos, veja Wesley TRIMPI. op.cit., p.292-295. Cf. também PLUTARCO.AComo os jovens devem ouvir os poetas@ in Moralia I.1.
29
ponto de vista do estabelecimento da fé e o valor da ficção
nesse procedimento. Seguem-se agora as questões da comoção
do ânimo.
O ethos e o pathos na retórica, na moral e nas artes
A técnica oratória pressupunha o jogo das paixões.
Nesse sentido, os retores talvez tenham sido os primeiros a
atribuir a pathos um sentido a que hoje chamaríamos
Apsicológico@77. Na Retórica de Aristóteles, o apelo ao
caráter do orador e às paixões do auditório diz respeito à
finalidade de "formar um juízo", sendo as paixões as causas
que introduzem mudanças nos juízos78. Um homem não escolhe
suas paixões; para Aristóteles, os movimentos de ânimo são
um dado da natureza humana e não se trata de suprimi-los ou
condená-los79. Sempre que se age de modo a revelar um
caráter, o equilíbrio passional entra em jogo, pois o
77 "O objetivo do orador, e, mais ainda, do poeta, não consiste apenasem convencer com argumentos. É necessário também que ele toque a molados afetos e utilize os movimentos da alma que prolongam certasemoções. É preciso, então, saber a propósito de que objetivodeterminado e por que disposição determinada do autor realizam-seessas variações afetivas." Gérard LEBRUN. "O conceito de paixão" inVVAA. Os sentidos da paixão. São Paulo, FUNARTE/ Companhia das Letras, 1987, p.19.78 ARISTÓTELES. Retórica II.1.79 Para Platão, as paixões estão ligadas à teoria do conhecimento:este último só pode ser atingido pelo afastamento das primeiras. Esteconceito, que faz das paixões algo exterior à natureza humana, vai serretomado pelos estóicos, que vão apresentá-las como obstáculos a seremtranspostos por exercícios espirituais que fortaleçam a saúde dosábio. Cf. Gérard LEBRUN, op. cit. e Pierre HADOT. Exercices spirituels etphilosophie antique. Paris, Études Augustiniennes, 1987.
30
caráter só pode ser julgado a partir das paixões que
executa. Ação e paixão são movimentos, grandezas contínuas
que podem ser divididas em partes menores, de maneira que,
ao agir, sempre é possível fixar a intensidade passional
apropriada à situação. O homem virtuoso aprimora sua
conduta de modo a medir, em cada circunstância, o quanto de
paixão -e de quais paixões- seus atos comportam. É a
educação que aprimora os "homens bem nascidos" e ajuda a
equilibrar as paixões em função das circunstâncias80.
Agitado pelos movimentos da alma, o corpo responde.
Se as paixões da alma são temperadas por uma ética da
moderação, o corpo não deverá deixar transparecer nenhuma
agitação excessiva. Espelho da alma, o semblante será o
reflexo da paixão adequada à circunstância; o rosto
apresentará uma alegria prudente e moderada, uma severidade
tranqüila; "o fluxo descontrolado das metamorfoses, bem
como a imobilidade de um rosto inexpressivo lhe são
proibidos"81. Para Aristóteles, o justo meio é critério de
80 O homem não é ainda o ser que, no segredo de sua intimidade,consegue, a todo momento, a vitória sobre si mesmo, mas sim aquelecujas paixões, à vista de todos, são proporcionais à causa que asproduz e à situação que as suscita. "Não se trata de alguémobediente, mas elegante" ( Gérard LEBRUN. op.cit., p.21).81 Cf. Jean Jacques COURTINE & Claudine HAROCHE. "O homem perscrutado- semiologia e antropologia política da expressão e da fisionomia doséculo XVII ao século XIX" in Eni ORLANDI (org.) Sujeito e texto. SãoPaulo, EDUC, 1989, p.37-86. Entre os séculos XVII e XIX verifica-seuma passagem desta anatomia das paixões para uma paixão da anatomia.Nessa última, a subjetividade perde a antiga determinação retórica eaparece como interioridade "indizível", cuja aproximação passa a serefetuada por um paradigma do índice, que se apóia no conhecimentocientífico (de uma cientificidade a se definir) do individual. Cf.
31
inclusão de si e do outro em um conjunto político. Nem
meios, nem fins, as paixões são as respostas às figurações
que o outro faz de nós. Negociando identidades e
diferenças, distâncias e proximidades, a prescrição
retórica ocupou-se do estudo das paixões e dos caracteres
como meio de persuasão82. O ponto de partida é, geralmente,
a discussão do Livro II, da Retórica.
Apresentando as paixões em Aristóteles, Meyer mapeia
seu campo de ação por meio de alguns itens: a) as paixões
são representações e até representações de
representações83; b) as paixões visam a definir um lugar em
relação aos outros; c) a referência ao outro varia conforme
ele é visto como superior, igual ou inferior na ação. Na
Poética de Aristóteles, por exemplo, a superioridade
determina um gênero, a tragédia, e a inferioridade, outro,
a comédia. No caso da inferioridade, são apropriadas
paixões que se refiram a este tipo de relação (vergonha,
temor, benevolência, etc); d) há, também, a imagem que o
outro faz de si mesmo na relação conosco: ele pode sentir-
se superior e mais forte, manifestá-lo pelo "desprezo", sem
que isso seja verdadeiro, daí nossa "cólera".84
também Carlo GUINZBURG. "Sinais - Raízes de um paradigma indiciário" inMitos, emblemas, sinais. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p.143-79.82 Por exemplo: Aristóteles, Retórica, III.17; Teofrasto, Caracteres;Cícero, Orator, 128-134, De Oratore II, 185-288, III.213-227;Quintiliano, Instituto Oratoria XI.3, VI.2-20.83 As paixões dependem da representação que os outros fazem de nós eaté da representação que nós fazemos da representação que os outrosfazem de nós.84 Michel MEYER . "Aristote ou la rhétorique des passions" in ARISTOTE.
32
O termo pathos refere-se, portanto, a dois
agenciamentos: modos de ser relacionados ao ethos,
determinando um caráter; respostas a outro modo de ser, um
ajuste ao outro. Em Quintiliano85, pathos aparece como afeto
violento e temporário que perturba e domina; um termo
latino que poderia traduzi-lo seria affectus. Ethos refere-se
a afetos mais brandos, mais duráveis; persuade mais que
comanda. A tradução latina de ethos é incerta. Quintiliano
diz que os romanos não têm termo para o conceito; propõe
mores ou morum quaedam proprietas. Na verdade, usa ethos tanto
para falar da constituição do caráter que se forja no
discurso, como do caráter do orador, ou de um tom afetivo
menos exaltado.
Esta flutuação já aparece em Aristóteles86. "Caráter"
pode-se dizer do orador:
"Dentre as provas por persuasão, as que se podemobter dentro da técnica são de três tipos: umasresidem no caráter daquele que fala, outras empredispor o ouvinte de alguma maneira, e as últimas,no discurso mesmo, graças ao que demonstra ou parecedemonstrar."87
Pode-se dizer também do auditório. Neste caso, vem
codificado como caráter/tipo (o velho, o jovem, o adulto, o
Rhétorique des passions. Paris, Rivages, 1989, p. 144-5.85 Inst. orat. VI. 2-4, 8-20.86 Cf. Eckart SCHUTRUMFF. The Meaning of ethos in the poetics - areply. Hermes,115(2): 175-81, 1987 e Cristopher GIL. The ethos/pathosdistinction in rhetorical and literary criticism. Classical Quaterly, 34:149-66, 1984.87 Retórica I.2.56.
33
rico, o poderoso) que o orador deve conhecer para melhor
persuadir:
" Trataremos agora dos caracteres, segundo aspaixões, disposições, idades e diferenças defortuna. Chamo paixões: a cólera, o desejo e todasas paixões da mesma natureza, de que falamosprecedentemente88; disposições: as virtudes e osvícios, de que já tratamos ao indicarmos as escolhasque cada uma destas disposições nos leva a cumprir.As idades são: o nascimento distinto, a riqueza, asposses, e o que lhes é contrário, numa palavra , asorte boa ou má."89
Ethos pode-se dizer, ainda, de uma afecção física:
"Ethe e pathe são 'afecções físicas' comuns ao corpo eà alma, mas inerentes à matéria. As paixões inclinamviolentamente, mas durante pouco tempo, oscaracteres dominam com suavidade a conduta, mas ofazem prolongadamente."90
Esta última é a distinção que aparece no Orator :
"Há duas coisas que, bem trabalhadas pelo orador,tornam a eloqüência admirável. Uma, que os gregoschamam ethikon , é apropriada ao temperamento, aoscostumes e ao trato da vida. A outra eles chamampathetikon; por meio dela, os ânimos são tocados eexcitados e o discurso triunfa. Aquela é afável,agradável, própria para conduzir à benevolência.
88 Retórica II,2-11, onde Aristóteles apresenta as paixões.89 Retórica II.12.90 De anima I.1.403a3.
34
Esta é veemente, inflamada, impetuosa; por ela ascausas são arrebatadas. Quando é conduzida comímpeto, não pode ser retida de nenhum modo."91
Depois de Aristóteles, a Retórica helenística pouco
discutiu a persuasão por meio do ethos e do pathos. Cícero
parece ser o primeiro a retomar o estudo dos lugares-comuns
e dos argumentos baseados num elenco de afetos. Refere-se
algumas vezes ao "caráter' do orador, tal como conhecido
antes do discurso92, dizendo que este também é um
instrumento importantíssimo para a persuasão. Em ao menos
uma passagem das Partições oratórias, fala do ethos aristotélico
do orador como prova dentro da técnica :
"O discurso torna-se agradável quando fala algo nãovisto, não ouvido ou novo. Agrada, também, qualquercoisa admirável e comove, acima de tudo, aquelediscurso que incita algum movimento de ânimo ou queapresenta costumes do próprio orador como amáveis.Esses são mostrados ao se identificar uma decisão doorador, seu ânimo humano e liberal ou a inflexão desua fala, quando, por motivo de aumentar o outro oudiminuir a si mesmo, parece dizer uma coisas econsiderar outra, e mostre fazer isso mais porbenevolência do que por futilidade."93
Neste ponto, Cícero está discutindo a elocutio, uma
das partes da força do orador. Do ponto de vista da
91 Orator, 128.92 Cf. W. Leonard GRANT. Cicero on the moral character of the orator.Classical Journal XXXVIII: 472-8, 1942/43.93 Part. orat., 22.
35
filosofia acadêmica, e também da peripatética, o caráter
que o orador apresenta no discurso por meio da elocução
relaciona-se com a, diga-se, Arealidade empírica@ de sua
vida apenas na medida em que tais doutrinas preconizam que
agir corretamente (recte facere) e falar bem (bene dicere) são a
mesma coisa. Mais adiante, lê-se o seguinte preceito para o
orador que está aconselhando no gênero deliberativo:
"Como o discurso deve ser conveniente não só àverdade , mas também às opiniões daqueles que ouvem,entendamos primeiramente isto: há dois tipos deouvintes, um não douto e rude, que prefere sempre autilidade à honestidade; outro, humano e polido, quea todas as coisas antepõe a dignidade. Portanto, aeste tipo é proposto o louvor, a honra, a glória, afé, a justiça e toda virtude; àqueles, a vantagem,oproveito e o fruto. E até mesmo o prazer, que éacima de tudo inimigo da virtude e adultera anatureza do bem, ao imitar falazmente, que alguémmuito cruel segue acirradamente e antepõe não só àscoisas honestas, mas também às necessárias, quando aesse tipo de homens dês um conselho, muitas vezesaté mesmo o prazer deve ser louvado."94
Tal preceito refere-se à acomodação à opinião dos
homens e poderia ser entendido (e atacado) como um convite
ao perjúrio e à falsidade. No entanto, Cícero está falando
de dois tipos de homens: um indoctum e agreste, outro
humanum e politum. Com os primeiros devem ser usados
argumentos que possam ser entendidos por alguém que, ao
94 Part. orat., 90.
36
decidir, leva em conta mais a utilidade do que a
honestidade95. Deve-se então apelar para referências ao que
é vantajoso, proveitoso e até prazeroso. Tais apelos não
são falsos, apenas estão num plano filosoficamente
inferior, pois, conforme discutido extensamente no Livro
III, do De officiis, nada pode ser útil sem ser honesto; a
aparência de utilidade é enganosa e deve ser evitada com o
trabalho especulativo de reconhecimento do honesto. É
inferior a probabilidade do argumento que se baseia na
utilidade. No entanto, é aquilo que o ouvinte tosco pode
acompanhar e é o que o orador deve produzir diante de tal
ouvinte. O ethos deve ser produzido ad hoc.
A comoção (ethos mais pathos) é referida várias vezes
nas Partitiones oratoriae96; em geral, correlacionada e apenas
aparentemente contraposta ao estabelecimento da fé. Aparece
pela primeira vez na discussão da inuentio (5), uma das
partes da força do orador. A invenção não é fechada e
absoluta, é sempre executada tendo em vista aquele a quem
se deseja persuadir. Para tanto, deve buscar estabelecer a
fé e comover os ânimos. A fé é estabelecida pelos
argumentos, tirados dos "lugares" contidos no assunto ou a
ele atribuídos. Cícero adia a explicação do que é "comover
os ânimos" até que o tratado comece a discutir o discurso e
95 Lembrar que o honestum e o utile são os assuntos dos livros I e II,respectivamente, do De officiis. Os preceitos morais fornecidos nesseslivros são instrumentos para a persuasão pelo discurso.96 Por exemplo Part. orat. 5,8,13,20,27,46,112.
37
a questão (8), indicando que a comoção dos ânimos que
depende da força do orador só pode efetivar-se propriamente
no discurso e para uma ocasião particular. No entanto, ao
passar pela collocatio (13), refere-se rapidamente a uma
organização ad motum, uma forma de dispor os argumentos
encontrados de maneira a tocar, diríamos até surpreender, o
público.
Na parte do tratado que discute o discurso, Cícero
apresenta suas quatro partes e diz que duas delas (o initium
e a peroratio) servem para comover os ânimos, enquanto as
duas outras (narratio e confirmatio) concentram-se em
estabelecer a fé. As tarefas não são excludentes. Para que
a narratio consiga estabelecer a fé é preciso que seja
clara, breve, provável e suave (31). A suavidade depende de
admirações, expectativas e comoções (32), em geral, que o
orador deve construir e apresentar no discurso para
produzir a credibilidade do ouvinte em relação ao que se
diz. A confirmatio também precisa das paixões presentes nos
verossímeis (34). Deve-se fazer a fé, pois não existe antes
do discurso; é, portanto, resultado de uma construção. Os
ânimos devem ser comovidos, ou seja, o discurso deve tocar
em algo que já existe e conduzi-lo para onde quer que
queira. Mas há duas comoções referidas: a que o orador
opera diretamente no ouvinte (a captatio beneuolentiae do
exórdio, por exemplo) e a que ele constrói e apresenta no
discurso para observação do público, com a finalidade de
38
estabelecer a fé. Este segundo tipo de comoção é uma
espécie de animi faciendi que o orador deve estabelecer e que
pode ser considerada um tipo de prova para a persuasão.
As três provas dentro da técnica, ethos, pathos e logos,
podem ser relacionadas às três tarefas do orador, doutrina
codificada por Teofrasto, bastante referida na retórica
latina, embora com designações que se alternam. Em Cícero,
por exemplo, a lista dos três officia do orador tem várias
conciliare, flectere (De oratore II.114 e 121); decere, delectare, mouere
(De oratore, II.130), são algumas delas. A lista varia
conforme as necessidades da argumentação. O termo delectare
talvez seja mais restrito, referindo-se à sedução por meio
da elocutio. Conciliare (que engloba delectare) refere-se
genericamente aos vários procedimentos que suscitam a
crença e a benevolência do auditório97.
Das três tarefas do orador, probare relaciona-se aos
lugares e, portanto, à argumentação; conciliare (mostrar-se
de maneira a tornar o auditório favorável) ficaria a cargo
do ethos, enquanto mouere (incitar as paixões no auditório,
com a finalidade do formar um juízo) dependeria do pathos.
Do orador é exigido, portanto, lidar com o problema prático
de fazer com que o público acredite (ou melhor, atribua
fides) naquilo que ele diz, principalmente a respeito de si
97 Cf. também a discussão sobre a doutrina das três tarefasapresentada por G.M.A. GRUBE. The greek and roman critics. London, Methuen &CO, 1965, p.178.
39
mesmo. Não se trata, como já dito, de uma sinceridade
psicológica, mas de uma fides retórica que depende de um
juízo do público: deve haver correspondência entre o ethos
declarado e as ações efetuadas (e as paixões e elas
associadas), a elocutio aplicada e a actio apresentada. O
critério de correspondência será a verossimilhança e o
decorum98.
O orador fala de maneira a apresentar o caráter que
deseja. Na recepção oral, a actio é a parte da oratória mais
imediatamente perceptível99: para o julgamento, o conjunto
(voz, tom, semblante, gesto)100 deve ser conveniente ao
agenciamento das paixões que o caráter declarado pressupõe.
Cada um dos componentes da ação acha-se codificado em
termos das paixões101:
"Certamente, todo movimento do ânimo tem, pornatureza, um certo semblante, uma inflexão, umgesto, e o corpo inteiro do homem, toda suaaparência, todos seus sons vibram como as cordas deuma lira conforme são pulsionados pelo movimento deânimo correspondente a cada um. A voz é como umacorda tensionada que responde a qualquer toque;aguda, grave, rápida, lenta, grande, pequena e, alémdisso, existe uma modulação intermediária
98 O decoro será, como sempre, um conceito efetivado em reação aoutros conceitos. Aqui, ele é determinado por uma série de excelênciaséticas (jogo de virtudes e vícios) que caracterizam os "bem nascidos".99 Daí ser a actio um dos critérios mais valorizados por Cícero nojulgamento que apresenta dos oradores romanos no Brutus, conforme jáapontado.100 Em Part. orat. 3, a actio aparece como comes eloquendi.101 Cf. QUINTILIANO. Inst. orat. XI.3 e CÍCERO. De oratore, III.213-217.
40
correspondente a cada gênero."102
" Com efeito, toda ação decorre do ânimo e osemblante é o espelho da ânimo, os olhos são osíndices. Pois esta é a única parte do corpo que, dequantas são movidas pelo ânimo, pode executar tantossignificados e tantas alterações."103
"Antes de tudo prevalece o semblante. Com um somossúplices, com outro, ameaçadores, com outro,brandos, com outro, alegres, com outro, firmes, comoutro, submissos. Os homens examinam o semblante,perscrutam-no; ele é observado antes mesmo quefalemos. Por um parecemos amar alguém, por outroodiar, por outro compreender muitas coisas, outro,muitas vezes, vale por todas as palavras."104
Como já se disse, a utilização retórica, na ação,
das marcas de movimento de ânimo depende de uma
determinação ética:
"Portanto, como, nas liras, os ouvidos dos músicospercebem até as coisas mínimas, assim nós, sedesejamos ser sérios, diligentes e atentos aosvícios, compreendamos, com freqüência, coisasgrandes a partir das pequenas. Da contemplação dosolhos, da distensão ou da contração dos supercílios,da tristeza, da alegria, do riso, da fala, dareticência, da contensão da voz, da submissão e deoutras coisa semelhantes, facilmente julgaremos qualdelas se faz convenientemente e o que discorda dodever moral e da natureza."105
102 De oratore III.216.103 Inst. orat. XI.3.221.104 Inst.orat. XI.3.72.105 De officiis, I.146.
41
A determinação retórico/ético/política naturaliza cada
uma dessas convenções, ao ser efetivada pela actio. No caso
da recepção escrita, a preeminência seria da elocutio106: para
tipos apaixonados e coléricos, por exemplo, um excesso de
ornamento, dando evidências de elaboração do artifício, não
condiz com o desequilíbrio das paixões a ele associadas e,
assim, diminui a crença na sinceridade do afeto declarado:
ethos e pathos não ficam, neste caso, equivalentes e,
portanto, não conseguem angariar a fides para a persona que
se pretende apresentar.
A mesma determinação vale para a ficção e para a
oratória, a pintura, a escultura; aplicando-se, em cada
caso, os diferentes decoros dos modos. Assim, quando Ovídio
é dito lasciuus, Catulo, doctus, Tibulo, tersus atque elegans,
Propércio, tener e blandus, estes termos são entendidos como
características técnicas, maneiras de compor e equilibrar o
par ethos/pathos, que revelam não o caráter de um indivíduo
que se expõe na poesia, mas sim os diferentes efeitos
exigidos pela prescrição do gênero poético escolhido107.
Na Poética, Aristóteles define caráter como "o que nos
faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal
qualidade"108. Se há uma narrativa, o caráter da personagem
106 É curioso notar como ainda hoje a elocução, ou o "estilo", é usadapela "crítica" para determinar moralmente o caráter do escritor.107 Cf. Archibald ALLEN. ASincerity@ and the roman elegists. ClassicalPhilology, XLV (3): 145-60, 1950.108 Poética, 50a. 5-6.
42
é percebido pela "qualidade"109 da ação narrada, ou seja,
pelo efeito de causalidade resultante da adequada montagem
das ações. É possível qualificar também por meio do jogo
paixão/caráter. Nesse sentido, Ovídio é chamado lascivo
porque descreve com propriedade um mundo de irregularidades
morais como se fosse o mundo da norma estabelecida,
executando uma das prescrições da elegia erótica110. O
chamado "tom sincero" de Catulo também viria de sua
eficiência técnica111.
Em Roma, sendo a paixão amorosa considerada uma
doença e o apaixonado um desequilibrado, é de se esperar
que alguém que se apresente com tal caráter não tenha o
menor domínio sobre suas ações, na medida em que são
respostas às paixões suscitadas pelo outro. Para produzir o
efeito "apaixonado" componha uma personagem com os
seguintes traços: declare-o apaixonado; submeta-o a um
pathos, o desprezo, por exemplo; descreva sua resposta a esta
paixão. Um homem virtuoso, vítima de desprezo, pode reagir
com cólera (se a superioridade pretendida no desprezo não
for verdadeira), com desprezo (se ele próprio se julgar
superior), com indignação, etc. Escolhida a paixão, o
virtuoso responderia agindo de acordo com os princípios
109 Qualitas correspondente à pergunta retórica Aquale sit?@. Cf. Part. orat.101-138.110 Cf. Paul VEYNE. A elegia erótica romana. São Paulo, Brasiliense, 1985.111 Cf. Francis CAIRNS. Generic composition in greek and roman poetry.Edinburgh, Edinburgh U.P.,1972. Paulo Sérgio VASCONCELLOS.AIntrodução@ in CATULO. O cancioneiro de Lésbia. São Paulo, Hucitec, 1991,p.11-34. Francisco ACHCAR. Lírica e lugar-comum. São Paulo, EDUSP, 1994.
43
desta. O apaixonado, desequilibrado que é, não consegue
dominar-se (impotens), vacila entre várias paixões. Do ponto
de vista da inuentio, o retrato está formado. A elocutio deve-
se adequar a ele: um apaixonado não carregaria o discurso
de ornamentos, ou sim, mas de modo inepto. A dispositio deve
ser ad motum: lança de maneira displicente seus argumentos
(não necessariamente lógicos, como já dito) e, no final,
conclui (ou deixa a conclusão para o leitor) por aquilo com
que deveria ter começado. Somada ao ingenium, esta receita
poderia resultar num poema como o VIII, de Catulo112. Outra
versão poderia ser o poema LXXXV113, mais incisivo, onde a
persona é composta simplesmente declarando-se incapaz de
escolher entre duas paixões opostas.
112 Catulo VIII :Miser Catulle, desinas ineptire,Et quod uides perisse perditum ducas.Fulsere quondam candidi tibi soles,Cum uentitabas quo puella ducebatAmata nobis quantum amabitur nulla.Ibi illa multa tum iocosa fiebant,Quae tu uolebas nec puella nolebat.Fulsere uere candidi tibi soles.Nunc iam illa non uolt; tu quoque, impotens, noli,Nec quae fugit sectare, nec miser uiue,Sed obstinata mente perfer, obdura.Vale, puella. Iam Catullus obdurat,Nec te requiret nec rogabit inuitam;At tu dolebis, cum rogaberis nulla.Scelesta, uae te; quae tibi manet uita!Quis nunc te adibit? cui uideberis bella?Quem nunc amabis? cuius esse diceris?Quem basiabis? cui labella mordebis?At tu, Catulle, destinatus obdura.113 Catulo LXXXV:Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.Nescio, sed fieri sentio et excrucior.
44
Como individualizar o tipo "apaixonado"?
Singularizando o desprezo, as ocasiões do pretendido amor e
os deslizes no autodomínio.114 O tipo, persona, da poesia é
uma espécie de quaestio infinita: particularizado por várias
quaestiones finitae, torna-se um tipo individualizado. No Final
da República, em Roma, vê-se o interesse por determinadas
quaestiones infinitae. Cada uma delas entra na malha
política/ética/retórica que define seu valor e que dá
lugar a uma certa "ficcionalização performativa do
caráter"115. Por exemplo, figurar a falta de domínio como no
poema VIII de Catulo, mostrando preocupações como beijar,
admirar, morder os lábios da amada, apela à intimidade e
mundanidade (urbanitas) da personagem, referindo-se a um
gosto particular, em princípio não preferível numa
sociedade em que o valor e o interesse individual medem-se
pelos serviços prestados ao Estado. Traz a público o
desequilíbrio do apaixonado na esfera do que poderíamos
chamar de suas atividades privadas, ou seja, das atividades
que não dizem respeito ao negotium116. Ao tratar da defesa do
poeta Archias, Cícero diz que sempre ocupou seus momentos
de otium com os estudos de filosofia e letras e que, graças
114 A poesia elegíaca, justamente, hipersingulariza seus tipos.115 Cf. Eleanor W. LEACH. The politics of self-presentation: Pliny=sLetters and roman portrait sculpture. Classical Antiquity, 9(11): 15-39, 1990.116 As personae dos elegíacos declaram-se sem qualquer aptidão "para"ou interese "pelo" negotium, o que é muito conveniente para alguém quese diz soldado na militia amoris. Cf. Paul VEYNE. A elegia erótica romana. SãoPaulo, Brasiliense, 1985.
45
a eles, pôde ser muito mais útil à República117. Salústio
declara que, depois de passar, na juventude, pela vida
pública e pela corrupção, vai ocupar o otium de sua velhice
gravando feitos memoráveis de Roma, dizendo que "se é belo
ser útil, por feitos, à República, não é absurdo sê-lo por
palavras"118.
Apesar de referências à vida particular (os momentos
de otium), estas declarações de Cícero e Salústio são parte
da persona pública, ou seja, da persona retórica que varia
consideravelmente conforme as necessidades do momento119.
Pode-se dizer que, nestas declarações, as personagens são
tão fictícias quanto o apaixonado que diz "pobre Catulo,
deixa de delirar", cada persona declarando o que é preciso
para compor o tipo. O fato de aparecer uma primeira pessoa
gramatical (que nos exemplos referidos, inclusive no de
Catulo, é o nome do que se supõe produtor do discurso) é um
recurso técnico que, executado convenientemente, cumpre a
117 Pro Archia, I.118 Conjuração de Catilina, 3-4.119 Em várias ocorrências, Cícero dá a entender que, entre os seusestudos e seus gostos, as artes (poesia, pintura, escultura) ocuparampouco espaço. Chega a simular o esquecimento do nome de Policleto. Noentanto, quando se trata de convencer o juri dos hediondos crimes deVerres, sabe, com precisão, indicar o valor das obras de arteroubadas. Anne LEEN (Cicero and the rhetoric of art. American Journal ofPhilology, 112: 229-45, 1991) evidencia que o conhecimento artístico deCícero é suficiente para que ele ornganize um "programa decorativo"para sua vila em Túsculo, tendo como princípio agenciador o decorum e autilitas. Das cartas a Ático pode-se concluir que ele está comprandoobras com o propósito expresso de fazer com que as pessoas vejam estasestátuas e formem uma impressão favorável, não apenas de seu gosto edistinção, mas também de sua importância política e de sua condiçãosocial.
46
tarefa de conciliare e atribui auctoritas e fides à declaração.
Desconsiderando esta composição retórica dos caracteres e
das paixões, parte da crítica distribui, pelo Final da
República, rótulos de "vaidoso" (Cícero), "sincero"
(Catulo) e os rótulos de "verista" ou "idealizado", para
certo tipo de retratos esculpidos, muito freqüentes nesse
momento.
Os retratos de aristocratas no Final da República
empregam idiossincrasias do aspecto (rugas, verrugas,
marcas faciais, cabelo) para afirmar a glorificada elevação
ética dos optimates. Chamado "verista", este tipo de retrato
dá ênfase às marcas da idade, propostas como marcas do
serviço ao Estado. Em Roma, o acesso às altas magistraturas
estava regulado por uma idade mínima: os cargos de
importância necessitam da experiência dos mais velhos. No
Final da República, jovens que adquiriram prestígio na vida
política e militar chegam aos altos cargos cada vez mais
cedo120, fato apontado pelos optimates como um dos indícios
mais evidentes do caos político. Nesses termos, o retrato
"verista" pode estar relacionado às imagines maiorum, não no
sentido de filiação "plástica", mas sim no de ambos estarem
relacionados ao patriciado. As últimas, teatralizando,
graças ao ritual fúnebre do desfile das imagines, a
pretendida excelência ética da tradição das verdadeiras
virtudes Romanas121. Os primeiros, através da contraposição120 Quando é eleito cônsul, em 43 aC, Otaviano está com 19 anos.121 Cf. o discurso do "homem novo" Mário ( SALÚSTIO. Guerra de Jugurta,
47
com o retrato idealizado, denunciando o pretendido
desequilíbrio da situação atual, em que as ditas
verdadeiras virtudes estão cada vez mais perdendo
importância política.
Quando a chamada "idealização" entra nesta classe de
figurações, atenuando as idiossincrasias do modo verista e
apagando as marcas ostensivas da idade, ela dá início a uma
interessada homenagem à cultura helenística122. O modo
clássico, segundo proposto por essa cultura, é, então,
invocado, não apenas por seu conteúdo inerente, mas também
por seu valor associativo emblemático do que passou a se
apresentar como uma Idade de Ouro123. Este tipo de retrato
utiliza elementos da figuração helenísticos de caráter
classicizante para dramatizar personalidade e sugerir uma
superioridade divina. Nos dois tipos de retrato, as
contingências da fisionomia individual são agrupadas para a
reiteração formalizada de traços de caráter, assim como
eles podem ser vistos em certas convenções da mímese
facial. A manipulação das convenções cria o efeito de
caráter que o decoro exige.
O regime da actio, conforme já dito, propõe que a
"fisionomia é o espelho do ânimo", espelho retórico que
85) propondo uma nova moral da ação e criticando os arruinados queainda tentam se valer do prestígio das imagines maiorum.122 Tal homenagem pode ser encontrada também na poesia dos poetae noui ena da Época de Augusto.123 Idade de Ouro: a Atenas de Péricles revisitada pelos sábiosalexandrinos.
48
reflete o que é preciso refletir. É possível compor um
efeito de "interioridade de um sujeito" a partir das marcas
significantes que se oferecem para serem lidas sobre seu
rosto; compor a mais favorável figuração para chegar a seus
fins. O material disponível para a composição é o mesmo do
poeta: as paixões e os caracteres. As marcas tornam-se
significativas na medida em que aparecem a eles
associados.124 Nesse sentido pode-se falar em "rugas
mesquinhas ou virtuosas", "músculos irascíveis ou
confiantes" e "elevação ou devassidão ética da fisionomia".
O retrato helenístico já apresenta o interesse de
analisar a fisionomia com certo detalhamento125, gravando na
aparência externa a idade e a experiência de vida. Na
verdade, coloca na aparência a máscara social, as
propriedades de conduta que unem o retratado e o expectador
num mundo familiar. Talvez por isso diga-se que os retratos
helenísticos são tipos.126 Já dos retratos romanos, diz-se
que são a primeira tentativa de mostrar qualidades
específicas constituintes da pessoa127; o interesse
124 Por exemplo: rugas, o caráter "velho" e as paixões a eleassociadas. A associação não é unívoca. Já foi sugerido que as rugaspatrícias são virtuosas marcas de serviço à República. Aristóteles(Retórica II.13) mostra o caráter dos velhos sujeito a várias paixões:são pusilânimes, mesquinhos, tímidos, mais inclinados ao cinismo doque à vergonha, etc.125 Cf. Ranuccio B. BANDINELLI. L=arte romana nel centro del potere. Milano,BUR/ARTE, 1988.126 Cf. Sheldon NODELMAN. How to read a roman portrait. Art in America,63: 27-33, 1975.127 Pode-se ver certo parentesco entre a alegado Asinceridade@ deCatulo e o Averismo@ dos retratos. Também nos poemas de Catulo já
49
passaria, agora, para o estudo do caráter, da força
interior da personalidade.128 Pode-se, de fato, notar alguma
passagem do "tipo" para o "indivíduo". A máscara
retórico/social fossiliza o tipo, caráter definido por uma
conjunto específico de paixões: o velho, o filósofo, o
amante, o tagarela, etc. Os "desvios" da máscara, ou seja,
a conjunção de paixões conflitantes para um mesmo tipo,
produz o efeito de individualidade, de experiência
particular e singular como desviante do sistema social. Um
pouco de entusiasmo e já se pode falar em "mundo interior
da experiência privada"129.
O jogo entre ethos e pathos compõe personae tanto na
escultura como na poesia, e nos discursos em geral. Mais
foram ressaltadas as supostas Amarcas pessoias@. 128 George M.A. HANFMANN. Observations in Roman Portraiture - VI.Latomus, XII: 454-65, 1953.129 Uma descrição técnica desse procedimento é apresentada porNODELMAN(1975): "A poderosa unidade rítmica que une todas as formas dacabeça (retrato) grega referem-se exclusivamente umas às outras e aoseu centro ideal (...) No retrato romano, esse sistema rítmico fechadoé rompido. As componentes individuais são percebidas com maiorindependência (...) O efeito (de individualização) é conseguidoatravés de enfáticos e discordantes contrastes com os quais estesdetalhes são agrupados para relacionar-se uns com outros, levando àemancipação em relação a um princípio formal unitário perceptível edominante." (p.30) "Ao mundo social, definido como externo, devecorresponder o mundo interior da experiência privada e este segundonível também é visível no retrato romano, na involuntária, talvezespontânea, contração dos pequenos músculos, que revela outrossentimentos daqueles afirmados pela máscara, e na inflexão distorcidada própria máscara". (p.32) Cabe ressaltar que o "mundo interior daexperiência privada" não é refletido pelo arranjo dos elementos, masforjado a partir deles. Parece interessante notar como parte dessasafirmações são transpostas para a crítica que trata da poesia doperíodo.
50
uma vez vale lembrar que, em todas essas artes, a comoção
dos ânimos e o estabelecimento da fé têm determinação
retórica e ética. Para entender a circulação dos discursos
e dos retratos é preciso conhecer os preceitos que marcam
sua produção e sua recepção.
Vale lembrar, ainda, que a ética antiga, a estóica
por exemplo, trata de problemas relacionados às escolhas
pessoais, com o objetivo de se viver uma vida bela. Se há
uma ars dicendi, uma técnica que engloba a produção dos
discursos ordenados, há também uma ars uiuendi, uma técnica
de viver que deve produzir uma existência bela.130
130 Cf. Michel FOUCAULT. História da sexualidade. Vol. 3 - O cuidado de si. Rio deJaneiro, Graal, 1985. Cf. também Pierre HADOT. Exercices spirituels etphilosophie antique. Paris, Études Augustiniennes, 1987.