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ARTIGO ORIGINAL
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 13
DOI
RAZO E SENSAO EM TEETETO
201D
-202C
.1,2
Anderson de Paula Borges (UFG)3
[email protected]
Resumo: O objetivo do presente artigo fazer uma breve discusso
de trs aspectos que caracterizam a teoria do sonho do Teeteto.
Primeiro, comento a funo do sonho no contexto da terceira definio
de conhecimento. De-pois, me detenho no texto e examino algumas
questes relacionadas ao conceito de logos de 201d-202c. Na ltima
parte do artigo discuto o problema da percepo dos elementos. Nessa
seo recuso a tese, defendida por alguns, de que Plato coloca os
elementos na mesma condio perceptiva dos dados sensveis, tal como
esto descritos em Teeteto 184-6.
Palavras-chave: razo, sensao, elementos, teoria do sonho.
INTRODUO
No Teeteto, em 201d8-202c5, Plato delineia uma teoria sobre a
distino entre itens primitivos de uma composio, con-siderados no
cognoscveis, e os compostos enquanto tais, que seriam objeto de
opinio verdadeira e conhecimento. Essa teoria quer tornar plausvel
a tese de que o conceito de
1 Recebido: 10.08.2010/Aprovado: 15.09.2010/Publicado on-line:
13.03.2011. 2 Este artigo aproveita uma parte da tese de doutorado
que apresentei no Departamento de Filo-sofia da Universidade de So
Paulo, em setembro de 2009. Agradeo imensamente aos professores
Marco Zingano, Roberto Bolzani, Lucas Angioni e Eliane Christina.
Eles compuseram a banca e me concederam valiosos comentrios sobre
algumas das ideias que, digitadas s pressas, no ficaram to claras
poca, o que me d a oportunidade de agora tentar aprimorar. Agradeo
tambm as oportunas sugestes feitas por um referee da Philsophos. 3
Anderson de Paula Borges Professor-adjunto do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Gois, Goinia, Brasil.
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epistm4 pode ser definido como opinio verdadeira a-companhada de
logos. Em 201d8-202c5, o autor do Teeteto apresenta uma distino
entre itens cognoscveis e itens in-cognoscveis como proposta de
explicitao do sentido dessa definio de saber. Citada pela primeira
vez em 201c, a terceira definio uma tese que tem no sonho, pode-se
dizer, uma explicao suficiente, mas no podemos concluir que o sonho
um caminho necessrio para fundament-la. O fato que a frmula poderia
ser explicada por meio de outras propostas e o sonho no passa de
uma hiptese de trabalho. Em apoio a isso se pode notar que a partir
de 206c Scrates se afasta do sonho para examinar a definio em si
mesma. Desta vez ele est interessado em definir qual con-ceito de
logos teria a capacidade de explicar a passagem da opinio
verdadeira para o conhecimento. A teoria do sonho no desempenha
nenhuma funo a, embora haja uma cla-ra referncia a ela no segundo
sentido de logos, discutido em 206e4-208b10. Note-se tambm que,
enquanto a teoria do sonho explicitamente criticada e rejeitada, no
claro se a terceira definio recebe um tratamento exaustivo5. 4 Para
facilitar a leitura transliterei todas as citaes de termos ou
frases do texto grego que men-cionei no corpo do texto. Na
transliterao optei pela supresso dos acentos; o acento circunflexo
usado em algumas transliteraes indica que ali esto as vogais ou .
Nas notas, quando ne-cessrio, cito o texto grego do original. A
edio grega do Teeteto usada de W. F. Hicken (DUKE, 1995). As
tradues so minhas, mas usei com bastante proveito as seguintes
verses do dilogo em lngua moderna: Nunes (2001), Nogueira e Boeri
(2005), McDowell (1973), Dis (1924), Chappell (2004) e Melro
(1990). 5 A questo do comprometimento ou no do autor do Teeteto com
alguma frmula positiva da terceira definio um tema problemtico no
Teeteto, mas poucos intrpretes arriscam investir na tese de que
Plato estaria abandonando neste dilogo a crena de que o
conhecimento possui uma relao necessria com o conceito de logos. Um
aspecto que motiva essa resistncia, alm das ocorrncias de logos em
outros dilogos, a frase de Teeteto 202d: Scrates pergunta o que
poderia ser o conhecimento parte do logos e da opinio verdadeira?
(
). Segundo Cornford (2003, p. 146), o criticismo do dilogo
mostra que preciso provide o sentido correto de logos. Gail Fine
(2003, p. 225-51) e Julia Annas (in SHOFIELD e NUSSBAUM, 1982, p.
102 et passim) apresentam anlises consistentes para arguir que o
conceito platnico de logos no coincide com a frmula sugerida pela
teoria do sonho. J Miller (1992,
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Como Burnyeat6 e outros, penso que a teoria do sonho e a
terceira definio so teses distintas. De certo modo, es-sa hiptese
minimiza o papel do sonho na interpretao da terceira definio e
permite um ganho em termos inter-pretativos, j que o nvel de
ambiguidade de alguns aspectos da teoria tem tornado difcil sua
anlise. Minha proposta l-la como uma discusso preliminar sobre as
condies de possibilidade da terceira definio. A teoria est em um
contexto de discusso sobre possveis candidatos ao papel de elemento
modificador da opinio verdadeira em conhe-cimento. Nesse quadro, o
autor do Teeteto sente necessidade de propor um exame em dois
momentos. Antes de, a partir de 206c, fazer o escrutnio das acepes
de logos que se candidatam quele papel transformador, ele
investi-ga, na seo 201d-206b, a hiptese geral de que o conhecimento
um estado da alma sobre determinado ar-ranjo de objetos7. Trata-se,
claramente, de uma tese que passim) mais incisivo nos aspectos
positivos da terceira definio. Ele prope que o logos platni-co deve
ser identificado como um conceito capaz de preservar os trs
sentidos propostos no dilogo: 206c-e, 206e-208b e 208b-210a.
Contra: Robinson (1950) e Waterfield (2004, p. 230). Este ltimo v
202d como retorical. 6 Em certas partes do Teeteto (ver, por
exemplo, 152c-186c) a relao entre as teses que articulam a discusso
dos temas matria de disputa na literatura secundria. Tambm o caso
aqui na ter-ceira parte. Burnyeat (1990, p. 129) no tem dvidas de
que a terceira definio, citada em seu estudo como K (knowledge),
logically independent do argumento do sonho. 7 Uso o termo objeto
no contexto do Teeteto para designar um item que possui uma
natureza passvel de ser analisada, conhecida ou percebida. Um
objeto pode ser um indivduo, como S-crates, um item fsico, como
carroa (cf. Teeteto 207a: ) ou um item abstrato, como 2 (Cf.
MORTARI, 2001, p. 65-66). No h, no entanto, consenso na literatura
sobre a forma como Plato est concebendo o conhecimento dos objetos
no Teeteto. Os intrpretes divergem quanto a saber se o dilogo est
buscando definir uma noo de conhecimento proposicional ou
objectual. Concordo com aqueles que defendem a ideia de que na
terceira definio Plato trata do conhe-cimento como uma relao entre
a mente e os objetos (object-related, cf. WHITE, 1976, p. 179;
BURNYEAT, 1990, p. 129-132; e CHAPPELL, 2004, p. 205-212). Nessa
linha, conhecer ter uma disposio mental qualificada acerca de um
item qualquer. Parece existir uma tenso entre essa alternativa e a
tese de que o conhecimento uma relao entre um sujeito e sua cognio
das estruturas proposicionais que permitem expressar o
conhecimento. No entanto, como sustentam alguns, Plato parece
assumir que, se um sujeito conhece x, em algum momento desse
processo o sujeito esteve e ainda est no domnio de enunciados sobre
as propriedades que se pode atri-
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desperta seu interesse, mas Plato no parece contente com a
premissa que a apoia: existem objetos primitivos despro-vidos de
logos (202d10-e1)8.
Meu exame concentrar-se- naquela primeira parte e se dividir em
trs sees. Na primeira, comento o contexto da tese do sonho e
proponho uma traduo para 201d8-202c5. Na segunda, examino o
conceito de logos em 201d-202c e destaco que a teoria do sonho
defende a tese de que a frmula de conhecimento a noo de logos como
enu-merao de elementos. Em um terceiro momento, ofereo uma anlise
do problema da perceptibilidade dos stoicheia. Comento a a hiptese
de que a acepo de aisthta em 202b7 teria uma relao importante com o
argumento sobre a capacidade cognitiva da sensao, discutido em
184-6. Es-sa hiptese mencionada em vrios estudos do Teeteto. Meu
objetivo mostrar que ela no se sustenta.
I
Comeo pelo destaque a dois aspectos do contexto da teo-ria no
dilogo. Primeiro, os leitores do Teeteto costumam nomear o trecho
em 201d8-202c5 como teoria do sonho porque ele principia com a
frase ouve, ento, um sonho
buir a x ou sobre as relaes que podemos identificar a seu
respeito. Isso significa que, para Pla-to, conhecer x e conhecer
que isto ou aquilo o caso sobre x so estados cognitivos
conversveis. Ver a respeito McDowell (1973, p.
115-116/192-193/195), que v nesse intercmbio um risco que o idioma
platnico do conhecimento precisa evitar. Para a tese de que essa
converso no pro-blemtica em Plato, ver Fine (2003, p. 225-251) e
Burnyeat (1990, p. 132). 8 Seu ataque mira, sobretudo, o seguinte:
o que me parece a assero mais engenhosa: que, de um lado, os
elementos so incognoscveis e, de outro, a classe dos compostos
cognoscvel [
]. Os detalhes dessa crtica teoria no so objeto do presente
comentrio, cujo escopo limita-se ao texto da teoria do sonho e s
teses ali propostas. Sobre o motivo de Plato recusar a premissa do
sonho, veja-se Fine (2003, p. 225-251) e J. Annas (in SHOFIELD e
NUSSBAUM, 1982, p. 96-114).
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no lugar de outro (akoue d onar anti oneiratos). O sonho pode
ser visto, de incio, como um argumento oferecido por Plato para
elaborar o contedo daquela primeira lem-brana de Teeteto
(201c8-9)9, mas essa no uma linha de anlise dominante, pois h
disputa sobre o ponto. A prepo-sio anti (em troca, no lugar de)
pode indicar duas coisas em 201d8: (i) ela pode estar se referindo
a uma distino que ter na exposio de Scrates uma descrio idntica a
que seria dada por Teeteto se, conforme sua prpria descri-o, ele
tivesse condies de se recordar do assunto com preciso10. Essa linha
de anlise pressupe um nico autor para as formulaes do sonho; (ii)
de outro lado, talvez o re-ferente de anti seja uma descrio de
Scrates para a mesma distino, mas no exatamente uma exposio que
reproduz o pensamento de um autor especfico. Tratar-se-ia, neste
caso, de uma tese corrente sobre cognoscveis e no cognoscveis, no
sendo exclusiva do sonho de Teeteto. Penso que a liberdade criativa
de Plato, comum nos dilo-gos, permite-nos crer que esse o caso.
Qual ento o interesse de Scrates na tese? Ele parece interessado na
dife-rena entre epistta e m epistta (cognoscveis e no cognoscveis,
cf. 201d). Digamos, ex hypothesi, que se trata de uma tese
conhecida em um mbito de pensadores cujo vn-culo a um autor j no
faz mais sentido. A meno a to enupnion em 202c5 no desautoriza essa
leitura, pois 202c5 no indicaria um sonho unitrio. Em 202c, Teeteto
apenas
9 Nesse ponto do texto Teeteto afirma que tinha se esquecido da
definio, mas comea a recor-dar-se ( ). 10 Cf. nota anterior. No a
primeira vez, no dilogo, que Teeteto alega no se recordar de uma
questo. Em 197a-b, no contexto da discusso do modelo do avirio, o
jovem matemtico diz que no se recorda da distino entre posse de
conhecimento ( ) e ter ( ) conheci-mento. Scrates se encarrega de
explicar a diferena por meio da analogia do avirio.
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confirma que a verso de Scrates coincide com aquela que ele iria
apresentar. Tudo nos levaria a crer, portanto, que a troca
mencionada em 201d8 no uma parfrase do sonho original, mas uma
exposio suplementar (BURNYEAT, 1970, p. 121), proposta por Scrates,
com base naquela dis-tino entre cognoscveis e incognoscveis. Em
ltima instncia, essa exposio deve ser considerada uma produ-o do
autor do Teeteto. O objetivo de Plato, desse modo, usar a teoria
como uma verso preliminar da tese de que o conhecimento opinio
verdadeira acompanhada de logos (cf. BURNYEAT, 1970, p. 10-21;
MILLER, 1992, p. 90).
O segundo aspecto que quero por em relevo o contex-to imediato
da teoria no dilogo. O sonho de Scrates surge como um passo
posterior discusso do argumento do jri, em uma cena cuja
propriedade dominante a busca de um critrio de diferenciao entre o
estado mental ou dis-posio que se nomeia opinio verdadeira (doxa
aleths) e o estado mental ou disposio que ser nomeado epistm11. No
final do argumento do jri, Scrates e Teeteto j estabe-leceram que
essa diferena deve ser investigada na sequncia. Eles concordam que
h uma distino entre os dois componentes da segunda definio: (i)
opinio verdadei-ra e (ii) conhecimento12. Quando Teeteto sugere, em
201c8-d1, que essa distino remete a uma frmula em que conheci-
11 Para como estado mental (e no juzo) no Teeteto ver Crivelli
(1998, p. 20-21). H dis-puta sobre como verter doxa na segunda
parte. Uma alternativa proposta de Crivelli est em Woolf (2004, p.
574). 12 Ver Teeteto 200d5-201c6. Em 201c6 Scrates conclui: mas
parece agora que as duas [conhecimen-to e opinio verdadeira] so
diferentes ( ). A diferena entre opinio verdadeira e conhecimento
um tema recorrente em Plato e a distino costuma ser ba-seada na
tese de que a capacidade de expressar um logos no tem a mesma
qualidade que a capacidade de emitir uma opinio verdadeira. Ver a
respeito Mnon 98a, Banquete 202a, Fdon 76b/97d-99d.
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mento opinio verdadeira acompanhada de logos (meta lo-gou alth
doxan epistmn einai), ele tambm diz que o autor [dessa definio]
defendeu a tese de que tn de alogon ektos epistms, algo como o que
no possui logos desprovido de conhecimento. somente aps a meno a
estas duas teses que Scrates pergunta: como ele distingue os
cognoscveis dos incognoscveis? (201d4-5). Ao ouvir essa pergunta,
Tee-teto diz que talvez no possa encontrar a articulao do ponto
(ouk oida ei exeurs)13. por isso que Scrates descre-ve a teoria do
sonho com a frase ouve, ento, um sonho no lugar de outro e assume,
a partir da, a tarefa de expor a distino que lhe interessou.
Os dois aspectos destacados so relevantes porque qua-lificam a
funo da tese do sonho na problemtica do dilogo. H uma distino entre
opinio e conhecimento que resultou da abordagem do argumento do jri
e a teoria do sonho se oferece como proposta de explicitao dessa
dis-tino. Por outro lado, a teoria exprime um problema que
despertou o interesse de Plato: a viabilidade de uma dife-rena
lgica entre itens que podem ser conhecidos e itens cuja natureza
intrnseca no permite um conhecimento em sentido estrito. De que
modo se poderia justificar essa dife-rena e por que ela seria
importante para uma definio da ideia de conhecimento? Plato procura
responder a primeira pergunta na exposio da teoria do sonho, em
201d-202c. A segunda pergunta tema do criticismo delineado em
202d-206c. O presente comentrio se detm predominantemente na
estrutura de 201d-202c, no tendo, portanto, essa crtica como objeto
imediato14.
13 Para a traduo de em 201d7 ver Burnyeat (1970, p. 102, n. 3).
14 Tenciono examinar Teeteto 202d-206c (critica teoria do sonho) em
outro momento.
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A seguir apresento uma traduo do texto de 201d8-202c5. Propus
uma diviso tpica em quatro partes para fa-cilitar a identificao da
estrutura do texto. Em (a) temos a descrio dos elementos; em (b) a
descrio das caractersti-cas dos compostos; em (c) uma retomada dos
traos fundamentais de ambos e em (d) um comentrio sobre a distino
entre opinio verdadeira e conhecimento meta logou (acompanhado de
logos).
(a) Ouve, ento, um sonho no lugar de outro. Pareceu-me tambm
ouvir de alguns que os assim chamados [hoionpe-rei] elementos
primitivos [prota stoicheia], a partir dos quais ns e tudo o mais
somos compostos, no possuem logos [logon ouk echoi]; pois em si
mesmo [auto gar kath hauto] cada elemento s pode ser nomeado
(onomasai monon ei); no possvel expressar [proseipein] nada mais
acerca dele, seja que [o elemento] [hs estin], seja que [o
elemento] no [hs ouk estin]; dizer isso j seria adicio-nar
[prostithesthai] ser ou no ser, mas no podemos atrelar nada [ouden
prospherein] ao elemento se quisermos exprimi-lo em si,
isoladamente [eiper auto ekeino monon tis erei]. No se deve usar,
com efeito, expresses como mesmo [auto], aquilo [ekeino], cada um
[hekaston], sozinho [monon], isto [touto] e nem outras de mesmo
tipo [oudalla polla toiauta]. Tais expresses, medida que percorrem
tudo, so empregadas para todo tipo de obje-tos, tornando-se
diferentes das coisas a que se ajuntam, ao passo que se o item
pudesse ser expresso [legesthai] e ter seu prprio logos [eichen
oikeion autou logon], teria que ser nomeado parte de todo o resto.
Mas, de fato, im-possvel que qualquer destes itens primitivos seja
expresso num logos [rhthnai logi]; pois permitido ao
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elemento ser apenas nomeado um nome tudo o que ele tem.
(b) Quanto aos itens compostos destes [ek toutn], da mesma forma
que os elementos so entrelaados tambm seus nomes se entrelaam e
formam um logos; porque a essn-cia do logos ser um entrelaamento de
nomes [onomatn gar symplokn einai logou ousian].
(c) Desse modo, os elementos so inexprimveis [aloga] e
in-cognoscveis [agnsta], mas sensveis [aisthta]; j os complexos
[syllabas] so cognoscveis [gnstas], exprim-veis [rhtas] e objeto de
opinio verdadeira.
(d) Quando se apreende a opinio verdadeira, porm sem logos [aneu
logos], a alma fica em um estado de verdade [altheuein] sobre o
item, mas no o conhece [gignskein dou]; com efeito, quem no capaz
de dar e receber um logos sobre algo no possui conhecimento do
objeto [ane-pistmona einai peri toutou]; quando, porm, apreendeu o
logos, ele capaz no apenas disso, mas tambm de ter conhecimento de
modo completo [teleis].
II Stoicheia e logos
Para expressar a ideia de composio Plato usa, na teoria do
sonho, o verbo synkeimai, que significa ser formado de, ser
combinado. o mesmo verbo usado por Aristteles, em Me-tafsica Delta
3, quando prope explicar os usos do termo stoicheion. Nesse texto
Aristteles define stoicheion como o
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que dito o primeiro constituinte de algo composto, quan-to forma
indivisvel em outra forma15. fcil notar que essa a caracterstica
essencial dos stoicheia da teoria do so-nho16, mas Aristteles no
diz nada em Delta 3 sobre a incognoscibilidade dos elementos. Como
a teoria do sonho formula essa tese? Embora esteja implcito em
201d-202c que uma descrio detalhada dos elementos poderia violar a
condio da incognoscibilidade, h um conjunto de afirma-es sobre os
elementos que podemos examinar:
(i) os elementos so inexprimveis (aloga); (ii) so incognoscveis
[agnsta]; (iii) no possvel usarmos uma srie de palavras para
expressar [proseipein] algo sobre os elementos. Nesse grupo de
termos esto: ser-essncia [ousia], mesmo [auto], aquele [ekeino],
cada [hekaston], sozinho [monon] e isto [touto];
(iv) o elemento nomevel [onomaston]; (v) o elemento sensvel
[aisthton].
Podemos dizer que essas caractersticas so cinco condi-es
cognitivas que a teoria impe aos elementos. Por condio cognitiva
entenderei, daqui em diante, o modo como os elementos podem ser
descritos do ponto de vista das propriedades que a teoria lhes
reserva. importante en-fatizar que essa ideia de cognio no um trao
do elemento, pois h uma doutrina bem estabelecida na teoria do
sonho que assegura que o elemento em si est fora do
15 Metafsica 1014a26-b15:
. 16 Uma pesquisa de flego sobre o uso de em Plato est em
Crowley (2005, p. 367-394).
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campo do conhecimento. A cognio que pode ser pensada sobre ele
certa conscincia e referncia que nosso interesse epistemolgico quer
destacar. Procura-se, desse modo, obe-decer ideia de que eles esto
desprovidos de vnculos em uma estrutura que represente algum
conhecimento, sem ig-norar que as condies (iv) e (v) nos fornecem
formas de mencion-los e identific-los. Pode-se objetar que o fato
de todas as condies atribudas aos elementos serem conheci-das por
ns ameaa a exigncia de que eles estejam em uma condio no cognitiva
absoluta. A objeo seria vlida teoria do sonho se o elemento
estivesse, de fato, nessa con-dio no cognitiva forte, mas ele no
est. O terico do sonho17 afirma que h, pelo menos, duas aes que uma
alma pode desempenhar sobre os elementos: nomear e perce-ber, o que
implica que eles no so itens totalmente inacessveis ao
entendimento.
Por outro lado, h uma relao entre os elementos e os compostos
que tambm evita a total incognoscibilidade dos primeiros. Essa
relao verificada no contraste que deter-mina o ncleo da teoria.
Geralmente esse contraste mencionado na literatura como assimetria
cognitiva, pois prope a no cognio dos elementos e a cognio dos
compostos. Embora seja uma tese sobre a cognio presente em uma
classe de itens e ausente em outra, o contraste que da resulta no
pode ser interpretado como um contraste
17 A questo da autoria da teoria do sonho, para alm da hiptese
que defendi na primeira seo deste artigo, um tema difcil devido
impossibilidade de se obter algum dado seguro. Ver Burn-yeat
(1970), Hicken (1958) e Chappell (2005). No momento, minha posio
que Plato trabalha os elementos de uma tese sobre o conhecimento e
discute essa tese do ponto de vista de uma au-toria externa
fictcia. Ele procede desse modo para preservar seu distanciamento
crtico e isso que importa destacar. Portanto, podemos falar de um
terico do sonho (como fao em vrios lugares do corpo do texto) que
polemiza com o autor do Teeteto nesse contexto, mesmo que, como
provvel, Plato esteja no comando de um e de outro em termos de
produo.
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entre duas entidades separadas, i.e., elementos de um lado,
compostos de outro. Trata-se, antes, de uma diferena lgica do ponto
de vista do acesso cognitivo que temos aos mesmos itens em situaes
distintas. Em uma das vias, os elementos esto arranjados em
gneros18 nos quais, conforme a teo-ria, reside o conhecimento
genuno. Na outra via, o elemento considerado em si mesmo (auto kath
hauto, cf. 201e3). Portanto, a primeira via no deve ser concebida
co-mo uma categoria autnoma e discreta, sem relao alguma com o
elemento. Na engenharia da teoria o composto um composto de
elementos e as duas noes so, por conta disso, dependentes uma da
outra. Conhecer o composto tem por consequncia, desse modo, um
conhecimento sobre a con-dio dos elementos no composto.
Uma das questes que surgem no exame do texto o problema de saber
como aquelas cinco caractersticas se re-lacionam para apoiar a tese
da assimetria, i.e., como elas se articulam para propor que s h
conhecimento dos com-postos e nunca dos elementos? De acordo com o
que est expresso no texto (a), a condio (i) que determina as
de-mais e impe aos elementos restries quanto ao discurso. S possvel
pensar o elemento, em sentido estrito, quando abstramos suas
caractersticas exclusivas e ignoramos seu papel no composto. Quando
fazemos essa anlise desco-brimos o que dito em 201e2-3: os prta
stoicheia no possuem logos.
Em contraste com as trs primeiras, as condies (iv)
(nomeabilidade) e (v) (perceptibilidade) atribuem aos ele-mentos
duas caractersticas positivas. Podemos conceder
18 Cf. 202e1: gnero dos complexos ( ).
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nomes aos itens primitivos e se pode ter alguma conscincia deles
na percepo. Destas duas condies, somente (iv) tem, no texto, uma
conexo explcita com (i). O texto afir-ma que os elementos no
possuem logos porque19so unicamente nomeveis e, com isso, parece
exprimir (em 201e3) que a nomeabilidade dos elementos o fator que
torna o elemento um alogon. O contexto de 201e3, no en-tanto, no
enfatiza exatamente isso. A teoria no defende uma tese sobre as
propriedades intrnsecas e exclusivas de certos itens que nomeamos
elementos. O escopo da teo-ria no ontolgico, epistemolgico. A
teoria uma proposta de conhecimento baseada em uma concepo de logos
como anlise ou decomposio: ao decompor os itens na anlise, chega-se
aos itens primitivos e, nesse momento, s se pode indic-los e
nome-los. A nomeabilidade, portan-to, no a causa da no
cognoscibilidade, mas o resultado de uma restrio na capacidade de
se expressar um elemen-to. Essa restrio quer indicar que, ao
fornecer um nome aos elementos, no se est articulando uma forma de
expli-cao, uma definio ou fazendo uso do elemento em uma frase que
d a ele um atributo independente do que em si mesmo. provvel que,
ao analisar o conjunto das condi-es citadas acima, o leitor queira
ir alm e defender que o terico do sonho percebeu uma distino que
Wittgenstein, aps Frege e outros, comentaria no pargrafo 49 das
Investi-gaes Filosficas: dar nomes no implica expressar algo.
Essa
19 Ler a partcula como explicativa em 201e3 uma sugesto de um
avaliador annimo da Philsophos. De fato ele parecer ter razo, mas
em que muda o sentido de 201e3? No muda a nfa-se no contraste entre
nomear e explicar que funda o ncleo da teoria. Vrias tradues do
Teeteto ignoram a partcula nesse ponto (DIS, 1924; LEVETT apud
BURNYEAT, 1990; MCDOWELL, 1973; CHAPPELL, 2004; NUNES, 2001;
WATERFIELD, 1987). A exceo que conheo Fo-wler, na edio Loeb de
1921.
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Anderson de Paula Borges
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 26
manobra no sem fundamento, mas preciso, antes, ana-lisar com
mais ateno a concepo de logos do terico do sonho (cf. MCDOWELL,
1973, p. 233).
A teoria do sonho tem claramente a pretenso de defi-nir logos
como o que pode ser legeisthai (expresso, dito) por uma alma
cognoscente. No fcil, porm, encontrar em portugus um termo que
cubra as possibilidades que essa pretenso pode ter em termos
semnticos. As ocorrncias de legein e seus cognatos, em (a), indicam
que se trata de um sentido bsico de expresso de propriedades
comuns, em oposio nomeao, algo que o verbo dizer, como tra-duo do
grego legein, no expressa de modo satisfatrio20. McDowell traduz
todos os casos de logos no texto pela par-frase to express in an
account. H, contudo, pelo menos trs sentidos bsicos para legein e a
questo verificar se essa parfrase os abriga: (i) enunciar; (ii)
definir e (iii) explicar (Cf. BOSTOCK, 1988, p. 203). Os trs
sentidos esto dis-ponveis nas opes fornecidas pela literatura
secundria para traduzir as instncias do verbo citadas
anteriormente. Nicholas White, por exemplo, no v razo para verter
logos como sentena (ver adiante). Ele (1976, p. 177/194) de-fende
enfaticamente a tese de que o sentido de logos em toda a teoria do
sonho o de definio. Por outro lado, embora a expresso account tenha
certa neutralidade no ingls, coincidindo, talvez, com (ii) e (iii),
quando usamos em portugus o correlato explicao, precisamos
enfatizar uma qualificao para dizer que se trata de uma explicao
racional sob esta ou aquela forma.
20 Note-se como Plato se move entre um termo e outro para
exprimir instncias do uso da ideia de logos na teoria do sonho:
202a2 a b b . No necessrio buscar distines semnticas nesse uso.
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PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 27
Uma alternativa para quem no concorda com a tradu-o de logos
como explicao ou definio seguir a sugesto de Gilbert Ryle, que
prope sentena. Sua inter-pretao marca um dos momentos mais polmicos
da literatura do Teeteto (RYLE, 1960, p. 431-451; 1990, p.
21-46)21. Ryle influenciou muitos autores (MCDOWELL, 1973; HICKEN,
1958; BURNYEAT, 1990; SAYRE, 1969) alguns dos quais iriam depois
comentar o dilogo para se colocar em um ponto de maior ou menor
divergncia com a leitura que ele props. Ele defendeu o seguinte: a
teoria do sonho tem potencial para ser considerada uma verso
rudimentar dos problemas filosficos discutidos no atomis-mo lgico,
tanto o de Bertrand Russell, quanto o da verso wittgensteiniana,
i.e., aquele que est nas pginas do Tracta-tus. Entre outras coisas,
esses textos discutem uma distino importante da lgica moderna a
partir de Frege: mencio-nar um item e exprimir predicados acerca
das propriedades ou relaes do item so atividades logicamen-te
distintas (cf. FREGE, 1951, p. 168-180)22.
Essa distino parece permear o texto que estamos ana-lisando, mas
as coisas se tornam complexas quando exigimos um pouco mais de
detalhes sobre esse paralelo. O prprio Ryle nunca defendeu que
aquela distino est pos-ta de modo explcito no texto da teoria do
sonho. Ryle notou, porm, que ao se cotejar a tenso entre itens de
na-tureza simples, no sentido de no compostos (stoicheia), e itens
de natureza composta (cf. ta de ek toutn d synkeime-
21 A reconstruo de Burnyeat (1990, p. 148-164) complementa e
esclarece muitos pontos que Ryle deixou sem comentrio. Ver tambm
McDowell (1973, p. 231-240). 22 Um tratamento (acessvel em
linguagem no formal) da importncia para a lgica da distino fregeana
entre coisas, propriedades e relaes est em Mortari (2001, p.
69-97).
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Anderson de Paula Borges
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 28
na em 202b3 e syllabas em b7/e1) com Sofista 261c6-262e2, temos
ento condies de afirmar que Plato estaria se en-caminhando para a
conscincia da distino lgica entre nomes e predicados. Ryle quer
mostrar que o Teeteto um momento de apreenso filosfica dessa
distino e isso no incompatvel com certa ambiguidade que preside o
termo legein na teoria do sonho. Mais que isso. A percepo da-quela
distino, associada ao fato de Plato ainda no saber como explic-la,
constituem a ambiguidade. Para Ryle, essa situao compreensvel
porque nessa fase Plato comea a pensar que a formulao da teoria das
formas precisa de uma reforma. Um dos problemas certo eleatismo que
re-veste a forma de excessiva perfeio. Quando esse eleatismo visto
sob a perspectiva da separao das ideias do mundo sensvel, surge
ento uma srie de dificuldades com as exi-gncias predicativas que o
conhecimento das coisas do mundo exigir. Segundo Ryle, o que Plato
est fazendo no Teeteto propor a investigao de um novo conceito de
logos para dar conta de tais problemas.
A anlise de Ryle foi severamente criticada (BOSTOCK, 1988, p.
204-211; FINE, 2003, p. 228-235; BURNYEAT, 1990, p. 149-164). H
pelo menos um aspec-to dessa crtica que se impe. Ryle exibe um dos
defeitos de certa literatura moderna de Plato: lendo seu texto se
nota que a anlise tem mais cadncia quando trata dos proble-mas da
filosofia da linguagem contempornea do que quando descreve os
problemas discutidos nos dilogos de Plato (BURNYEAT, 1990, p.
164)23. Mas, por outro lado, 23 Isso no significa que esses
problemas no se tocam. O que se deve evitar o voluntarismo de
certas conexes entre Plato e os temas da lgica moderna, quase
sempre em detrimento de uma anlise moderada dos textos. Vale notar
que Christopher Shields (1999, p. 123) destacou o exces-so de
conjecturas de algumas interpretaes da terceira definio. Por outro
lado, Donald
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PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 29
no se pode negar certo paralelismo implcito entre os te-mas
mencionados por Ryle no artigo de 195224 e o miolo da teoria do
sonho. A questo depende, contudo, de como temperamos esse potencial
da teoria com o tema proposto por Ryle. H alternativas em disputa.
Uma dessas linhas de-fender, contra Ryle, que o argumento do sonho
se aplica a uma categoria especfica de coisas que incluiria,
exclusiva-mente, itens sensveis (cf. 202b7: os elementos so
aisthta), apreendidos na percepo ordinria, tais como pessoas,
ob-jetos e qualidades sensveis. Outra opo de leitura propor a
possibilidade de se entender que o argumento do sonho tem chances
de postular um conjunto maior de itens, con-junto este que
incluiria tpicos abstratos como proposies, nmeros, relaes,
propriedades, etc. Para Ryle, a ltima candidatura perfeitamente
plausvel, embora no esteja explicitamente formulada no Teeteto.
Plato teria optado por expor o tema de modo mais direto no Sofista
(RYLE, 1990, p. 42ss).
Do ponto de vista da traduo do texto de Plato, plausvel a tese
de que a distino entre simples e com-plexo pode ser associada
distino entre o que apenas nomevel e determinadas expresses
sincategoremticas que operam nas sentenas, permitindo que se
produzam propo-sies a partir da ligao entre verbos e nomes. No o
caso, portanto, de nos alinharmos quela primeira alterna- Davidson,
de um modo plausvel, recentemente recuperou a tese ryleana ao traar
uma histria da teoria da predicao que comea, precisamente, em Plato
(DAVIDSON, 2005, especialmente o cap. 4). Para uma anlise da posio
de Plato sobre esse atomismo no plano metafsico, no que se poderia
chamar de atomismo ontolgico, ver Scolnicov (2004). Recomendo tambm
os captu-los 3-4 de Souza (2009). Por fim, Bostock (1988, p.
203-211) e Waterfield (2004, p. 218-225) so essenciais para os
problemas da interpretao ryleana. 24 Foi nesse ano que Ryle leu seu
Logical Atomism in Platos Theaetetus, no Magdalen Coledge, em
Oxford, diante de figuras conhecidas como B. Russell, Miss Murdoch,
Kneale, Price, Dodds e W. Hardie, entre outros.
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PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 30
tiva, em que os elementos seriam definidos como materi-ais. Ryle
(1990, p. 30) foi categrico a respeito: it is not meant to be a
sort of physical theory, e.g. an hypothesis about the composition
of matter. It is a logicians theory, namely a theory about the
composition of truhs and false-hoods. Notemos como o uso de legein
no texto de Plato d crdito hiptese de Ryle. Ryle precisa encontrar
no tex-to um sentido de logos que seja compatvel com a ideia de
exprimvel. Formas anlogas a esse termo so encontradas em 202a9,
202b7, 205d9 e 205e7. O verbo expressar a verso em portugus do
termo rhthnai, que por sua vez a forma passiva do verbo eir. O
sentido deste ltimo verbo o mesmo de legein (falar, dizer algo:
eirein ti (BAILLY, 1963)). Ryle traduz o adjetivo rhtos (202b7,
205d9 e 205e7), derivado de eir, como expressible. Ele tambm traduz
o verbo lege-in por tell e logos por statement. Com base nisso, ele
v na teoria o contraste entre nameable e stateable.
Mas a constatao de certas convergncias no vocabul-rio ainda no
suficiente para impor a interpretao ryleana. preciso dar conta do
sentido de um termo capital teoria: o termo symplok, usado no texto
em 202b5. Con-trariamente ao que Ryle sugere, o autor da teoria no
parece to esclarecido sobre a vocao desse termo para ex-pressar um
conceito genuno de logos no sentido sentencial. De acordo com
202b3, para um elemento possuir um logos no texto isso significa
poder ser expresso por meio de ver-bos como proseipein e symplekein
(cf. 201e4, 202b4-6) ele precisa perder sua condio de elemento e se
tornar um i-tem conectado a outros em um composto.
Examinemos de perto essa ideia de symplok. Trata-se de uma
metfora, citada pela primeira vez em b4 e em b5 des-
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PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 31
crita como onomatn symplok25. Um detalhe muito in-teressante
nessa metfora o fato de ser a proposta genuna da teoria do sonho
para definir logos. Contrariamente ao que alguns defenderam, o
argumento do sonho no prope um conceito dominante de logos como
descrio peculi-ar26 de um item. Se o fizesse estaria admitindo que
o oikeios model em a7 e a metfora da symplok em b5 esto expri-mindo
o mesmo sentido de logos para elementos e compostos, o que destri a
premissa nuclear da teoria: a as-simetria cognitiva. Quando o autor
retoma essa premissa, em 202b5-7, fica claro que a noo de logos
como oikeios no se adapta aos compostos. a metfora da symplok que
pas-sa a ser a forma ideal de caracterizar o conceito de logos.
Qual , ento, o problema do conceito de logos no re-gime da
symplok? Por um lado, esse conceito parece ser 25 A metfora permite
extraordinria liberdade na traduo dessa frase na literature
recente. Entre as tradues divergentes que encontrei para (b5-6)
esto: a complex of names is what a rational account is (CHAPELL,
2004); car des mots tisss essemble, cest ce quest une definition
(NARCY, 1994); for a weaving together of names is just what a logos
is (BOSTOCK, 1988); for the plaiting of names is the being of
speech (BENARDETE, 1984); a weaving together of names is the being
of an account (MCDOWELL, 1973); car la combinaison dont les noms
sont forms est lessence de leur definition (CHAMBRY, 1967); a
description being precisely a combination of names (CORNFORD, 2003
[1957]). 26 Cf. 202b3: ; b7: . O isolamento ao qual o elemento
confinado, em con-traste com seu papel no composto, levou, de fato,
alguns leitores tese de que h um conceito evidente de logos como
expresso peculiar de um item. Trata-se da concepo de logos como
oikei-os model (logos peculiar, privado) que se ampararia no que
dito em 202a7. Essa a proposta de Fine (2003, p. 240), Bostock
(1988, 206ss) e Lee (in FINE, 2008, p. 425), entre outros. Segundo
Bostock: the theory very clearly implies that if a thing has a
logos (in the relevant sense) then that logos is peculiar to it
(202a5-8) (BOSTOCK, 1988, p. 206). O problema dessa afirmao que,
implicitamente, ela sugere que o conceito de logos que predomina na
teoria logos como oikeios. Mas em 202b3 (nosso texto b), no qual
Scrates conclui a exposio dos traos dos elementos e comea a
explicar como o autor da teoria entende composto, o texto parece
arguir que logos de-ve ser definido sob a forma da metfora da
symplok. Embora Bostock reconhea que o oikeios logos um aspecto sem
importncia, ele no parecer notar que, ao se falar em logos como
oikeios, esta-mos perigosamente deixando em segundo plano a metfora
da symplok. Penso que a teoria do sonho est apenas parcialmente
comprometida com o oikeios logos. Essa perspectiva relevante
so-mente quando se quer pensar no elemento isoladamente. Quando
pensarmos nos compostos devemos nos apoiar no conceito de logos
sugerido na metfora da symplok.
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Anderson de Paula Borges
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 32
vlido, pois perfaz exatamente aquilo que o autor da teoria
pretendia, uma distino entre elementos e compostos do ponto de
vista da cognio dos ltimos e da no cognio dos primeiros. O problema
o seguinte: a symplok um conceito definido pelo contraste com a
condio da nome-ao dos elementos, mas no parece superar o nvel
classificatrio dos elementos (cf. 202a6-7). Como notam Kahn (2007,
p. 42-43) e Fine (2003, p. 235), esse modelo de symplok da teoria
imperfeito. Se, de um lado, ele mais geral que o oikeios model, por
outro ele ainda no exibe a complexidade que permite dar conta da
predicao. A defi-cincia do conceito permanecer no nvel das relaes
entre palavras. A symplok, na teoria do sonho, no uma symplok
platnica, pois esta costuma ser descrita segundo o regime de um
procedimento kateid. Trata-se, antes, de uma symplok kata to onoma
(cf. MOLINE, 1981, p. 41).
Alguns comentadores notam que o problema reside no fato de que a
teoria do sonho tem um conceito muito res-trito de logos: [it is] a
very specific application of the definition one: to indicate an
account which analyses a thing by listing its elements (SEDLEY,
2004, p. 153)27. H duas possibilidades para o significado dessa
concepo de logos como listagem na teoria do sonho: 1) anlise de
i-tens materiais como barro e carroa (cf. 147a, 206e-208b) em seus
componentes bsicos; 2) anlise de itens logicamente primitivos em
temas formais como nmeros, palavras, msica e assim por diante.
Burnyeat nomeia tais opes de anlise concreta e anlise abstrata. Os
dois tipos de anlise esto
27 Uma indicao de que, de fato, o terico do sonho entende anlise
como enumerao de i-tens est em 206e, quando Scrates explicitamente
vincula a segunda definio de logos ali discutida com o logos da
teoria do sonho.
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presentes no texto, mas no na mesma proporo. H uma distribuio
desigual de exemplos que se enquadram nos dois casos. Como
argumenta Chappell (2004, p. 219), em 202a-206c Plato fornece cinco
exemplos de uma relao do tipo complexo-simples:
In 202a-206c Plato gives five examples of the complex/simple
rela-tion. One of Platos examples does concern relation between
concrete individual things (viz the regiment/soldier relation). The
other four examples are the syllable/letter relation, the numerical
sum/part relation, the musical chord/note relation and the
geome-trical acre/square foot relation. These examples cannot
possibly be taken as concerned with relation between concrete
individual things. Syllables and letters, sums and parts, chords
and notes, acres and square feet are all types, not concrete
particulars. Certainly any instance of these types is a concrete
particular, but that is another matter.
No contexto em que tais exemplos so citados, Scrates est
interpretando o conceito de logos da teoria do sonho como enumerao
de elementos, o que destaca o fato de que esse conceito um conceito
geral. Contudo, o que parece pre-dominar a enumerao de itens
abstratos. Como nota Bostock (1988, p. 242): [...] in all the
subsequent illustra-tions and applications of this theory it is
knowledge of a general type, and not a particular individual, that
is being discussed (cf. tambm BURNYEAT, 1990, p. 84-85; CHAPPELL,
2005, p. 219). Embora na literatura da teoria do sonho haja muita
disputa sobre qual destes sentidos de anlise se abstrata ou
material est em jogo no texto, no estou convencido de que o autor
da teoria veria ambas como duas espcies distintas de anlise. Creio
que ele as v como casos de um padro de explicao que possui, como
trao essencial, a enumerao de componentes primitivos, sejam formais
ou materiais. O que de fato importa salientar que
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PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 34
o autor da teoria no possui uma distino entre o ato de listar
nomes e o ato cognitivo de identificar aspectos, rela-es e
pertencimentos. Tudo interpretado sob a perspectiva geral de anlise
enquanto entrelaamento de no-mes, mas no claro o modo como se deve
fazer isso. Apesar de se tratar de uma proposta de conhecimento
co-mo anlise decomposicional, podendo, portanto, ser aplicada tanto
explicao da estrutura de coisas fsicas quanto explanao da formao de
itens abstratos, a me-tfora da sumplok por si s no capaz de
manifestar o que essencial nesse conceito de anlise: uma capacidade
expla-natria.
Quando critica a teoria do sonho, Plato faz uso de um dilema que
explora a deficincia destacada acima (203a-206c). O dilema propor
que o composto, representado pe-la slaba, deve ser entendido sob
dois regimes exaustivos: (i) seus membros so meros agregados de
elementos (S + O); ou (ii) o composto uma ideia nica. No primeiro
ca-so, ser um composto ser nada mais que uma reunio de elementos,
sem nada que os articule ou ordene. No outro, ser um composto ser
uma unidade singular, indivisvel. A concluso do dilema a seguinte:
como no h nenhum critrio que permita ao todo (leia-se: slaba)
distinguir-se da soma de suas partes (letras), mutatis mutandis, o
comple-xo28, que no texto da teoria do sonho o locus por excelncia
do conhecimento, no poder se distinguir dos 28 Essa referncia ao
complexo que estou fazendo decorre do papel da slaba no dilema:
servir de analogia para o modo como a tese da teoria do sonho
funciona. O que Scrates conclui da slaba por meio da tese, atribuda
ao terico do sonho, de que toda composio uma identidade deve ser
entendido como referncia tese da assimetria e ao contraste
elemento-complexo (Cf. BURNYEAT, 1990, p. 196ss). O argumento de
Scrates em Teeteto 203a-206c se vale do fato que os pares
letra-slaba e elemento-complexo traduzem os mesmos termos do grego:
.
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elementos. Portanto, o argumento de Plato no dilema con-siste em
mostrar que se a teoria do sonho concebe a estrutura do complexo de
modo anlogo slaba, e a slaba nada mais que a soma de duas ou mais
letras, ento a teo-ria do sonho no tem um critrio formal para
diferenciar elemento e complexo. Sem o critrio de diferenciao, a
te-oria no vai alm de uma definio aglomerativa (DENYER, 1991, p.
117-127) dos complexos. Nesse pano-rama, a tese da assimetria
epistemolgica desmorona. A alternativa unitria do dilema tambm
atingida, i.e., a hi-ptese de que a slaba uma forma singular
(203c4-6; 203e4; 204a). Posta na mesma condio dos elementos (cf.
205e2-4), a concluso que nessa acepo a slaba no teria
comple-xidade, sendo to incognoscvel quanto o elemento. A funo do
dilema, como se v, mostrar que a teoria do sonho no obter um
conceito adequado de logos se no a-bandonar essa concepo
aglomerativa de complexo/composto.
III
Tendo estabelecido que a teoria do sonho prope um sen-tido de
logos como um tipo de anlise enumerativa ou, como prefere Nicholas
Denyer, uma anlise aglomerativa, podemos agora nos deter naquela
quinta caracterstica dos elementos: a condio da perceptibilidade.
Para os intrpre-tes, o problema toma corpo quando o autor da teoria
diz que os elementos esto em uma condio de percepo: eles so
sensveis (202b7: aisthta). De 202b7 at o final do di-logo essa
condio no mais citada. Em contraste com as
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demais condies, a perceptibilidade no parece ter um vnculo com
as outras caractersticas dos elementos29. No claro o que o termo
aisthton significa quando aplicado aos elementos da teoria do
sonho. Mesmo reconhecendo a dificuldade de interpretar essa condio,
em geral os intr-pretes torcem o nariz para o problema. Gail Fine,
por exemplo, se refere perceptibilidade dos elementos como lame
concession e Bostock a considera inessential. Burnyeat, por outro
lado, sugere, mas sem se comprometer com essa interpretao, que a
perceptibilidade pode ser uma forma de garantir um acesso epistmico
mnimo aos elementos. (FINE, 2003, p. 236; BOSTOCK, 1988, p. 210;
BURNYEAT, 1990, p. 174-175/182).
A questo passa pelo problema de definir uma forma de acesso que
a alma teria, pela via da percepo, a um item cuja caracterstica
bsica no estar conectado ou relacio-nado a nenhum outro. Quando
prope que os elementos so nomeveis, ns sabemos que o autor da
teoria est ten-tando garantir aos elementos um aspecto positivo. A
proposta evitar que esse trao viole a restrio quanto ao uso de
expresses comuns para os elementos, tais como verbos (proseipein e
legesthai), gneros (ousia) e pronomes (e-keino, touto), etc. Quando
menciona essa restrio, o autor da teoria parece ver um contraste
entre palavras que usamos para descrever vrios itens entre os quais
sujeitos e pro-priedades e palavras que pertenceriam unicamente
quele elemento particular. uma restrio plausvel se aceitarmos a
tese da assimetria, mas por que propor a perceptibilidade?
Considerando, de um lado, que o autor da teoria tem uma concepo
geral de logos como enumerao e que, de ou- 29 Ver as cinco condies
dos elementos que elencamos na seo II.
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tro, no todo elemento que se oferece percepo ordin-ria (tomos
estariam descartados, por exemplo), ser que devemos entender que a
perceptibilidade no uma condio para todos os tipos de elementos,
mas apenas para os de na-tureza fsica? Seria uma tese razovel. O
problema que 202b7 no oferece nenhum sinal de que se trata de uma
a-firmao restrita a uma classe especfica. Por outro lado, se o
autor da teoria defende a perceptibilidade como trao es-sencial de
qualquer elemento, ele tem que admitir que a percepo no se limita
aos compostos fsicos, mas uma condio geral de elementos fsicos e
abstratos (BURNYEAT, 1990, p. 184). Como condio geral, agora nosso
problema o seguinte: a perceptibilidade uma con-dio do elemento
somente quando tal elemento no tem nenhuma funo em um composto?
Sendo a perceptibili-dade uma condio restritiva dos elementos,
podemos supor que a resposta do autor da teoria afirmativa
(BURNYEAT, 1990, p. 182). Mas, nesse caso, o que dizer da ocorrncia
simultnea da percepo de um item e da vi-so de sua pertena a uma
estrutura? Os elementos podem ser, concomitantemente, membros de um
composto e per-ceptveis, como as partes de uma carroa, no exemplo
examinado por Scrates em 206e-207e30. Do ponto de vista de uma
pessoa que conhece o que uma carroa (Teeteto, 207), ter tal
conhecimento saber ver claramente como as partes se organizam para
formar a estrutura da carroa (HARING, 1982, p. 520). um cenrio fcil
de imaginar se pensarmos no conhecimento de um fazendeiro ou de um
vendedor de peas. Para tais pessoas os materiais que inte-
30 Esse aspecto explorado por Burnyeat (1990) e Fine (2003).
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gram o objeto de seu trabalho possuem uma organizao in-terna,
cujos traos eles conhecem bem, e nada impede que os componentes
destes objetos estejam sempre l para se-rem observados, da
perspectiva dessa organizao. O que estou argumentando que difcil
imaginar uma situao em que itens pertencentes a uma estrutura sejam
percebi-dos exclusivamente na condio em que esto fora dessa
estrutura. Se o autor da teoria argumenta em favor da
per-ceptibilidade como trao de um elemento isolado ele est,
portanto, equivocado, pois no h, a priori, contraste entre percepo
e composio. Obviamente, essa objeo teoria do sonho s vlida no caso
de seu autor insistir que a percep-o, como a nomeao, uma condio do
elemento em si, no nvel do logos peculiar (oikeios logos), ao mesmo
tempo em que a nega no nvel da symplok, pois se ele a expande no
haveria problema na concomitncia entre perceptibili-dade e pertena
ao composto. Dada a indeterminao do texto da teoria do sonho sobre
esse ponto, no creio que possamos avanar e propor algo menos
problemtico que as sentenas que acabei de exprimir.
Quero examinar outro tpico que me parece mais rele-vante no
campo das teses platnicas sobre a percepo. Alguns intrpretes
costumam supor que Plato tem uma ra-zo epistemolgica para impor a
perceptibilidade aos elementos. Ele estaria interessado em colocar
os elementos em uma situao cognitiva anloga a de todos os objetos
que se oferecem percepo e que so vistos sob a perspec-tiva
exclusiva da sensao. Considerando o interesse de Plato em querer
mostrar, em qualquer argumento episte-molgico, que a sensao no
produz nada de acurado ( , Fdon 65b5), alguns suspeitaram que essa
posio ronda tambm a descrio dos elementos. Foi por isso que
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David Sedley argumentou, recentemente, que o autor da teoria do
sonho concebe a percepo dos elementos como trao de uma classe de
coisas fsicas. Para Sedley isso remete ao argumento de Plato sobre
o papel cognitivo das sensa-es, em 184-6. Segundo Sedley, os
elementos e os sensveis da primeira parte partilham a mesma condio
cognitiva. Am-bos esto confinados em uma noo extremamente limitada
de conscincia e por isso partilham um trao comum: so itens
no-cognoscveis31:
It is a commonplace of Platonic thought that what is accessible
to the senses is limited to particulars and their properties, while
univer-sals, whether at the level of species or genera, are
accessible only to the intellect. (SEDLEY, 2004, p. 156)
A descrio do conceito platnico de universal feita por Sedley est
fundamentalmente correta. um patrimnio da epistemologia platnica a
defesa de um contraste entre par-ticulares e universais. Mas a tese
de Sedley mais ambiciosa. Ele quer mostrar que Plato descreve na
teoria do sonho um contraste que exprime o mesmo contraste de
184-6. No nos parece que seja este o caso. Sedley prope que h um
paralelo entre os seguintes argumentos:
(i) se x perceptvel, x um item acessvel aos senti-dos. Logo,
trata-se de um item particular, no um universal (cf. Teeteto
184-6);
(ii) se os elementos da teoria do sonho so percept-veis, eles no
podem ser itens abstratos ou itens
31 Essa conexo entre a primeira parte do dilogo e o texto da
teoria do sonho no nova. Ela foi sugerida nos seguintes trabalhos,
entre outros: Cornford (2004 [1957]), Ryle (1990 [1952]),
Meye-rhoff (1958), McDowel (1973). Mais recentemente, de modo
incisivo, ela foi proposta por Chappell (2004) e David Sedley
(2004). Neste trabalho, examino a leitura de David Sedley por ser a
defesa mais detalhada dessa interpretao.
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Anderson de Paula Borges
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 40
gerais.
A anlise de Sedley defende que o autor da teoria exprime (ii)
porque Plato defende a verdade de (i). Se Sedley est certo, o autor
da teoria est arguindo que no h acesso cognitivo s instncias do
vermelho, s partes da carroa ou aos sintomas de uma febre
particular. Dada a tese da assi-metria, onde os elementos so vistos
sob duas condies cognitivas bem distintas, deve-se, ento, concluir
que no n-vel dos elementos o que uma alma percebe o que se chama na
literatura de tokens, ocorrncias especficas em oposio ao que comum
nas ocorrncias (types). Essa an-lise tem certo charme, sobretudo
porque examina a teoria do sonho a partir de um argumento (184-6)
que mais cla-ro que o de 201d-202c. Apesar de persistirem
divergncias na interpretao de 184-6, na literatura, todos concordam
que h ali um argumento platnico sobre a natureza do co-nhecimento.
O trao fundamental desse argumento a proposta de que epistm um
estado mental essencialmen-te distinto do ato de perceber.
Contudo, a tese de que aquelas duas passagens parti-lham o mesmo
conceito de sensao no se mantm de p. Antes de qualquer coisa, a
anlise de Sedley d como plau-svel32 que a concepo de elementos
propostas no texto a ideia de elementos de coisas fsicas, i.e., so
os elementos i-dentificados nos compostos materiais, mas ns j vimos
que no h razes suficientes para mantermos essa restrio. Outro
problema o fato de 184-6 ser um argumento plat-nico, enquanto que a
teoria do sonho expe a tese de um
32 Ver Sedley (2004, p. 155-162). A interpretao materialista dos
elementos proposta pelo autor se articula a partir de fontes
externas ao Teeteto.
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autor. Sedley parece assumir que Plato referenda o ar-gumento do
sonho. Provavelmente todos concordam que Plato aceita (i) porque
ele defende em 184-6 a tese de que a sensao bruta no envolve a
apreenso de aspectos gerais. O terico do sonho poderia estar
pensando nisso quando disse que os elementos so sensveis, mas da a
afirmar que Plato que est argumentando o paralelo um passo que a
anlise de Sedley no consegue justificar. Penso que o fato de o
autor do sonho argumentar que podemos perceber um elemento,
enquanto que o acesso cognitivo implica lidar com conexes, no
suficiente para mostrar que Plato quer destacar o mesmo tipo de
contraste nos dois trechos mencionados.
Para apoiar essa concluso notemos, ainda, que o con-traste entre
razo e sensao na teoria do sonho depende diretamente da tese da
assimetria, e essa tese no est em 184-6. Nesse ltimo argumento o
contraste entre a im-presso bruta e o conhecimento da impresso (ou
de temas abstratos) a partir dos recursos que uma alma capaz de
u-sar (em 184-6 trata-se de categorias comuns como ser, essncia,
identidade, diferena, etc.). J na teoria do sonho, o contraste se
funda na diferena entre itens sobre os quais no h logos/conexo
(elementos) e itens sobre os quais h logos/conexo (compostos). Se
h, portanto, um paralelismo implcito entre 184-6 e 201d-202c, temos
que encontrar em 184-6 a tese da assimetria e verificar como ela se
adapta ao argumento dessa parte do Teeteto. Dessa pers-pectiva,
temos que encontrar em 184-6 a proposio de que os sensveis so tomos
singulares desprovidos de logos, ao passo que os gneros que
mencionamos h pouco so for-mas de logos. O que encontramos em
184-6, porm, diferente. Plato no exprime ali uma tese sobre a
incog-
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Anderson de Paula Borges
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noscibilidade dos sensveis. Sua preocupao , fundamen-talmente, a
refutao de uma identidade entre sensao e conhecimento, a qual foi
proposta na parte inicial do dilo-go. Quando o texto chega naquele
ponto, embora j tenham sido refutadas algumas associaes que se
vincula-ram a essa proposta, continua de p a tese de que o processo
sensvel enquanto tal pode ser cognitivo e infor-mativo. O autor do
Teeteto mobiliza em 184-6 uma srie de distines que visam refutar
essa tese de modo direto, i.e., sem o acrscimo de premissas
adicionais, como aconteceu na poro do texto anterior a 184.
Examinemos agora o paralelo sob outro aspecto. A tese da
assimetria reza que o elemento no apenas incognosc-vel, mas tambm
simples, no sentido de indivisvel. Mas em 184-6 no to claro se os
sensveis so simples nessa ltima acepo. A tese da simplicidade uma
consequncia das restries cognitivas impostas aos elementos. Quando
no mais possvel limitar o ncleo primitivo de um com-posto, estamos
na categoria dos elementos. H basicamente trs categorias de
palavras que a teoria do sonho exclui da referncia aos elementos
para chegar na simplicidade: gne-ros, verbos e pronomes. Em 184-6,
por outro lado, Plato conclui:
No naquelas impresses fsicas, portanto, que reside o
conheci-mento, mas em nosso raciocnio a seu respeito; porque
possvel, ao que parece, atingir o ser e a verdade no raciocnio, mas
no poss-vel naquelas impresses.33
O que est sendo proposto nesse texto a concluso de uma anlise
cujo mrito foi o de mostrar que existem aspec-
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tos ou propriedades no mundo que podemos acessar por meio dos
sentidos, como os sons particulares e as cores par-ticulares,
mencionadas em 185b9-c2, mas h muitas outras coisas que a sensao no
pode apreender. Certos atributos que vinculamos s coisas
percebidas, como sua identidade, diferena, oposio (cf. 185c-d),
etc., no podem ser pensados no nvel da capacidade perceptiva.
Podemos dizer que a mente tem acesso aos particulares quando se
exime de pen-sar sobre seus aspectos universais e aqui, claro, h um
paralelismo com a condio dos elementos. Mas s. Esse paralelo no
suficiente para provar que em 184-6 o dado sensvel um dado
no-composto. Em 184-6 Scrates no precisa identificar esse trao nos
sensveis para exprimir sua tese. Tudo o que se requer a tese de que
para se pensar, articular ou expressar propriedades necessrio um
traba-lho intelectual da alma e a sensao no capaz de faz-lo. Isso
equivale a dizer que se o caso de pensarmos acerca do sensvel isto
ou aquilo, ento tambm o caso de j no po-dermos t-los na alma sob a
perspectiva da percepo bruta. Devemos concluir, desse modo, que as
duas passagens pos-suem noes distintas de no cognoscibilidade e no
partilham a mesma noo de alogon (sensvel).
Essa heterogeneidade entre elementos e sensveis pode ser
explicada na hiptese de que os elementos da teoria do sonho no so
exclusivamente itens sensveis. Eles parecem estar em uma condio de
generalidade: podem ser itens distintos como letras, peas mecnicas,
elementos da natu-reza, soldados, nmeros, etc. Plato teria pensado
em uma forma de perceptibilidade que compreende a percepo f-sica,
sem descartar outras formas de percepo. Esclarecer essa noo no to
crucial e creio que aqueles intrpretes (BURNYEAT, 1990; FINE, 2003;
BOSTOCK, 1988) que
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Anderson de Paula Borges
PHILSOPHOS, GOINIA, V.15, N. 1, P. 13-47, JAN./JUN. 2010 44
alertaram para certa irrelevncia desse aspecto podem ter razo.
Ao postular essa condio, talvez o autor da teoria es-teja pensando
em uma forma de preservar uma caracterstica positiva dos elementos,
mas no quer se en-volver com determinadas consequncias. Seja como
for, preciso avanar no exame da teoria do sonho e no deixar que
esse detalhe anuvie a percepo do trao fundamental da terceira parte
do dilogo: a crtica tese da assimetria cognitiva. Esse assunto, no
entanto, matria para outro momento.
Abstract: The aim of this paper is to make a brief discussion
about three as-pects that characterize the Socratess Dream in the
Theaetetus. First, I comment the function of the Dream in the
context of the third definition of knowledge. Them I move on the
text and examine some questions concern-ing the notion of logos in
201d-202c. In the last section I discuss the problem of perception
of the stoicheia. At this point I refuse the thesis, defended by
some interpreters, that Plato puts the stoicheia in the same
perceptual condi-tion of the sensibles as they are described in the
Theaetetus 184-6.
Keywords: reason, sensation, elements, Dream Theory.
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