LUÍS VAZ DE CAMÕES LUÍS VAZ DE CAMÕES GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL
© Editora Planeta DeAgostini, S.A. | Lisboa | 2004
Direitos reservados para a língua portuguesa
AUTORIA: Manuel Margarido
REVISÃO CIENTÍFICA: António Paço
REVISÃO TIPOGRÁFICA: Laurinda Brandão
PROJECTO GRÁFICO: Alexandra Paulino
PAGINAÇÃO: Alexandra Paulino
IMPRESSÃO: Cayfosa – Quebecor Santa Perpètua de Mogoda [Barcelona]
Impresso em Espanha – Printed in Spain
Depósito Legal 203369/03
ISBN 972-747-880-8
Quase tudo é obscuro no conhecimento factual da vida de Luís Vaz
de Camões. Não se sabe o local do seu nascimento, por exemplo, nem a
data. Pensa-se que terá nascido em 1524, ou no ano seguinte. Como diz
Hernâni Cidade:
«O que nem ele nem ninguém nos dá de decisivo é a indicação do lo-
cal e da data do seu nascimento. Como sucedeu com Homero, várias loca-
lidades disputam a glória de ser seu berço, mas Lisboa e Coimbra com mais
probabilidades. Deixemos a discussão aos mais interessados pelas glórias
locais do que pelo legado do Poeta, e digamos que as duas cidades têm,
para seu orgulho, pábulo que baste: Coimbra, por ter-lhe condicionado o
seu honesto estudo de humanista; Lisboa, a sua longa experiência social.»
A GLÓRIA
DA LÍNGUA PORTUGUESA
CAMÕES LÊ OS LUSÍADAS
7
Camões nasce, portanto, no início do reinado de
D. João III, filho de D. Manuel, o Venturoso. Sabe-se, com
segurança, que o seu pai foi Simão Vaz de Camões e a mãe
Maria de Sá de Macedo, da família escalabitana dos Mace-
dos. A linhagem dos Camões em Portugal, oriundos que
eram de Castela, remonta à segunda metade do século
xiv. Tendo D. Fernando, o Formoso, tomado partido na dis-
puta entre Pedro I e Henrique II pelo trono vizinho, vie-
ram os partidários do primeiro, apoiado pelo monarca
português e derrotado na contenda, refugiar-se em terras
lusas. Nesse contingente de foragidos encontrava-se um
tal Vasco Pires de Camões, galego fidalgo que se acolhe
na corte de Lisboa em 1370 e depressa vai prosperar
na sua pátria de exílio.
Vasco Pires, trisavô do poeta, recebe, ao longo dos
primeiros anos de estada em Portugal, diversas benes -
ses e ricos privilégios da parte de D. Fernando. Logo em
1373 é-lhe doada a Quinta do Judeu, próxima de Santarém,
e os bens de um fidalgo que apoiara D. Henrique II. Cinco
anos depois, o fidalgo foragido é agraciado com diversas
outras propriedades no Alentejo. Em 1380, Vasco Pires de
Camões já é alcaide-mor de Portalegre, e sê-lo-á de Óbidos
em 1383, detendo igualmente os senhorios das vilas do
Sardoal e de Constância, Marvão e Amêndoa.
Os ventos da fortuna mudarão, porém, para Vasco
Pires de Camões, o primeiro representante da família em
terras portuguesas. Quando se dá a crise da sucessão do
trono português, vai naturalmente apoiar as pretensões
8
AS ORIGENS
de D. Beatriz, casada com o monarca espanhol e filha dos
reis portugueses D. Fernando e D. Leonor Teles, a quem
Vasco tantos favores devia, contra D. João, Mestre de Avis.
À época, Vasco era alcaide do castelo de Alenquer e vai
resistir às investidas do futuro rei de Portugal, que cerca
a sua defesa.
De acordo com a Crónica do Condestável, de Fernão
Lopes, D. João parte de Lisboa «não mais que com duzen-
tas ou trezentas lanças e poucos homens de pé e besteiros,
e se foi a Alenquer sobre Vasco Pires». Rezam os relatos, e
as insinuações que o tempo
deixou, que o alcaide
ten tou negociar a ren -
dição a troco de uma so-
ma de dinheiro. O que é
certo é que o fidalgo
renitente acabou
derrotado, tendo per -
dido, em 1384, uma
quantidade significa-
tiva dos seus bens e
propriedades e man-
tendo, ainda assim,
importantes terras
no Alentejo, que
converte em
morgadios.
9
D. JOÃO I
O que se torna particularmente interessante na
genealogia do grande poeta seu descendente é a propen-
são de Vasco Pires de Camões para a poesia, dentro do
âmbito da tradição galaico-portuguesa, estando alguns
dos seus versos recolhidos no Cancioneiro de Baena, no qual,
sob o nome de Vasco Lopes de Camões, demonstra uma
veia irónica e acintosa, em versos de sabor espontâneo
escritos em castelhano.
Vasco Pires de Camões deixou três descendentes
do seu casamento com uma filha do português GonçaloD. AFONSO V
10
UMA LINHAGEM DE NOBRES
11
Tenreiro, capitão de Armada. O segundo deles, João Vaz,
viria a servir D. Afonso V, o Africano, nas pelejas do Norte
de África e de Castela. Pelo lado dos antepassados tinha
já Luís uma grande tradição de pena e espada. João Vaz
passou grande parte da sua vida em Coimbra, de onde se
estabelece a sólida ligação da família àquela cidade, ten-
do chegado a procurador às cortes e corregedor da co-
marca, cargos de grande importância administrativa que
o colocavam na elite do reino. A sua importância reve-
la-se, de resto, na especial nobreza e requinte escultórico
da sua sepultura, na crasta da Sé de Coimbra.
Filho de João Vaz, Antão será o avô do poeta. Tal
como os antepassados, também ele firmará a sua repu -
tação pelas armas lutando nas campanhas das Índias.
Viria a casar com D. Guiomar da Gama, que pertencia à
família de Vasco da Gama. Embora remota, esta ligação
entre as famílias do grande nauta dos Descobrimentos e
o poeta que os glorificou para a eternidade não deixa
de ser significativa.
Antão Vaz terá dois filhos. O primeiro, Simão Vaz
de Camões, viria a tornar-se um importante funcionário
da administração real, com título de «cavaleiro-fidalgo
da casa real» – não propriamente um fidalgo, como alega
Aquilino Ribeiro – responsável pelos serviços de armaze -
na men to das rotas da Guiné e da Índia, cargo que envol -
veria, certamente, elevado grau de confiança. Em 1529
D. João III atribui-lhe o direito de «cidadão de Lisboa», em
reconhecimento do seu mérito. Simão Vaz casa com Ana
de Macedo, que pertencia à casa dos Macedos de Santa -
rém, como se referiu.
Os Descobrimentos desencadearam uma nova mentalidade
em Portugal e em toda a Europa. As ideias dos autores clássi-
cos da Antiguidade quanto à natureza do Mundo foram aba-
ladas. As navegações e o experimentalismo baseado no conhe -
cimento pela observação factual vieram dar uma luz nova às
antigas ideias de Plínio ou de Ptolomeu.
Novos povos, novas terras, outras gentes foram reconheci-
dos. A percepção de que o Mundo era um globo, que todos os
mares o abraçavam, e que a comunicação entre continentes era
O humanismo renascentista em Portugal
A família de Camões era pobre, bastante pobre, e
ao longo da vida Luís não cessa de piorar a sua condição.
É assinalável o facto de que Simão virá a recupe-
rar para a família a Quinta do Judeu, que pertencera ao
primeiro representante da família em Portugal. Após o
casamento em Santarém, Simão e Ana virão viver para
Lisboa, onde aquele desempenha funções que, como se
viu, são relevantes. Do seu casamento nascerá Luís Vaz de
Camões, seu filho único, admitindo-se que as complica -
ções do parto tenham impedido a Ana de Macedo nova
concepção.
O segundo filho de Antão Vaz chama-se Bento de
Camões. Da profunda obscuridade que envolve a maior
parte da vida do imortal poeta, talvez tenha tido grande
importância este tio na sua formação.
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possível por via marítima acabou com as «fronteiras» mentais
até aí existentes. Esta «re volução» foi-se produzindo pouco
a pouco, mas encontra-se no momento histórico certo com a cor-
rente huma nista que come çava a varrer a Europa. Em Por tugal
o humanismo foi introdu zido por mestres italianos: Mateus
Pisano, Estêvão de Nápoles e Cataldo Parísio Sículo, no qual a
literatura tem um peso importante.
Não foi uma transição fácil entre o pensamento clássico e
a modernidade humanista. Em primeiro lugar pelo paradoxo
de serem os humanistas defensores dos valores da Antiguidade
Clássica, crentes no conhecimento antigo, presente no pensa-
mento de Sá de Miranda ou de Francisco de Holanda. Defen-
sores de uma posição intermédia, que cultivava o classicismo
mas que se entusiasmava com a náutica e as suas maravi -
13
O homem
do RENAS-
CIMENTO
procurou
uma visão
total do
universo
lhosas descobertas, seriam D. João de Castro, João de Barros
ou Pedro Nunes. Já Duarte Pacheco Pereira e Garcia da Horta
eram ardorosos defensores (e empreendedores) dos novos co -
nhecimentos adquiridos pelos Portugueses.
O velho conhecimento clássico manteve, ainda, bastante in-
fluência em Portugal, mas foi, pouco a pouco, perdendo terreno
para um humanismo que reconhecia nas descobertas, na ciên-
cia que se estava a formar, no reconhecimento de um novo mun-
do, temas para o progresso civilizacional.
Inicia-se um progressivo trânsito na troca de informações,
auxiliado pela imprensa, que era técnica recente, e pelas via-
gens de estrangeiros a Portugal e de portugueses (como Damião
de Góis) pela Europa. Lisboa era, no dealbar do século XVI, talvez
o mais importante centro de novos conhecimentos científicos
do velho continente.
Terá nascido Luís Vaz de Camões em Lisboa? A in-
cógnita permanecerá para sempre. Muitos historiadores
inclinam-se para Coimbra. Aquilino Ribeiro refuta, apon-
tando Lisboa. O seu pai administrava os armazéns da Gui -
né e da Índia, na capital. Residia na Mouraria, fora das
muralhas antigas mas dentro do núcleo central da cidade.
É bem possível que tenha sido no antigo bairro lisboeta,
reminescente de evocações de épocas antigas, da melopeia
triste da ocupação árabe, que Luís viu a luz do mundo.
14
FACTOS OBSCUROS
A partir daí a dedução é igualmente o único caminho para
traçar o seu percurso infantil.
Luís nasce alegadamente fidalgo, segundo os pri -
meiros biógrafos. Mas, como afirma António José Saraiva,
«um “escudeiro” era um reles lacaio de um fidalgo, recru-
tado geralmente entre indivíduos de condição baixa,
embora vivendo segundo o código da nobreza e com pre-
tensões [...]: era uma gente vadia, que se alimentava das
migalhas dos fidalgos, imitando os seus modos na espe -
rança de uma promoção que era uma verdadeira lotaria.
“Rascões”, lhes chamava Gil Vicente. Mas não se confun-
diam com o povo e não sabiam o que era trabalhar».
15
O PORTO
DE LISBOA
Camões provinha de um grupo social de baixa ca -
tegoria, dependente do reconhecimento do trabalho e dos
favores que se recebem dos conhecimentos e das relações
privilegiadas. Na expressão de Jorge de Sena, Camões
sentia-se nobre «mas perdido numa massa enorme de
aristocratas socialmente sem estado, e para sustentar os
quais não havia Índias que chegassem, nem comendas,
tenças, capitanias, etc.».
Desde logo os astros são-lhe desfavoráveis, à luz do
conhecimento da época. Pois não estava previsto pelos
astrólogos um dilúvio de proporções bíblicas para 1524?
Desde o ano anterior
que a Europa estava
aterrorizada com es ta
perspectiva, pro pi cia da
pela con ju ga ção dos
astros no signo de Pei -
xes. O mundo marcado
pelo conhecimento su -
pers ticioso medieval
predominava sobre o
empirismo renascen-
tista que começava a
nas cer. Camões virá a
re gistar sobre o tem -
po do seu nascimento,
dan do voz à sua senti -
mentalidade depressi-
va, a expressão Estrelas
infelices.
16
D. JOÃO III
Sabe-se que em 1526, teria o poeta dois anos (ou
apenas um), ocorre em Lisboa um terramoto pavoroso.
Não se comparando àquele que, dois séculos mais tarde,
destruiu Lisboa, foi motivo suficiente para arrastar a corte
de D. João III para Coimbra. Logo no ano seguinte a cidade
é assolada por um surto de peste que leva o rei a deter-
minar o prolongamento da estada na cidade do Mondego
por tempo indefinido, até que as condições sanitárias
permitissem o regresso à capital.
Parece crível que, à semelhança dos funcionários
da corte, Simão Vaz de Camões tenha rumado com o seu
rei para o centro do país. Aí encontrava vantagens espe -
ciais. Podiam habitar o velho solar do seu avô, João Vaz.
Contudo, a situação parece ter vindo a revelar-se ruinosa.
Como era costume da época, as famílias com maior capa -
cidade económica eram obrigadas a receber os elementos
da corte que não possuíam meios de subsistência próprios.
Terá sido a generosidade de Simão Vaz de Camões
no acolhimento de cortesãos motivo para o seu rápido
declínio financeiro. Poder-se-ia falar de ruína. É talvez a
esta situação particular de Simão Vaz que Gil Vicente, con-
temporâneo do pai do poeta, se refere na peça Divisa da
Cidade de Coimbra, mencionando a dívida de um fidalgo
pobre ao hospedeiro, nunca cobrada: «Pior voz tem Simão
Vaz, tesoureiro e capelão...». Alvitra-se mesmo que terá
17
UM TIO PODEROSO
sido a precária situação financeira de Simão que levou o
rei a condoer-se, sabendo que o sacrifício havia sido feito
em prol dos interesses da corte, designando-o, em 1529,
«cidadão de Lisboa», com os privilégios inerentes a essa
condição.
A corte regressa à capital em 1529. Com ela terá
vindo Simão Vaz de Camões, em virtude das suas respon-
sabilidades. Mas não se sabe se o rapazito de quatro ou
cinco anos acompanhou os pais ou se ficou em Coimbra,
já ao cuidado de seu tio, Bento de Camões.
18
O núcleo
histórico
de COIMBRA
Este tio era uma importante figura no panorama
social coimbrão. Ingressara novo no mosteiro de Santa
Cruz, dedicando-se a uma carreira erudita e monástica.
Este mosteiro era uma relevante instituição de estudos,
talvez a mais importante à época. Com a reforma geral do
ensino promovida em 1527, D. João III iria alterar profun-
damente a organização do mosteiro de Santa Cruz. Na
década de 30 de Quinhentos, Bento de Camões tornar-se-
-ia o primeiro prior geral e chanceler da Universidade de
Coimbra. Podemos, deste modo, perceber a posição social
do tio de Camões, ao mesmo tempo que se adivinha a sua
profunda erudição e capacidade de mando.
Não existem provas documentais que assegurem
ter Camões estudado em Coimbra. Porém, tudo leva a
crer que sim. Desde logo o cargo do tio propiciava que um
rapaz fidalgote, mas de família pobre, pudesse estudar
de modo capaz, sem os custos que de outro modo teria de
sustentar; o temperamento que o poeta viria a revelar
mais tarde devia, por outro lado, fazer-se sentir na infân-
cia, demonstrando dotes de inteligência e curiosidade
intelectual que levaram certamente a família a querer
dar-lhe boa formação escolar; finalmente, a erudição pa -
tenteada na obra camoniana (em particular a visível pre-
paração clássica) é significativa do aprofundamento dos
estudos de Luís Vaz.
19
ESTUDANTE EM COIMBRA
É plausível que o tio tenha ensinado as primeiras
letras ao sobrinho, que ingressará num dos colégios de
Coimbra, talvez o colégio de Todos-os-Santos. No prin cípio
da adolescência inicia estudos que o levariam à obtenção
hipotética de um grau académico. Dada a referência a
Camões, em algumas fontes, como bacharel latino, houve
quem nisso encontrasse a prova de que o poeta teria cul-
minado os estudos com a obtenção desse título, facto que
não é documentalmente confirmado.
Certo é que Camões poderá ter tido, em Coimbra,
oportunidade para desenvolver uma considerável erudição
que marcaria indelevelmente a sua obra. Os docentes, em
virtude da reforma do ensino, eram de grande qualidade
(os chamados mestres parisienses, por haverem estudado
na Universidade de Paris). O adolescente pode provavel-
mente assim estudar Gramática, Retórica e Dialéctica,
Lógica e Filosofia, além do Latim, que era basilar nos es-
tudos da época. Teve igualmente a possibilidade de con-
tactar com a obra dos clássicos gregos e romanos, dos
árabes e hebreus. Não nos esqueçamos da importância da
biblioteca do mosteiro de Santa Cruz e podemos imaginar
a viva curiosidade do jovem para quem o conhecimento
só pode ter sido um impulso poderoso.
Como afirma Hernâni Cidade: «Camões [...] tem
acesso às obras de Petrarca – a quem toma por modelo –,
Bembo, Garcilaso, Ariosto, Tasso, Bernardim Ribeiro, entre
outros. Domina a literatura clássica da Grécia e Roma; lê
latim, sabe italiano e escreve o castelhano.»
Refira-se que alguns historiadores refutam a hipó -
tese de Camões ter estudado em Coimbra. Em primeiro
20
lugar o seu nome não consta nos registos. Depois, como
explica António José Saraiva, «nem era preciso ser uni-
versitário para adquirir a bagagem de conhecimentos, ver-
dadeiramente notável, que Luís de Camões revela nas suas
obras. Basta lembrar o nome de homens que não terão fre-
quentado a universidade, como João de Barros, geógrafo,
historiador, linguista, humanista, que aliás foi uma das
principais fontes de Camões. Havia nessa época métodos
de estudo das letras que não na universidade».
Aquilino Ribeiro, na sua obra de referência Camões
Fabuloso e Verdadeiro, refuta a tese dos estudos em Coim-
bra de forma veemente.
21
Dois temas
filosóficos caros
a Camões:
A FORTUNA
E O AMOR, aqui
simbolizados
por Cupido
equilibrado
sobre uma
esfera e que
dirige, a seu
bel-prazer,
o seu caminho
soprando numa
vela, que repre-
senta a aliança
entre o engenho
e a sorte
Francesco Petrarca nasce em Arezzo, Itália, em Julho de
1304. Com oito anos parte com a sua família para França. Após
a morte do pai, na época em que estudava leis, toma votos ecle-
siásticos menores, no ano de 1330. Teria sido na Sexta-Feira
Santa de 1327 que vislumbrou a mulher idealizada, a célebre
Laura que vai marcar a sua obra. Nela se exprimem as carac-
terísticas que tanto hão-de influenciar os poetas do Renasci-
mento, e em particular Camões. Uma expressão lírica intensa
de sentimentos puros e idealizados. Com Boccaccio, seu con-
temporâneo, Petrarca vai redes -
cobrir o valor da cultura clássica,
operando uma fusão entre as di-
vindades do panteão antigo e as
figuras tutelares do cristianismo,
prática muito presente na obra de
Ca mões, que muito bebeu da in-
fluência do poeta italiano.
Na senda de Petrarca, muitos
escritores do Renascimento vão
dar expressão à racionalização
artística (uma forma de sublima -
ção) das emoções amorosas, jo-
gando na tensão entre a alma e a
pulsão erótica. Camões atinge uma dimensão única dentro
desta lógica formal pela capacidade de organizar no poema
paradoxos, antíteses e jogos semânticos que elevam a sua líri-
ca a níveis de excepcional qualidade artística.
Petrarca e Camões
PETRARCA
22
Perto dos 20 anos, Camões concluiria os seus estu-
dos. Nada mais o prenderia às margens do Mondego – a
crer na maior parte dos historiadores –, nem sequer uma
hipotética carreira eclesiástica, talvez desejada pelo tio,
certamente contrariada por um temperamento fogoso e
amigo da estúrdia, que deveria ter sobejas ocasiões de se
revelar na vida juvenil do estudante de Coimbra. No deal-
bar da idade adulta, sem profissão, sem cargo e sem fol-
ga financeira, é Lisboa, onde vivem os pais, que vai atrair
Camões. Na capital encontram-se todas as razões para
que o jovem pudesse ter esperança num futuro promis-
sor e à medida do seu talento.
Parte de Coimbra, da qual, a avaliar por algumas
estrofes, guardará enorme saudade.
Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso da minha lembrança
Onde a comprida e pérfida esperança
Longo tempo após si me trouxe cego.
De vós me aparto, sim; porém não nego,
Que inda a longa memória que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo mais me achego.
Como era o jovem Luís Vaz que chega a Lisboa por
volta de 1542? Era certamente um espírito muito vivo, de
temperamento apaixonado. Aliava uma formação cultu -
23
A CAMINHO DE LISBOA
ral muito superior à maior parte dos seus contemporâ-
neos a um aspecto físico que seria muito apreciado nos
anos seguintes pelas donzelas mais ilustres do reino.
Homem elegante e atraente, de cabelo arruivado e olhos
grandes, sabia falar, sabia estar. Tinha ainda as qualidades
de um exímio espadachim e de um voluntarioso lutador.
Enfim, era um fidalgo muito atraente, capaz de fazer as
melhores amizades e de despertar secretas paixões. Pena
era que fosse pobre.
De novo, no dizer de António José Saraiva: «Um
pária, sem clã, sem protecções, sem respeitabilidade
social, sem modo de vida certo.»
24
Em Lisboa, o jovem Camões vai soltar as rédeas do seu espírito
irrequieto. Se é um rapaz culto, é igualmente um grande amigo das
festas, das rondas nocturnas pelas tabernas, do galanteio fácil. A sua
têmpera ajuda a fazer amigos. E a meter-se em sarilhos. Nos meses
seguintes entrega-se à ociosidade, o que nem seria mal visto para
um jovem da sua condição, mesmo sem dinheiro.
De novo, de acordo com António José Saraiva: «As mulheres que
conheceu [...] foram as rameiras; por companheiros teve arruaceiros
que se chocavam em bandos na Lisboa nocturna da época, de mistura
com os embarcadiços de passagem.»
UMA MOCIDADE
APAIXONADA
VISTA DE LISBOA, em 1572, da autoria de Braun
25
Luís continua a versejar, certamente, mas o melhor
da sua atenção vai para os amores ocasionais com moças
de baixa condição, para as surtidas nocturnas onde sem-
pre havia lugar para uma briga e para a afirmação da ca -
ma radagem. Noites em que as bebidas, as conversas e as
arruaças se confundiam.
Nesta época faz amizades decisivas, como a que
estabelece com D. Manuel de Portugal, poeta e neto do
bispo de Évora. D. Manuel, pela sua posição social, será
certamente um dos introdutores de Luís na corte. Lisboa
é pequena, e toda a gente que importa acaba por se co-
nhecer. Nos Pátios de Comédias, onde se encenavam pe-
quenas peças e autos e se faziam despiques de poesia,
Camões conhece António Ribeiro Chiado, franciscano e
poeta, que vai identificar no jovem o talento e, sobretudo,
a valentia desses anos de juventude. Estima-se que é o
poeta Chiado quem inventa a alcunha de «Trinca-Fortes»
para designar Camões, querendo com ela significar que o
moço era dado a bater-se e a dobrar os fortalhaços que o
enfrentassem.
Os divertimentos da época eram, como se percebe,
de enorme agrado do filho de Simão Vaz. Por um lado, as
querelas poéticas, os duelos no versejo, estimulavam a sua
criatividade e talento; por outro, os prazeres mundanos
satisfaziam o seu temperamento apaixonado e aventureiro,
capaz de correr mil riscos por uma boa aventura.
A consciência dos limites deste tipo de vida não é
de todo alheia a Camões, que dele acabará por se lamen-
26
A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL
tar, sabendo certamente que o seu talento a mais o des -
tinava. As noites passadas na taberna do Malcozinhado,
regadas a vinho e alegradas por mulheres fáceis, deixam-
-lhe um travo de desilusão que ele acaba por referir.
A famosa designação da taberna é um nome inventado
pelo próprio poeta para referir, possivelmente, uma das
barracas que se encontravam na Ribeira, frequentada por
populares, mulheres de pouca virtude, fidalgos indo len -
tes. Como diz Camões: «Eu o crismei há poucos dias e lhe
pus o nome de Malcozinhado, porque sempre acharei nele
que comer, quer bem, quer mal.» Ao mesmo tempo que
o diverte e entusiasma, a vida de Lisboa parece-lhe algo
de putrefacto, como descreve longamente, num re gis to
pejado de ironia e desencanto, numa carta a um amigo:
27
A ALCOVITEIRA,
de Vermeer
de Delft, 1656
«E, para verdes, digo que há cá dama tão dama que, pelo
ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer
bem, aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal.»
Numa comparação entre a agitação citadina e o bu-
colismo campestre, de que supostamente o amigo a quem
escrevia se queixava, mostra o poeta saudades de uma vi-
da mais recatada, evocando Vergílio:
«Como vos parece, Senhor, que se pode viver entre
estes, que não seja milhor essa vida que vos enfada,
essa quietação branda, com um dormir à sombra de uma
árvore e ao tom de um robeiro, ouvindo a harmonia
dos passarinhos, em braços com os Sonetos de Petrarca,
Arcádia de Sannazzaro, Éclogas de Vergílio, onde vedes
aquilo que vedes?
Se a vós, Senhor, essa vida vos não contenta, vinde
trocar pela minha, que eu vos tornarei o que for bem.»
Na expressão «onde vedes aquilo que vedes» pode
perceber-se o desencanto de Camões perante um mundo
novo que acaba de descobrir, que o atrai, mas onde percebe
que tudo é um jogo de aparências, uma rede de falsida -
des, onde nada do que se vê é aquilo que parece. Em breve,
porém, a vida de Luís vai mudar, proporcionando-lhe os
anos de maior felicidade, ou pelo menos de mais profun-
do encantamento de toda a sua vida. Aos vinte e poucos
anos, Camões vai ser introduzido na corte.
28
UMA MUDANÇA DECISIVA
Bem parecido, ele-
gante e cheio de espírito,
relacionado com algumas
importantes figuras da fi-
dalguia, a entrada de Ca -
mões nos círculos da corte
seria apenas uma questão
de tempo. Referiu-se já a
amizade que nutria por Ma -
nuel de Portugal, filho do
conde de Vimioso. Deverá
ter sido este amigo o pro -
mo tor da sua apresentação
no Paço da Rainha em Xa -
bregas, onde D. Catarina,
mulher de D. João III, orga -
ni zava a sua vida munda -
na, e no palácio da infanta
D. Ma ria, irmã do rei.
Entrar nestes cír -
culos, onde se encontrava a
elite social e cultural do tempo, não era fácil. A simples
con dição, um elevado estatuto, não eram, só por si, sufi-
cientes. Nos salões de D. Catarina e de D. Maria o que mais
impor tava era quem apresentava quem e que reputação
tinha o candidato. Luís Vaz, possivelmente pela influên-
cia de D. Manuel de Portugal, mas também certamente
por uma reputação emergente enquanto versejador, con -
se guiu transpor o delicado filtro que o aproximava do
centro da cultura e da sociedade da época.
29
D. CATARINA
Francisco de Sá de Miranda nasce em Coimbra, cerca de
1481, no reinado de D. João II. Estudou no colégio de Santa Cruz
de Coimbra, onde se distinguiu pela sua capacidade intelec tual.
Estuda leis em Lisboa, alcançando o grau de doutor em Direi -
to, tornando-se docente da Universidade.
Em breve, pelo valor do seu espírito e pela sua ligação à no-
breza, passa a frequentar a corte, onde se vai dedicar, no quadro
dos divertimentos muito apreciados na época, à prática da
poesia, na qual imediatamente se distingue. No tempo em que
Camões começa a frequentar os meios palacianos, Sá de Mi-
randa é um nome venerado no domínio da arte poética.
Homem do Renascimento, Sá de Miranda é em breve atraí-
do pela necessidade de conhecimento característica dos in quie -
tos espíritos humanistas. Tem de conhecer Mundo.
Passará cerca de cinco anos em Itália, onde conhece
os maiores espíritos literários e se familiariza com
as novas tendências do género e da métrica. Será
o introdutor, no nosso país, do decassílabo italiano.
Camões beberá fundamente do conhecimento pro-
porcionado por Sá de Miranda.
Sá de Miranda é senhor de uma grande cultura
humanista, que o vai conduzir à crítica de algu-
mas práticas da Igreja, nomeadamente a concessão
de indulgências, nisso se aproximando do pensa-
mento luterano. A sua cultura é dominantemente renascentista,
integrando o movimento que alarga os horizontes da cultura
à incorporação dos clássicos gregos e romanos.
30
SÁ DE MIRANDA
Sá de Miranda
Espírito crítico, Sá de Miranda vai conhecer, ainda em vida,
o violento retrocesso cultural promovido durante o reinado de
D. João III. Opor-se-á ao fanatismo obscurantista da Contra-
-Reforma. Desiludido com a vida da capital, refugia-se no
Mi nho, em Duas Igrejas, no concelho de Vila Verde. Casa com
D. Briolanja de Azevedo. Recebe a comenda de Duas Igrejas,
que o desafoga financeiramente, e vive anos felizes dedicando-
-se à família e à escrita.
Segue atentamente a vida do país, tecendo comentários críti-
cos sempre que tal se proporcionava. Os seus últimos anos são
marcados por grandes desgostos, nomeadamente pela morte
da mulher e de um filho. A morte do príncipe D. João, protector
das letras e seu especial amigo, deixa-o igualmente mergulha-
do em tristeza.
Sá de Miranda morre em 1558, estando sepultado na igre-
ja de S. Martinho de Carrazedo.
31
Dando continuidade ao brilho da corte manuelina,
que conhece um grande desenvolvimento das artes e da
literatura, os primeiros anos do reinado de D. João III bri-
lham pelo requinte e sofisticação, albergando os melhores
espíritos do seu tempo. Tanto em Xabregas, Paço da Rai -
nha, como em Santa Clara, palácio de D. Maria, as activi-
dades culturais eram o motivo que reunia a fina flor da
juventude da época. A poesia, o teatro e a música conci-
O ESPLENDOR DA CORTE
tavam alegres serões que serviam de pretexto para o en-
tretecer de laços, vínculos, amizades. E, é claro, para uma
interminável roda de jogos amorosos nos quais o poeta
possivelmente se terá envolvido, com a paixão desmesura-
da característica do seu temperamento. Certamente que
foi bem aceite. Para lá da figura e do talento, avultava a
facilidade de expressão em castelhano, a língua franca da
corte, e o conhecimento do latim, espécie
de santo e senha que distinguia as pessoas
verdadeiramente interessantes.
Neste ambiente vai fazer diversos
amigos, como Francisco de Morais, poeta
e novelista, autor de um romance de
cava laria muito apreciado à época,
Palmeirim de Inglaterra. Estabelece
igualmente amizade com D. Fran-
cisco de Noronha, que fora em-
baixador em Paris e camareiro-
-mor da rainha D. Catarina. As
amizades seriam determinantes
para afirmar a sua posição no
selectivo meio da corte.
No entanto, foi sobretudo a
facilidade que Luís tinha em responder aos
motes das damas com voltas graciosas e requintadas que
o fez ser apreciado. O costume da época permitia às don -
zelas entregarem a um praticante da arte poética um tema
(um mote) para receberem uma resposta em verso que
supostamente desenvolvia esse tema de modo elegante
e galanteador, a volta ou glosa.
ROMANCES
DE CAVALARIA,
muito aprecia-
dos na época
32
Atente-se na resposta que Camões dá a D. Francis-
ca de Aragão, que lhe sugere um complicado mote: «Mas
porém a que cuidados?» D. Francisca não era uma donzela
qualquer. De fulgurante beleza e elevada erudição, bri -
lhava a grande altura na corte de D. Catarina, a ponto de
ser o tema de vibrantes poemas dos melhores versejado -
res do seu tempo, como Pêro de Andrade Caminha e o
próprio D. Manuel de Portugal. Segundo a descreve o seu
futuro marido, D. João de Borja, D. Francisca «es tenida por
la mujer que mejor ha sabido hacer el oficio de dama que
ha havido en nuestro tiempo en Portugal». Pois ao tema
do mote, responde Camões com três glosas, a última das
quais se revela de enorme beleza:
Se as penas que Amor me deu
Vêm por tão suaves meios,
Não há que temer receios,
Que vale um cuidado meu
Por mil descansos alheios.
Ter nuns olhos tão formosos
Os sentidos elevados,
Bem sei que em baixos estados
São cuidados perigosos.
Mas, porém, ah! que cuidados!
Torna-se evidente o talento de Luís Vaz na corte.
Algumas invejas se despertarão entre os menos afortuna -
dos pelo génio. Fala-se no despeito de Pêro de Andra de
33
UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA
Caminha. As donzelas reparam nele, devem disputar o
favor de umas estrofes numa folha de papel. O poeta vive
num clima de exaltação, ao mesmo tempo romântica e
intelectual, duas vertentes que nunca nele se afastarão.
Contudo, não pode esquecer a sua condição social. Fidal-
go pobre, poucas ou nenhumas esperanças deverá
acalentar de um dia vir a pertencer plenamente àquele
mundo que o fascina. Porém, deixar-se-á levar pelo entu-
siasmo da sua juvenilidade. Pagará caro por isso.
VÉNUS
E CUPIDO
34
Há, no estabelecimento de uma biografia camo -
niana, uma questão pendente (entre muitas outras, é
certo), sobre a qual muitos historiadores se debruçaram.
Quem era Natércia, a presumível primeira grande paixão
de Luís Vaz na corte, que o levou a escrever alguns dos
mais belos poemas de amor deste período da sua vida?
Parece claro que a Natércia presente em diversos
poemas é um anagrama, ou seja, um nome composto com
todas as letras de outro nome, o qual seria Catarina, que
naquela época se escrevia Caterina. Este amor desco -
berto na obra do poeta tem um recorte bastante lendário,
como aliás muitos outros acontecimentos que podemos
deduzir na sua atribulada vida. Segundo alguns investiga -
dores, terá sido na Sexta-Feira Santa de 1544, na igreja
das Chagas, que Camões se apaixona perdidamente por
Natércia, aliás Catarina.
Na corte existiam diversas Catarinas, entre as quais
Catarina de Ataíde, dama de grande importância e aia da
rainha. Alvitrou-se ainda a possibilidade de ser uma pri-
ma remota de Luís, da família dos Gamas. Mais tarde, as
atenções dos investigadores incidem sobre uma outra Ca -
tarina de Ataíde, filha de D. António de Lima Ataíde, ca-
mareiro-mor do infante D. Duarte. Catarina era dama da
rainha. Além disso tinha outra particularidade: era muito
nova! Teria entre 12 e 14 anos quando se inflamaram os
ânimos de Luís, que já entrara nos 20.
Não deve, porém, estranhar-se a criação de um
vínculo amoroso com a rapariga que, na expressão de
35
A MISTERIOSA NATÉRCIA
Camões, tinha tão «tenra idade», ou «tenros anos» («Quem
cuidara que uns tão tenros anos/E uma tal claridade, que
excedia/Quanto podem cuidar peitos humanos; [...]»). Dama
da corte, Catarina de Ataíde estaria na altura da vida em
que se iniciavam os jogos de coqueteria e de sedução,
aos quais a sua presumível beleza ajudava.
É identificável, nos versos de Luís, uma alternância
de sentimentos, que vão desde o ciúme à devoção, do
galanteio à recriminação: «Ah, Natércia cruel! Quem te
desvia/Esse cuidado teu do meu cuidado?/Se tanto hei-de
penar desenganado,/Enganado de ti, viver queria. [...]»
Isto faz supor ter sido o namoro marcado pelos encontros
e desencontros próprios dos jogos amorosos da ado les -
cência na corte, mais dados à experimentação dos limites
dos códigos de conduta que a um vínculo profundo. Po -
rém, na sua poesia Camões exprime um amor desmedido
e exacerbado por Natércia, com a carga de paixão própria
de uma linguagem poética.
Aquilino Ribeiro coloca fortemente em causa esta
versão «romântica» de uma ligação a uma dama da corte,
que se lhe afigura impossível dada a baixa condição do
jovem poeta. De resto, contesta mesmo que Luís Vaz de
Camões tenha alguma vez frequentado a corte. A ser
assim, surge uma pergunta à qual António José Saraiva
res ponde, perante a enorme bagagem de conhecimentos
do poeta: «Este tipo de cultura só podia adquirir-se à época
de viva voz, em rodas de iniciados que passavam de mão
em mão livrinhos raros ou cancioneiros manuscritos. É
evi dente, portanto, que Camões conviveu com letrados ou
amadores das letras, na sua juventude [...] Não era, evi-
36
Neste soneto, Camões exprime com grande elegância e pro-
fundidade o sentimento amoroso. Seria Catarina de Ataíde
quem o inspirou?
Julga-me toda a gente por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos comércios esquecido.
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico e enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.
Vá revolvendo a terra o mar e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;
Que eu por amor somente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.
Perdido de amores
37
dentemente, na taberna ou no bordel do “Malcozinhado”,
onde ele era assíduo, que se formavam tais rodas, mas sim
em círculos palacianos ou satélites.»
Como parece evidente, tal namoro, a ter aconteci-
do, não podia durar muito. A diferença de condição social
entre Luís Vaz e Catarina de Ataíde era demasiado óbvia,
numa época em que os casamentos se ditavam, àquele
nível social, por razões de conveniência económica e de
posição. Camões não era conveniente, era pobre. Nada
ti nha de seu, excepto a guarida em casa dos pais. Sem
pro fissão definida, a não ser
o pouco honroso título de aio
de D. António de Noronha, só
pode ter sido severamente
proibido de manter qualquer
espécie de veleidade relati -
va mente à ama de D. Catarina.
A própria moça perderia a sua
posição na corte se tal enleio
tivesse continuidade.
Parece que D. Catarina
de Ataíde, a Natércia de tantos
versos apaixonados, sofreu um
grande desgosto com o aparta-
mento do jovem e fogoso poe -
ta. Terá mesmo rejeitado fu-
turas propostas de casamen-
to. Sabe-se que morreu muito nova, com cerca de 25 anos,
tuberculosa (doença simbolicamente muito associada
aos males do coração), deixando inconsoláveis os que a
conheciam e apreciavam os seus talentos.
DAMA DA CORTE
38
O FIM DE UMA ILUSÃO
A ela, como futuramente à Dinamene da Índia,
se aplicaria com justeza o soneto excepcional, que ainda
hoje perdura como uma das peças maiores da arte camo-
niana:
Alma minha, gentil que te partiste
Tão cedo, desta vida descontente,
Repousa lá no Céu, eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Luís Vaz de Camões fica, assim, arredado dos amo -
res desta Natércia secreta, que a sua sentimentalidade
traduz na poesia. Mas era novo, e novos amores viriam.
É o que parece ter acontecido pouco depois.
39
40
Um dos sonetos mais impressivos de toda a arte lírica
camoniana, influenciado pela escola petrarquista, é uma
obra-prima da literatura portuguesa e universal, que aborda
a te mática amorosa.
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Amor ardente
Estamos no domínio da lenda. Aceitando que Luís Vaz de Camões
frequentava a corte, surgiu, no trabalho de alguns historiadores, uma
hipótese romântica de contornos maravilhosos e trágicos.
A falta de co nhecimento directo da maior parte dos factos da vida
do poeta permite a liberdade de imaginar esta cena que, a ter ocorrido,
explicaria muito do seu destino e poesia.
PAIXÃO
E DESGRAÇA
NA POESIA, a fúria dos ventos; na vida, a fúria dos sentimentos
41
Na corte, Luís Vaz já houvera experimentado as
alegrias e as agruras do amor, o amor que aparece nos seus
sonetos escrito com maiúscula, como se o sentimento ti -
vesse nome próprio, identidade divina. Agora, um outro
enlevo, mais profundo e inatingível, vai marcar de modo
dramático a vida do poeta.
D. Maria, irmã de D. João III, tem uma história sin-
gular, de verdadeiros contornos teatrais. Já viúvo pela se-
gunda vez, o rei D. Manuel enceta diligências para obter
de Carlos V de Espanha a mão da irmã do monarca caste -
lhano, D. Leonor de Áustria, para casar com o seu príncipe
herdeiro. Ao ver o retrato da futura nora, D. Manuel muda
de ideias e decide casar ele mesmo com a belíssima in-
fanta, alegando que o seu filho não tem qualidades sufi-
cientes. A ideia é aceite por Carlos V e causa grande em-
baraço na corte de Lisboa, sem falar na mal disfarçada
tristeza que D. João III sente em relação ao pai, que deste
modo lhe rouba a bela princesa. D. Maria é a geração úni-
ca deste matrimónio, e o seu pai apenas lhe sobrevive dois
anos. Podia ser filha de seu irmão, D. João, a quem a sua
mãe fora destinada.
Segundo consta, após a morte do marido D. Leonor
vai envolver-se amorosamente com o seu primeiro noivo,
agora enteado. A relação gera descontentamento e vozes
pedem que o matrimónio entre ambos se realize, ainda
que pouco convencional. Porém, aquele que agora era
monarca em breve se entedia deste enleio e a pouco e
pouco afasta-se de D. Leonor. Mais tarde aceita a propos-
42
A INFANTA D. MARIA
ta de Carlos V para que a irmã se venha a casar com Fran-
cisco I de França. A rainha de Portugal seria agora rainha
43
CASAMENTO
de D. Manuel
com D. Leonor
de França. Mas perde, com esta decisão política de seu
irmão, a filha D. Maria, que D. João III não permite que
saia de Portugal com a mãe. Nem ela, nem a portentosa
herança que a criança herdara de D. Manuel.
D. João III viria a casar com uma irmã de D. Leonor,
D. Catarina, tia de Maria. Será esta mulher, de carácter
reservado e sentido prático, a criar a sobrinha, a quem, de
resto, proporcionou uma excelente educação, que se tra -
duziria, mais tarde, num requinte de espírito, raro e ad-
mirado.
A jovem era, aliás na senda de sua mãe, de uma
extrema beleza para os padrões da época. Dela se descreve
a «formosura suavíssima, bem revelada na alvura da pe -
le, no azul celeste dos olhos vívidos e na cor loura dos
ca belos». Algumas pinturas subsistentes que a retratam
apontam de facto para essa beleza. Contudo, essa não
era a sua maior qualidade.
De uma cultura refinada e personalidade vincada,
desde cedo que D. Maria vivia de forma independente dos
seus tutores, mantendo no palácio de Santa Clara um sé -
quito próprio e sobretudo recebendo a fina flor das artes
do país. Era um ambiente onde se entrecruzavam a ele-
vada craveira intelectual digna de uma academia com a
beleza e a juventude nata daquele tempo. Aí Camões sen-
tiu que se encontrava numa espécie de paraíso pessoal.
44
UM ESPÍRITO RARO
Não é de estranhar que se tenha estabelecido uma
afinidade intelectual entre Luís Vaz e D. Maria, apesar das
diferenças sociais que os separavam. Afinal, o jovem poe -
ta era um dos mais brilhantes espíritos que frequentavam
a corte, e naquele meio, protector do talento e da gracio -
sidade, o jovem Camões teria alguma liberdade de con-
tacto com tão insigne senhora.
Deveria igualmente
comover o coração senti-
mental de Luís a desdita
da princesa. Afastada da
mãe, toda a vida manifes-
taria o desejo de a voltar
a ver, desejo esse contra -
riado pe la necessidade de
man ter nos cofres da coroa
a espan tosa fortuna que
D. Maria her da ra. Esse foi,
possivelmen te, o motivo
pelo qual se viu impedida
de casar com vários pre-
tendentes, entre os quais
estava Filipe II, herdeiro
de Espanha, filho de Car-
los V e futuro Filipe I de Portugal. As razões de Estado não
permitiam que tal dote seguisse para Madrid. Assim,
no lugar de Maria, Filipe II viria a casar-se com uma filha
de D. João III, igualmente chamada Maria, sua sobrinha.
De novo o desapontamento tomba sobre a vida da bela
princesa.
45
INFANTA
D. MARIA
Segundo consta, D. Maria depressa percebeu o ta -
lento do poeta. Este, por seu lado, descobre na infanta a
elevação espiritual e intelectual capaz de compreender
a dimensão dos seus sonhos e dos seus projectos.
Na história da vida de Camões são mais as sombras
do desconhecimento que as luzes da revelação. Mas foi
tentador, ao longo dos séculos, descobrir na sua poesia, e
em pequenos outros sinais, o despontar de uma paixão do
poeta pela requintada princesa. Alvitra-se que da admi -
ração passaram à cumplicidade. E que Luís a ela vai con-
fidenciar o embrião da sua obra maior, Os Lusíadas. Des -
cobrem-se, em sonetos, hipotéticos retratos de D. Maria:
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
46
Ao longo dos tempos foi-se constituindo um fundo
de lenda sobre este relacionamento amoroso, que seria
necessariamente platónico, como é evidente. Também se
enfa bularam cenas de encontros discretos, nos quais o
poeta lia as suas obras à princesa desditada, compreen-
47
PROXIMIDADE
ROSTO
da edição
de 1598 das
Rimas de Luís
de Camões
dendo esta a magnitude do seu talento e apercebendo-se,
a pouco e pouco, dos afectos crescentes do pobre fidalgo.
Alvitrou-se mesmo que, perante a beleza da poesia de
Camões, D. Maria teria chegado a chorar, declarando ser
ele o maior de todos os poetas.
Terá continuado por algum tempo a afinidade inte -
lectual e a inclinação afectiva entre a princesa e o poeta,
48
A BELA INFANTA
conjugação que hoje nos parece mais crível à luz da his-
toriografia do Romantismo que à crua realidade das con-
venções sociais da época. Mas a íntima decisão de Camões
em tornar-se um grande poeta talvez justifique a ideia da
sublimação de um impulso amoroso impossível como se-
ria a afeição por D. Maria. Por outro lado, apesar da sua
posição social, poderia D. Maria ter apreciado para além
das razões puramente estéticas a sincera e apaixonada
devoção de um homem que, para ela, tinha um talento ex-
cepcional. Não nos podemos esquecer da grande erudição
e educação artística da princesa, e do valor que ela daria
às manifestações de genialidade.
Esses cabelos louros e escolhidos,
Que o ser ao áureo sol estão tirando,
Esse ar imenso adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos,
Esses furtados olhos, tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando,
Essa divina graça que, em falando,
Finge os meus pensamentos não ser cridos.
Esse compasso certo, essa medida,
Que faz dobrar no corpo a gentileza
A divindade em terra tão subida,
Mostrem já piedade e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mim sofrimento, em vós dureza.
49
Neste soneto, toda a semântica que referencia a
mulher amada aponta para uma pessoa de elevada posi -
ção social, ao mesmo tempo que se adequa à descrição
física de D. Maria e, sobretudo, à distância intransponível
que separa o poeta da princesa.
A ter de facto acontecido, como é suposição de
muitos, esta afinidade, caminhando para a paixão, tinha
de terminar. Se Camões se vira afastado de Catarina de
Ataíde por diferença de estatuto social, imagine-se o fos-
so que o apartava de uma infanta de Portugal. Ao que
parece, Luís, personalidade viva, sempre em movimento e
constantemente rodeado de amigos, terá deixado escapar
algumas inconfidências. O perigo que corria era, porém,
mortal. Não era caso único que jovens, ainda que nobres,
tivessem sido condenados à morte por passarem a fron-
teira do decoro.
Alvitra-se que a história chegou aos ouvidos da
rai nha e que D. Maria, alarmada com o perigo que corria
Luís Vaz, o terá avisado. Mais uma vez, a narrativa tem de-
masiados contornos de romance. Seja como for, uma pos-
sibilidade se coloca: Camões foi afastado da corte por
«amores com uma dama do Paço». E a medida, que o
obriga a manter-se distante da corte, é suficientemente
severa para pensar que o estatuto social da «dama» seria
elevado. É certo que jamais se designaria D. Maria como
50
UM AMOR INTERDITO
«dama do Paço». Nisso vêem alguns motivo para consi -
derar que a punição se deveu aos amores de Camões por
Catarina de Ataíde; outros defendem que a expressão
se destina a proteger a identidade de D. Maria.
Mas é preciso ser cauteloso. António Sérgio contes-
ta claramente a ideia de que Camões se tenha «exilado»
por questões amorosas, como defendia o historiador Jo sé
Maria Rodrigues. E vai mais longe: associar a poesia ca-
moniana aos acontecimentos da sua vida é extrapolar a
veia poética para o plano da realidade pessoal. Hernâni
Cidade questiona-se: «serão tais desterros impostos como
penali dade ou apenas ausências da terra onde se preferia
estar, tantas vezes na linguagem do tempo, designadas
com aquela palavra?» É provável que assim tenha sido, se
bem que, com o seu estilo de vida boémio, libertino e beli -
co so, Camões tivesse múltiplas razões para fugir de Lis-
51
CENA DA VIDA
NA CORTE
Terão Luís Vaz e a hipotética amada ousado um último
encon tro? Arriscaram a reputação ela, a vida ele, numa
ma druga da de despedida? É o que apetece pensar, lendo este
soberbo soneto, onde o tema do afastamento se exprime de
modo pungente.
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada,
Saía, dando à terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada;
Ela só, viu as lágrimas em fio
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio;
Ela ouviu as palavras magoadas
Que poderão tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.
Um último encontro
52
boa.
Para todos os efeitos, a vida de Luís Vaz iria mudar.
Era o adeus aos lugares queridos em que vivera. Os saraus
nos quais conhecera os melhores espíritos do reino, para
não falar das mais belas donzelas. Ou mesmo das mais
oferecidas, cuja preferência (ou oportunidade) lhe mar-
cavam as noites de boémia. Não durara mais que dois ou
três anos esta vida descuidada e intensa, que vai para sem-
pre moldar a personalidade do poeta, revestindo-a de uma
melancólica nostalgia de um tempo dourado que jamais
voltaria.
Em 1546 Camões sai de Lisboa e parte para uma es-
pécie de exílio interno, sendo obrigado a permanecer a
uma certa distância da capital. Vai constrangido, amar-
gurado e certamente nostálgico dos luminosos dias. As
razões deste afastamento talvez não se possam reduzir
aos «amores com uma dama do paço».
O poeta tinha escrito um auto, uma peça teatral,
chamada Auto de El-Rei Seleuco. Ignora-se a data da exe-
cução da obra e mesmo da sua representação. Aventa-se
que te nha sido encenada em 1545, na casa de Estácio da
Veiga, homem de grande importância na corte. E há quem
veja no enredo da peça, nitidamente baseado numa peça
de Plutarco, uma acintosa crítica à tumultuosa relação en-
tre D. João III e D. Leonor de Áustria, facto que teria so-
53
BANIDO
bremaneira desagradado ao rei. Esta interpretação parece
duvidosa, mas ainda assim de considerar. Apesar de não
ser um género maior na sua obra, Camões escreverá ain-
da dois outros autos ao gosto vicentino, Comédia de Filode-
mo e Comédia dos Enfatriões.
Seja como for, Luís Vaz encontrava-se longe de Lis-
boa e dela afastado para longe. Para onde? Até hoje não
há certezas. Seria forçosamente nas margens do Tejo, a
avaliar pelos poemas que o poeta nos legou a partir do seu
exílio. Os trabalhos de investigação têm apontado diver-
sos lugares, cada um deles reivindicando a glória de haver
albergado, ainda que de modo efémero, o poeta.
Houve quem propusesse Santarém, por ser casa de
família, onde talvez se encontrasse sua mãe; outros,
apoiando-se em documentos, palpitaram que Coimbra:
apesar de não se encontrar nas margens do Tejo, seria o
local mais provável, beneficiando do apoio de seu tio,
D. Bento; muitos confiaram na possibilidade de Constân-
cia, em virtude de lá haver uma casa de família; falou-se
SANTARÉM
em meados
do século xvi
54
até de Abrantes. Finalmente foi defendida a hipótese de
Belver, com as plausíveis razões de que a geografia local
corres pondia muito mais à descrição enunciada nos poe-
mas camoneanos que qualquer outra das localidades.
Seja qual for o lugar onde o banido jovem se refu-
giou, o certo é que a escrita se intensifica, com uma pro-
dução poética assinalável, marcada pelas saudades, pela
nostalgia, pelo sentimento de impotência perante a roda
da fortuna que o deixara no isolamento e abandono.
Após a natural revolta, ter-se-á seguido a resignação
abatida. Depois, Luís, com o vigor da juventude e a crença
inflexível no seu talento, começa a recuperar. E é no pa-
pel, sob a forma poética, que acaba por reflectir nos acon-
tecimentos que o haviam transformado num homem afas-
tado do convívio dos que mais gostava e admirava.
Datará provavelmente desta época a amarga re-
flexão constante na Écloga II, em que duas personagens,
Agrário e Almeno, dialogam. É significativo o trecho de
Agrário:
Perigos, línguas más, murmurações,
Ciúmes, arruídos, competências,
Temores, mortes, nojos, perdições.
Estas são verdadeiras penitências
De quem põe o desejo onde não deve,
55
UMA LONGA ESPERA
De quem engana alheias inocências.
Mas isto tem Amor, que não se escreve
Senão onde é lícito e custoso;
E onde é mor o perigo, mais se atreve.
A reveladora afirmação «De quem põe o desejo onde
não deve» contextualiza toda a estrofe à luz do drama que
Camões terá vivido em relação a D. Maria.
Nas margens do Tejo, Luís escreve e aborrece-se.
Longe vão os seus pensamentos de idealismo bucólico,
quando, mergulhado na agitação da vida lisboeta, escrevia
a um amigo invejando-lhe a virgiliana condição rural. No
seu exílio experimenta o tédio e anseia percorrer o curso
das águas que o Tejo leva até Lisboa. Contudo, é neste
período da sua vida que vai compor alguns dos seus mais
belos poemas, imbuídos de uma graça e de um primor es -
NAS
MARGENS
DO TEJO
56
té tico que os elevam aos grandes momentos da sua obra.
Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Para que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.
Mas se também de tudo é ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim ao meu cuidado.
Que muito melhor é perder a vida
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.
Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.
Sentimentos de culpa. Lembranças amargas. Visão
funesta de um futuro que se adivinha negro. A exacerba-
da sensibilidade poética de Luís vai exprimir-se em toda
a sua plenitude nestes sonetos de exílio, onde as horas
amargas da solidão lhe devem pesar muito.
[...] Perdi numa hora tudo quanto em termos
Tão vagarosos e largos, alcancei; [...].
Mas o castigo imposto a Luís acabaria por terminar.
57
No seu exílio campestre, Camões compôs diversos sonetos
de sabor bucólico e tonalidade vergiliana, plenos de graça
e domínio formal, como este em que invoca a natureza para
compreender o seu sentimento de saudade.
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;
Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual:
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas
Nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes,
Renegando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
Saudades
58
Estando Camões no seu triste exílio, escrevendo e sentindo-se in-
feliz, apartado do mundo que tanto amara, da animada vida na capital
onde o seu espírito e a vibrante juventude que o impregnava o tornavam
estimado, quando não amado, pessoa amiga vem dizer-lhe que o castigo
findara. Não se sabe quem, nem quando. Mais uma vez, é como se a vi-
da do poeta fosse uma espécie de tela em branco, apenas com alguns
traços esboçados, sobre os quais todos podem dar a sua pincelada.
O SOLDADO
QUE PERDE UM OLHO
SOLDADO POETA – a peleja nas armas e nas letras
59
Podemos sentir a excitação que se apoderou de Luís
quando recebeu a notícia. Era um homem novo, que pe-
nara a solidão da vida campestre durante talvez três anos.
Tinha agora cerca de um quarto de século, estava no
apogeu da juventude, as «musas» tinham-no abençoado
com uma perfeição de escrita que não cessara de depurar
no seu longo afastamento. Poderia ele voltar à corte? Pode-
ria reconquistar os corações que cativara, especialmente
o grande amor que o mantinha cativo? É provável que os
sentimentos do poeta fossem paradoxais, mas o que im-
portava era rumar a Lisboa o quanto antes.
Camões dirige-se à capital, ao longo do rio Tejo,
que fora personagem principal nos seus poemas de exílio.
Mal chega, deverá ter usado todos os seus conhecimen-
tos, visto que pouca influência tinha, para voltar a entrar
na corte. É possível que tenha instado D. Manuel de Por-
tugal, ou D. Francisco de Noronha, amigos importantes e
de reputação sem mácula, a franquearem-lhe as portas
dos círculos literários e culturais, mas também das taber-
nas, dos arruaceiros e dos embarcadiços, sem falar das
rameiras que tanto prezava.
Numa carta, «passa Camões a ocupar-se das damas
de aluguer. Há muito que dizer delas, posto que alguns
julguem que com estas “É só pagar e andar.” Camões, co-
mo se vai ver, não as conhecia apenas como freguês pa-
gante, mas como boémio que frequentava e vivia o seu
mundo, como homem que tinha olhos para as apreciar»,
segundo António José Saraiva.
60
DE VOLTA A LISBOA
Contudo, as evasivas chegaram. Com a diplomacia
possível, fizeram-lhe sentir que, com a sua idade, deveria
dar provas de valor militar nas praças de África se quisesse
envergar vestes de varão, ou seja, antes de entrar no paço
teria de fazer carreira de armas.
Tornar-se expedicionário no Norte de África era
inteiramente alheio aos desejos de Luís Vaz. Possivel men -
te tal ideia jamais lhe teria passado pela cabeça. Naquele
tempo os Portugueses mantinham diversas praças afri -
canas sob seu domínio, num estado de conflito latente
com os Árabes, mais que de guerra declarada. Era uma
boa ocasião para os jovens nobres lusitanos praticarem as
artes bélicas e clamarem feitos valorosos.
O valor económico da presença portuguesa nes -
tas paragens era quase inexistente (pelo contrário, seria
61
TÂNGER,
conquistada
em 1471
mesmo ruinoso para os cofres do Estado) e a importância
estratégica pouco relevante. Aliás, será no reinado de
D. João III que quase todas as posições dos Portugueses
na África saariana serão abandonadas.
Neste ano de 1549 (ou 1550), com cerca de 25 anos,
Luís Vaz de Camões encontra-se numa encruzilhada.
Sem profissão útil, não tem rendimento garantido e as
amizades, benévolas, é certo, olhariam para ele com a mal
disfarçada estranheza que sempre provoca um ser que,
aos olhos dos outros, deveria já ser um pouco excêntrico.
Sem um protector capaz de o alcandorar aos voos a que
aspira, Luís pergunta-se para onde ir. «Onde vás, Luís?»
Talvez como nenhum outro testemunho, a partida
de Camões para África certifique o seu ardente desejo de
voltar. Se essa era a condição imposta, pois havia que
cumpri-la. Por outro lado, o seu arrebatamento natural de-
via encontrar nesta expedição um ideal de nobilitação.
Quem sabe se, por excepcionais feitos de armas, por al-
gum acto heróico e grandioso, não ganharia o respeito dos
maiores do seu país? Haveria algum feito de bravura que
pudesse apagar a distância?
Camões não era, a meio dos seus 20 anos, apenas
um poeta de talento excepcional, mal avaliado pelos con-
temporâneos. Era também um homem feito, forte e des -
temido, habituado a lidar com armas e experimen tado em
62
«ONDE VÁS, LUÍS?»
querelas e rixas de rua. Uma temporada na carreira das
armas não o atemorizava. Talvez mesmo o estimulasse,
até porque o seu espírito, sedento de conhecimento e de
novas, deveria aspirar ao contacto com aquelas terras onde
tantos portugueses se haviam coberto de honra. Talvez o
projecto de Os Lusíadas já ocupasse a sua mente, estando
mesmo algumas estrofes já escritas.
Sem nada a perder, Luís parte para Ceuta. Antes da
largada, poderá ter escrito estas nostálgicas estrofes:
Partir não me atrevo,
Que me lembram mágoas;
Se me levam águas,
Nos olhos as levo.
Se vou ao Tejo
Para me despedir,
Não me posso ir
Sem ver meu desejo,
E quando o vejo,
Partir não me atrevo;
Se me levam águas
Nos olhos as levo.
Se de saudade
Morrerei ou não,
Meus olhos dirão
De mi a verdade.
Por eles me atrevo
A lançar às águas,
63
Que mostrem as mágoas
Que nesta alma levo.
As águas que em vão
Me fazem chorar,
Se elas são do mar,
Estas de amor são.
Por elas relevo
Todas minhas mágoas;
Que se força de águas
Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem,
Todas são salgadas;
Porém as choradas
Doces me parecem.
Correi, doces águas,
Que se em vós me enlevo,
Não doem as mágoas
Que no peito levo.
Luís Vaz sai da barra do Tejo numa armada, certa -
men te numerosa, que vai levar alguns dias a chegar a Ceu-
ta. Não se sabe quando, mas pensa-se que terá feito esca-
la num dos portos algarvios, talvez Lagos, talvez Portimão.
64
EM CEUTA
À chegada a Ceuta, toda e qualquer esperança de
uma jornada gloriosa em terras africanas se desvanece
em pouco tempo. A ronceira vida dos homens de armas,
em condições climatéricas hostis, com dificuldades de
abastecimentos, comendo mal e pelejando em recontros
inconsequentes com os mouros depressa o vão enfastiar.
Não se podia pedir, de igual modo, uma vivência intelec-
tual e espiritual num meio rude, entre homens rudes.
Camões vai entregar-se, de novo, àquilo que melhor
sabe fazer. Escreve. Numa carta a um amigo, provavelmen -
te D. António de Noronha, dedica-se a longas e elípticas
confabulações filosóficas, onde são já patentes a sua desi -
lu são com o género humano e o cepticismo ante o futuro.
65
CEUTA
E por tão triste me tenho
Que, se sentisse alegria,
De triste não viveria,
Porque a tal sorte vim,
Que não vejo bem algum
Em quanto vejo,
Que não nasceu para mim;
E por não sentir nenhum,
Nenhum desejo.
Decididamente, Camões não é um homem feliz na
praça de Ceuta. Experimenta os sentimentos contraditó -
rios da sua existência. Desejando ardentemente ser aceite
e querido num mundo que fora o seu, procura, tem o desí -
Gravura
fantasiosa
que representa
CAMÕES NUMA
LUTA EM CEUTA
66
gnio paradoxal de viver «apartado do mundo», num afas-
tamento onde possa viver em paz a sua dor. Mas a dor irá
marcá-lo inesperadamente de forma cruel e definitiva. Os
fados, o termo a que com frequência se refere ao seu des-
tino, ainda se vão virar mais contra ele.
É seguro que Camões se envolveu em diversas pele-
jas que, mais do que combates militares de grande mag-
nitude, seriam sortidas militares rápidas e esporádicas, ou
respostas a provocações. Nelas não se deve ter acanhado.
Escreverá uma carta, já na Índia, onde se vangloria de nun-
ca ter negado «conversações» deste género: «Ajuntou-se a
isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que
não podia ser cortada senão pela sola dos pés. As quais,
de me não as verem nunca, me fizeram ver as de muitos,
e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem
fracos punham mau nome, vingando com a língua o que
não podiam com o braço.»
Uma vez mais, os ventos sopram contra ele, ou os
deuses, como Luís gostava de pensar. Num recontro é feri-
do com gravidade no rosto, lesão que lhe provoca a perda
de um olho e o desfigura para sempre.
Fica Luís de Camões à beira de morrer, o que não é
de admirar se se avaliarem as condições sanitárias e os
co nhecimentos médicos da época. Acabará por sarar, mas
o ferimento provoca um retorno antecipado a Lisboa.
67
A PERDA DE UM OLHO
Ao longo dos tempos muito se especulou sobre qual
seria o olho perdido por Camões. A gravura inserta nas
primeiras edições de Os Lusíadas mostrava-nos um vazio
no lugar do olho esquerdo. Porém, aconteceu que foram
invertidas as chapas da gravura na altura da impressão,
pelo que só mais tarde se deu conta de que o olho perdi-
do era o direito.
DESENHO
AGUARELADO
68
A temática do olhar é recorrente na poesia camoniana,
havendo estrofes que se referem quase explicitamente à perda
de um dos olhos e de como esse acontecimento pode ser subli-
mado pela elevação do espírito. O poeta vai encarar a sua mu-
tilação como algo que, de certo modo, o eleva sobre os outros.
Falta-lhe um olho, sobra-lhe a agudeza do olhar:
Sem olhos vi o mal claro
Que dos olhos se seguiu:
Pois cara sem olhos viu
Olhos que lhe custaram caro.
De olhos não faço menção,
Pois quereis que olhos não sejam,
Vendo-vos, olhos sobejam,
Não vos vendo, olhos não são.
A importância do olhar
Às agruras temporárias desta segunda espécie de
exílio, juntava agora Luís a amargura de uma mutilação
definitiva. Para sempre estava perdido o encanto daque-
les olhos grandes e expressivos que tanto impressiona-
ram as damas de qualquer origem. O fulgor de um rosto
vibrante e intenso era agora a expressão de uma repul-
siva cara desfigurada. Se os seus anseios de aceitação
social estavam já hipotecados, como se sentiria agora Luís
perante os desígnios que almejava?
69
Ao chegar a Lisboa, por volta de 1550, Luís encon-
tra uma sociedade em rápida mutação. É uma mudança
que contra ele se virará. Em 1536, após grande dispêndio
de verbas dos cofres da nação, a Santa Sé autoriza a ins -
talação do Santo Ofício em Portugal. A Inquisição chegara
para aterrorizar as almas durante mais de dois séculos.
Quatro anos depois, estabelece-se no país a Companhia
de Jesus. Com os inacianos opera-se uma profunda mu-
dança de mentalidade em toda a sociedade portuguesa, a
começar pela corte de D. João III.
Onde antes imperava o humanismo renascentista,
aberto ao conhecimento dos autores clássicos e do mun-
do antigo, às novas ideias e práticas vindas da Europa e,
INÁCIO DE
LOYOLA
AOS PÉS DE
PAULO III.
Dois
símbolos
da Contra-
-Reforma
70
REGRESSO A UMA LISBOA DIFERENTE
sobretudo, à maravilhosa gesta de conhecimento cien tífico
proporcionada pela saga dos Descobrimentos, fermenta
agora o obscurantismo, a superstição e o medo instiga -
dos pelo espírito da Contra-Reforma. Os jesuítas muito
depressa tomam conta dos cargos eclesiásticos mais im-
portantes na corte. Tornam-se confessores, conselheiros,
educadores, administradores. A sua influência alastra
pelo reino como fogo em palha seca.
Na própria educação do infante D. João, o único
herdeiro masculino ao trono de Portugal que sobrevivera
à extensa prole de D. João III, se pode verificar como os
tempos mudaram. Para a formação do jovem príncipe,
D. João III chamara à corte Damião de Góis, o mais insigne
humanista português e um dos maiores vultos intelec -
tuais da Europa do seu tempo. Damião de Góis abandona
os seus cargos no estrangeiro, aliás de enorme relevo,
e ruma a Lisboa para se ocupar da tarefa de educar o
príncipe, mester que se revestia de enorme importância
social ao tempo.
Contra o ilustre humanista, os jesuítas não perdem
tempo. Insidiosamente, o padre Simão Rodrigues denun-
cia-o à Inquisição de Évora, alegando simpatias heréticas
daquele para com o protestantismo. Homem do mundo,
Góis conhecera Lutero, com quem debatera ideias, mas
estava longe de ter perdido a fé católica. Esse facto era,
porém, irrelevante face à intriga.
O brilhante espírito renascentista é afastado, toman-
do o seu lugar António Pinheiro, da confiança dos jesuí-
tas, que se revelará um homem de enorme cobiça pelo
poder, vindo a ocupar destacadas posições no Estado.
71
Filho de D. Manuel I, D. João III será o décimo
quinto rei de Portugal. Desde novo recebe instrução
de carácter humanista, com mestres de grande
craveira como Luís Teixeira e o médico Tomás de
Torres. Durante a juventude, duvidava-se das ca-
pacidades do futuro monarca. Seu pai chega a de-
clará-lo «néscio», pouco dotado de capacidade inte -
lectual. Porém é educado nos assuntos da governação,
como pertencia aos ditames da descendência régia.
D. João III será aclamado rei aos 19 anos, vindo a casar com
uma irmã de D. Leonor, D. Catarina de Áustria. Durante o reina-
do de D. João III assiste-se a uma dramática alteração da es-
trutura do poder, caminhando-se para o absolutismo real, ao
mesmo tempo que as ideias do humanismo do Renascimento
D. João III
Este António Pinheiro virá mais tarde a cruzar-se no cami -
nho de Camões. Quanto a Damião de Góis, resta-lhe a con-
solação dada pelo rei. Será guarda-mor da Torre do Tombo.
Nem esse facto o salvaguarda das mãos da Inquisição.
Após a morte do monarca, é preso em 1572, com 70 anos,
e condenado por heresia a prisão perpétua. No cárcere
ainda será denunciado, entre outros, por Pêro de Andrade
Caminha, o poeta cortesão denegridor de Camões. Li ber -
tado devido talvez à provecta idade, é assassinado em
Janeiro de 1574.
72
serão rapidamente substituídas pela Contra-Reforma, pelo poder
dos jesuítas e pela instauração da Inquisição em Portugal,
facto que merece o empenho pessoal do monarca.
É no reinado de D. João III que a extensão do império co -
me ça, de certo modo, a implodir (à excepção do Brasil, face
ao qual o monarca é o primeiro a fazer uma tentativa séria de
valo rização e de exploração, com o sistema de capitanias).
Nos territórios orientais, os ataques dos Otomanos e dos Árabes
tornam-se cada vez mais frequentes, combatendo a situação
monopolista imposta pelos Portugueses.
Em virtude do enorme esforço financeiro empregue na
manutenção das praças do Norte de África, que não eram, de
modo algum, produtivas, D. João III decide abandonar os ter-
ritórios de Arzila, Azamor, Alcácer-Ceguer e Safim, criando uma
legião de nobres e homens de armas desempregados.
Com o filho de D. Manuel, o absolutismo torna-se uma for-
ma de governo. Com ele apenas despacham um secretário de
Estado, António Carneiro, apoiado por dois dos filhos deste. A
legião de súbditos, em parte vindos das praças de África, noutra
parte nobres caídos em infortúnio financeiro pela perda de poder
das grandes famílias do reino, aumenta, representando para
os cofres nacionais um esforço hercúleo que nem os rendimen-
tos da Índia conseguiam prover. Não admira que no reinado de
D. João III tenham ocorrido graves crises financeiras, sempre
colmatadas com a ruinosa solução dos empréstimos externos.
É nas relações com Espanha que se revela a maior debi -
lidade de D. João III. Alinhando descuidadamente com as
manobras de Carlos V, estreita de tal modo os laços de pa-
rentesco entre as duas coroas que deixa iminente a possibi -
73
lidade de o reino espanhol se apoderar da coroa portuguesa.
Tendo tido diversos filhos varões, todos morrerão (mesmo
um filho natural). O único dos seus filhos que chega a pro -
criar, D. João, casa com uma filha de Carlos V e morre antes
de o seu descendente, neto de D. João III, nascer. Este, por sua
vez, morrerá muito novo. Era D. Sebastião. Espanha pôde
então tomar a coroa de Portugal.
Outra das vertentes da política de
D. João III foi a estreita relação que esta -
beleceu com o papado, pagando uma soma
gigantesca para a instauração da Inquisi -
ção em Portugal e permitindo a introdução
do espírito da Contra-Reforma, tendo os
jesuítas entrado (com poderosa presença)
no nosso país durante o seu reinado.
Releve-se a seu favor que, durante os
primeiros anos de poder, D. João III é um
grande apoiante das artes na senda, aliás,
da corte de seu pai. Sá de Miranda, Ber -
nardim Ribeiro, Pedro Nunes, João de Cas-
tro e João de Ruão, entre outros, brilharão
na corte e conhecerão a sua protecção. Pro-
cede igualmente à reforma da Universidade portuguesa e cria
o Colégio das Artes. Os seus últimos anos de reinado, contudo,
estão bem longe do brilho renascentista, mergulhados na
obscuridade trazida pelos jesuítas e pela Inquisição.
Com D. João III assiste-se à passagem abrupta de um perío-
do luminoso, do apogeu da história de Portugal, para o declínio
económico e moral.
74
Portada do
REGIMENTO
DO SANTO
OFÍCIO
de 1640,
que
aperfeiçoa
os de 1552
e 1613
Quando Camões chega a Lisboa, toda a cultura so-
cial estava em acelerada mutação. As perseguições, as
denúncias, os autos-de-fé contaminavam a vida da cidade
com um verda deiro es-
pírito de medo, em que
todos podiam ser dela-
tores de todos a partir
de denúncias ridículas,
ditadas pela superstição
ou pelo medo. O povo
mal conse guia compre -
ender o que se passava,
mas acompanhava os sinais da mudança procurando o
recato, o falar discreto, a presença reforçada nos ofícios
religiosos. Nin guém andava contente.
Além disso, as finanças de Portugal caminhavam
de mal para pior. As desastrosas decisões de D. João III a
ní vel económico haviam mergulhado o país numa grave
crise, onde a falta de dinheiro nos cofres do Estado amea -
çava tornar-se uma doença crónica.
Para colmatar as enormes despesas com a vasta
legião de funcionários que gravitavam à volta da corte,
as fortunas despendidas nas relações com a Santa Sé, os
rios de dinheiro gastos nas praças do Norte de África e as
riquezas geradas pelo florescente comércio com a Índia
não chegavam. Assim, o monarca, já imbuído do espírito
absolutista, pouco e mal aconselhado, vai recorrer com
uma alarmante frequência aos empréstimos externos,
75
UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA
PROCISSÃO DO
AUTO-DE-FÉ,
a sair do
palácio dos
Estaus, a sede
da Inquisição,
no Rossio em
Lisboa
que têm como consequência o agravamento das condi -
ções de vida da população em geral.
Nada melhor para a manutenção da ordem que a
existência de um poder «espiritual» com instrumentos
para exercer a justiça, manter a ordem, atemorizar os re -
nitentes. Se a alta nobreza perdia influência, resmungava
com as dificuldades e dependia cada vez mais do poder
real; se o povo passava por agruras inimagináveis à luz
dos valores de hoje; estavam lá a Inquisição para impor
a ordem e os jesuítas para aplacar as almas. D. João III
havia assegurado o seu poder. O reino, contudo, entrara
em declínio.
A vida na corte também havia mudado. Rapida-
mente se vão desvanescendo os sinais de apreço pelas
artes e pelas letras, as festas e os saraus onde os be los
espíritos se manifestavam. O rei e os mais destacados
mem bros da nobreza estão inteiramente dominados pe -
los representantes da Companhia de Jesus, como o padre
Simão Rodrigues, que se torna confessor do monarca.
Mesmo o cardeal D. Henrique, irmão de D. João III, que an-
tagonizara os inacianos, é agora, após ter sido designado
inquisidor-geral, um indefectível seguidor dos Apóstolos,
como a si mesmos se designavam os membros da com-
panhia. Como se sabe, D. Henrique terá um papel crucial
no período da perda de independência de Portugal.
A rainha velava pelos costumes. Agora, a música, o
teatro, a poesia, as práticas de galanteria eram conside -
radas doenças para a alma e alçapões para os abismos do
inferno. É este novo clima que Luís vai encontrar na sua
chegada a Lisboa.
76
Damião de Góis é consi -
derado um dos grandes vultos
do humanismo europeu, esta-
belecendo pontes culturais de
primeira importância entre a
elite ilustrada portuguesa e os
meios culturais mais avança-
dos na Europa seiscentista. Tal
como Erasmo ou Dührer, este
grande renascentista respira-
va um ambiente de ciência e
liberdade intelectual.
Damião de Góis nas ceu
em Alenquer, em 1502. Ten -
do ficado órfão aos 11 anos,
torna-se moço de câmara na
corte de D. Manuel I. As qualidades de espírito do jovem cedo
atraíram a atenção de D. João III, que o nomeou escrivão da
feitoria na Flandres, quando era feitor Rui Fernandes de Al-
mada e, mais tarde, o enviou em negócios a várias cortes da
Europa, «servio nas partes da Alemanha, Frandes, Brabante e
Holanda en negoçeos de muita importancia aonde foi tão quis-
to e aceyto que o tinhão todos por seu natural».
Assoberbado pela «curiosidade e desejo que tinha de co -
nhecer o mundo», conheceu e privou com algumas das mais
destacadas figuras da sua época em todo o continente europeu,
como Martinho Lutero, Erasmo de Roterdão e Melancton.
Damião de Góis
77
DAMIÃO
DE GÓIS
Damião de Góis viveu em Basileia junto de Erasmo e estu-
dou na Universidade de Pádua. Prosseguiu os seus estudos em
Lovaina, onde publicou vários trabalhos: os Comentarii rerum
gestarum in India e o Fides, religio moresque Aethioporum sub
imperio Preciosi Joanni. Antes já havia desistido do cargo de
tesoureiro da Casa da Índia, que lhe havia sido atribuído por
D. João III, justamente para prosseguir os seus estudos.
Retornou o grande humanista a
Portugal, em 1545, tendo sido designa-
do guarda-mor da Torre do Tombo. É
encarregue de escrever a Crónica do
Felicíssimo Rei D. Manuel, apesar de não
ser o cronista-mor do reino. A obra que
produz, extremamente cuidada e fun -
damentada, é de uma enorme qua -
lidade. Escreverá ainda a Crónica do
Príncipe Dom João o Segundo do Nome.
Foi ainda um apaixonado cultor da
música e do convívio com os espíritos
mais eruditos da sua época em Lisboa.
A Inquisição promove a sua des-
graça. Foi preso pelo Santo Ofício (de-
nunciado por Sebastião Rodrigues de Azevedo), acusado de ser
espírito heterodoxo. Em 1574 será achado morto na sua casa
de Alenquer, suspeitando-se de assassinato.
Historiador e diplomata, viajante e funcionário régio, Góis
foi o espírito mais moderno e iluminado do seu tempo em Por-
tugal e o porta-voz das novas ideias humanistas, um homem
do Renascimento e um dos mais eruditos do seu tempo.
78
CRÓNICA
DO
FELICÍSSIMO
REI
D. MANUEL
Ao chegar à capital, Camões deve já trazer consigo a pala negra
que lhe recobre o olho estropiado e afasta o olhar alheio da horrível visão
de uma cavidade escura e funda. Não vem apenas mutilado. É, certa-
mente, um homem ferido na alma, envergonhado, cada vez mais imerso
num mundo próprio, onde ecoa a voz que lhe dita os versos, o génio que
organiza os poemas.
Contudo, não perde o desejo, quase como se de uma obsessão
se tratasse, de voltar aos lugares e às pessoas que amara. É como uma
borboleta em torno de uma luz, como aliás refere um dos seus poemas.
UM REGRESSO
TRÁGICO
VISTA DE LISBOA
79
Neste ano de 1550, Camões parece tentar a sua sorte
na Índia, alistando-se para embarcar numa das frotas que
em breve partiriam. Mas tal não acontece, e mais uma vez
a roda da história lhe será funesta. Que fazer, então? É ain-
da uma pessoa orgulhosa do seu talento, absolutamente
crente da sua missão de poeta, investida no desígnio de
escrever uma obra que, dando corpo à sua vastíssima
erudição, glorificasse a saga marítima dos Lusitanos.
Contudo, o jovem imberbe e altivo que, anos antes,
causara brado em Lisboa, havia mudado. Era agora um
homem feito, de considerável envergadura, barba ruiva,
bigode, cabelo grande. Perdera o brilho da moci dade. Con-
servava apenas um olho, que mantinha ainda o olhar cáli-
do e inquie to de outrora. O outro estava tapado por uma
pala negra, simbolizando o negru me do seu destino. Co-
mo o aceitariam sendo pobre, proscrito, mutilado?
No entanto, Camões vai tentar. A pri meira abor-
dagem que faz é a mais lógica. Procura aproxi mar-se da
corte do príncipe D. João, único filho varão de D. João III,
que por essa época desenvolve uma grande afeição pela
poesia e se torna protector dos poetas, entre os quais Fran-
cisco Sá de Miranda, D. Manuel de Portugal, amigo de
Camões, Fernando da Silveira e João Lopes Leitão, entre
muitos outros. Com o príncipe D. João a poesia ganhava
novo impulso. Havia que tentar, pensou Luís. Até porque
tinha consciência nítida da sua superioridade sobre os
restantes vates do reino. Além disso, portava consigo um
projecto do maior interesse nacional: um poema que glo-
80
DESFIGURADO
rificava os Descobrimentos, a gesta lusitana e, pormenor
com alguma importância, a casa de Avis. Mais do que
a glória, contudo, talvez procurasse uma pequena tença
ou até uma malga de sopa.
81
Camões vai utilizar todos os recursos para voltar
a ser aceite: a influência dos amigos, a pressão de conhe -
cimentos nas altas esferas, mas também a lisonja. E quem
melhor para ser lisonjeado que o tutor de estudos do
príncipe, o famigerado D. António Pinheiro? Pois é a ele
que Camões dirige um soneto laudatório, manifestamente
exagerado no tom, que nos chocaria se não tivéssemos
presentes as vicissitudes que enfrentava Luís Vaz.
[...] E, fazendo a sua dor ilustre engano,
A Júpiter pediu que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
A seu pinheiro desse, soberano.
[...] Oh! ditoso pinheiro! Oh! mais ditoso
Quem se vir coroar da folha vossa,
Cantando à vossa sombra verso eterno!
A última estrofe é bem exemplificativa do esforço
que o poeta faz para impressionar Pinheiro, ao mesmo
tempo que, implicitamente, lhe promete criar, à sua som-
bra, «verso eterno». Estaria Camões a pensar no poema
épico que já então elaborava?
De nada lhe vão valer, porém, estes rebaixamentos
da arte, estas cedências de conveniência. O ambiente cul-
tural, social e religioso havia mudado, o humanismo re-
nascentista de Camões seria certamente encarado como
um perigo, uma ameaça de corrupção dos espíritos, por
aqueles que tutelavam a educação do príncipe. Que o
82
UM ESFORÇO INÚTIL
jovem herdeiro do trono se dedicasse às belas letras,
daí não viria mal ao Mundo. Mas admitir um homem que
ma nifestamente se desenquadrava do espírito fanatizado
do tempo, isso era outra coisa.
Sem pretextos de carácter normativo, como os que
antes o tinham levado ao Norte de África, as portas foram-
-lhe sendo fechadas de modo dissimulado, menos franco,
de certo modo ainda mais frustrante. Camões compreende
que não vale a pena continuar a insistir.
83
CAMÕES tenta
impressionar
D. António
Pinheiro
A infanta não perdera, com as profundas alterações
sociais que estavam em curso, o costume de se fazer rodear
de actores, poetas e músicos em Santa Clara. O seu es-
tatuto e independência de espírito assim o permitiam.
Lembrar-se-ia ela do arrebatado Luís Vaz? Talvez sim.
Um belo dia é-lhe feito saber que seria bem rece-
bido nos salões da senhora dos cabelos claros. Pode -
mos imaginar a emoção do poeta, o seu nervosismo, as
dúvidas e receios que o assaltaram. Como iria a senhora
do seu destino acolher aquele homem tão mudado, ao
ponto da desfiguração? Como suportaria ele o olhar de
D. Maria, mantendo a compostura e os modos próprios
de um ambiente de corte? Deve ter sido com o coração
aos pulos que Luís Vaz entrou em Santa Clara para en-
contrar, anos depois, a irmã de D. João III.
Nos salões é provável que o olhassem com estra -
nheza. Todos se questionariam como poderia aquele
homem quase taciturno ter sido a brilhante estrela de
anos atrás. Alguns, que ainda o conheciam dos anos
felizes, espantavam-se em ver como mudara o rapaz
luminoso de antes.
Estamos, de certo modo, no domínio da efabulação.
Não existem registos que nos comprovem a cena, apenas
indícios. Sinais que contam ter D. Maria recebido Luís de
Camões com toda a deferência e consideração, chaman-
do-o junto de si, pedindo-lhe narrativa dos anos trans -
corridos. Não lhe permite que se ajoelhe, dizendo-lhe que
ele era da casa.
84
NOS SALÕES DE D. MARIA
A medo, Camões terá perguntado se não lhe pare-
cia ele outro com aquele terrível ferimento, que tanto o
desfigurava, ao que D. Maria responderia ser esse um sinal
de maior glória a somar ao seu talento.
85
RETRATO
FEITO
EM GOA
Há um soneto escrito por Luís de Camões que, de
certo modo, pode transmitir os sentimentos decorrentes
deste reencontro:
Vós, que de olhos suaves e serenos
Com justa causa a vida cativais,
E que os outros cuidados condenais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se de Amor os domésticos venenos,
Nunca provados, quero que sintais,
Que é tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos;
E não presuma alguém que algum defeito
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito;
Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que amor com seus contrários se acrescenta.
Luís de Camões foi ficando por Lisboa. Adiado
estava o hipotético projecto de demandar a Índia em bus-
ca de duvidosas riquezas, de glórias improváveis. E esse
foi o seu infortúnio, não ter saído da cidade do Tejo antes
que algo de terrível acontecesse. Mas o épico poeta esta-
86
TRAGÉDIA
va destinado aos mais negros desígnios. Neste caso, devi-
do a um impulso escusado, a uma irreflectida atitude que
só se explica num homem que, à beira dos 30 anos, guar-
dava em si tanta genialidade como uma impulsiva na-
tureza.
A 16 de Junho de 1552, quinta-feira, Lisboa enga -
la na-se para ver passar a procissão do Corpo de Deus. É
uma data litúrgica marcante e um dos acontecimentos
mais importantes do ano, no qual se apresentam todas as
pessoas de importância no reino, as quais o povo vem ver
87
PROCISSÃO.
Chegada
das relíquias
de Santa Auta
à igreja
de Madre
de Deus
passar. Multidões acotovelam-se para ver o cortejo que,
saindo da Sé, serpenteava ao longo das estreitas ruas da
época até chegar ao convento de São Domingos, um pouco
acima da praça do Rossio, na capital. Aí se ajoelhavam
e oravam os penitentes, retornando depois a procissão
ao ponto de partida, a Sé de Lisboa.
O rei seguia a pé, acompanhado do príncipe D. João,
atrás da riquíssima custódia de ouro que encerrava a
hóstia sagrada. Na peugada do monarca marchavam a
passo lento os mais ilustres dignitários da igreja, as cor-
porações de ofícios, as confrarias e irmandades, os re-
presentantes do poder civil e militar. A procissão era de
tal modo importante que a Câmara lhe destinava todos os
anos uma verba especial.
Luís de Camões encontrava-se no local, certamente
para observar um acontecimento que, pela sua excep-
cionalidade, a todos atraía e agradava. Estava a pé e trazia
consigo uma arma branca. A multidão agitava-se, esti-
cando o pescoço para ver melhor. De repente, mesmo ao
pé de Luís Vaz, sente-se alvoroço. Dois embuçados desen-
cadeavam arruaça com um homem que, por se encontrar
a cavalo, deveria ter certamente alguma importância e
estar em funções.
Então, num vislumbre fatal, Camões reconhece
os embuçados como seus amigos, ou pelo menos co -
88
PRISÃO
nhecidos, ao mesmo tempo que o cavaleiro desembainha
a espada e se prepara para os ferir. Sem hesitar, Luís Vaz,
o mesmo Luís das arruaças que anos atrás lhe haviam
conferido a alcunha de «Trinca-Fortes», saca do punhal e
ataca o cavaleiro, ferindo-o severamente. Os embuçados,
os amigos que protegera, fogem a sete pés. Camões fica
no local. Não se afasta. Enfrenta as consequências.
O impulsivo Camões acabara de ferir Gonçalo Bor -
ges, criado de arreios do rei, de espírito arruaceiro. Enten-
da-se que ser criado do rei estava longe do desprestígio.
Pelo contrário, era um dos inúmeros cargos de pouca
utilidade criados para empregar com dignidade e distin -
ção os filhos da nobreza que dependia cada vez mais das
benesses reais. Gonçalo Borges era, pois, figura em Lis -
boa, embora provavelmente mais estroina e certamente
muito mais inútil que o pobre poeta.
O que era pior para Luís Vaz é que tinha cometido
um crime de sangue na via pública, com o rei na cidade e,
89
VISTA DO
ROSSIO.
À esquerda,
a igreja de
S. Domingos;
à direita,
o hospital
de Todos-
-os-Santos
ainda por cima, nas proximidades. Tal acto configurava
um crime de lesa-majestade e era punido com a pena de
morte.
Imediatamente prendem Camões e é levado às
pressas para a cadeia do Tronco, que ficava muito próxi-
ma, entrando-se nela por uma estreita viela que ainda
hoje existe, embocada na Rua das Portas de Santo Antão.
Preso. Luís Vaz de Camões está preso, nas mais mi -
seráveis condições que se possam imaginar. A cadeia do
Tronco não passa de uma enxovia cercada de grades, onde
não eram encarcerados os nobres, onde qualquer sinal de
conforto, como uma vela ou a limpeza dos dejectos, se con-
segue apenas à força de corrupção dos carcereiros. Com
ele mais 18 homens foram de leva.
Devido a uma verba entregue de acordo com o
regulamento, lá consegue o poeta ter uma vela garantida,
mais pena e tinta. Durante os seus primeiros dias entre-
ga-se a um desespero profundo. Depois começa a escre -
ver, deste modo expurgando o seu sofrimento:
Tristezas! Compassar tristes gemidos!
Passo a noite e o dia imaginando;
Nesta escura cova estou cuidando
De me ver com meus dias tão perdidos!
90
O PREÇO DA LIBERDADE
Vão passando, como sombra, escondidos,
E sem fruto nenhum irem deixando,
Mais que os ver passando e rodando
Com a roda da fortuna os meus sentidos.
Nestas imaginações, triste, comigo
Estou, na alma enlevado, que não s(i)ento
Se com alguém falando estou, o que digo.
Se vem alguém estar, no pensamento
Nem sei dizer de mim neste tormento
Se estou fora de mim, se estou comigo.
Amigos acorreram à prisão, vi -
sitando-o. Não era de todo vulgar que
um fidalgo, ainda que de baixa con -
dição, se encontrasse na cadeia do
Tronco. Possivelmente algum deles
lhe terá levado uns poucos livros, en-
tre os quais, conta a lenda, se en-
contraria a História do Descobrimento
e Conquista da Índia pelos Portugueses,
de Fernão Lopes de Castanheda, que
permanece até hoje uma fonte in-
contornável do período áureo dos
Descobrimentos. Não terá sido, por
isso, infrutífera a passagem do poeta
pela prisão. O livro de Castanheda dá-lhe informação de
carácter vital para a elaboração do poema épico, para a
narrativa de Os Lusíadas.
91
HISTÓRIA DO
DESCOBRIMENTO
E CONQUISTA
DA ÍNDIA PELOS
PORTUGUESES
Após longos nove meses de negro encarceramento,
os esforços dos amigos para a sua libertação acabam por
dar resultado. Gonçalo Borges é persuadido a pronunciar
o seu perdão, uma vez que do ferimento não resultara
qualquer dano duradouro. Munidos de uma declaração de
perdão, requereram ao rei a mesma graça para com Luís
Vaz de Camões. Finalmente, em nome de D. João III, é-lhe
passada uma Carta de Perdão, implicando o pagamento
de quatro mil réis para os fundos da Piedade, quantia de-
certo impossível de ser paga pelo poeta mas que terá si-
do adiantada por amigos, talvez os condes de Linhares e
Vimioso.
No que diz respeito à parte do crime que envolvia
o delicado assunto da lesa-majestade, é imposto ao de-
safortunado Luís Vaz que parta para a Índia na primeira
armada a largar do Tejo. Por volta do dia 7 de Março, o pri-
sioneiro é libertado. Mal pode conter a sua alegria. Mas,
de novo, a angústia se atravessa no seu caminho. A pró -
xima armada da Índia partia dentro de duas semanas.
92
Camões passara nove meses na prisão do Tronco. De lá viera
certamente fragilizado, fraco de forças, subalimentado. No entanto, o seu
ardente espírito continuava febril, criativo, esperançoso.
Os dilemas agora eram de ordem prática. Neste transe da sua
vida não podia questionar que a única saída possível era o rumo do
Oriente, onde talvez pudesse restabelecer a sua reputação e, quem sabe,
arranjar meios de fortuna, glória, ou pelo menos de subsistência condigna.
Mas como partir, se nem roupas tinha?
NO CAMINHO
DA ÍNDIA
93
MAPA do Índico, de inspiração ptolomaica
Nas vésperas de partir, o poeta tem de resolver
pro blemas ínfimos, mas que para ele eram de monta.
Como adquirir o vestuário e os alimentos necessários
ao embarque? Mais uma vez os amigos lhe devem ter vali-
do. A sua posição era, porém, muito precária.
Não embarca Luís Vaz como capitão, ou, ao menos,
com uma posição de destaque. Pelo contrário, sairá de Lis-
boa como escudeiro, posto que o equiparava à marinhagem
vulgar. Em nada se distingue de um simples marinheiro
do povo, arregimentado à pressa a troco da liberdade. Tem
a obrigação de servir durante cinco anos.
O destino que espera Luís Vaz conhece-o ele bem.
Lutar nas ardilosas querelas comuns à presença por-
tuguesa no Oriente; sofrer a insalubridade dos porões e os
maus tratos das viagens; conviver com gente que não é
capaz de com ele dialogar, quanto mais de reconhecer o
seu talento; esperar uma quimérica oportunidade de for-
tuna, fruto de algum saque mais opulento.
Em Março de 1553, a armada de Fernão Álvares
Cabral sai da barra do Tejo. Nela segue o poeta, para um
destino que se viria a revelar repleto de agruras mas igual-
mente pleno de glória poética. Parte com o coração amar-
gurado e com uma nova perspectiva de vida, que já não
lhe permite alimentar sonhos de um futuro dourado.
No seu monumental poema épico, Os Lusíadas,
Camões coloca na perspectiva da armada de Vasco da
Gama os sentimentos que, como é evidente, o assolaram
naquele momento:
94
PARTIDA
Já a vista pouco a pouco se desterra
Daqueles pátrios montes que ficavam;
Ficava o caro Tejo e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E já depois que tudo se escondeu,
Não vimos mais, enfim, que mar e céu.
95
ARMADA DE 1553,
na qual partiu
Camões
Não deixa de ser curioso que Camões tenha lar - ga-
do o Tejo com poucos dias de diferença da armada de Vas-
co da Gama, ainda que mais de 50 anos depois. De certo
modo, a sua viagem reproduz a heróica gesta des cobridora
do Almirante, facto que, por certo, vai permitir ao poeta
A VIDA
a bordo
das naus
96
A BORDO
uma reconstituição extremamente vívida da jornada,
que ele genialmente verterá em registo poético.
Tal como a pequena armada do nauta de Sines, a
frota em que segue Camões cumpre a rota das Índias sem
grandes variações. Parece seguro que Luís Vaz seguia na
nau capitânia, a São Bento, comandada por Fernão Álvares
Cabral, capitão-mor da expedição. Com ele navegavam
mais três naus, uma vez que a quarta, a Santo António,
seria consumida pelo fogo ainda na barra de Lisboa.
Nos primeiros dias, a viagem decorre bonançosa.
Mas parece que, em pleno Atlântico, uma tempestade dis-
persa a frota, obrigando cada uma das naus a seguir um
rumo diferente. É a São Bento, a nau capitânia em que
seguia Camões, que melhor se adapta às condições ad-
versas, conseguindo prosseguir a sua rota até à Índia sem
contratempos de maior.
Podemos imaginar a vida de Luís Vaz a bordo. Tem
quase 30 anos. Ainda está em pleno fulgor da idade, mas
já temperado por inúmeros infortúnios que o tornam
me lancólico. Nos dias de hoje dir-se-ia que podia estar
deprimido. De que falaria ele com os homens a bordo, ao
longo dos penosos meses da travessia?
Decerto que não poderia entabular conversação
sobre poesia, revelar o poema épico que trazia inscrito na
alma, trocar chistes espirituosos com referências erudi-
tas. Era uma vida marcada pela dureza das condições
climáticas, pela falta de alimento, pelos parasitas e pelo
cheiro infecto da podridão dos porões. As doenças dizi -
mavam muitos homens ao longo da viagem e era precisa
grande robustez para lhes resistir. Camões era, porém, um
97
homem ainda muito forte. Em Os Lusíadas dá-nos conta,
de forma brutal, dos tormentos do escorbuto:
Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Sururgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pola carne já podre assi cortava
Como se fora morta; e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.
Enfim, que nesta incógnita espessura
Deixámos para sempre os companheiros
Que, em tal caminho e em tanta desventura,
Foram sempre connosco aventureiros.
Todas as impressões que a viagem proporcionou
a Luís de Camões serão inscritas no seu grande poema
épico. Como se sabe, a acção do poema tem o seu núcleo
central na viagem de Vasco da Gama no descobrimento
do caminho marítimo para a Índia, cume da gesta dos
Portu gueses, da sua própria natureza e glória, que faz de
Os Lusíadas um poema que exalta a epopeia lusitana.
Contudo, ao transpor a acção para o tempo do Ga -
ma, Camões apoia-se tanto no saber erudito que adqui -
98
O VELHO DO RESTELO
riu ao longo da sua vida como na experiência que agora
atra vessa ao percorrer a rota da Índia.
Parece, assim, evidente que algumas das reflexões
inscritas no poema teriam mais a ver com o tempo de Ca -
mões que com a época do final de Quatrocentos, quando
o almirante de Sines alcança as costas da Índia. É o caso
do episódio conhecido como «o velho do Restelo», que vai
marcar a cultura nacional com um simbolismo incon -
tornável. É patente, à luz da historiografia contemporânea,
99
A despedida
dos navegantes
é assombrada
pela voz
de descrédito
do VELHO
DO RESTELO
que as palavras da personagem camoniana se aplicariam
mais ao declínio do período de D. João III que à pujança
vigorosa do melhor período do reinado de seu pai:
Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
— Ó glória de mandar! ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cûa aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentos,
Que crueldades neles exprimentas!
Na personagem inesquecível do velho do Restelo
não se deverá talvez ver a presença de uma voz conser-
vadora, incrédula perante a importância e as vantagens
dos Descobrimentos. Talvez seja apenas o ressentimento
do poeta num tempo em que a exaltação das grandes
proezas marítimas dera já lugar a um mundo de corrupção,
pe quenos interesses e grandes esbanjamentos. Mundo esse
no qual Camões se sentia profundamente injustiçado.
100
A viagem seguiu de porto em porto, percorrendo
a rota da Índias. Tudo maravilhava Luís de Camões. Nave -
gam pela costa ocidental afri cana abaixo, depois rumam
a Cabo Verde, onde se abastecem de mantimentos e água
na ilha de Santiago. Seguem até ao golfo da Guiné, ini-
ciando, de seguida, a volta larga, a rota descoberta pelos
Portugueses que, virando o bordo a sudoeste, os atirava
para o largo do Atlântico até atingirem os ventos favorá -
veis que os levariam à ponta sul do continente africano.
Só deste modo podiam evitar os ventos e as correntes con-
101
O ADAMASTOR
COSTA
DE ÁFRICA
até à costa
da Guiné
trárias, mas os perigos dos mares austrais eram terríveis.
O poeta coloca na voz de Vasco da Gama a narrativa, em
que este tenta descrever ao sultão de Melinde os perigos
do mar:
ADAMASTOR
enfrentado
pelo Gama
102
Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relampados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.
Numa estrofe de oito versos Camões transmite, com
uma sensibilidade que apenas lhe poderia advir de uma
experiência pessoal, os perigos e os terrores que os ho -
mens do mar passavam nos mares do Sul até chegarem a
bom porto. Depois vinha o Cabo. Que fora das Tormentas
e era, agora, da Boa Esperança.
Numa das mais conhecidas cenas de Os Lusíadas, o
poeta decide, de modo a dramatizar as horríveis dificul-
dades vividas pelos Portugueses na transposição do cabo,
antropomorfizar a formação geológica. É assim que cria a
personagem do Adamastor, navegante castigado pelos
deuses e agora dedicado a aterrorizar os nautas:
Eu sou aquele oculto e grande cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a africana costa acabo
Neste meu nunca visto promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.
103
Para Camões, a passagem do cabo das Tormentas é
o sinal de que, no fantasiado conflito entre os deuses, a
balança teria acabado por pender a favor dos Portugue-
ses, assim se cumprindo o desígnio da predestinação da
gente lusitana, amada e protegida pelas divindades po de -
rosas. A justaposição da plêiade de referências às divin-
dades da Antiguidade e às referências do cristianismo é
uma constante na obra, revelando o homem do Renasci-
mento que Camões, acima de tudo, nunca deixará de ser.
A viagem de Camões
a caminho da Índia é, de cer-
to modo, compreensível na
des crição que o poeta nos dá
no núcleo central de Os
Lusíadas. Deve ter-se sentido
impotente perante as tem-
pestades, exasperado nas cal-
marias, so fre dor nos longos
dias de au têntica luta pela
sobrevivência no porão e no
convés. As tempestades ha -
viam marcado a jornada, e
delas Luís deixa testemunho:
TEMPESTADE no mar
104
O FIM DA JORNADA
O céu fere com gritos nisto a gente,
Com súbito tremor e desacordo,
Que no romper da vela, a nau pendente
Toma grão soma de água pelo bordo.
«Alija – disse o mestre rijamente, –
Alija tudo ao mar, não falte acordo!
Vão outros dar à bomba, não cessando!
À bomba, que nos imos alagando!»
Correm logo os soldados animosos
A dar à bomba, e, tanto que chegaram,
Os balanços, que os mares temerosos
Deram à nau, num bordo os derribaram.
Três marinheiros, duros e forçosos,
A menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham de ua e doutra parte,
Sem aproveitar dos homens força e arte.
Agora sobre as ondas os subiam
As ondas de Neptuno furibundo,
Agora a ver parece que deciam
às íntimas entranhas do profundo.
No final de Setembro, a nau São Bento chega a Goa,
levando consigo Camões. O poeta devia estar exausto, uma
exaustão física e anímica que era comum aos marinheiros
que passavam pela provação de uma viagem tão longa e
atribulada. Naquele ano de 1553 as tempestades ao largo
do cabo da Boa Esperança haviam sido particularmente
severas, derrubando o ânimo dos homens, que apenas
desejavam já chegar a terra sem cuidarem de qualquer
105
outra benesse do destino. Mas a Camões não devia certa-
mente escapar a fraca sorte que um escudeiro podia es-
perar nas terras da Ásia.
Haviam transcorrido «seis meses de má vida por
esse mar». À luz da dimensão temporal contemporânea,
dificilmente podemos imaginar a violência a que se su-
jeitavam os embarcados nas naus por um período tão con-
siderável. Contudo, conseguimos seguramente sentir o
alívio que experimentavam quando chegavam ao porto
de destino, mesmo que aquilo que os esperava não fosse
mais que uma nova forma de miséria e pobreza.
A alegria com que as armadas eram recebidas em
Goa não deixava de ser enganadora. Os homens não pos-
suíam, na maior parte dos casos, uma moeda sequer para
comprar comida. Não tinham onde se albergar. Muitos
acabavam por pernoitar nos navios que, em virtude da
longa travessia, abominavam. Os que têm algo de seu ven-
dem-no imediatamente. Alguns morrerão de fome.
Ao chegar à cidade que constituía a principal capi -
tania e sede do poder administrativo português na Índia,
Camões não conhecerá as agruras dos mais humildes sol-
dados. Era um homem do mundo, tinha alguns amigos e
parentes. Vários deles estavam em Goa. Primos da família
Camões vão recebê-lo de braços abertos, proporcionando-
-lhe, desde logo, condições de conforto e, sobretudo, de
106
CAMÕES INSTALA-SE EM GOA
repouso, absolutamente necessário para recuperar da difí-
cil viagem. Entre eles contava-se João de Camões, filho de
Pedro Alves de Camões, que possuía o morgado de Camões
em Alenquer. Uma alimentação cuidada e o descanso
merecido vão operar maravilhas no estado de espírito do
poeta, que se vangloria de viver «mais venerado que os
touros de Merceana, e mais quieto que a cela de um frade
pregador». Era um início auspicioso.
Ao longo de dois meses, Luís vai passar um belo
tempo de vida despreocupada, ociosa, absorvendo o que
o rodeia, bebendo avidamente os cheiros, os sabores e as
cores que o envolviam, como seria característico do seu
espírito irrequieto e curioso. Terá visitado Goa, observan-
do com a maior atenção a cidade que para ele constituía
um mundo novo.
Goa era, à época, uma urbe plenamente desen-
volvida, com inúmeras edificações militares e civis por-
tuguesas, onde se cruzava uma turba cosmopolita oriun-
da de todas as partes do mundo oriental e da Arábia. Ali
convergiam mercadores da Arábia, da Pérsia, de Bengala,
da Arménia, do reino de Pegu, do Ceilão e de Malaca, da
ilha de Java e da China. Num pequeno território governa-
107
VISTA DE GOA
do com mão de ferro pelos Portugueses, todos viam opor-
tunidades de negócio num ambiente de grande liberali-
dade, à maneira da costa do Malabar que os Portugueses
depressa adoptaram, vendo as vantagens que o comércio
com gentes tão diferentes lhes trazia.
A liberdade religiosa era absolutamente respeitada
e todas as crenças se toleravam, dos hindus aos cristãos,
dos muçulmanos aos judeus. Afinal, essa era a tradição
milenar dos povos do Índico. Cinquenta anos após a chega-
da dos Portugueses à Índia, estes tinham percebido que,
desde que detivessem o poder e a força, nenhum mal viria
ao Mundo se fossem brandos e cordatos com os povos
exóticos com os quais conviviam. É neste lugar nevrál -
gi co para a presença dos Portugueses no Índico que Ca -
mões toma pela primeira vez contacto com a realidade do
Oriente. Teria, por obrigação, de servir durante cinco anos.
Na verdade, aqui se deteria muito mais tempo.
108
MERCADO
em Goa
CANTO I
Proposição (estrofes 1 a 3). Revela a in-
tenção do poema: ce lebrar os feitos lusi-
tanos, navegações e conquistas. Invocação
(estrofes 4 e 5) às ninfas do Tejo (Tágides)
para que dêem inspiração. Dedicatória (es-
trofes 6 a 18) ao rei D. Sebastião. Narração
(a partir da estrofe 19). Concílio dos deuses
sobre a ousada decisão dos Portugueses:
devem favorecê-los ou impedi-los? Júpiter
é favorável; Baco, ferrenhamente contrário;
também são a favor Marte e Vénus, esta
vendo nos Portugueses a raça latina des -
cendente de seu filho Eneias. Baco, derro-
tado na assembleia divina, põe em acção a
sua hostilidade contra os Lusos, procurando impedir que che -
guem à sua Índia, e para isto se valendo da gente africana,
que lhes arma ciladas.
CANTO II
Chegada a Mombaça, onde continuam as hostilidades de Baco
na traição dos Mouros: os navegadores seriam sacrificados se
acedessem ao pérfido convite do rei para desembarcarem. Vénus,
porém, de novo os salva, intercedendo junto a Júpiter. Retrato
de Vénus (36) «Os crespos fios d'ouro se esparziam/pelo colo».
Júpiter profetiza os gloriosos feitos lusíadas no Oriente (44
e seg.) e envia Mercúrio a Melinde, a fim de predispor os na -
Resumo sinóptico de Os Lusíadas
109
CONCÍLIO
DOS DEUSES
turais desta cidade a bem acolherem os Por-
tugueses, o que se cumpre. O rei de Melinde
pede ao Gama que lhe narre a história de
Portugal.
CANTO III
Invocação à musa da eloquência e da epo -
peia, Calíope, e logo a narração do Gama
«Entre a Zona que o Cancro senho reia».
Geografia e história de Portugal. Destaque
para a Bata lha de Ourique, a guerra con-
tra os Mouros, a Batalha do Salado e, so -
bre tudo, o episódio de Inês de Castro (118-
-135) «Que depois de ser morta foi Rainha».
CANTO IV
Prossegue a narração do Gama, com relevo para Nuno Álvares
Pereira e as batalhas contra os Castelhanos, sobretudo a de
Aljubarrota (28) «Deu sinal a trombeta Castelhana,/Horren-
do, fero, ingente e temeroso», as conquistas na África, a Bata -
lha de Toro, o reinado de D. Manuel e seu sonho do domínio das
Índias, a partida para o Oriente e as famosas imprecações do
velho do Restelo (94-104) «Ó glória de mandar! Ó vã cobiça»,
que em clímax inspirado encerram o canto.
CANTO V
Partida da expedição do Gama. A tromba marinha (19-23). Na
ilha de Santa Helena; aventura de Fernão Veloso. O gigante
Adamastor (38-60). Conclusão da narração do Gama.
110
MORTE
DE INÊS
DE CASTRO
CANTO VI
Festas aos Lusos em Melinde e partida da frota para Calecute.
Novas insídias de Baco, junto a Neptuno, no fundo dos mares.
Descrição do reino de Neptuno (8-14). Fernão Veloso narra o
episódio dos Doze de Inglaterra (42-69) para distrair a mo-
notonia a bordo. Tempestade provocada por Baco (70 e seg.),
com nova intervenção de Vénus (85 e seg.), que amaina o furor
dos ventos. Chegada a Calecute (92), acção de graças do Gama
(93-94) e elogio da verdadeira glória, a dos que enfrentam «tra-
balhos graves e temores», «tempestades e ondas cruas».
CANTO VII
Chegada à Índia. Elogio de Portugal pelo
poeta. Descrição da Índia. Encontro com o
mouro Monçaide, que descreve a Índia (31-
-41). Portugueses recebidos pelo regente
dos reinos, o Ca tual, o Samorim. Troca de
gentilezas e informações. O poeta nova-
mente invoca as musas (78 e seg.) para,
ins pirado, prosseguir no canto.
CANTO VIII
Paulo da Gama, irmão de Vasco, narra ao
Catual a história dos heróis portugueses
(Luso, Ulisses, Viriato, Sertório, D. Henrique,
Afonso Henriques, Egas Moniz, etc.). Baco insiste na persegui -
ção, instigando em sonhos os chefes dos nativos. Hostilida -
des, retenção do Gama em terra, que só se liberta a poder de
dinheiro (93-96), «o poder corruptor do vil metal» (96-99).
111
VASCO DA
GAMA E O
SAMORIM
CANTO IX
Retenção de Álvaro e Diogo, portadores
da «fazenda», mero pretexto para se de-
terem os descobridores europeus. Por fim,
libertados, recolhem às naus que preparam
a volta à pátria. Vénus resolve premiar
os heróis (18 e seg.) com prazeres divinos:
a Ilha dos Amores (51-87) e seu simbo lis -
mo (88-95).
CANTO X
Banquete de Tétis aos Portugueses, na
ilha dos Amores. Canta uma ninfa pro fe -
cias de Proteu. Nova invocação do poeta
a Calíope (8-9), que permita condigna
conclusão do poema. Relembrança das profecias da Ninfa;
gló rias futuras de Portugal no Oriente (10-73). Tétis mostra a
Gama a máquina do Mundo, como a viu Ptolomeu (76-142),
céus e terras, com destaque para a ilha de São Tomé (109-119).
Partida da ilha dos Amores e regresso a Portugal. Desalento do
poeta (145): «No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Des -
temperada, e a voz enrouquecida» por «cantar a gente surda
e endurecida». Fala final a D. Sebastião e conclusão do poema.
(elaborado por José Pedro Luft, historiador brasileiro)
112
VÉNUS E
GAMA NA
ILHA DOS
AMORES
Pouco depois de chegar a Goa, Luís de Camões vê-se envolvido em
missões militares que definiam claramente o seu estatuto. Escudeiro, teria
de lutar. É o que fará, não se sabe se com entusiasmo, se já com mal con-
tido enfado ante as desgraças das pugnas militares que muito haverão
de magoar a sua sensibilidade de poeta e de humanista, a ponto de
descrever os horrores da guerra nos seus poemas.
CEILÃO - lutas em terras longínquas
113
SOLDADO
AO SERVIÇO DA COROA
Na época em que Camões chega a Goa, D. Afonso
de Noronha, vice-rei da Índia, prepara uma expedição mi -
litar naval contra o rei de Chambé, mais conhecido como
o «rei da pimenta». Este senhor local não tinha, de facto,
grande importância, quer pela dimensão do seu território,
quer pelo seu poder económico ou militar. Representava,
contudo, uma ameaça à livre circulação das mercadorias
portuguesas, atacando os navios portugueses isolados sem-
pre que tinha oportunidade e obrigando à escolta das naus
carregadas de especiarias.
D. Afonso de Noronha só precisava de um motivo,
e ele surgiu no emaranhado de alianças que marcavam as
relações diplomáticas dos Portugueses com os diversos
reinos da costa do Malabar. O intrépido rei de Chambé
ata cou o reino de Pocá, que prestava vassalagem à coroa
de el-rei D. João III. Deste modo estavam reunidas as
condições para uma sortida militar.
O vice-rei organizou então uma operação de grande
envergadura. Reuniu uma armada de mais de uma cen-
tena de navios, de diversas tipologias – desde naus a cara -
ve las até galeotas e galeões. Ao comando de tão formidá -
vel armada seguiam os mais destacados capitães de Goa.
Luís Vaz embarcou na frota, pronto para o combate, mas
sem qualquer cargo que o distinguisse.
A frota sai de Goa em Novembro e dirige-se a sul,
aportando a Cananor, onde Camões, metido no meio dos
mais altos dignitários da comitiva, presta homenagem à
sepultura de D. Henrique de Meneses, antigo vice-rei da
114
CONTRA O REI DE CHAMBÉ
Índia. De novo regressam ao mar, rumando até Cochim,
onde são decididos os planos da batalha. E estes são ter-
ríveis, como se veio a verificar. Os Portugueses vão destruir
pelo fogo e pela metralha as casas, as árvores, tudo o que
vive, fazendo, de passagem, alguns prisioneiros e perden-
do uns poucos de homens. A vitória é total. Regressados a
Cochim, recebem mensageiros do rei de Chambé, que
anuncia render-se incondicionalmente. A expedição du-
rara entre dois a três meses, pelo que a armada terá re-
gressado a Goa em Fevereiro de 1554.
Camões vai citar este episódio, no qual participou,
sem que haja registo de qualquer acidente ou feito seu:
Foi logo necessário termos guerra:
Uma ilha, que o Rei de Porcá tem,
115
COCHIM
E que o Rei da Pimenta lhe tomara,
Fomos tomar-lha e sucedeu-nos bem.
Com uma grossa Armada, que juntara
O Viso-Rei, de Goa nos partimos
Com toda a gente de armas que se achara.
E com pouco trabalho destruímos
A gente no curvo arco exercitada:
Com morte, com incêndios os punimos. [...]
A partir de Goa, os Portugueses tinham de vigiar as
costas do Malabar, tanto a sul como a norte. É nessa mis-
são que se vai empenhar, mal Camões regressa da bem
sucedida missão contra o «rei da pimenta», Fernando de
Meneses, filho do vice-rei. É ainda um jovem, mas tem já
uma grande autoridade e convida o poeta a participar na
expedição. Luís Vaz não hesita. A armada do Norte sai de
Goa ainda no mês de Fevereiro, dirigindo-se ao golfo Pér-
sico. Trata-se de uma poderosa força de mais de 1000
homens e para cima de 30 embarcações.
Camões terá sido especialmente considerado pelo
comandante da frota, visto que lhe dedica um soneto enal-
tecendo as suas qualidades. Deve sentir-se fascinado por
estas novas paragens, para ele em absoluto desconheci-
das.
116
COMBATES VÃOS
Conhecerá as águas do golfo Pérsico, combatendo
com gentios, derrotando corsários e apresando valioso
saque, do qual Luís não verá uma moeda. Na refrega com
as galés de Ali-Cheloby, importante corsário daquelas pa -
ragens, Camões assiste impotente ao assassinato dos ini -
migos sobreviventes, que são atirados ao mar sem mise -
ricórdia, episódio que o impressiona profundamente. Em
Outubro de 1554 regressam a Goa.
À chegada, mudara o vice-rei. D. Afonso de Noro -
nha fora destituído por graves acusações de corrupção,
situação vulgar naquele tem -
po e naquelas paragens. Em seu
lugar, ocupa o cargo D. Pedro de
Mascarenhas que, encontran-
do-se já em idade avançada,
aceita a contragosto a missão.
Apesar disso, desde logo o fidal -
go decide cortar a direito, im-
pondo princípios de organiza-
ção, racionalidade e austeridade
em tudo estranhos à corrupção
e ao aproveitamento dos bens
públicos que grassava na capi-
tal da costa indiana. Recusan-
do o tráfico de influências, a
pressão dos jesuítas, já então
uma poderosa força presente
no terreno, D. Pedro de Mascarenhas vai imprimir uma
forte, ainda que efémera, marca de probidade na admi -
nistração de Goa.
117
D. AFONSO
DE NORONHA
Ao enfrentar a Companhia de Jesus, o vice-rei es-
tava a meter-se em grandes trabalhos. Os inacianos domi-
navam postos importantes no controlo da administração
pública, com incidência profunda nas actividades comer-
ciais, de que retiravam generosas rendas, ao mesmo tem-
po que exerciam um poder eclesiástico cada vez maior.
Enquanto teve saúde, o velho fidalgo não cedeu.
D. Pedro de Mascarenhas vai, entre outras medidas,
decidir-se pela perseguição do corsário Safar, outro aven-
tureiro que afligia o tráfego naval português. Sob o coman -
do de Manuel de Vasconcelos, Camões embarca em mais
HOMENS DE
ARMAS a bordo
de uma nau
118
ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA
esta expedição, que se faz ao largo de Goa em Fevereiro de
1555, e dirige-se ao largo do Monte Fe liz onde permanece
durante seis longos meses. Não se sabe se chegou a ocor-
rer refrega, mas o certo é que a longa estada naquelas pa -
ragens, provocando mortes atrás de mortes entre os ho -
mens das naus lusitanas, vai encher Camões de enfado
que, como lhe era hábito, seria vertido em poema:
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus e solitários,
De trabalho, dor e de ira cheios:
Não tendo tão somente por contrários
A vida, o sol ardente, as águas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a própria natureza,
Também vi contra mi:
Trazendo-me à memória
Alguma já passada e breve glória
Que eu já no mundo vi, quando vivi;
Por me dobrar dos males a aspreza,
Por mostrar-me que havia
No mundo muitas horas de alegria [...].
Depois de visitarem Mombaça, os navios chegam a
Mascate, para proteger as naus que transitavam entre Or-
muz e Goa. Aí chega de novo Luís de Camões, em Setem-
bro de 1555. Estivera mais seis meses no mar, mas a sua
longa tarefa de cinco anos parecia nunca mais chegar ao
fim. Vinha doente e desanimado. Valia-lhe que, nestas
119
viagens tão ociosas como deprimentes, entrecortadas por
combates episódicos que ainda mais o deviam incomodar,
ia escrevendo o seu poema épico, Os Lusíadas.
Ao chegar a Goa, Camões é surpreendido por uma
nova mudança na administração do território. D. Pedro de
Mascarenhas não resistira às vicissitudes da idade e à exi -
gência do cargo. Morre e, no seu lugar, surge Francisco Bar-
reto, que manterá com o poeta uma relação que até hoje
é discutida pelos historiadores. Para uns, terá sido ele o
autor da injusta decisão de «desterrar» Camões para Mala-
ca. Para outros não se pode, de modo algum, falar em
desterro, antes numa oportunidade de fazer uma «viagem
de mercê» que possibilitasse ao barbudo vate amealhar
uma soma significativa nas paragens do Extremo Oriente
onde, nesta altura, era mais fácil fazer fortuna.
Certo é que Francisco Barreto foi muito estimado
pela sua acção enquanto governador e amplamente ad-
mirado pelas suas qualidades de homem. Pouco depois da
sua chegada, nos festejos de São João, um foguete incen-
deia o galeão São Mateus, alastrando de imediato a seis
galeões, quatro caravelas e duas galés, o que representa-
va uma catástrofe. À cabeça do combate ao incêndio dis-
tinguiu-se a figura de Francisco Barreto, que chegou mes-
120
DE NOVO EM GOA, E FELIZ
mo a oferecer as suas jóias aos que mais se haviam desta-
cado no ataque às chamas. A admiração que tal gesto
provocou foi geral. Dele dirá Diogo do Couto: «liberal, ca-
marada oficioso, e sempre propenso a perdoar as ofensas
recebidas».
Luís de Camões
parece de novo feliz,
talvez pela influência do
novo governador. Nas
festas organizadas em
honra de Francisco Bar-
reto, o poeta vai apre-
sentar o auto Comédia de
Filodemo, a sua segunda
obra dra mática.
Finalmente agora
Ca mões consegue estar
sos segado. Tem tempo
para ir avançando na
sua obra maior, que de-
veria então estar já mui-
to adiantada na escrita.
Teria uma vida sem
qual quer espécie de lu -
xos mas, ainda assim,
com o mínimo de confortos. Morada, comida e bebida. Al-
guns amigos. Conversas e galhofas. E a presença de uma
jovem que lhe alegrava as horas, uma escrava mestiça,
provavelmente originária das costas de Moçambique,
que surge referida com o nome de Bárbara.
121
Rosto da
COMÉDIA
DE FILODEMO
Cronista excepcional, testemunha privilegiada da presença
portuguesa no Oriente, Diogo do Couto nasce 1542, em Lisboa,
em pleno vigor do Renascimento cultural e literário. Tendo
educação jesuítica, estuda Latim e Retórica no colégio de San-
to Antão. Será moço de câmara na corte antes de partir para a
Índia em 1559, seguindo a carreira das armas. Como soldado
participará, ao longo de uma década, em pugnas diversas que
se destinam a consolidar a presença portuguesa no subconti-
nente indiano.
Antes de regressar ao Oriente, retorna a Portugal por dois
anos. No decurso da viagem que o conduz a Lisboa vai desco-
brir Camões em Moçam-
bique, com dívidas e sem
dinheiro para voltar. Dio-
go do Couto, entre outros,
disponibiliza-se a ajudar
o poeta, que deste modo
poderá apresentar na ca -
pi tal a sua obra maior.
Não é de estranhar
este gesto, visto que Dio-
go do Couto era, também
ele, vocacionado para as
letras, além de ser um ho -
mem de acção. Não fora
apenas Camões a viver as
duas condições.
Diogo do Couto
122
DIOGO
DO COUTO
De novo em Goa, é nomeado guarda-mor do arquivo da
Torre do Tombo da Índia, sendo-lhe cometida a missão de con-
tinuar as Décadas de João de Barros.
Estes relatos serão a sua princi-
pal obra, conjuntamente com o fa -
moso Diálogo do Soldado Prático,
acerada crítica à presença dos Por-
tugueses na Ásia. Diogo do Couto
sabia do que falava, pois assistira
durante largos anos à corrupção,
mau funcionamento e ganância que
grassava entre muitos dos ociden-
tais que mandavam em Goa. Deste
modo, e não perdoando a ninguém,
fosse qual fosse a sua posição, vai
denunciar as prepotências que os
mais poderosos exercem sobre os
gentios e mesmo sobre os portu -
gueses de baixa condição, os solda-
dos práticos (experientes), paus para toda a obra na inexo rável
marcha da máquina colonial. Esta denúncia dos desvios e das
traições, das deslealdades e dos actos desonrosos é-nos trans-
mitida em diálogos de extrema acuidade, travados entre um
funcionário da Coroa, um fidalgo e um velho militar.
Numa linguagem muito directa, quase crua, de grande sim-
plicidade, Diogo do Couto traça um fresco de ampla enver-
gadura, não hesitando em descer ao pormenor de carácter chis-
toso, à pequena história ilustrativa, ao episódio grotesco.
Morre em Goa em 1616.
123
TRATADO
DE TODAS
AS COISAS
SUCEDIDAS
AO
VALOROSO
CAPITÃO
VASCO
DA GAMA
A grande miscigenação operada ao longo dos Des -
cobrimentos pelos Portugueses conhecia em Goa uma ale-
gre permissividade. Mulheres de todas as cores e credos
confluíam na localidade
com usos, costumes e li ber -
dades muito diferentes das
europeias. Além do mais,
preferiam os portugueses,
a quem se entregavam de
bom grado e com orgulho
de se relacionarem com
aqueles homens brancos.
Não se tratava, em qual-
quer caso, de alguma for -
ma de prostituição, mas
sim ples mente um estabe -
le cimento de relações que,
pelo seu carácter social-
mente estranho aos valores
que os portugueses conhe -
ciam, muito os confundiam
e agradavam.
Como esperar que o
ainda jovem Luís Vaz, que
sempre fora atraído pelos
encantos femininos, pudes-
se deixar de se enredar nos
doces braços de uma jovem
124
UMA ESCRAVA QUE O CATIVA
MULHER
MAMELUCA
da costa
de África
que, por certo, lhe prodiga lizaria carinhos de que há muito
se desabituara? Não admira, pois, que Bárbara surja can-
tada num dos seus poemas:
Aquela cativa,
que me tem cativo
porque nela vivo,
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
Üa graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa...
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
125
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbora não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.
Estava o poeta nestes enlevos, sereno e entregue a
uma vida que por uma vez era tranquila, quando tem de
partir na armada do Sul, rumo a Oriente. Era sua obriga -
ção embarcar, como lhe fora ordenado. Afinal, não ha viam
ainda expirado os cinco anos a que se encontrava obri -
gado. De Goa, Camões ruma para leste. Levará muito tem-
po a voltar.
126
Luís Vaz de Camões parte para o Extremo Oriente em Abril de
1556. Talvez procure, desta vez, a fortuna que sempre lhe fugira.
Não deve ter contudo muitas ilusões. A única aspiração que na
verdade deve alimentar é o termo do seu longo poema épico, a obra a que
consagrou o talento. Em breve quase lhe custaria a vida.
À BEIRA DO FIM,
SURGE A OBRA
CAMÕES.
Gravura de
A. Paulus,
1624
127
Camões embarca na armada de D. João Pereira,
capitão de Malaca. Com a frota seguiam alguns navios de
comércio, entre eles o veleiro do mercador Francisco Mar-
tins, que tinha especial licença para fazer negócios no
Extremo Oriente, o «trato da China». É possível, mas não
certo, que o poeta tenha seguido no navio comercial.
De Goa passam em escala por Cochim, velejam ao
largo do Ceilão, até aportarem em Malaca, que era o pon-
to nevrálgico das rotas do Oriente distante. A fortaleza é
palco de ardente actividade comercial, desenfreada ga -
nância e de fortunas que se fazem com rapidez e sem pu-
dor. Aqui quem manda são os capitães-mercadores e os
co merciantes de ocasião, aqueles capazes de fazer o que,
com propriedade, a língua portuguesa viria a designar
como «negócios da China».
OS NEGÓCIOS DA CHINA:
«baixela ricamente dourada,
seda solta e tecida, ouro, almique,
aljofre, cobre e porcelana»
128
A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS
O navio de Francisco Martins terá estado igualmente
em Ternate, ilha de especiarias e de comércio franco, que
ostentava um vulcão, descrito por Camões:
Com força desusada
Aquenta o fogo eterno
Uma Ilha, nas partes do Oriente,
De estranhos habitada,
Aonde o duro Inverno
Os campos reverdece alegremente.
A Lusitana Gente
Por armas sanguinosas
Tem dela o senhorio.
Cercada está de um rio
De marítimas águas saudosas:
Das ervas que aqui nascem,
Os gados juntamente e os olhos pascem.
Não podemos deixar de notar o olhar do homem
que nunca deixará de ser curioso e de se espantar com as
novas paragens do Mundo e, por outro lado, o mal dis-
farçado desencanto com que fala das «armas sanguinosas»
da Lusitana Gente.
Em Ternate permanece até Fevereiro de 1557 Luís
Vaz. A ilha é capitaneada por um homem brutal e cobiçoso,
129
NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS
Duarte de Eça, que se porta com tal ferocidade que chega
a prender o rei local e a sua família para lhes ficar com a
fortuna. Essa ganância vai gerar uma revolta contra os
portugueses, na qual Camões se envolve, sendo ferido.
Aqui minha ventura
Quis que uma grande parte
Da vida, que eu não tinha, se passasse;
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse
Na sua viagem pelas ilhas das especiarias, Camões
estará igualmente na ilha de Banda, e também em Am-
boina. Especula-se com a ideia de que o poeta, nestas suas
andanças pelas rotas comerciais do Extremo Oriente, te -
nha finalmente enriquecido. Não se sabe se é verdade, em-
bora pareça certo que ganhou algum dinheiro, mais do
que vira provavelmente em toda a sua vida. Talvez tivesse
parte do lucro dos negócios do capitão do navio, o que lhe
teria permitido juntar uma soma considerável, ainda que
ínfima se comparada com os lucros de Francisco Martins.
Estes «negócios da China» são bem descritos por
Garcia da Orta: «E sabei que as mercadorias que dela vêm,
são: leitos de prata e baixela ricamente dourada, seda sol-
ta e tecida, ouro, almique, aljofre, cobre e porcelana, que
vale às vezes tanto, que é mais que prata duas vezes.»
Se ganhou muito dinheiro, mais depressa o gastou,
com a falta de habilidade que revelaria sempre para lidar
com as coisas materiais. Pêro Moniz afirma, mesmo: «Nem
130
a enchente de bens que lá granjeou o pôde livrar que em
terra não gastasse o seu liberalmente.» Com anos de pri-
vações atrás de si, e os bolsos de repente cheios, não re-
siste Luís Vaz à tentação de, também ele, gastar com far-
tura, ostentar com volúpia. Quem o condenaria?
Sem que haja registos que possam explicar os mo-
tivos, Camões dirige-se a Macau. O território não era ain-
da possessão portuguesa, mas antes uma base dos piratas
131
CHEGA A MACAU
MACAU
dos mares da China. É possível que no acordo entre o vice-
-rei da Índia e Francisco Martins estivesse a imposição de
eliminar a pirataria do território, que causava muito dano
às práticas comerciais. De facto, a partir de Macau, os
homens de Cham-Si-Lau (assim se chamava o cabecilha
dos piratas) mantinham bloqueados os portos da China.
132
CAMÕES
NA GRUTA
DE MACAU
É Fernão Mendes Pinto quem relata ter a frota do
mercador perseguido os piratas, que tiveram de abandonar
o território apressadamente, tendo o seu chefe cometido
suicídio. Como recompensa, o imperador da China ofere -
ce Macau de presente aos Portugueses. Ora isto ocorre em
1557, ano da chegada de Camões ao território, que deve
ter par ticipado na expedição puni tiva que culmina com o
recebimento de Macau para a co roa de el-rei.
Em Macau Luís Vaz per ma nece até Outu bro de 1559,
gastando, segun do testemunhas, somas considerá veis de
dinheiro e suscitando algumas invejas e alcovitices. Afir-
ma-se mesmo que se tornou boémio, desregrado, incon-
veniente. Não se saberá se assim foi.
Uma das figuras lendárias presentes na vida de
Camões é Dinamene, quiçá chinesa, quiçá escrava, com
quem terá mantido um romance e a quem dedicou alguns
sonetos. Dinamene é exaltada mais pelo seu carácter e
quali dades morais que pela beleza. Rodrigues Lapa, na
obra Líricas, afirma que, para Camões, a asiática «foi das
coisas mais suaves da sua vida, uma nota de amorosa
mansi dão na sua existência turbulenta».
Certo é que em Macau descobre um lugar para se
isolar e escrever. Talvez farto do convívio dos homens,
talvez cansado dos mexericos, provavelmente tendo gas-
to todo o seu dinheiro, Camões encontra uma gruta que
se tornará lendária, a gruta de Camões em Macau, que o
poeta descreve num soneto:
Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo de ventura,
133
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste, e escura
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme o meu cuidado?
Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;
Que, pois a minha vida é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.
Na solidão da gruta, composta por duas rochas que
sustentam uma outra que as recobre, avistando o mar e
as ilhas de Taipa e de Lintão, o poeta medita no seu desti-
no, o espírito de novo mergulhado em negras amarguras.
Segundo a lenda, aqui vai trabalhar com afinco na fina -
li zação de Os Lusíadas.
As atribulações com a justiça ou com os poderes
fácticos, que foram uma constante ao longo da sua vida,
não tinham ainda acabado para o poeta.
134
UM TRISTE REGRESSO
Por razão indeterminada, o capitão de uma nau, que
exerceria provisoriamente a justiça num território que ain-
da não passaria de um conjunto de abarracamentos, vai
dar-lhe voz de prisão. Sob detenção, embarca numa Nau
da Prata e da Seda (designação que se atribuía aos navios
que destas mercadorias se carregavam) rumo à costa in-
diana, na viagem de retorno de 1559.
Estamos em Outubro. Nos baixios da foz do rio
Mecom (Mecong), no Camboja, território do actual Viet-
name, naufraga o navio em que segue Luís Vaz mais a sua
preciosa carga: o manuscrito de Os Lusíadas. É deste mo-
do que o próprio Camões descreve o terrível episódio:
Vês, passa por Comboja Mecom, rio
Que Capitão das Águas se interpreta,
Tantas recebe de outro só no estio,
Que alaga os campos longos e inquieta;
Tem as enchentes, quais o Nilo frio;
A gente dele crê, como indiscreta,
Que pena e glória têm depois da morte
Os brutos animais de toda a sorte.
Este receberá, plácido e brando
No seu regaço o Canto, que molhado
Vem do naufrágio triste e miserando
Dos procelosos baixos escapado;
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele, cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
135
Nadando com o vi gor emprestado pela ne ces sida -
de de salvar a vida e a obra, em águas bem mais calmas
que as representações do episódio costumam retra tar, Luís
Vaz deve ter pas sado por horas de angústia.
Conta a lenda que, para salvar o manuscrito do poe -
ma épico, Camões deixa Dinamene entregue ao seu des-
136
NAUFRÁGIO
e salvamento
137
tino. Terá morrido, para grande desgosto de Luís, que a
chorará para sempre.
Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!
Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!
Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenho por pouco o viver triste?
Camões salva-se e ficará durante muito tempo nes-
tas terras, sem se saber como consegue sobrevi ver, o que
viu, como se sentiu. Muito menos se sabe de que modo re-
tornou a Malaca, sendo possível que algum navio por-
tuguês de passagem tenha aceitado levá-lo a troco dos
serviços de homem de armas que ainda era.
Sem nada de seu a não ser um manuscrito que mais
ninguém conhecia, Camões chega a Malaca em 1561, de
onde segue para Goa, em Maio ou Junho. Não perdera a
sua condição de prisioneiro, e mal chega é imediatamente
conduzido à cadeia do Tronco de Goa, ainda mais mi se -
138
NA PRISÃO
em Goa
139
Camões conheceu a realidade dos condenados ao cárcere e
dela retirou toda a amarga sensibilidade dos prisioneiros sem
esperança:
Em prisões baixas fui um tempo atado,
Vergonhoso castigo dos meus erros;
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assim ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era o viver ledo.
Mas, minha estrela, que eu já agora entendo,
A morte cega, e o caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo.
A memória do cárcere
rável que a de Lisboa. Bem pode Camões enviar poemas
laudatórios a D. Constantino de Bragança, agora vice-rei.
Nada o comove, e Camões é esquecido.
Contudo, as voltas do mundo irão mudar a favor do
poeta. Morre D. Constantino de Bragança e, no seu lugar,
assume a governação D. Francisco Coutinho, 2.º conde de
Redondo, que conhecia bem o poeta dos tempos felizes da
corte e apreciava o seu talento. Imediatamente o liberta e
recebe afectuosamente, procurando inteirar-se da sua
condição.
Esta breve alegria é de novo toldada. No início de
1562 chega ao território Miguel Rodrigues Coutinho, o
«Fios Secos» de alcunha, militar de grande valentia mas,
igualmente, agiota. Seis anos antes emprestara algum
dinheiro a Luís, aquando da partida deste para o Extremo
Oriente. Pois agora queria-o de volta, ou então o poeta
voltava à prisão do Tronco. E assim foi, com a con dição
de só de lá sair quando pagasse a dívida. Triste sina a de
Camões, a quem nem o seu amigo D. Francisco Coutinho
podia valer, dado o melindre do cargo que ocupava. Foram
os amigos do poeta que convenceram o agiota dos moti -
vos de Luís Vaz. Naufragara e portanto perdera tudo, es-
tando impossibilitado de pagar. A contragosto, Miguel
Coutinho cedeu.
Camões pode agora descansar, na companhia dos
amigos antigos, como João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde
ou Jorge de Moura, e dos novos amigos que vai fazendo,
entre os quais Garcia da Orta, humanista, médico e botâ -
nico com quase 70 anos à época, de extrema importância
no desenvolvimento das ciências naturais e no conhe -
cimento científico no século XVI. Deverá ter-lhe mostrado
140
UM DESEJO DE PARTIR
a sua obra Colóquio dos
Simples e das Drogas que
muito deve ter impres-
siona do o culto poeta,
que ela bora um poema
para seu antefácio. Ao
que parece, foi por in-
fluência de Camões que
o vice-rei deu alvará de
privilégio de impressão
da obra ao velho sábio.
Os anos passam.
Luís sente-se a ficar ve -
lho. Está sobretudo farto
da vida corru p ta de Goa
onde, a par da os ten siva
demons tração da rique -
za, todos parecem que -
rer tirar o maior partido de pequenos e grandes es que mas
de enriquecimento às custas dos outros, quando não do
próprio reino. Acima de tudo, o poeta que ele é deseja ver
publicada a sua obra.
Decide voltar à pátria. Acompanhá-lo-ia um jau, ou
javanês, natural da ilha de Java. O seu nome era António,
mas para sempre ficaria conhecido como Jau. O poeta have-
ria de catequizá-lo e libertá-lo, ficando a ele ligado por la -
ços de grande amizade e trazendo-o consigo para Lisboa.
Em 1567 Camões parte com o capitão Pedro Barreto
Rolim para Moçambique, obtendo deste um empréstimo
de 200 cruzados. Muito caro lhe saiu.
141
Rosto da
1.ª edição de
COLÓQUIO DOS
SIMPLES E DAS
DROGAS
Já em Moçambique, Pedro Barreto Rolim vai sujeitar
Camões às piores humilhações, em nome da dívida brigam
e o poeta é preso. Serão Diogo do Couto e outros amigos
que entretanto chegaram a Moçambique que acudirão a
Luís de Camões, fazendo uma colecta que reuniu o di nhei-
ro necessário para pagar a dívida. Camões quase não tem
que vestir, apresentando-se num estado miserável e faméli-
co. Contudo, nesses dois anos tivera a energia suficiente
para rever Os Lusíadas, estando agora a obra acabada.
A sua energia criadora não se encontrava, porém,
esgotada. Diogo do Couto refere que Camões tinha tam-
bém um manuscrito para «um livro mui douto, de muita
erudição, que intitulou Parnaso de Luís de Camões, porque
continha muita poesia, filosofia e outras ciências». Infe-
lizmente esta obra perdeu-se, tendo sido roubada.
Em Novembro de 1569 Camões abandona Moçam-
bique, a bordo da nau Santa Clara de D. António de Noro -
nha. Chegam a Lisboa em Abril de 1570. Camões olhava
agora com comoção a cidade onde a maior parte dos seus
sonhos tinha nascido e morrido. Estivera afastado 17 anos.
Era agora um desconhecido na capital do império.
Sentia-se velho, era pobre, não conhecia influentes. Foi vi-
ver provavelmente para a Calçada de Santana, com a sua
mãe, que estava em idade avançada e era igualmente
pobre. O ambiente em Lisboa era igualmente deprimente.
À pavorosa peste do ano anterior acresciam os graves pro-
blemas económicos da população criados pelo jovem rei
e pelas suas medidas estouvadas. Este jovem, a quem
142
A GLÓRIA DO POEMA. A HUMILDE MORTE
Camões dedicará um fervor quase religioso e deslocado
das reais qualidades do monarca, chama-se D. Sebastião.
Neste contexto, como conseguiu Luís Vaz de Camões
obter permissão para a publicação do seu poema épico?
É altamente provável que os conhecimentos antigos ain-
da pudessem ter dado uma preciosa ajuda. Não é de ex-
cluir que D. Francisca de Aragão, que sempre apreciara
Camões e o seu talento e era amiga de Pedro de Alcáçova
Carneiro, escrivão da puridade da confiança de D. Sebastião,
tivesse intercedido. Mais provável é que tenha sido a aju-
da do conde do Vimioso a desbloquear a publicação. Im-
pante de orgulho, o jovem monarca deve ter sido conven-
cido com argumentos que lhe agradariam. A sua vaidade
seria certamente agraciada com a descrição da gesta dos
143
CAMÕES LÊ
OS LUSÍADAS
a D. Sebastião
Descobrimentos, da glória dos seus antepassados, na qual
D. Sebastião se revia e desejava continuar, com os desas-
trosos resultados que a História demonstra.
Após obtida licença régia, foi o poema épico anali -
sado pela Inquisição, na pessoa do censor, frei Bartolomeu
Ferreira, o qual, embora reprovando a utilização de «Deuses
dos gentios» na narrativa, aceita que se tratava de um meio
de «ornar o estilo poético». Foi por isso o livro considera-
do «digno de se imprimir».
Com o alvará, D. Sebas -
tião concede uma tença anual
de 15 000 réis, «em respeito aos
serviços prestados na Índia e
pela suficiência que mostrou
no livro sobre as coisas de tal
lugar». Inicialmente por um
pe ríodo de três anos, esta ren-
da será renovada, em 1578, até
à morte do poeta e depois
trans mitida para a sua mãe.
Era muito pouco di nhei -
ro àquela época (aproximada-
mente 40 réis por dia, quando
um carpinteiro ganhava 160
réis diários) e, ainda por cima,
pago sempre com enormes
atrasos. É desta tença que Luís
Vaz de Camões vive até ao fim dos seus dias. Fica também
na lenda que o poeta sobreviveria graças às esmolas que
o seu criado Jau recolhia nas ruas.
144
D. SEBASTIÃO
No entanto, seu sonho fora cumprido, com o título
Os Lusíadas, de Luís de Camões. Seguidamente escrevia na
capa: «Com privilégio real. Impressos em Lisboa, com
licença da santa Inquisição, e do Ordinário: em casa de
António Gõçalvez, Impressor, 1572.» Os primeiros 200
exemplares estão cheios de erros tipográficos e de cortes
da censura, que só serão repostos na 4.ª edição de 1608.
145
Rosto da
1.ª edição
de OS LUSÍADAS
A obra foi recebida com extremo agrado pelos mais
cultos espíritos de Lisboa. Em breve a sua fama chega a
diversas partes da Europa, sendo elogiada por Tasso, em
Itália, e por Ronsard, em Espanha. Secretamente, talvez
Camões tenha desejado que D. Maria o tivesse lido. A in-
fanta morre em 1577.
Em 1578 dá-se o desastre de Alcácer Quibir. Camões
deve ter ficado destroçado com mais este desgosto, que
lhe leva o jovem de quem esperava o renascer da glória
nacional, o monarca Desejado.
A sua saúde deteriora-se. Não resiste à peste de
1579. Febril, escreveria a D. Francisco de Noronha: «Enfim
146
CAMÕES
acompanhado
por sua mãe
e o fiel Jau
acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à mi -
nha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas
com ela.»
Foge-me, pouco a pouco, a curta vida,
Se por acaso é verdade que inda vivo;
[...] Choro pelo passado; e, enquanto falo,
Se me passam os dias passo a passo.
Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena.
E da peste morre no ano seguinte. É enterrado na
colina de Santana, no cemitério que aí existia junto ao
convento. O seu corpo deve ter sido largado à terra numa
leva de outras vítimas da peste. Os seus ossos perdem-se.
Assim o tratou a Pátria.
Nesse mesmo ano, Portugal perde a independência.
147
TÚMULO DE
CAMÕES NOS
JERÓNIMOS.
É duvidoso que
contenha os
ossos do poeta
Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos...
oh! quem tanto pudesse, que fartasse
este meu duro Génio de vinganças!
148
c. 1524/25Nasce Camões em Lisboa, ou Coimbra.
c. 1542Provável chegada do jovem Camões
a Lisboa, depois de concluir os seus
estudos. Graças à sua erudição
e talento consegue entrar nos
círculos cultos da corte, nos salões
de D. Catarina e D. Maria.
c. 1544Na igreja das Chagas, na Sexta-
-Feira Santa, apaixona-se Camões
por Natércia, anagrama de Caterina
(Catarina), de quem é obrigado
a afastar-se devido à posição social
da jovem.
c. 1546Talvez devido aos seus amores
com a infanta D. Maria, Camões
sai de Lisboa e parte para uma
espécie de exílio, longe da capital.
c. 1549Camões volta a Lisboa, onde é
«aconselhado» a dar provas de valor
militar nas praças de África. Parte
para Ceuta onde, numa escaramuça,
perde um olho. Camões fica à beira
da morte. Acaba por curar-se, mas
150
CRONOLOGIA
o ferimento provoca o retorno
antecipado à capital.
c. 1550Já em Lisboa, o poeta alista-se com
o intuito de partir para a Índia, mas
tal não se concretiza. Volta a aproxi-
mar-se da corte. O projecto de Os
Lusíadas já pairaria no seu espírito.
1552A 16 de Junho, quinta-feira, durante
a procissão do Corpo de Deus,
Camões fere Gonçalo Borges, criado
de arreios do rei, ao proteger dois
embuçados, talvez seus amigos.
É imediatamente preso na cadeia do
Tronco, onde permanece nove meses,
ao fim dos quais recebe uma carta
de perdão do rei com a obrigação
de pagamento de 4000 réis
e de servir na Índia por três anos.
1553No início de Março Camões sai
da prisão e dentro de duas semanas
parte para a Índia, na armada
de Fernão Álvares Cabral. No final
de Setembro chega a Goa, após seis
duros meses no mar.
Durante dois meses recupera forças
em casa de primos, entre eles João
de Camões. Em Novembro sai de
Goa na frota que o vice-rei D. Afonso
151
CRONOLOGIA
de Noronha organiza para combater
o rei de Chambé.
1554Por volta de Fevereiro a armada está
de volta, vitoriosa. Logo de seguida
Camões é convidado a participar na
expedição organizada por Fernando
de Meneses ao golfo Pérsico. Os
combates sucedem-se e em Outubro
chegam, de novo vitoriosos, a Goa.
1555Em Fevereiro, sob o comando
de Manuel de Vasconcelos, segue
na expedição contra o corsário Safar,
que dura mais de seis meses.
De volta a Goa, em Setembro,
Camões vive um tempo de descanso.
Avança na escrita de Os Lusíadas,
que o tem acompanhado em todas
estas aventuras. Bárbara é a cativa
que o tem cativo.
1556De novo parte, rumo ao Oriente,
na armada de D. João Pereira.
1557Em Ternate, numa escaramuça con-
tra os portugueses, Camões é ferido.
Segue viagem para o Oriente, e nes-
152
CRONOLOGIA
tas andanças talvez tenha feito
fortuna, que depressa delapidaria
em Macau, onde chega ainda nesse
ano. Aí terá encontrado numa gruta
o lugar sossegado onde continuaria
a sua obra épica. Encontra também
um novo amor, Dinamene.
1559Em Outubro, por motivos incertos, o
capitão de uma nau dá-lhe voz de
prisão, pelo que segue, sob custódia,
para Goa. Ao largo do rio Mecong,
o navio naufraga. Camões consegue
salvar-se com o seu precioso
manuscrito.
1561Sem se saber como, chega a Malaca,
de onde segue para Goa em Maio
ou Junho. Mal chega, é preso
na cadeia do Tronco de Goa pois,
apesar do tempo decorrido, tem
ainda o estatuto de prisioneiro.
153
CRONOLOGIA
Recebe perdão quando D. Francisco
Coutinho, seu amigo dos tempos da
corte em Lisboa, é nomeado vice-rei.
1562A liberdade foi de curta duração.
No início do ano chega a Goa Miguel
Rodrigues Coutinho, que exige o
pagamento de uma dívida com seis
anos. Camões ficará preso até os
seus amigos intercederem por si
e a dívida ser perdoada. Seguem-se
tempos mais tranquilos, de convívio
e trabalho.
1567Cansado da vida em Goa, quer
voltar a Lisboa. Parte para
Moçambique com o capitão Pedro
Barreto Rolim, que lhe concede
um empréstimo de 200 cruzados.
1569Em Moçambique, Pedro Barreto
Rolim sujeita Camões às piores
humilhações em nome da dívida.
Camões é preso. Diogo do Couto
e outros amigos fazem uma colecta
e conseguem pagar a famigerada
dívida e a viagem de regresso.
O poeta parte de Moçambique
em Novembro, na nau de D. António
de Noronha.
1570Camões chega a Lisboa em Abril.
Estivera afastado 17 anos. Provavel-
mente terá ido viver com a sua mãe
na Calçada de Santana. Com cerca
de 45 anos, Camões era pobre e es-
tava velho, mas ainda tinha alguns
amigos. Será por sua influência que
se viria a publicar o poema épico.
154
CRONOLOGIA
1572Os Lusíadas são finalmente
impressos e recebidos com extremo
agrado pela elite cultural de Lisboa.
Em breve a sua fama se espalharia
por toda a Europa. Com o alvará de
impressão, Camões passa a receber
uma tença anual de 15 000 réis.
1580Camões não resiste à peste e dela
morre, possivelmente a 10 de Junho.
O seu corpo é enterrado no cemitério
situado na colina de Santana.
1595Publicação das Rimas (Rythmas).
1587Edição dos autos Comédia
de El-Rei Seleuco, do Comédia
de Filodemo e Comédia de
Anfitriões.
155
CRONOLOGIA
BELL, Aubrey F. G., Luís de Camões, trad. do inglês por A. A.
Dória, Porto, 1936
BRAGA, Teófilo, Camões. A Obra Lírica e Épica, Porto, 1911
CARVALHO, Joaquim de, «Estudos sobre as leituras
filosóficas de Camões», in Lusitânia, 1952
CASTRO, Armando, Camões e a Sociedade do Seu Tempo,
Lisboa, 1980
CIDADE, Hernâni, Luís de Camões. I – O Lírico, Lisboa,
1936, Luís de Camões. II – O Épico, Lisboa,
1950, e Luís de Camões. III – Os Autos
e o Teatro do Seu Tempo – As Cartas e Seu
Conteúdo Biográfico, Lisboa, 1956
COELHO, Jacinto do Prado, «Camões: um lírico do
transcendente», in A Letra e o Leitor, Lisboa,
1969
DIAS, J. S. da Silva, Camões no Portugal de Quinhentos,
Lisboa, 1981
DOMINGUES, Mário, Camões. A Sua Vida e a Sua Época,
Lisboa, 2.ª edição, 1980
GONÇALVES, F. Rebelo, A Fala do Velho do Restelo
– Aspectos Clássicos Deste Episódio
Camoniano, Lisboa, 1933
LINS, Álvaro, Ensaio sobre Camões e a Epopeia como
Romance Histórico, Porto, 1972
MACEDO, J. Borges de, «Os Lusíadas» e a História, Lisboa,
1979
MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução à Poesia de
Camões, Lisboa, 1980; O Canto na Poesia
156
BIBLIOGRAFIA
157
BIBLIOGRAFIA
Épica e Lírica de Camões – Estudo da
Isotopia Enunciativa, Paris, 1981
RIBEIRO, Aquilino, Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro,
Bertrand, Lisboa, 1974
RODRIGUES, José Maria, Fontes d' «Os Lusíadas», Lisboa,
1913
SARAIVA, António José, Luís de Camões, Lisboa, 1997
SÉRGIO, António, «Questão Prévia de Um Ignorante aos
Prefaciadores da Lírica de Camões»,
in Ensaios, tomo IV, Lisboa, 1934
STORCK, Wilhelm, Vida e Obra de Luís de Camões,
trad. anotada por Carolina Michaëlis
de Vasconcelos, Lisboa, 1897
158
UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA
A MISTERIOSA NATÉRCIA
Perdido de amores
O FIM DE UMA ILUSÃO
Amor ardente
PAIXÃO E DESGRAÇA
A INFANTA D. MARIA
UM ESPÍRITO RARO
PROXIMIDADE
UM AMOR INTERDITO
Um último encontro
BANIDO
UMA LONGA ESPERA
Saudades
O SOLDADO
QUE PERDE UM OLHO
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31
A GLÓRIA
DA LÍNGUA PORTUGUESA
AS ORIGENS
UMA LINHAGEM DE NOBRES
O humanismo renascentista
em Portugal
FACTOS OBSCUROS
UM TIO PODEROSO
ESTUDANTE EM COIMBRA
Petrarca e Camões
A CAMINHO DE LISBOA
UMA MOCIDADE
APAIXONADA
A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL
UMA MUDANÇA DECISIVA
Sá de Miranda
O ESPLENDOR DA CORTE
ÍNDICE
LUÍS VAZ
DE CAMÕES
SOLDADO
AO SERVIÇO DA COROA
CONTRA O REI DE CHAMBÉ
COMBATES VÃOS
ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA
DE NOVO EM GOA, E FELIZ
Diogo do Couto
UMA ESCRAVA QUE O CATIVA
À BEIRA DO FIM,
SURGE A OBRA
A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS
NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS
CHEGA A MACAU
UM TRISTE REGRESSO
A memória do cárcere
UM DESEJO DE PARTIR
A GLÓRIA DO POEMA.
A HUMILDE MORTE
CRONOLOGIA
BIBLIOGRAFIA
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120
122
124
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129
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142
149
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60
62
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67
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75
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104
106
109
DE VOLTA A LISBOA
«ONDE VÁS, LUÍS?»
EM CEUTA
A PERDA DE UM OLHO
A importância do olhar
REGRESSO
A UMA LISBOA DIFERENTE
D. João III
UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA
Damião de Góis
UM REGRESSO TRÁGICO
DESFIGURADO
UM ESFORÇO INÚTIL
NOS SALÕES DE D. MARIA
TRAGÉDIA
PRISÃO
O PREÇO DA LIBERDADE
NO CAMINHO DA ÍNDIA
PARTIDA
A BORDO
O VELHO DO RESTELO
O ADAMASTOR
O FIM DA JORNADA
CAMÕES INSTALA-SE EM GOA
Resumo sinóptico
de Os Lusíadas
159
ÍNDICE
Com um poema épico, um homem vai selar a identidade
nacional. Luís Vaz de Camões, o príncipe das letras
portuguesas, incendiou com a sua escrita a alma lusitana.
E tem confundida a data da sua morte
com o Dia de Portugal.
Tanto mais é de espantar esta identificação entre a nação
e o poeta quanto, em vida, a fortuna lhe foi madrasta
e todas as portas se lhe iam fechando. É verdade
que por «Erros meus, má fortuna, amor ardente»,
tudo em sua perdição se conjurou. Mas também
não é menos certo que os contemporâneos do escritor
nunca compreenderam, e muito menos recompensaram,
o seu talento. Era brigão, mulherengo, arrebatado e
emotivo. Por isso criou inimigos, gerou animosidades,
cavou incompreensões. Mas consigo carregava igualmente
a funda erudição, o génio criador, o sentido de um desígnio:
nobilitar Portugal e a sua gesta.
Morreu pobre, cansado, precocemente envelhecido.
Só o tempo lhe dará o lugar que ocupa nas letras
e no imaginário de uma nação: o lugar cimeiro.
GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL