Cascos de Insularidades sob “CLARIDADEs” em Mar Alto Escritas de Cabo Verde Ana de Neves Rodrigues Frequência de Doutoramento em Línguas, Literaturas e Culturas, Especialidade Literatura Comparada, na FCSH – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. [email protected]Artigo realizado no âmbito do Mestrado em Estudos Regionais e Locais Universidade da Madeira, 2010. 1
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Cascos de Insularidades sob CLARIDADEs em Mar Alto - Escritas de Cabo Verde
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Cascos de Insularidades sob “CLARIDADEs” em Mar
Alto
Escritas de Cabo Verde
Ana de Neves Rodrigues
Frequência de Doutoramento em Línguas, Literaturas eCulturas,
Especialidade Literatura Comparada, na FCSH – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
O alvo deste trabalho é o de tentar encontrar alguns
fragmentos da produção literária caboverdiana até ao
aparecimento da revista Claridade, em 1936. Por entre
passagens e paisagens de Cabo Verde, verificamos que a
insularidade se encontra patente em cada esquina e a sua
arquitectura é singelamente esculpida por entre
translúcidos sentimentos de mar e tórridas experiências de
plantações de milho, secas, fomes, doenças, colonizações,
servidão, emigrações, saudades e regressos de quem jmais
desiste de tentar voltar à sua ilha. Por entre as frinchas
3
de cada escrita surgem imagens da grande dignidade de um
povo que se recusa a negar as suas raízes. Perante tal
dimensão e riqueza literárias, mencionaremos apenas alguns
escritores que deram a conhecer ao mundo a identidade
caboverdiana e a intensidade de tal crioulidade.
Reza a História que a posteriormente denominada Ilha da Boa
Vista assistiu, pela primeira vez em 1460, à ancoragem das
embarcações portuguesas, tendo sido assim nomeada após a
longa permanência dos homens no mar. As ilhas de Santo Antão,
São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau e Santiago, canonizando na
memória dos povos o dia do seu achado, destacam-se da Ilha
de Maio, reveladora do mês da descoberta, da Ilha do Fogo,
cujo vulcão a dominava, da Ilha da Boa Vista e da Ilha do Sal,
pelas extensas salinas nela existentes. No entanto, a
adversidade flutuante fazia-se sentir perante um restante
pedaço de terra à qual foi dado o nome de Ilha Brava.
Descoberto o território, apoderam-se dos cerca de 4000 km2,
em que os portugueses desempenharam um papel fundamental na
colonização porque apresentaram-se com o domínio da
tecnologia para cultivo dos solos difíceis, o que criou na
população a expectativa de melhoria do nível de vida geral.
E foi isto que fez com que os portugueses, contrariamente
aos outros povos invasores, fossem aceites na comunidade1.
A transplantação de povos para uma região inóspita e com
um clima desfavorável deu origem a uma sociedade detentora
de características particulares onde prevaleceu, não só a
organização e a gestão institucional do colonizador, mas1 Cf. Russel Hamilton, Literatura Africana Literatura Necessária II - Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Lisboa, Lisboa, Edições 70, Bibliotecade Estudos Africanos, 1984, p.93.
4
também onde o idioma destes foi aceite como referência
identitária. Foi graças a este pormenor que a sociedade
caboverdiana se foi metamorfoseando numa "sociedade
unitária e homogénea"2 e a isso não terá sido alheio "um
contínuo alargamento da área ou do campo de propagação do
mestiço"3.
Da triangulação do tráfego negreiro intracontinental, em
que os escravos eram capturados em África e levados para o
arquipélago de Cabo Verde, de onde partiam para a Europa e
Brasil para trabalharem nas explorações de cana-de-açúcar,
algodão e café, até aos internos movimentos de libertação,
viveram-se conjunturas sequenciais de apogeu e queda, dando
acesso até à tão desejada conquista da independência em
1975.
Na literatura também se vislumbram “nesgas”4 desse sol
revelador, reflexo das mudanças políticas sofridas no
arquipélago e sentidas com o final da monarquia e a
implantação da república em 1910, posteriormente
interrompida pela ditadura militar em 1926 e a instauração
do Estado Novo, que se prolonga até 1933. Sentem-se
resquícios de uma outra fase da produção literária até à
independência nacional de 1975, seguindo-se a primeira
república até 1990, e a segunda república até ao ano 2000.
2 Gabriel Mariano, "A mestiçagem: seu papel na formação da sociedade caboverdiana", in Suplemento Cultural, Boletim de Propaganda e Informação,Praia, publicação da Imprensa Nacional, Outubro de 1958, p. 11. 3 Luís Filipe de Sousa Martins Torres de Carvalho, Rebeldia e Sensualidade nosuplemento Cultural (Uma perspectiva de produção literária dos poetas “insubmissos”), Tese de Mestrado na F.L.U.L., acedido em 03/07/2010 em: http://www.fl.ul.pt/posgraduados/teoria_literatura/CarvalhoL1.pdf 4 Almeida Garret, Viagens na Minha Terra, Cap. I, Porto Editora, Outubro,2005.
Actualmente, 10 anos passados, também a terceira república
tem dado à luz produções literárias de grande interesse5.
2-Cascos de Insularidades A necessidade que todos os povos possuem de conhecer a
matriz histórica do seu passado torna-se fundamental para a
auto-afirmação perante as culturas dominadoras, razão pela
qual o povo caboverdiano, tal como outras gentes,
reivindique para si o mito da Atlântida, com toda essa
amplificada cultura e civilização submersas.
A palavra, enquanto suporte de vivências, estimula o
despertar das consciências para o brotar de novas árvores
que o mesmo solo, regado por chuvas diferentes, começa a
produzir. De profundas raízes e troncos consistentes, os
seus ramos sólidos e firmes permitem antever a folhagem do
Humanismo, enquanto as árvores dão os seus frutos,
distinguindo-as de todas as outras espécies. Através das
tradições orais, das canções e da literatura, os rebentos
espelham bem as imagens da crioulidade que se instala
sempre que o ritmo do batuco rima com palavras de finaçon,
por entre os contos fantásticos da “boca da tarde”6. Os
cerimoniais espelham bem a ligação do povo com o
transcendente, com o milagre do nascimento e com a
transição ocorrida na morte. As vivências caboverdianas5Manuel Brito-Semedo, Divisão das fases da literatura caboverdiana, acedido a01/07/2010 e consultada em:http://memoria-africa.ua.pt/library/searchRecords/TabId/166/language/pt-PT/Default.aspx?q 6 Manuel Veiga (coord.), Cabo Verde, Insularidade e Literatura, Ed. Kaithala,Praia, 1998.
ganham forma através dos conteúdos das cantigas de
trabalho, as quais jamais podem ser ignoradas neste humilde
processo de construção da crioulidade esclavagista que se
metamorfoseia através da abolição da escravatura e passa a
ver-se ao espelho na Escola, essa grandiosa instituição
destinada à educação e à homogeneização social e cultural.
Apesar da necessária mudança de mentalidades tornar o
processo bastante demorado, o ser ou o não querer ser crioulo
reflectem bem a indecisão constante entre a aceitação e
afirmação dessa mesma crioulidade. Se considerarmos, não o
fenómeno em si mesmo, mas a sua origem, então talvez
possamos ter em consideração a existência de crioulidades.
Se a localização geográfica for o nosso ponto de partida,
certamente que consideramos Cabo Verde como um estado
africano. No entanto, se de uma perspectiva geoestratégica
se tratar, concluímos que a história e cultura
caboverdianas resultam de um palimpsesto de influências
africanas, mediterrânicas e atlânticas que, em uníssono,
construíram um ancoradouro de lusofonia e de latinidade.
As primeiras manifestações literárias surgem aquando
da imprensa em Cabo Verde, a qual permitiu a publicação do
Boletim Oficial em 18427. O processo foi lento e a imprensa
privada só assume o seu papel na sociedade a partir de
1877. É nesta altura que Eugénio Tavares se destaca pois,
enquanto compositor das famosas canções crioulas designadas
de mornas, ele é um acérrimo defensor da sua terra e da sua
gente. 7 Laranjeira Pires (1995), As literaturas africanas de língua portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa.
7
A primeira obra em prosa data de 1856. Intitulada O
Escravo é da autoria de José Evaristo de Almeida, e baseia-
se num contexto histórico caboverdiano que denuncia a falta
de humanidade da escravatura. A primeira publicação em
poesia foi a Biographia de António Pusich, datade de 1872 e da
autoria da sua filha Gertrudes.
3-Grandes Escritores Caboverdianos do Século XIX
a. Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (1768-
1824),
Ao considerar os escritores de Cabo Verde, e em
especial aos que expressam na sua produção literária um elo
com a Madeira, não nos devemos cingir apenas aos que
nasceram nas ilhas caboverdianas, mas também aos que lá
viveram, deixando a sua impressão digital nos seus
escritos.
Foi, entre outros, o caso de Francisco de Paula Medina e
Vasconcelos que, tendo ingressado na Universidade de
Coimbra, foi preso em 1790 após diversas actividades
políticas revolucionárias. De regresso ao Funchal em 1792
volta a rebelar-se, sendo preso e condenado a oito anos de
degredo em Cabo Verde8. Apesar do percurso replecto de
8 Manuel Veiga (coord.), Cabo Verde, Insularidade e Literatura, Ed. Kaithala, Praia, 1998.
8
turbuência, era considerado um prestigioso poeta, com
várias publicações9. No entanto, a que obteve mais impacto
foi Zargueida: descobrimento da Ilha da Madeira, considerada um
poema heróico com informações históricas de relevo, para
além dos pormenores da lenda de Manchim e de relevantes
descrições, não apenas topográfica, mas também relacionadas
com a flora e a fauna da ilha10, e do qual inserimos em
anexo apenas o Canto V, a título de exemplo.
b. Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883)
A Ilha caboverdiana de São Nicolau assistiu ao nascimento
daquela que viria a ser a “dama de ferro” do jornalismo,
pois revelou ser a primeira mulher a desafiar a hegemonia
masculina ao assinar o cabeçalho de um jornal português sem
recorrer a pseudónimos. A educação que recebeu do pai, de
origem nobre e detentor de uma vasta fortuna, demonstrou
ser fundamental para o seu percurso de vida pois, desde
criança, sempre acompanhou os pais na ajuda prestada às
populações de Cabo Verde, vítimas de prolongadas secas e
das sequentes doenças e fomes. É a própria que alega ter
sido o seu pai a terminar com os castigos corporais
aplicados em público pelo anterior governador. Ainda em
tenra idade, aprendeu a ler e a praticar a arte da escrita
através de singelos versos, ao mesmo tempo que aprendia
várias línguas. Era ela quem acompanhava o pai quando este
9 Poesias Lyricas de Medina (1797); Sextinas Elegíacas (1805) Zargueida (1806); Georgeida (1819), entre outras. 10 Francisco de Paula Medina e Vasconcelos, Zargueida, in Biblioteca Pública Regional da Madeira, consultado a 06/07/2010 e disponível em: http://www.bprmadeira.org/imagens/documentos/File/bprdigital/ebooks/Zargueida1806b.pdf
percorria as diversas ilhas, e era sua a função de tirar
notas, assim como redigir alguns documentos. Só após passar
por três casamentos e onze filhos é que teve a sua primeira
publicação em 1841. Foi graças à sua enorme persistência e
frontalidade que o jornalismo lusófono, através do
vespertino O Liberal, assistiu a mudanças culturais que
marcaram a história de Cabo Verde. Para além disso, fundou
ainda outros três jornais de grande relevo, transmitindo a
ideia de que todas as mulheres podiam passar a ser parte
activa da vida política e social da sociedade despertando
nelas o seu sentido cívico.11
Das suas obras destacam-se Olinda ou a Abadia de Comnor
Place, inspirada numa novela de Walter Scott. Para além de
escrever histórias de terror por entre castelos, ruínas,
fugas, salteadores, mortes e tempestades, dedicou-se também
a escrever sobre episódios da vida dos elementos das
famílias reais com as quais travava enorme amizade, tarefa
bastante facilitada pela sua longevidade. Foi, no entanto,
o facto de ter sido a fundadora de três periódicos que a
assinalou como a primeira jornalista portuguesa, deixando
transparecer a sua personalidade multifacetada de pedagoga,
para além de activa na vida social e política da época. Das
suas produções literárias destaca-se o poema “Madeira”,
compilado na obra de Nuno Catharino Cardoso publicado em
191712. De regresso a Lisboa passa a residir na Rua de São
Bento, tendo vindo a falecer a 6 de Outubro de 1883.11 Maria Luisa V. Paiva Boléo, Antónia Pusich (1805-1885) a primeira jornalistaportuguesa, in Portal O Leme, consultado a 08/07/2010 em:http://www.leme.pt/biografias/pusich/12 Nuno Catharino Cardoso (1887), in Canadian Libraries, Poetisas Portuguesas, Livraria Scientífica, Lisboa, 1917.
Nascida na ilha de Santo Antão, sempre foi considerada
uma mulher muito inteligente e instruída. Educada num
colégio particular em Coimbra, inicia-se na escrita sob as
temáticas do mar, da tempestade, não esquecendo os abismos
por entre caminhos que mais pareciam de animais do que para
homens, para além das histórias fantásticas de feiticeiras
e duendes. Em 1895 foi colaboradora do Almanaque Luso-Africano
(1894-1899) tendo também publicado várias poesias no
Almanaque das Lembranças.
Os Almanaques exercem aqui um papel educador e
informativo de suma importância, não só para os leitores,
mas também para os analfabetos que, ao serão, desfrutam
destas leituras13. Tematicamente orientado para a vida
urbana, é direccionado para a toda a comunidade com o
intuito de difusão de conhecimentos múltiplos. Para além do
habitual calendário, dá espaço à poesia e à prosa,
acompanhadas de ilustrações desenhadas para o efeito. Este
facto demonstra o importante papel do editor ou fundador,
pois é ele que selecciona os autores, os ilustradores e os
temas da publicação, facilitando o acesso aos textos
originais e incentivando a leitura e a aprendizagem. Os
Almanaques do século XIX apresentam temáticas ligadas ao
clima, aos transportes marítimos e ferroviários, ao13 Carla Gastaud, Erudição e Ignorância no Novo Almanach de Lembranças Luzo-Brasileiras para o ano de 1887, Resumo, UFRGS, Brasil, consultado a 12-07-2010e disponível em: http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/307CarlaGastaud.pdf
também fundar A Voz de Cabo Verde. Colabora no Correio Português,
de New Bedford, colabora com A Tribuna, da Ilha Brava, para
além de compor e publicar uma canção dedicada à República.
Para além das publicações de Cartas Caboverdianas, Amor que Salva
ou A Santificação do Beijo, ou Mal de Amor, após a morte do pai
adoptivo, e depois de julgado e absolvido, regressa à Ilha
Brava e, juntamente com amigos, cria a Escola Governador
Guedes Vaz e funda a Troupe Musical Bravense. Vivia-se o
ano de 1927 quando o governador-geral Guedes Vaz visita a
ilha e apresenta a Eugénio Tavares um pedido de desculpa
pelas ofensas proferidas pela anterior governação. O dia 1
de Junho de 1930 vê-o abandonar este mundo em sequência de
uma crise de angina de peito. Edições póstumas surgiram,
tais como Mornas – Cantigas Crioulas, mantendo a sua memória
viva até à actualidade.
e. Jorge Vera-Cruz Barbosa (1902-1971)
Nascido em 1902 na Ilha de Santiago, Jorge Barbosa é
um nome sonoro da crição da revista Claridade e dos
movimentos político-sociais, e também literários, que a
mesma representa. Funcionário público de profissão, Barbosa
não se cansa de intervir no mundo intelectual da época. O
ano de 1936 é considerado o ano de viragem na literatura
caboverdiana com o aparecimento da Revista Claridade, onde
escreve Arquipélago, um texto que revela mudanças na produção
literária e considerada a obra que abriu caminho para a
Modernidade e o Realismo insular. As razões de tais
afirmações prendem-se com o estilo de poesia que, em tom de13
lamento, denuncia as problemáticas vigentes: a fome, o
drama da chuva, a desilusão, a perda das sementeiras. É
desta forma que o abandono da precedente visão romântica e
a utilização da poesia para plasmar temas do quotidiano,
assume uma estética realista.
Sendo um contador de histórias15, publica no nº 2, e
último, da revista Certeza (1944), em plena II Guerra Civil,
um conto intitulado O Galo que cantou no Baía, cuja peripécia se
assume num contexto que explica os grandes motivos da
literatura caboverdiana neste novo ciclo de produção
literária ligada à emigração, o ir ou ficar.
Anteriormente, tais temas também eram abordados, mas
numa perspectiva romântica, como no caso do poema Triste
Regresso de Eugénio Tavares, em que apresenta a seca
prolongada com os versos “as nuvens vão / fugindo na
amplidão / sem que uma gota de água enviem lá e cima…”16.
Barbosa, no entanto, apresenta o quotidiano de forma muito
objectiva, sem rodeios mas recheado de pormenores, de que o
Poema “Prelúdio” é uma boa ilustração,17 o qual se
encontra, na íntegra, nos Anexos.
Para além disso escreveu ainda Ambiente em 1941 e
Caderno de um Ilhéu em 1956, tendo vindo a falecer em Portugal
em 1971.15 Alberto Carvalho, A Narrativa Caboverdiana: nacionalidade e nacionalismo, in Revista de Filologia Românica da Univ. Clássica de Lisboa, consultado a 17/0/72010 e disponível em: http://revistas.ucm.es/fll/0212999x/articulos/RFRM0101220085A.PDF16 Eugénio Tavares, Triste regresso, Brava, 1900, in Manuel Ferreira, 50 poetas africanos, Lisboa, Plátano Editora, 1ª edição, s.d., p. 145.17 Jorge Barbosa, “Prelúdio”, António Miranda, Poesia Africana, disponível em: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/cabo_verde/jorge_barbosa.html
O período anterior ao da primeira publicação da revista
Claridade, em 1936 no Mindelo é, por alguns intelectuais,
considerado de pré-claridoso, pois era inspirado nas
características classicistas e românticas de influência
europeia. Com a publicação desta revista, que os
intelectuais consideram de emancipação cultural, social e
política da sociedade caboverdiana,18 evolui-se para uma
estética denominada de Novo Realismo.
Fundada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel
Lopes, tinha o alvo principal de se afastar da influência
estetico-literária portuguesa e de dar voz ao povo. Dando a
primazia à língua crioula, renascida das cinzas após
décadas de repressão colonialista, Claridade apresentava-se,
também, como um mecanismo de desafio à autoridade
estabelecida. Sendo o dia-a-dia o tema fulcral, o objectivo
primordial era o de defender as raízes do povo. Assistia-
se, assim, não à adopção de uma estética vinda do exterior,
mas a um renascimento, um reencontro com a sua essência.
a. Baltazar Lopes (1907-1990)
18 Alberto Carvalho, Do Classicismo ao Realismo na Claridade, Instituto Camões –Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 1, Abril-Junho 1998, acedido a 01/07/2010 e consultado em: http://www.instituto-camoes.pt/revista/claridade.htm
Direito e em Filologia Românica, foi advogado, e professor
no Liceu Gil Eanes, na ilha de SãoVicente, durante vários
anos, filólogo, escritor e um dos fundadores da revista
Claridade, contribuíndo para a grande mudança ocorrida na
literatura caboverdiana e tendo, muitas vezes, assinado os
seus poemas sob o pseudónimo de Osvaldo Alcântara.
Entretanto, em 1947, rasga caminho para o novo romance
Chiquinho19, que a Claridade publica em fascículos20, tornando-
se o seu romance mais conhecido. Deixou-nos também uma
completa descrição dos crioulos de Cabo Verde21.
b. Manuel Lopes (1907-2005)
Nascido na Ilha de São Vicente a 23 de Dezembro de
1907 foi, apesar contrariado, levado por familiares para
residir em Coimbra durante quatro anos, onde ficou até aos
18 anos de idade. Na memória permaneceu um indelével
desenraizamento que resultou num constante sentimento de
nostalgia visível ao longo de toda a sua obra poética. De
regresso à sua terra natal, começa a trabalhar no Telégrafo
Inglês, ao mesmo tempo que produz variadas obras literárias19 Alberto Carvalho, De Baltazar Lopes, a Obra e o Homem, Revista ICALP, vols.16 e 17, Junho-Setembro de 1989, 245-252, in Instituto Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas. 20 Maria Aparecida Santilli e Suelly Fadul Vilibor Flory (org.), Literaturas de língua portuguesa, Cabo Verde – Ilhas do Atlântico: em prosa e verso, 2001, II, pp. 85-114, consultado a 17/07/2010 e disponível em: http://www.google.com/books?hl=pt-PT&lr=lang_pt&id=sxDihLdQC58C&oi=fnd&pg=PA13&dq=peri%C3%B3dico+certeza+cabo+verde&ots=iVc3IlyJs5&sig=_yosHhNFehRryaWu8Kz6y6_k0OY#v=onepage&q&f=false21 Baltazar Lopes, O Dialecto Crioulo de Cabo Verde, Lisboa, Imprensa Nacional,1957.
abrangendo vários estilos, a saber, poesia, ensaios,
contos, romances e uma antologia poética. Quando
questionado acerca da temática recorrente que aborda,
respondeu “sempre o mar ou a ilusão do mar à volta”22. Aos
noventa e oito anos de idade, um dos bairros antigos de
Lisboa assiste ao desaparecimento de Manuel Lopes, o último
sobrevivente caboverdiano da primeira geração "Claridosa".
Poeta sensível e ensaísta perspicaz, distingue-se pela
empatia humana visível nas personagens que cria. A 26 de
Janeiro de 2005 o seu corpo foi cremado no Cemitério do
Alto de São João, em Lisboa, onde repousam as suas cinzas.
5-“Claridade” – a grandiosa árvore do Humanismo
Cabo Verde vivia uma grande necessidade de mudança a
nível intelectual, a qual se iniciou com a publicação da
revista Claridade, em 1936. Os momentos vividos com a sua
publicação são considerados “claridosos”, pois toda a
fruição girava ao seu redor.
A revista conta-nos a história de uma aventura em que
Cabo Verde é a personificação do viajante que, deslocando-
se no colossal cenário do Mundo, percorre as rotas do
Humanismo23. É precisamente aqui que o rosto da crioulidade
começa a assumir novas cores e contornos sem nunca perder
22 João Nobre de Oliveira, "A Imprensa Cabo-verdiana 1820-1975", ediçãoFundação Macau, Setembro de 1998, disponível em: http://www.spigamidju.com/BIOGRAPHY/manuel_lopes.htm23 Imagem de Tamarindo retirada da Fonte: http://clearingskies.com/Images/tamarind%20tree.jpg
Gonçalves, Gabriel Mariano, Jaime de Figueiredo, Pedro
Corsino de Azevedo, António Nunes, Henrique Teixeira de
Sousa, Jorge Pedro Barbosa, Orlanda Amarilis, Guilherme
Rochetau, Virgílio Pires, Artur Vieira, Viriato Gonçalves e
Arnaldo França, escritores e intelectuais considerados
24 Alberto Carvalho, Do Classicismo ao Realismo na “Claridade”, Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 1, Abril – Junho 1998.
18
claridosos, também eles participantes na revista Certeza e
no “Boletim dos Estudante” do Liceu Gil Eanes, ambos com os
seus primórdios em São Vicente.
De entre estes destacamos Nuno Miranda, aluno do
último ano do Liceu Gil Eanes, que se vislumbra no nº 2 do
periódico Certeza25.
6- ConclusãoAssim nasceu a Modernidade da Literatura Caboverdiana,
em que os episódios realistas eram o ponto central da
produção intelectual. Em sequência desta fruição do olhar o
eu e o outro com olhos iluminados, a década de 60 inicia o
que os intelectuais denominaram de fase pós-claridosa. A
emergência da literatura caboverdiana afirma-se pela
consciência da diferença perante e outro, europeu ou
africano. Esta consciência baseia-se, não só na diferença
da epiderme, mas também na histórica, social e cultural.
Finalmente, os cascos das insularidades, durante
séculos espalhados em mar alto, davam à costa, através das
prásinas águas cristalinas que adormecem no fino abraço das
areias mornas. É Claridade quando surge a doçura do
verdadeiro e divino subtilmente decalcado para que todos os
homens, de todas as gerações, recordem que a essência
25 Simone Caputo Gomes, A poesia de Cabo Verde: um projecto identitário, consultadoa 17/07/2010 e disponível em: http://simonecaputogomes.com/textos/a%20poesia%20de%20cabo%20verdeL.pdf