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Poltica & Gesto Ambiental no Brasil: da Rio-92 ao Estatuto
da Cidade *
Autor: Srgio Lus Boeira Resumo O objetivo deste ensaio fazer uma
contribuio ao debate sobre poltica e gesto do meio ambiente no
Brasil, no perodo de 1992 a 2001, com descrio e avaliao crtica
fundamentadas em pesquisa bibliogrfica, retomada do conceito de
ambientalismo complexo-multissetorial (VIOLA e BOEIRA, 1990) e
proposio de uma hiptese de dois processos histricos concorrentes
(hegemnico e contra-hegemnico). Conclui-se que, na segunda metade
da dcada de 1990 e especialmente aps a aprovao do Estatuto da
Cidade, em 2001, abre-se a perspectiva de reemergncia do
ambientalismo complexo-multissetorial e a possibilidade de uma
estratgia de transformao concomitante de mltiplas organizaes em
auto-eco-organizaes. Introduo A chamada questo ambiental marca a
histria do Pas desde o perodo colonial. O nome Brasil resultou de
uma viso mercantilista de explorao da rvore pau-brasil,
que superou a ideologia religiosa e a designao de Santa Cruz. Os
diversos ciclos
econmicos foram, de certa forma, desastres ecolgicos, pois a
cada fase de intensa
explorao e prosperidade seguiu-se outra de estagnao e decadncia.
Segundo o
historiador Jos A. Pdua (1987, p.20), uma tradio de dois plos
esquizofrenicamente
divorciados acompanha os debates sobre projeto de nao e sua
relao com a natureza, no
Brasil: de um lado uma celebrao puramente retrica e, de outro,
uma realidade de
devastao impiedosa. De 1500 ao incio do sculo XX, podem ser
encontradas quatro
posturas diante da questo da natureza: a) o elogio retrico e
laudatrio do meio natural,
indiferente e, por vezes, conivente com a realidade da devastao;
b) o elogio da ao
humana em sentido abstrato, distante das suas conseqncias
destrutivas; c) a crtica da
destruio da natureza, com proposta de modernizao
urbano-industrial; d) a crtica da
destruio da natureza, com a busca de um modelo alternativo e
autnomo de
desenvolvimento nacional (PDUA, 1987).
* Artigo publicado, em portugus e em espanhol, na revista
Alcance - Revista Cientfica do Programa de Mestrado Acadmico em
Administrao da Universidade do Vale do Itaja UNIVALI, vol. 10, n.
3, p. 525-558, set/dez, 2003.
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Nas diversas fases e faces da poltica ambiental, desde 1930 at o
momento atual
(2004), os dilemas brasileiros atualizaram e mesclaram tais
posturas, acrescentando
polticas regulatrias, estruturadoras e indutoras (CUNHA &
COELHO, 2003). Enquanto
as polticas ambientais regulatrias (R) se referem elaborao de
legislao especfica
sobre forma de uso e de acesso ao meio ambiente, as polticas
ambientais estruturadoras (E)
implicam interveno direta do Estado ou de organismos
no-governamentais de defesa do
meio natural. Os melhores exemplos so as gestes participativas
de reas de Proteo
Ambiental (APAs). As polticas ambientais indutoras (I) tm por
objetivo influenciar o
comportamento de indivduos ou grupos sociais. Estas ltimas so
normalmente
identificadas com a noo de desenvolvimento sustentvel e so
implementadas por meio
de linhas especiais de financiamento ou de polticas fiscais e
tributrias (CUNHA &
COELHO, 2003, p. 45). As polticas indutoras visam a otimizao da
alocao de recursos,
fazendo uso, por exemplo, de instrumentos econmicos para
privilegiar prticas
consideradas ambientalmente desejveis e inviabilizar as que
provocam degradao
ambiental. As certificaes ambientais tambm podem ser
consideradas parte das polticas
indutoras, pois visam a modificao do comportamento de
consumidores e da cultura
organizacional.
a partir de 1930, com um Estado centralizador, que a
regulamentao ambiental se
afirma. Segundo a periodizao proposta por Cunha & Coelho
(2003, p. 46), h trs
momentos na histria das polticas ambientais: a) o primeiro
perodo, de 1930 a 1971,
caracterizado pela construo de uma base de regulao dos usos dos
recursos naturais; b)
no segundo perodo, de 1972 a 1987, a ao intervencionista do
Estado chega ao pice; c) o
terceiro perodo, de 1988 aos dias atuais, caracteriza-se pelos
processos de democratizao
e descentralizao decisrias, e pela rpida disseminao da noo de
desenvolvimento
sustentvel. H certamente outras periodizaes possveis e
igualmente plausveis. A noo
de poltica ambiental indutora enfatizada por Cunha & Coelho
frgil e convencional,
mas til para o objetivo deste ensaio. Tal tipo de poltica carece
de uma abordagem crtico-
sistmica ao isolamento burocrtico das polticas setoriais, no
assume a complexidade
epistemolgica dos paradigmas (implcitos na educao ambiental, na
ecologia poltica, na
economia ecolgica ou no ecodesenvolvimento).
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Ao longo da dcada de 1990 houve uma articulao das noes de
poltica pblica e de gesto. O conceito de gesto refere-se,
primordialmente, ao presente, aos procedimentos
operacionais, administrao e aplicao de leis, regulamentos,
indicadores, normas,
planos e programas; o conceito de planejamento prioriza o
futuro, as estratgias, embora
pressuponha uma reavalio do passado e do presente (SOUZA, 2002,
p. 46). Enquanto o
conceito de poltica pblica restrito a uma atividade
especializada do Estado moderno-
industrial, o de Poltica, em sentido clssico, inclui todas as
atividades relativas
convivncia humana num determinado espao habitvel. Sem dvida a
noo de poltica
ambiental tem o potencial de recuperar a noo clssica (VIEIRA e
BREDARIOL, 1998),
mas esbarra no processo de especializao tcnica em ascenso por
meio do management.
Este conflito tem como pano de fundo uma crise de paradigmas
cientficos e filosficos que
transcende os limites desse ensaio.
O conceito de gesto ambiental tem um vis claramente tecnocrtico
mesmo depois
da Conferncia de Estocolmo, em 1972, at meados da dcada de 1980,
assimilando
gradualmente desde ento a contribuio das cincias antropossociais
s cincias naturais
ou exatas (VIEIRA e WEBER, 1997; RIBEIRO, 2000). Predomina na
literatura uma
viso naturalista (positivista, cartesiana) do meio ambiente
(fauna e flora, separao entre
cultura e natureza). Este tipo de percepo tornou-se parte do
senso comum, conforme
apontam pesquisas de opinio entre brasileiros (CRESPO, 2003, p.
66), que
paradoxalmente aliam uma conotao religiosa ao iderio
positivista. A transformao do
Estado-nao em contexto de globalizao econmico-financeira (com a
difuso do new
public manegeman anglo-saxo) e a cultura poltica brasileira
formam a base mais recente
desse processo de articulao entre a poltica e o gerenciamento.
Com efeito, a hiptese
central deste ensaio a da concorrncia entre dois processos
histricos como ncleo do
perodo entre a Rio-92 e o Estatuto da Cidade (2001):
a) O processo hegemnico destaca a dimenso econmico-financeira
da
globalizao (criticada por SOROS, 2003). Na articulao entre a
poltica
ambiental e a gesto ambiental h uma reduo (submisso) da
primeira
presumida neutralidade (axiolgica) das tcnicas gerenciais da
segunda; nota-se
uma perda concomitante da capacidade de planejamento entre os
atores
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envolvidos com a poltica ambiental brasileira. Ao manter-se
isolada
setorialmente, a poltica ambiental agenciada tecnocraticamente,
apesar dos
avanos das polticas regulatrias (R) e estruturadoras (E). Os
rgos oficiais de
meio ambiente no associam educao gesto ambiental,
restringindo-se a
polticas pontuais e remediais (ex-post), de curso prazo. Como
conseqncia,
constata-se uma crise da poltica ambiental (VIEIRA e BREDARIOL,
1998).
b) O processo contra-hegemnico desencadeado especialmente em
meados da
dcada de 1980 (VIOLA, 1987) com a emergncia do ambientalismo
complexo-
multissetorial (VIOLA e BOEIRA, 1990; LEIS, 1999; BOEIRA, 1998)
no Pas;
observa-se, neste caso, uma tendncia e um potencial de
articulao
(complementar) da gesto poltica ambiental e ao planejamento, com
aumento
da capacidade de realizao de projetos de ecodesenvolvimento,
Agendas 21
Locais, reas de Proteo Ambiental (APAs), Desenvolvimento
Local
Integrado e Sustentvel (DLIS; FRANCO, 2001) e Gesto de
Bacias
Hidrogrficas, notadamente nos mbitos local-municipal e
microrregional. O
processo contra-hegemnico, talvez mais do que o hegemnico, est
sujeito a
crises, caos, refluxos e reemergncias. Trata-se de um fenmeno
mundial
denominado glocalizao (FRANCO, 2001; 2003; BECK, 1999) e, no
Pas,
est subjacente chamada crise do modelo estatocntrico e emergncia
do
modelo sociocntrico de administrao pblica (KEINERT, 2000;
CUNNIL
GRAU, 1998), conforme ser visto mais adiante.
A partir desta introduo, o ensaio contm trs tpicos, alm das
consideraes
finais: a) Modelos de Administrao Pblica e Ambientalismo
Complexo-Multissetorial.
Faz-se aqui a apresentao de alguns conceitos como o de modelo
estatocntrico e de
modelo sociocntrico de administrao pblica, alm de retomar-se o
conceito de
ambientalismo complexo-multissetorial proposto em parceira com
Eduardo Viola em 1990,
com o objetivo de melhor esclarecer a hiptese de dois processos
histricos (hegemnico e
contra-hegemnico) apresentada nesta introduo; b) Governos FHC e
Reforma Gerencial.
Neste tpico faz-se uma avaliao crtica das polticas ambientais
dos governos de
Fernando H. Cardoso e uma breve abordagem da reforma gerencial
iniciada em 1995 pelo
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ministro Bresser Pereira; c) Entre o Rural e o Urbano: o Desafio
Auto-Eco-Re-
Organizacional. Neste ltimo tpico apresenta-se criticamente a
problemtica rural-urbana,
enfatizando-se a temtica do saneamento bsico e a convergncia dos
movimentos pelas
reformas urbana e agrria. Conclui-se que h uma reemergncia do
ambientalismo
complexo-multissetorial, a partir da qual plausvel esboar uma
estratgia auto-eco-re-
organizadora.
Modelos de Administrao Pblica e Ambientalismo
Complexo-Multissetorial
O entendimento do que seja administrao pblica tem sido bastante
alterado no
Brasil, desde a dcada de 1970. Segundo Keinert, ao revisar a
literatura especializada, o
paradigma do pblico como estatal e o paradigma do pblico visto
como interesse pblico
tm sido confrontados. O primeiro identifica-se com a cincia
normal (Kuhn), que
acompanhou a administrao pblica de 1930 a 1979. O segundo o que
emerge a partir da
dcada de 1990 depois da crise paradigmtica ocorrida nos anos 80.
As caractersticas
centrais do primeiro so: a) um foco central no aparelho de
Estado, sendo este considerado
o principal sujeito; b) um estilo gerencial burocrtico; c) uma
viso voltada
operacionalizao do aparato estatal. Ou seja, o Estado o ator
central para o
desenvolvimento mediante a consolidao da administrao burocrtica,
predominando
uma viso administrativa focada na melhoria do corpo funcional do
aparelho estatal por
meio da profissionalizao. Entretanto, na dcada de 70 surge e se
torna aguda nos anos 80
uma fragmentao de temticas, indicando a busca de um novo
consenso paradigmtico.
Nos anos 90, este comea a ser conformado na discusso sobre o
processo de
descentralizao, sobre a governabilidade, o foco no usurio, na
questo da universalizao
das polticas, na incorporao de novos atores e experincias
inovadoras, na questo da
participao, da cidadania e na discusso sobre o tamanho do
Estado. O modelo
sociocntrico vai aos poucos ampliando a noo do que seja pblico e
tende a ultrapassar o
modelo estatocntrico. A tica estatocntrica marcou o apogeu da
tecnoburocracia,
enquanto a tica emergente passa a incorporar a dimenso poltica e
o debate sobre o
desenvolvimento da capacidade gerencial, na qual o pblico
no-estatal valorizado e a
ampliao de seu espao resultante da ao de inmeros fatores. A
reforma do Estado
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ps-Constituio de 1988 inclui, alm do tema da privatizao, o tema
das parcerias com o
setor privado, o da democratizao com gesto participativa, o
papel dos movimentos
sociais e do terceiro setor. Para Keinert (cuja pesquisa foi
orientada por Bresser Pereira), a
reforma do Estado toma um carter pluralista: o evolucionismo
incremental adquire
contornos intersetoriais integradores; a poltica substitui a
neutralidade tcnica; a poltica de
descentralizao procura um locus adequado na efetividade do
federalismo. E novos
mecanismos de controle social e de capacidade gerencial
necessariamente devem ser
desenvolvidos (KEINERT, 2000).
Entretanto, o que a autora chama de modelo sociocntrico
confunde-se com um
processo de globalizao econmico-financeira, que limita a
governabilidade do Estado-
nao aplicao de tcnicas gerenciais e poltica macroeconmica, sendo
forado a
abandonar projetos nacionais autnomos ou a condicion-los ao xito
da poltica
macroeconmica especialmente nos pases com grande desigualdade
social, forte
concentrao de renda, baixos ndices de escolaridade (capital
humano) e de capacidade
associativa (capital social; FRANCO, 2001).
Nos primeiros dois anos da dcada de 1990, o Brasil abre-se
abruptamente
concorrncia econmica transnacional enquanto toma medidas de
impacto na rea
ambiental, visando fundamentalmente conquistar credibilidade
junto aos investidores
externos. O posicionamento retoricamente avanado do governo
brasileiro na Rio-92,
oposto ao de 1972 em Estocolmo, foi influenciado por quatro
fatores: a) crise simblica do
modelo desenvolvimentista (economicista e predatrio); b)
sensibilizao do governo em
relao aos problemas ambientais, em razo da soberania sobre 2/3
da maior floresta
pluvial do mundo, sobre a qual a comunidade internacional exigia
uma reavaliao; c)
existncia de uma matriz energtica brasileira baseada em recursos
naturais renovveis
(hidroeltrica e biomassa) num contexto em que a quase totalidade
dos pases dependente
de combustveis fsseis ou de energia nuclear; d) presso por um
compromisso globalista,
j que o Brasil era o anfitrio da Conferncia (adaptado de VIOLA,
2002).
O que Keinert intitula modelo sociocntrico tambm se confunde com
o processo de
ampliao do ambientalismo complexo-multissetorial, que emerge em
meados da dcada de
1980 e que se constitui como movimento histrico-civilizatrio
(antropossocial), mais do
que simplesmente um movimento social, por difundir-se entre
diversos setores da
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sociedade, transcendendo classes sociais, envolvendo uma
reorientao valorativa de longo
alcance de toda a espcie humana em relao s demais espcies e ao
espao habitvel. A
economia humana concebida, ento, como um captulo da ecologia.
Sinteticamente, pode-
se considerar duas grandes fases na trajetria do movimento
ambientalista brasileiro: a
inicial (da luta anticolonialista at meados da dcada de 1980),
de denncia e
conscientizao, e a fase atual, complexa e multissetorial, com
emergncia crtica (no
linear) de uma viso de mundo naturalista em processo de
politizao civilizatria (de
longo prazo), em que parte do movimento se institucionaliza,
como resposta ao desafio do
chamado desenvolvimento sustentvel (VIOLA, 1987; CIMA, 1991).
Esta fase tambm
pode ser considerada ecopoltica e voltada para projetos de
ecodesenvolvimento (VIEIRA e
BOEIRA, 2004; VIEIRA et al, 1998; BOEIRA, 2002b). A referncia ao
termo complexo-
multissetorial (VIOLA e BOEIRA, 1990) remete teoria e ao
paradigma da complexidade
(Morin, 1998; Morin e Moigne, 2000), a uma noo antropossocial do
desenvolvimento,
contrria ao reducionismo economicista e favorvel a uma economia
ecolgica (ALIER e
JUSMET, 2001). O conceito de ambientalismo
complexo-multissetorial engloba e supera
conceitos tais como conservacionismo, preservacionismo,
ecologismo realista,
ecofundamentalismo, ecocapitalismo ou ecossocialismo (VIOLA,
1987), por possibilitar a
percepo de interaes ideolgicas que estes bloqueiam. Os diversos
setores do
ambientalismo isto , parcelas minoritrias das ONGs, dos
empresrios, dos cientistas,
das agncias oficiais de meio ambiente e de outros setores ,
entretanto, no dispem,
seno de forma potencial e emergente, de uma conscincia
sistmico-complexa e da a
importncia heurstica do conceito proposto.
Os dois anos anteriores a 1992, de preparao da maior conferncia
mundial da
histria, e a prpria Rio-92, propiciam um extraordinrio fluxo de
sinergia entre os diversos
setores do ambientalismo. Merece destaque a criao do Frum
Brasileiro de ONGs e
Movimentos Sociais para Meio Ambiente e Desenvolvimento (FBOMS),
do qual
participam especialmente o setor ambientalista stricto sensu
(das ONGs autodenominadas
ambientalistas) e o socioambientalismo (dos sindicatos e
movimentos sociais que aderem
defesa da ecologia), alm dos ambientalismos religioso e de
educadores, jornalistas e
artistas. Essa parcela do ambientalismo multissetorial (FBOMS)
fortaleceu a interao e a
comunicao com a sociedade brasileira (produzindo extensos
relatrios e propostas de
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polticas pblicas) e co-organizou o Frum Internacional de ONGs e
o Frum Global (que
reuniu 12.000 representantes de 5.600 ONGs de 165 pases no Rio
de Janeiro,
simultaneamente Rio-92). Houve avano do pensamento
poltico-simblico e da
conscincia pblica (apesar dos obstculos difuso da Agenda 21),
mas tambm um
fracasso poltico-econmico-gerencial na Rio-92. Aps o fim do
evento, ocorreu um
processo de desorientao do ambientalismo, devido sbita perda de
referncia
simblica e organizativa (Rio-92), algo que se acentuou com a
mudana brusca da temtica
dominante da imprensa para o processo de impeachment do ento
presidente Collor
(VIOLA e LEIS, 1995; RAMOS, 1995).
O refluxo ps-Rio-92 revertido a partir de meados dos anos
90,
concomitantemente ao avano institucional da Internet e da
telefonia celular, que permitem
um conjunto de iniciativas relevantes especialmente num pas de
dimenses continentais
como o Brasil, ao baixar os custos da auto-organizao e das
interaes entre as
organizaes. Entretanto, os dilemas da grande imprensa em
assimilar e difundir as
questes e propostas da Agenda 21 tm sido notveis. O aumento da
concorrncia tem
estimulado uma busca frentica por notcias de impacto, quentes,
enquanto os temas
socioambientais so considerados pesados e frios (TRIGUEIRO,
2003; BOEIRA,
1999). O interesse econmico-financeiro tem filtrado as matrias
que tratam de meio
ambiente, enfatizando o marketing ecolgico em detrimento de uma
viso de conjunto do
iderio ambientalista. A disseminao da Internet, nesse quadro,
tem um potencial de
articulao transetorial entre os diversos setores do
ambientalismo (BOEIRA, 1998).
As oscilaes da poltica ambiental no Brasil dos anos 90 so
freqentemente
relacionadas composio de foras no interior do ambientalismo
multissetorial e relao
deste com o conjunto da sociedade brasileira. O tratamento dado
Amaznia um
indicador de que o modelo de desenvolvimento
economicista-predatrio no foi superado
durante a dcada. Alguns nmeros do desmatamento so ilustrativos:
em 1988 a superfcie
desmatada foi de aproximadamente 28 mil km2 (0,82%). No perodo
de 1989 a 1994 houve
queda substancial, para cerca de 14 mil km2. Neste perodo o Pas
crescentemente mais
visado pela mdia internacional, inclusive devido a denncias dos
prprios ambientalistas
brasileiros com destaque para Chico Mendes. Collor, com o
ministro Lutzenberguer,
consegue reduzir o desmatamento na Amaznia pela metade. Em 1995,
as queimadas
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destroem 27 mil km2, correspondendo, em grande medida, primeira
fase do Plano Real.
Em 1996 e 1997, h nova queda do desmatamento, com mdia anual de
14 mil km2. Entre
1998 e 2000, h novo aumento: em 1998, so 16.480 mil km2, em 1999
so 16.831 e em
2000 so 21.740 mil km2 (0,62%) (Viola, 2002). A Floresta
Amaznica sofreu um
incremento mdio anual de desmantamento da ordem de 57% aps a
Rio-92 (Camargo et
al, 2002, p. 26). Isto significa que h uma relao quase imediata
entre crescimento da
economia nacional (PNB; PIB) e o acrscimo de desmatamento na
Amaznia.
Governos FHC e Reforma Gerencial
Durante a primeira gesto de Fernando H. Cardoso (1995-1998)
observa-se uma
tentativa de reconstruo da governabilidade, com uma abertura
mais seletiva da
economia nacional globalizao. Entretanto, devido ao predomnio de
uma concepo
economicista da agenda pblica as questes ambientais ficam num
plano bastante
secundrio e os vetores de governabilidade ambiental provm dos
atores transnacionais e
nacionais mais transnacionalizados (VIOLA, 2000).
A chamada reforma gerencial da administrao pblica tem incio em
1995. Bresser
Pereira (1998, p. 18) sustenta que gerencial porque busca
inspirao na administrao das
empresas privadas, e porque visa dar ao administrador pblico
profissional condies
efetivas de gerenciar com eficincia as agncias pblicas.
democrtica porque, segundo
ele, pressupe a existncia de um regime democrtico, deixando
claro o carter especfico,
poltico, da administrao pblica, e principalmente porque nela os
mecanismos de
controle, de carter democrtico, so essenciais para que possa
haver delegao de
autoridade e controle a posteriori dos resultados.
social-democrtica porque afirma o
papel do Estado de garantir os direitos sociais e lhe fornece os
instrumentos gerenciais para
faz-lo, de forma no apenas mais democrtica, mas tambm mais
eficiente do que o faria o
setor privado. social-liberal porque acredita no mercado como um
timo alocador de
recursos; porque utiliza a estratgia da competio administrada em
quase-mercados,
para controlar as atividades sociais financiadas pelo Estado,
por intermdio de entidades
descentralizadas: as organizaes pblicas no-estatais; e porque,
embora reafirmando o
dever do Estado de proteger os mais fracos, no paternalista.
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Desde o Plano Real houve no Brasil intenso debate sobre
planejamento e reforma
administrativa, mas a quantidade de documentos produzidos no se
refletiu em mudanas
significativas na rea socioambiental. A maior parte das anlises
crticas produzidas na
academia administrao gerencial no tem enfatizado a ausncia das
questes
socioambientais como ncleo de uma mudana estratgica, optando, em
vez disso, pelo
enfoque sobre as incoerncias internas das propostas oficiais. A
cultura do
empreendedorismo do new public management, que serviu de base
para a reforma gerencial
brasileira, foi criticada pelos analistas como distante de um
esprito pblico-democrtico e
associada razo instrumental predominante nas escolas de
administrao de empresas
(PAES de PAULA, 2001; MENDES e TEIXEIRA, 2000; GUIMARES, 2000;
MENDES,
2001; FERNANDES, 2001; PECI e CAVALCANTI, 2001).1
No primeiro governo FHC, o Ministrio do Meio Ambiente (MMA)
entregue a
um economista sem qualquer experincia em poltica ambiental
Gustavo Krause (PFL).
No segundo governo FHC (1999-2002), o MMA ocupado pelo deputado
Sarney Filho (na
poca filiado ao PFL e atualmente ao PV). No box a seguir
apresenta-se um resumo das
metas de Sarney Filho ao tomar posse, em dezembro de 1998.
Box 1: Poltica Ambiental do Ministro Sarney Filho
1. Promover a descentralizao da gesto ambiental mediante reviso
e repartio das competncias das distintas esferas de governo,
levando em conta o princpio federativo e o fortalecimento
institucional do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente); 2.
Subordinar os instrumentos de gesto previstos na legislao
ambiental, como o monitoramento e o licenciamento, s metas de
qualidade, atravs de precisos indicadores de aferio do desempenho
da administrao ambiental, notadamente em relao ao controle da
poluio dos centros urbanos e do desmatamento e queimadas das nossas
matas e florestas; 3. Ampliar as reas protegidas, mediante criao de
novas unidades de conservao de uso direto e indireto, bem como
implementao de infra-estrutura destinada a eliminar subutilizao
cientfica, educativa e turstica dos parques e reservas existentes
no pas; 4. Expandir a base florestal produtiva, combinando as aes
de reflorestamento e recuperao de reas degradadas, visando
alimentar a oferta sustentvel de madeira, regenerar ecossistemas
afetados pela ao antrpica e contribuir para deter o avano global de
gs carbnico; 5. Consolidar o processo de reorientao dos
investimentos na Amaznia Legal, visando o controle das queimadas e
da expanso desordenada da fronteira agropecuria, bem como
estabelecer mecanismos de reverso no persistente processo de
desmatamento dos remanascentes florestais da Mata Atlntica; 6.
Otimizar o processo de criao e instalao dos comits de bacias
hidrogrficas dos rios federais, objetivando a implantao dos
principais mecanismos de gesto das guas, previstos na Lei Nacional
de Recursos Hdricos (...) (Discurso de posse de Sarney Filho. In:
BRITO e CMARA, 1999).
1 Rezende sintetiza os objetivos principais da reforma como
sendo os de obter mudana institucional e ajuste fiscal, e afirma
que os atores estratgicos da burocracia estatal tendem a aceitar o
segundo, porque lhes d mais poder (com mais controle sobre meios e
procedimentos no interior da burocracia), mas simultaneamente
tendem a rejeitar o primeiro, que lhes parece uma ameaa por
representar menos controle, novas formas organizacionais e
gerenciais, uma nova cultura burocrtica, com mais autonomia e mais
responsabilidade (REZENDE, 2002, p. 130).
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Observa-se que a Agenda 21 no sequer mencionada embora mais
tarde tenha
sido motivo de pesquisa e debates incentivados pelo MMA; no que
se refere aos centros
urbanos, o ministro limita-se a tratar de controle de poluio. O
conceito de
sustentabilidade no aparece na sua agenda, seno pela idia de
oferta sustentvel de
madeira. A relao com os demais ministrios (transversalidade) e a
relao com os
movimentos sociais e as ONGs ambientalistas tambm no fazem parte
do discurso de
posse. O processo de descentralizao administrativa avana, mas
lentamente.
A percepo crtica do setor ambientalista estatal evidenciada na
avaliao de dois
tcnicos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renovveis
(IBAMA), que apontam erros recorrentes da ao governamental: a)
insuficincia de
pessoal nos rgos ambientais; b) insuficincia de recursos
financeiros; c) influncia de
interesses polticos contrrios s decises tcnicas e normas legais
de proteo ambiental
(oligarquias regionais, interesses de latifundirios, de
comerciantes e de multinacionais).
Afirmam tambm que, na sua grande maioria, as Unidades de
Conservao no tm suas
reas desapropriadas e regularizadas. So criadas somente no
papel, sem que se assegure
verba de administrao, estrutura fsica, sede, centro de
visitantes, sanitrios, portarias,
veculos, equipamentos e pessoal para a administrao e fiscalizao
(BRITO e CMARA,
1999, p. 125-126). Como conseqncia, no ano 2000 os funcionrios
do IBAMA fazem
greve denunciando a situao calamitosa e de desmonte
administrativo e tcnico do
instituto, que ao longo da dcada de 1990 sofreu drstica reduo no
seu quadro funcional
devido ao no preenchimento dos cargos vagos por motivos de
aposentadoria, falecimentos,
transferncias, demisses, etc (BERNA, 2000).
De fato, as polticas pblicas de FHC foram muito limitadas
quanto
sustentabilidade ambiental, favorecendo grupos econmicos
regionais e locais sob a
moldura da tecnoburocracia, embora tenha havido,
concomitantemente, um processo de
descentralizao administrativa. Eduardo Viola (2000) observa que
o programa Brasil em
Ao (lanado em 1996) no teve compromisso com a sustentabilidade.
O mesmo diz Paul
Little (2003) do programa Avana Brasil (lanado em 1999) e do
Plano Plurianual 2000-
2003, com base em diversas pesquisas de campo. A rea ambiental
do governo FHC
caracterizou-se, conforme enfatiza Viola (2000), pela fragmentao
e incompetncia
gerencial, alm do distanciamento em relao aos centros de deciso
econmica, nos quais
11
-
se definem as polticas de desenvolvimento. Assim, tanto no
debate sobre as propostas de
reforma tributria quanto sobre a poltica energtica, a poltica
agrcola, a poltica dos
recursos hdricos e da Amaznia encontram no IBAMA um dficit de
liderana e de
capacidade gerencial. 2
Esta avaliao, alis, pode ser estendida a todos os governos
anteriores basicamente
porque, desde que foram constitudos, os rgos pblicos de meio
ambiente no Brasil tm
sido organizados dentro de uma estrutura de poder que os isola
burocraticamente dos
demais rgos (sade, transportes, agricultura, etc). Como
conseqncia genrica, as
polticas ambientais tm sido pautadas por idias de comando &
controle, visando
regulamentao de atividades de impacto ambiental negativo. Com a
incorporao de
pressupostos ecolgicos ao processo produtivo e administrativo de
setores do mercado e
com a concomitante crise do Estado diante da proliferao de
demandas socioambientais
(direitos difusos), a poltica do tipo comando & controle vem
sendo questionada. Surgem
no debate duas outras formas: a poltica de auto-regulamentao do
mercado e a dos
chamados instrumentos econmicos. Ambas tm seus defensores no
mercado, na sociedade
civil organizada e em setores do prprio governo, em grande
medida com base na crtica
ineficincia administrativa e ao alto custo da poltica de comando
& controle.
Como nenhuma das polticas mencionadas auto-suficiente, tem
predominado no
debate a busca de uma complementaridade entre as trs formas j
conhecidas. As polticas
de parceria entre Estado e Mercado ou entre Estado e Terceiro
Setor ou entre Mercado e
Terceiro Setor enfrentam barreiras de vrios tipos, entre as
quais se destacam: a) falta de
normatizao democrtica e eficaz da atuao dos trs nveis de governo
(federal, estadual
e municipal); b) falta de pessoal qualificado para gerar novos
arranjos interinstitucionais; c)
falta de recursos financeiros; d) falta de debate poltico sobre
as prioridades de
investimento dos recursos existentes; e) crise e
subdesenvolvimento do ambientalismo
complexo-multissetorial, com predomnio crescente do setor
empresarial sobre os demais.
O Brasil tem reconhecidamente um grande nmero de leis
ambientais, embora
limitado pela incompreenso da maioria dos legisladores sobre a
gravidade e a
2 Viola observa que durante a presidncia de FHC a posio relativa
do Brasil na Amrica Latina mudou bastante. At o incio da dcada de
1990, o Pas era, junto com a Costa Rica, o mais avanado em termos
de poltica ambiental. No fim da dcada, Mxico, Chile e Costa Rica so
mais responsveis que o Brasil em termos de poltica ambiental
nacional (VIOLA, 2000).
12
-
complexidade da problemtica socioambiental. Deve-se reconhecer,
a propsito, que
durante a dcada de 1990 houve um grande avano legislativo na
rea, com a aprovao de
vrias leis setoriais, como a Lei Nacional de Poltica de Recursos
Hdricos (1997), a de
Crimes Ambientais (1998) e a da Poltica Nacional de Educao
Ambiental (1999).
Em 1997, depois de cinco anos de tentativas frustradas de
superao da poltica
ambiental setorialista-burocrtica e de cumprimento tmido dos
compromissos assinados
durante a Rio-92, o governo brasileiro cria a Comisso de
Polticas de Desenvolvimento
Sustentvel e da Agenda 21 Nacional (CPDS), sob a coordenao do
MMA e com a
participao do Min. do Oramento e Gesto, do Min. das Relaes
Exteriores, do Min. de
Cincia e Tecnologia, da Cmara de Polticas Sociais e de rgos da
sociedade civil (como
o FBOMS), a Fundao Getlio Vargas, a Universidade de Braslia, a
Fundao Onda
Azul, o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento
Sustentvel e outras
entidades. Em 2000, a CPDS publica um total de sete volumes com
diagnsticos e
propostas (1.278 pginas), produto de consulta e debate
envolvendo 40.000 pessoas. Estes
documentos, entretanto, no tiveram qualquer efeito prtico sobre
a poltica
macroeconmica, permanecendo quase desconhecidos do grande
pblico.
Durante a dcada de 1990 as polticas ambientais nacionais tiveram
transformaes
positivas, apesar das incompreenses e deficincias tanto do
ambientalismo governamental
quanto dos demais setores ambientalistas (LITTLE, 2003). Os dois
setores que mais
cresceram em relao sua condio anterior Rio-92 foram o
empresarial e o dos
cientistas. O setor ambientalista do empresariado emerge de
forma muito contraditria e as
pesquisas sociais a respeito so, em geral, ainda incipientes.
Vrios institutos, fundaes e
associaes so constitudos por empresas, aparentemente
fortalecendo o chamado Terceiro
Setor, que se torna ainda mais diversificado e complexo.
Programas socioambientais de
empresas so terceirizados e/ou so incorporados a elas depois de
experincias
comunitrias desenvolvidas por ONGs, assim como balanos sociais e
marketing
socioambiental passam a ser considerados como parte integrante
das estratgias de
ampliao de mercado. Enfim, o panorama que se apresenta ao final
da dcada de grande
complexidade e certamente requer um forte investimento em
pesquisa socioambiental de
nvel cientfico, para que sejam superadas as pesquisas com
propsitos meramente
mercadolgicos (BOEIRA, 2002a e 2003; CAMARGO et al, 2002).
13
-
O segundo setor do ambientalismo que mais cresce nos anos 90 o
dos cientistas.
Trata-se sem dvida de um setor transnacionalizado. Deve-se
considerar, tambm, que,
para alm das questes de tica pblica e tica empresarial, o
desenvolvimento cientfico &
tecnolgico condiciona tanto a percepo quanto o alcance das
solues passveis de
implementao pelo setor empresarial. O maior obstculo do
ambientalismo entre os
cientistas associar sem fundir, distinguindo sem separar as
formas de conhecimento
cientfico (inter e transdisciplinaridade), a reflexo tica, a
elaborao de poltica cientfica
para o ecodesenvolvimento e a adequao da tecnocincia cidadania.
Aos problemas
epistemolgicos somam-se os organizacionais e os conflitos de
poder nas universidades
(VIEIRA, 1998; MORIN, 1998; MORIN e MOIGNE, 2000; BURSZTYN,
2001).
Entre o Rural e o Urbano: o Desafio
Auto-Eco-Re-Organizacional
Na dcada de 1990, a abertura da economia brasileira competio
transnacional
evidencia uma crise tecnolgica no Pas, com a imposio de um novo
padro de
tecnologias (de comunicao, especialmente), comandado em grande
parte por corporaes
transnacionais e sob o declnio do poder estruturante dos prprios
Estados nacionais de
pases industrializados. Embora potencialmente menos poluidora
(mais flexvel no trato
com os ecossistemas), a tecnologia tpica do novo padro tambm
desempregadora, pelo
menos no curto prazo e nas condies socioeconmicas brasileiras,
exigindo forte
investimento em educao e reciclagem profissional. No Brasil,
tem-se, portanto, uma
confluncia (crsica) de dois padres tecnolgicos um que via de
regra degrada o meio
ambiente e acentua a concentrao urbana (padro da 2a Revoluo
Industrial) e outro que
reestrutura o perfil da empregabilidade (padro da 3a Revoluo) e
complexifica a
urbanizao, incluindo a continuidade dos problemas, que se
entrelaam e se acumulam.
Este terceiro modelo ainda est longe de consolidar-se e o mais
complexo da histria.
Com ele o processo de urbanizao sofre impactos da dinmica
socioeconmica global e as
cidades maiores tendem para a metropolitanizao cosmopolita,
enquanto as cidades
mdias vivem dilemas cruciais quanto ao seu futuro. As regies
metropolitanas sofrem o
processo de desintegraes sociais ou descapitalizao social, nas
quais se destaca a
favelizao sistemtica, concomitante especulao imobiliria;
aspectos de rurbanizao
(o urbano mesclando-se ao rural, com ou sem preocupao ecolgica),
de conurbao
14
-
(convergncia de problemas socioambientais de dois ou mais
municpios, concentrao
demogrfica, congestionamento no trnsito) e de desterritorializao
(economia e cultura
virtuais). Enfim, essa descrio apenas uma aluso a uma realidade
muito diversificada,
com mltiplas abordagens terico-ideolgicas em jogo (VEIGA, 2002;
SOUZA; 2002;
MARICATO, 2001; ACSELRAD, 2001; VILLASANTE, 2002; FRANCO, 2003).
Entre
outros autores, Franco (2001) destaca o conceito de glocalizao.
Trata-se de um fenmeno
de mudana social que est ocorrendo em virtude da conjuno de
vrios fatores
interdependentes: novo ambiente poltico mundial, inovao
tecnolgica, emergente cultura
de uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da
sociedade-rede e novos
processos democrtico-participativos ensaiados sobretudo em mbito
local. Esse processo
contraditrio mescla aspectos da globalizao econmica com o que
pode ser chamado de
localizao (revoluo do local; FRANCO, 2003) ou
auto-eco-re-organizao (MORIN,
1998; BOEIRA, 1989): a dinmica da auto-organizao consciente
(poltica)
contextualizada pelos ecossistemas, com produtividade e
capacidade organizadora prprias.
Como os problemas de saneamento bsico so tpicos do processo de
urbanizao
acelerada que se destaca no Brasil nas ltimas dcadas do sculo
XX, destaca-se aqui esta
temtica especfica para evidenciar uma situao carente de uma
estratgia auto-eco-re-
organizadora. Em 1999, entre os 10% mais ricos, 80,1% de
domiclios tinham saneamento
bsico adequado, enquanto entre os 40% mais pobres a proporo era
de apenas 32,3%
(IBGE, 2001, p. 118). Os dados oficiais indicam que 47,8% dos
municpios no tm
servio de esgoto sanitrio, 68,5% dos resduos das grandes cidades
so jogados em lixes
e alagados (ALVES FILHO, 2002, p. 74). Quanto coleta seletiva, a
ONG Cempre
(Compromisso Empresarial para a Reciclagem) contabilizou em
visitas aos locais um total
de 192 programas municipais sendo implementados (COLLAVITTI,
2003, p. 46).
Do ponto de vista auto-eco-re-organizador a coleta convencional
(no seletiva)
inadequada: a quase totalidade dos municpios brasileiros joga
seus resduos a cu aberto
ou em aterros controlados (no considerados tecnicamente
sanitrios), provocando
situaes de impacto social e de degradao ambiental (contaminao
dos lenis freticos
pelo chorume, de solos agricultveis e poluio do ar). Os poucos
municpios que destinam
corretamente seus resduos para aterros sanitrios investem
recursos considerveis para
enterrar matria-prima, ou seja, o que considerado tecnicamente
correto inclusive
15
-
resultando em crescimento econmico medido pelo PIB , em grande
medida tambm
desperdcio em meio misria.
O Brasil desperdia pelo menos 9,5 milhes de toneladas de
material reciclvel e 14
milhes de toneladas de alimentos por ano (GRIMBERG, 2003). A
separao de resduos
reciclveis nas organizaes em geral, viabilizando um sistema de
coleta seletiva,
permitiria recolocar no processo produtivo, gerando emprego,
renda, economia de gastos
pblicos e reduo de impacto ambiental. Cerca de 30% das hortalias
so perdidas entre a
produo e a distribuio (industrializao, armazenagem, transporte)
e outras milhares de
toneladas perdem-se por falta de orientao ao consumidor sobre
como manusear com mais
cuidado os hortifrutigranjeiros nos supermercados. A matria
orgnica, numa sociedade
auto-eco-organizada, seria convertida em composto e adubo para
hortas, parques e jardins.
Cerca de 70% dos municpios brasileiros tm densidades demogrficas
inferiores a
40 hab/km2 enquanto o parmetro da OCDE (Organizao de Cooperao e
de
Desenvolvimento Econmico), para que uma localidade seja
considerada urbana, de 150
hab/km2. Por esse critrio, apenas 411 dos 5.507 municpios
brasileiros existentes em 2000
seriam considerados urbanos. H, portanto, muito espao para a
reciclar matria orgnica.
A falta de planejamento do desenvolvimento urbano evidente na
histria do Pas e
o exemplo maior a concentrao da populao nas reas litorneas e da
Mata Atlntica,
em ecossistemas frgeis e diversificados, em reas de risco e de
proteo ambiental. Essa
situao sugere uma estratgia auto-eco-re-organizadora que integre
reas urbanas e rurais,
de forma a estabelecer conexes sustentveis entre os recursos
naturais rurais e infra-
estrutura e servios urbanos, o que pressupe evitar
concomitantemente trs erros tpicos:
a) o de estender mimeticamente os padres de consumo e produo
urbano-industriais
sobre reas no urbanizadas; b) o de perpetuar tradies predatrias
(como as queimadas);
c) o de ignorar as peculiaridades, os limites e as
potencialidades diversas dos ecossistemas
rurais.
Ao contrrio da bandeira da reforma agrria, tradicionalmente
associada a
movimentos de contestao, a expresso reforma urbana foi usada, at
a dcada de 1980,
por governos autoritrios. Porm, com a mobilizao pr-Constituinte
(1988) formou-se o
chamado movimento nacional pela reforma urbana, com iderio
democrtico,
16
-
redistributivista e universalista, incentivador de processos de
planejamento e gesto das
cidades (SOUZA, 2002, p. 155, 158).
A aprovao do Estatuto da Cidade em 2001 interpretada aqui como
produto da
reemergncia do ambientalismo complexo-multissetorial, no qual se
integra o movimento
pela reforma urbana durante a dcada de 1990. A essncia dessa lei
federal sobre
desenvolvimento urbano pode ser assim resumida: trata de
estabelecer normas de ordem
pblica e interesse social que regulam o uso comum da propriedade
urbana em prol do bem
coletivo, da segurana e do bem-estar dos cidados, bem como do
equilbrio ambiental; de
garantir o direito a cidades sustentveis, entendido como direito
terra urbana, moradia,
ao saneamento ambiental, infra-estrutura urbana e aos servios
pblicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras geraes; de estabelecer a
gesto democrtica por meio da
participao da populao e de associaes representativas dos vrios
segmentos da
comunidade na formulao, execuo e acompanhamento de planos,
programas e projetos
de desenvolvimento urbano (Art. 1o e 2o da Lei n. 10.257, de
10.07.2001).
A chamada reforma agrria , contudo, to importante quanto a
reforma urbana e
mesmo indispensvel a esta. Isso porque, no Brasil, 1% por cento
dos proprietrios de terra,
que possuem, cada um, mais de 1.000 hectares, detm 45,1% da rea
agrcola, enquanto
89,3% dos pequenos proprietrios, que tm menos de 100 hectares,
controlam somente
20% da rea agrcola (CAMARGO et al, 2002, p. 27). Cada posto de
trabalho criado com
assentamentos rurais teve um custo mdio que caiu de R$ 7 mil em
1995 para R$ 3 mil em
1999. No foi inventada poltica pblica mais barata da qual possam
brotar tantas novas
oportunidades de gerao de renda, alm de tanta distribuio de
ativos (VEIGA, 2002, p.
232). , todavia, imprescindvel que o movimento pela reforma
agrria tambm se integre
ao movimento ambientalista complexo-multissetorial, para
evitar-se o ocorrido no Paran,
em que assentamentos para reforma agrria resultaram no
desmatamento da maior rea
contnua j identificada de Mata Atlntica desde 1985, com remoo de
mais de 16 mil
hectares (CAMARGO et al, 2002, p. 26). A reforma agrria e a
reforma urbana so
potenciais de auto-eco-re-organizao desde que as foras de
complementaridade
superem as de antagonismo e concorrncia.
Arranjos institucionais urbanos em harmonia com suas reas rurais
tm sido
progressivamente firmados por meio de Agendas 21 Locais, cujo
iderio imprescindvel
17
-
para a efetivao do Estatuto da Cidade. Em junho de 2003,
conforme o MMA
(www.mma.gov.br), havia 225 Agendas 21 Locais no Pas, assim
distribudas: nordeste, 89
(39%), sudeste, 71 (32%), sul, 29 (13%), centro-oeste (20%),
norte 16 (7%). A maior parte
dos municpios brasileiros ainda no dispe de rgo oficial de meio
ambiente, ficando
limitada s polticas de governos estaduais e federais (LITTLE,
2003, p. 72), o que
contraria o princpio de subsidiariedade, pelo qual as aes das
instncias mais prximas
(locais) devem ser complementadas pelas de instncias mais
distantes (estaduais e federais).
Consideraes Finais
Ao longo da histria brasileira, tem sido observada uma grande
distncia entre as
polticas ambientais regulatrias (R), por um lado, e as polticas
ambientais estruturadoras
(E) e indutoras (I), por outro, alm de um conjunto de obstculos
culturais e institucionais
para a articulao de polticas E-I. Destacam-se trs tipos de
obstculos: a) gesto de reas
intermunicipais, interestaduais e internacionais; b)
continuidade de gesto de polticas
ambientais E-I ao longo de diversas gestes governamentais; c)
articulao
interinstitucional vertical (entre as instncias municipais,
estaduais e nacionais) e
horizontal (entre estas instncias e os atores da sociedade civil
e do empresariado). Os
obstculos gerenciais fundamentais so, portanto, de trs tipos de
escala: espacial, temporal
e interinstitucional.
As polticas indutoras e estruturadoras, quanto menos
subordinadas busca de
resultados superficiais de curto prazo e quanto mais se voltam
para as articulaes inter e
transetoriais (como ocorre na construo de Agendas 21 Locais),
mais desestabilizam
interesses de grupos dominantes. H, portanto, um conflito entre
um processo auto-eco-
desorganizador (dominante) e um processo auto-eco-re-organizador
(subordinado), que por
sua vez pode ser legitimamente concebido como parte de um
processo contra-hegemnico
caracterizado pelo ambientalismo complexo-multissetorial, pela
estratgia sistmica e auto-
eco-re-organizadora.
Tal estratgia pressupe uma convergncia entre: a) polticas
ambientais R, E, I; b)
reformas agrria e urbana; c) aplicao do Estatuto da Cidade,
construo e implementao
democrtica de Agendas 21 Locais. Experincias de gesto
participativa de APAs, agentes
articuladores de DLIS, Comits de Gesto de Bacias Hidrogrficas,
Fruns Lixo &
18
-
Cidadania so, entre outros, elementos estratgicos da reemergncia
do ambientalismo
complexo-multissetorial desde a segunda metade da dcada de
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