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ATO DE GOVERNO
Odete Medauar Professora Associada da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo
Resumo: A preocupao com o estudo dos chamados atos de governo
mantm-se constante na doutrina do Direito Administrativo. As
contro-vrsias do tema j se iniciam com a denominao. Estudado ora
com restri-o ao controle jurisdicional, ora como exceo do princpio
da legalidade, ora como tipo e ato administrativo, vrios so os
critrios propostos para caracteriz-los, a exemplo da teoria do fim
poltico, da soberai ia, da dis-tino entre atividade de governo e
atividade administrativa e ao critrio da lista. Registra-se evoluo
nesses estudos no sentido de repdio con-cepo antiga que subtraia os
atos de governo de qualquer controle.
Resume: Les actes de gouvernement on toujours attir 1'attention
de Ia doctrine du Droit Administratif. Les doutes sur ce sujet
viennent dj props du titre du thme. O n le voit soit c o m m e
limite au controle par le juge, soit c o m m e excetion au prncipe
de Ia legalit, soit c o m m e un des types d'acte administratif. La
doctrine a propos plusieurs critres de caracterisation, par
exemple, Ia thorie de Ia fin politique, de Ia souverainet, de Ia
distinction entre 1'activit politique et 1'activit administrative,
le critre de liste, parmi d'autres. O n note une volution dans ces
tudes dans le sens du rejet 1'ancienne conception qu'enlevait ces
actes tout controle.
Unitermos: Ato de governo; Ato poltico; Conselho de Estado.
Sumrio: 1. Introduo - 2. Terminologia - 3. Quem Edita - 4. Modo
como focalizado - 5. Origem - 6. Critrios Caracterizadores - 7. O
"Ato de Estado" no Direito Ingls - 8. As "Questes Polticas no
Direito Norte-Americano" - 9. Negao do Ato de Governo - 10.
Existncia do Ato de Governo no co-mo Categoria Autnoma - 11. Notas
Predominantes no Ato de Governo - 12. Controle -13. Concluso.
1. INTRODUO
Nas palavras de VIRALLY "a existncia de atos de governo,
atestada pela doutrina tradicional, constitui surpreendente desafio
razo e ao di-reito, verdadeiro objeto de escndalo. Rebeldes a toda
definio, os atos de governo escapariam a toda norma e a todo
controle'^ 1). A preocupao com os chamados atos de governo mantm-se
constante na doutrina do direito
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administrativo, podendo-se mencionar nos seus primrdios os
estudos do fran-cs Dufour, em 1869 e em poca recente o artigo de C
H A L V I D A N , Professor da Universidade de Paris XII, de 1982 e
o livro do italiano GIUSEPPE Dl G A S P A R E , de 1984. N o
decorrer de mais de u m sculo, doutrinadores de v-rios pases e em
diferentes pocas dedicaram-se a enfrentar o desafio que o ato de
governo representa, buscando justificativa para sua existncia,
tentando ob-ter critrios de diferenciao ou mesmo negando-o como
tipo especfico. C H A L V I D A N ^ 2 ) observa que o problema do
ato de governo "nos coloca no prprio corao do direito pblico" e vai
examinar, no trabalho dedicado a esse tema, o modo de atuao da
doutrina, no direito administrativo, sobretudo em comparao com a
jurisprudncia francesa.
Sem pretender avaliar o papel da doutrina no Direito
Administrativo, o presente estudo expe teorias, cita autores,
reproduz textos, para discorrer so-bre os principais aspectos do
ato de governo, buscando sobretudo retratar a multiplicidade de
entendimentos que suscitou, a evoluo que sofreu e as ten-dncias
contemporneas a respeito.
2. TERMINOLOGIA
As controvrsias do tema j se iniciam na denominao. Encontram-se
com mais freqncia as expresses "ato de governo" e "ato poltico"; no
di-reito norte-americano utiliza-se a locuo "questes polticas" e no
direto in-gls, "ato de estado"
Deixando de lado a terminologia do direito anglo-americano,
mencione-se que para alguns autores so sinnimas as expresses ato de
governo e ato pol-tico, como C R E T E L L A JNIOR (Teoria do ato
de governo, Revista de Infor-mao Legislativa, n? 95, jul.set. 1987,
p. 73) e M A N O E L D E OLIVEIRA F R A N C O S O B R I N H O (Atos
Administrativos, 1980, p. 99). A doutrina france-sa prefere
denomin-los ato de governo. N o direito ptrio, S E A B R A F A G U
N -D E S (Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio,
5- Edio, 1979, p. 159-160) e A D A PELLEGRINI G R I N O V E R (As
Garantias Constitu-cionais do Direito de Ao, 1973, p. 144) adotam a
expresso "ato poltico"
Qual, ento, a terminologia mais adequada pronta identificao do
ato que se estuda?
A considerar o sentido de atuao do poder estatal, seria poltico
todo ato que a expresse, tal como deflui das afirmaes de C N D I D
O D I N A M A R C O , ao caracterizar a sentena como ato poltico
por expressar o exerccio da juris-dio como poder (A
instrumentalidade do processo, 1986, p. 124 e p. 375, nota 10).
Assim, polticos seriam tambm os atos parlamentares e todos os atos
administrativos porque expressam atuao de poderes estatais.
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Ento, como se trata de ato originado do Poder Executivo, para
especifi-c-lo necessrio se tornaria denomin-lo "ato poltico editado
pelo Executi-vo".
Melhor parece a locuo "ato de governo" para significar
determinada atuao do Poder Executivo, porque na atualidade o termo
"governo" vem as-sociado a este Poder. Como bem nota V E R A L L Y
^ , ningum jamais pensou em qualificar como atos de governo os atos
parlamentares.
Segundo DUEZ^ "os atos ditos de governo configuram categorias de
atos emanados do Executivo e seus agentes". Para MARIENHOFE*5)
"em-bora o conceito de governo abarque simultaneamente a atividade
dos trs rgos essenciais do Estado-Executivo, Legislativo e
Judicirio - quando se fala de 'atos de governo' se entende referir
somente a certa espcie de atos editados pelo Poder Executivo".
3. QUEM EDITA
Se originados do Poder Executivo, qual autoridade emite ato de
governo? Insuscetvel de dvida que o rgo supremo do Executivo -
Chefe de Estado, Chefe de Governo ou Chefe de Governo em conjunto
com Chefe de Estado -pode editar atos de governo. Quanto aos
Ministros, VIRGA (H Provvedimento Administrativo, 1972, p. 12)
admite que emitam atos de governo. Necessrio verificar
preliminarmente o sistema de governo e o modo de atuao dos
Mi-nistros. N o sistema presidencial e na concepo adotada neste
estudo, Ministros no editam atos de governo.
Nos Estados Federais, editam atos de governo os chefes do
Executivo es-tadual, o mesmo ocorrendo nos Municpios dotados de
autonomia poltica, co-mo no Brasil.
RANELLETTl(6) e MARIENHOFF
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4. MODO COMO FOCALIZADO
O ato de governo merece exame em muitas obras destinadas ao
estudo do exerccio do direito de ao em geral ou do controle
jurisdicional da Adminis-trao, como restrio ou limite. Assim
aparece em: A D A PELLEGRINI GRI-N O V E R , As Garantias
Constitucionais do Direito de Ao; S E A B R A FA-G U N D E S ,
Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio; K A Z U O W
A T A N A B E , Controle Jurisdicional; JEAN RIVERO, Droit
Administratif, 10 ed., 1983, p. 161; PIERRE D E V O L V E , L'Acte
Administratif, Paris, 1983, p. 33; H E C T O R M A I R A L ,
Control Judicial de Ia Administracin Publica, vol. 1, Buenos Aires,
1984. Outros autores o focalizam como inflexo ao princpio da
legalidade, como V E D E L , Droit Administratif, 1973, p. 299 e
STASSINO-P O U L O S , Trait des Actes Administratifs. C A R R E D
E M A L B E R G , no clssi-co Contribution Ia Thorie Generale de
1'Etat, tomo I ao estudar a funo ad-ministrativa, dedica seo ao
exame dos atos de governo. Tambm considera-do como tema nas obras
dedicadas ao ato administrativo, como por exemplo em: C R E T E L L
A JNIOR, Tratado de Direito Administrativo, vol. II - Ato
Administrativo; M A N O E L D E OLIVEIRA F R A N C O SOBRINHO, Atos
Ad-ministrativos, 1980; M A N U E L M A R I A DIEZ, El Acto
Administrativo, Buenos Aires, 1961, p. 509.
5. ORIGEM
A teoria do ato de governo surgiu na Frana em decorrncia de
decises do Conselho de Estado que rejeitavam apreciar determinados
atos do Executivo com a seguinte frmula: "atos cuja interpretao e
execuo no podiam lhe ser atribudas pela via contenciosa"
Parte da doutrina que se dedicou ao estudo do ato poltico buscou
o moti-vo da rejeio em autolimitao determinada pelo prprio Conselho
de Estado para preservar sua permanncia institucional em poca em
que recebia crticas de vrias correntes polticas. Assim, de acordo
com DUEZ^ 8 \ a matria dos atos de governo desconhecida sob a
Revoluo e no Primeiro Imprio; em virtude da interpretao vigente na
poca, da separao de poderes, os litgios em que a Administrao era
parte fugiam apreciao do Judicirio, cabendo prpria Administrao
decidi-los. N o tocante concepo de justia adminis-trativa era o
perodo da chamada "justia retida"
Com a Restaurao e a Monarquia de Julho, os Bourbons retornaram
ao trono (1815); o Conselho de Estado, criao napolenica, criticado
pelos libe-rais e pelos partidrios dos Bourbons, por ter
consolidado a situao dos adqui-rentes de bens nacionais. Da o
Conselho de Estado ter limitado espontanea-mente suas funes no
tocante ao mbito de alcance do recurso por excesso de poder, do
qual escapavam os atos de governo.
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A deciso mais clebre o "arret Laffite", de maio de 1822; o caso
foi o seguinte: Napoleo havia concedido Princesa Borghese uma renda
de 670.000 francos, que posteriormente foi transferida pela
Princesa ao banqueiro Laffite; no pagas as rendas vencidas, desde o
retorno dos Bourbons, uma Lei de janeiro de 1816 privou todos os
membros da famlia Bonaparte dos bens ha-vidos a ttulo gratuito e
entre estes a renda em questo; Laffite, que havia ad-quirido o
crdito, depois de reclamar ao governo, ingressou com ao perante o
Conselho de Estado, para que lhe fossem pagas as rendas, ao menos
at a data da lei de 1816; o Conselho de Estado deixou de apreciar o
fundo da questo, alegando o seu carter poltico^.
Outras sentenas do Conselho de Estado, nesse perodo, mencionam o
ca-rter poltico dos atos: "Duchesse de Saint Lieu" (1838), "Prince
Louis" (1844), "Argentau" (1834), de regra referentes a medidas
adotadas contra membros de antigas dinastias ou aplicao de convenes
diplomticas. N o Se-gundo Imprio, tais sentenas estendem-se a
outros campos: seqestro de livros e peridicos; fatos de guerra;
medidas de segurana pblica; medidas de polcia sanitria.
A explicao da origem do ato de governo na poltica de autolimitao
do Conselho de Estado recebe crtica do italiano Di Gaspare, na obra
Considera-zioni sugli Atti di Governo e sull'atto poltico, 1984, e
m que analisa o tema no direito francs e italiano, mediante
aprofundado exame da realidade histrico-institucional. Di Gaspare
no consegue ver nexo entre a noo jurisprudencial de ato de governo
e a chamada autolimitao do Conselho de Estado, com o advento da
Restaurao (op. cit., p. 64); para melhor expor seu entendimento
sobre a origem do ato de governo, chama a ateno e m alguns pontos
de seu li-vro (p. 54 e 64, nota 16) sobre a ambigidade da repartio
do poder de norma-o primria na Frana da Restaurao e a imprecisa
"tipificao" dos atos dos poderes pblicos; partindo do que chama
"opinio c o m u m " da atual dou-trina que reconhece o ato
normativo com base na existncia, no ato, de idonei-dade a produzir
proposies prescritivas munidas de potencialidades sanciona-doras,
afirma que o fundamento da no apreciao dos atos de governo, na M o
-narquia dos Bourbons encontra-se na persistncia de u m poder
normativo pri-mrio da Coroa, includo nos atributos da soberania
regia (p. 17 e 54); atos editados pelo soberano para a segurana do
Estado demonstravam continuidade com aqueles atos de exerccio da
prerrogativa soberana que nos precedentes re-gimes absolutos se
denominavam atos de alta polcia (p. 55); tem-se a impres-so de que
a incompetncia do juiz administrativo derivava sobretudo da
inido-neidade do ato a ser objeto de julgamento, portanto,
imunidade decorrente da prpria natureza dos atos de governo; na
ocasio, tais atos seriam de normao primria, equiparveis aos atos
legislativos (p. 70, 77 e 79).
A justificativa oferecida por DI GASPARE, com base na realidade
insti-tucional da poca, parece mais coerente do que a teoria da
autolimitao. VI-
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R A L L Y observa que a existncia dos atos de governo estaria
ligada ao sistema de "justia retida" vigente na poca das primeiras
sentenas negativas de apreciao: "como o Conselho de Estado poderia
pedir ao Chefe de Estado que assinasse deciso anulatria de ato que
este editara com fim de 'alta polcia?' 'Como lhe pedir para
reconhecer a responsabilidade do Estado no tocante a tal medida?'
"*10)
Como jurisdio independente o Conselho de Estado poderia apreciar
tais atos.
Com a queda do Segundo Imprio e surgimento da Terceira Repblica,
veio a Lei de 24 de maio de 1872 que atribuiu independncia ao
Conselho de Estado no exerccio da funo contenciosa, iniciando o
chamado sistema da "justia delegada".
Com a sentena no caso "Prince Napoleon", de 1875, registraram-se
mudanas na jurisprudncia do Conselho de Estado. Neste caso, o
Prncipe Na-poleon Jos Bonaparte ingressou com recurso por excesso
de poder perante o Conselho de Estado contra ato do Ministro da
Guerra que negara reintegr-lo no estado-maior do exrcito, do qual
fora eliminado depois da queda do Segun-do Imprio; o Ministro
invocou a impossibilidade de apreciao, com base no carter poltico
do ato; o Conselho de Estado no acolheu o recurso, mas rejei-tou a
alegao de inadmissibilidade invocada pelo Ministro; pela primeira
vez, em lugar de aceitar a qualificao de "poltico" que o prprio
Governo apre-sentava, observou o seguinte, nas concluses do
comissrio David: "para que o ato de governo apresente as
caractersticas que o situam fora e alm de todo controle
jurisdicional, no suficiente que venha decidido e m Con-selho de
Ministros ou que esteja motivado por interesse poltico; o Conse-lho
de Estado reivindica a tarefa de verificar, caso a caso, a real
subsistn-cia do carter poltico"^1 ^
Para muitos autores, o caso "Prince Napoleon" assinalaria o
abandono, pelo Conselho de Estado, da referncia ao fim poltico dos
atos de governo.
Logo depois, em 1887, a sentena no caso "Duc d'Aumale et Prince
Murat" afirmou o seguinte, nas concluses do comissrio Marguetire: "
O pensamento poltico que levou u m representante do poder pblico a
editar determinado ato, no lhe retira necessariamente o carter
administrativo, se esse ato, por sua natureza, u m ato
administrativo"^12).
De acordo com DI GASPARE, as duas sentenas assinalam a evoluo da
jurisprudncia; com a primeira se fixa a competncia do Conselho de
Estado para qualificar os atos como de governo; com a segunda se
afirma que a quali-ficao deve ser efetuada com base na natureza do
ato, cabendo ao juiz admi-nistrativo o reconhecimento objetivo
dessa natureza" 3 .^
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Mas, a no apreciao dos atos de governo permaneceu, embora
parecesse repudiado o fim poltico.
A doutrina, ento, continuou a buscar os critrios de caracterizao
do ato de governo.
6. CRITRIOS CARACTERIZADORES
A) TEORIA DO FIM POLTICO - Ainda na poca da chamada "jus-tia
retida", autores franceses procuraram explicar a casustica
jurisprudencial que rejeitava apreciar medidas do Executivo
mediante invocao do ato de go-verno. A teoria do fim poltico
predominou no perodo, atribuindo-se a D U -F O U R , na obra Trait
general de droit administratif appliqu, 1866, sua pri-meira
formulao. D e acordo com essa teoria o que especifica o ato de
governo o fim que norteia seu autor; a natureza poltica do ato que
impede o controle jurisdicional.
A concepo do fim poltico, segundo alguns autores, deixou de
prevale-cer a partir de 1875, com o "arrt Prince Napoleon" Recebeu
muitas crticas da doutrina, que, e m geral, aponta a possibilidade
de que o prprio autor do ato o considerasse poltico para fugir ao
controle jurisdicional, o que levaria am-plitude desmesurada dos
casos insuscetveis de apreciao.
Aps 1875, outras teorias tentaram demonstrar que o ato de
governo teria natureza especfica, justificadora de sua imunidade
ante o Judicirio.
B) SOBERANIA - Segundo MANUEL MARIA DIEZ alguns autores
justificaram os atos de governo com a noo de soberania; argumenta
DIEZ que a teoria no se pode manter, pois soberano o Estado em seu
conjunto; se o Executivo invoca razo de soberania para fugir ao
controle jurisdicional de seus atos de governo, o Poder Judicirio,
alegando tambm a soberania, poderia efetuar o controle^14)- D U E Z
observa que a idia de soberania significa resduo da concepo
autoritria do poder pblico, substituindo-se, nessa teoria, a
so-berania do Estado pela soberania do Governo, o que no passa de
yerbalis-nu/ -*
C) DISTINO ENTRE ATIVIDADE DE GOVERNO E ATIVI-D A D E A D M I N
I S T R A T I V A - Segundo C H A L V I D A N ^ 1 6 \ aps o
abandono da teoria do fim poltico, a doutrina vai tentar elaborar
teoria jurdica, ou seja, teoria que introduza o ato de governo na
ordem jurdica. Procuraro os autores no ordenamento jurdico geral e
no direito constitucional as bases para o fun-damento positivo e
para a natureza jurdica dos atos de governo. O ncleo dessa orientao
a distino entre funo ou atividade de go-verno e funo ou atividade
administrativa, do que resultariam, respectivamen-te, o ato de
governo e o ato administrativo.
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N o direito francs, o primeiro texto mencionado com freqncia o
de-creto de descentralizao aclministrativa de 25 de maro de 1852:
"Conside-rando que se pode governar de longe, mas que se administra
bem somente de perto; que em conseqncia importa tanto centralizar a
ao governa-mental quanto necessrio descentralizar a ao puramente
administrati-va..."
Outro texto invocado para justificar juridicamente o ato de
governo situa-se no art. 26 da lei de 24 de maio de 1872 (a mesma
lei que atribuiu indepen-dncia ao Conselho de Estado), segundo o
qual "os ministros tm o direito de reivindicar perante o Tribunal
de Conflitos os assuntos levados Sec-o do contencioso e que no
caberiam ao contencioso administrativo" ^ 17\ C A R R E D E M A L B
E R G , mencionando o exemplo de LEFERRIRE, afirma que a excluso do
controle jurisdicional dos atos de governo no criao ar-bitrria da
autoridade executiva ou da jurisprudncia, mas tem base em textos
legais e cita esse art. 26^18^. D U E Z nega que o art. 26 consagre
positivamente a existncia do ato de governo, pois os atos a serem
reivindicados perante o Tri-bunal de Conflitos so aqueles que
deveriam ir aos tribunais da ordem judici-ria, em razo da norma da
separao das autoridades administrativas e judici-rias^19). V
IRALLY, de seu lado observa que por paradoxo singular o art. 26
jamais foi objeto de meno na jurisprudncia, apesar do grande nmero
de sentenas vinculadas idia de ato de governo^ \
No direito italiano, o art. 24 do Texto nico sobre a justia
administrati-va, de 31 de maro de 1889, deu fundamento positivo ao
ato de governo: "Ca-be IV Seo do Conselho de Estado decidir
recursos contra atos de u m a autoridade administrativa
deliberante... quando os prprios recursos no sejam de competncia da
autoridade judiciria, nem se trate de matria que cabe jurisdio ou s
atribuies contenciosas de corpos ou colgios especiais. O recurso no
admitido quando se trata de atos emanados do governo no exerccio do
poder poltico"W.
Tais textos, embora pudessem, conforme a interpretao dada,
oferecer fundamento positivo ao ato de governo, no explicavam sua
natureza.
Para encontr-la, a doutrina elaborou a teoria da funo
governamental distinta da funo administrativa.
Muito difundido se apresenta o pensamento de LAFERRIERE,
expresso no seguinte trecho: "Administrar assegurar a aplicao diria
das leis, zelar pelas relaes dos cidados com a administrao central
ou local e das diversas administraes entre si. Governar prover s
necessidades de toda sociedade poltica, zelar pela observao de sua
Constituio, pelo funcionamento dos grandes poderes pblicos, pelas
relaes do Estado com as potncias estrangeiras, pela segurana
interna e externa"( '
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31
A teoria da funo governamental recebeu outras conotaes, sem que
se deixasse de ressaltar a diferena das funes. Assim, por exemplo,
C A R R D E M A L B E R G vincula a teoria distino entre Constituio
e leis ordinrias; a autoridade administrativa, no exerccio da funo
governamental, detm poder autnomo decorrente de concesso superior s
leis ordinrias, poder esse que no poderia, ento, ser considerado
como poder executivo das leis (funo ad-ministrativa); o ato
administrativo ordinrio fundamenta-se e m poder simples-mente legal
e o ato de governo tem base em poder constitucional; tanto u m
quanto outro se editam de acordo com a ordem jurdica estabelecida
no Esta-do
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32
D E B B A S C H , sob outro prisma, refere-se mescla entre o
poltico e o administrativo: "na realidade no h fixao de finalidade
pelo poder pol-tico e execuo administrativa, mas emaranhado de fins
e meios que favo-rece interferncias recprocas" ^ 28\
MAIRAL, em linha semelhante, pondera que "a noo de funo
gover-namental mais fcil de expressar do que de aplicar. Se
formalmente os atos de governo no se diferenciam dos atos
administrativos, a distino intrnseca proposta no permite traar
linha divisria clara e livre de apreciaes subjetivas; nos extremos
no cabem dvidas, mas a zona que as suscita muito ampla"^29^
Como ensina GIANNINI, "o governo sempre participou da formao de
diretrizes polticas, de u m modo ou de outro... Existiu e existe,
portan-to, no u m poder executivo, mas u m poder governamental, que
nas diver-sas constituies consta ora do Chefe de Estado (repblica
presidencialis-ta), ora do governo e m conjunto com o Chefe de
Estado (p. ex. nos Esta-dos parlamentares do sculo passado), ora do
governo somente (p. ex. na Constituio italiana atual), junto ao
complexo de rgos que formam a administrao do Estado. De tal modo, a
Administrao estatal pode ser simplesmente indicada como o aparato
de poder governamental, tendo to-dos os atributos e as funes
deste"^30^
E ainda GIANNINI, na obra Istituzioni di Diritto Amministrativo,
que, ao mencionar a crescente importncia das administraes pblicas
no funciona-mento do Estado, observa que isso levou alguns
cientistas polticos a dizer que fazer poltica significa administrar
(p. 111).
Ante a atuao e estrutura do Estado contemporneo parece difcil
afirmar a existncia de fronteira rgida entre poltica e administrao
ou atividade go-vernamental e atividade administrativa. A realidade
cotidiana da Administrao Pblica demonstra a interferncia recproca
dos altos escales do Executivo e do chamado "pessoal tcnico" ou
administrativo. Dvida alguma paira sobre a influncia exercida pela
burocracia sobre a tomada de decises da Chefia do Executivo.
Mescladas, na atualidade, a funo governamental e a funo
administra-tiva, impossvel extrair da diferena entre ambas a
natureza do ato de governo.
D) TEORIA DO QUARTO PODER - Da concepo de diferena rgi-da entre
funo governamental e funo administrativa decorre outro modo de
justificar o ato de governo: o de considerar o governo como quarto
poder do Estado. A idia encontrou sua formulao mais conhecida em O
T T O M A Y E R , no trecho seguinte: "Mas existe ainda outro
grupo, ainda mais importante, que nos apresenta o Estado ocupado e
m realizar seus fins, como na admi-
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33
nistrao, e que, no entanto, outra coisa. No se trata aqui de
legislao, nem de justia. u m a quarta espcie, situada ao lado das
trs atividades que costume indicar'^3l). N a Itlia, S A N D U L L I
filia-se a essa teoria(32). A idia do governo como quarto poder,
diferenciado da Administrao, torna mais rgida a separao terica
entre as duas funes, o que no corresponde reali-dade atual da vida
do Estado onde ambas se mesclam. E mesmo que se cogitas-se de
formular novo modo de dividir poderes ou funes estatais para
especifi-car outros, alm dos trs tradicionais, dificilmente se
afastariam governo de administrao.
E) EXECUO DA CONSTITUIO - Segundo CHALVIDAN, a doutrina encontra
outro alento para indicar a base jurdica da funo governa-mental
apoiando-se solidamente em disposies constitucionais^ \ V e m
pri-meiramente de D U C R O C Q a afirmao de que os atos de governo
so aquele que executam diretamente disposio formal da Constituio e
os Atos Admi-nistrativos resultam da execuo de lei ordinria(35) R A
N E L L E T T I critica a teoria alegando que muitas constituies
contm matria de natureza estrita-mente administrativa^ '
Acrescente-se ainda que vrios atos admimstrativos tambm executam
diretamente preceito constitucional.
F) INTERESSE GERAL DO ESTADO EM SUA UNIDADE - RA-NELLETTI aceita
a distino entre governo e administrao e afirma que o ca-rter
poltico do ato se configura pela considerao unitria do interesse
geral do Estado, em que encontra sua causa; o ato editado para
tutela daquelas exi-gncias supremas da vida do Estado^37). O
critrio de R A N E L L E T T I poderia receber as mesmas crticas
dirigidas teoria do fim poltico, sobretudo porque quem o edita
invocar certamente o interesse geral do Estado em sua unidade mesmo
para medidas sem esse alcance.
G) TEORIA DA ATIVIDADE LIVRE OU DISCRICIONRIA -Outra orientao
pretende caracterizar o ato de governo como decorrente de atividade
livre ou discricionria do Estado. Evidente que a discricionariedade
existe tambm em atos da Administrao no caracterizados como de
governo. Para R A N N E L L E T T I "no se pode identificar
atividade de governo com discricionariedade; a discricionariedade u
m a qualidade dos atos de go-verno inerente a sua natureza poltica;
mas no sua caracterstica e mui-to menos razo de ser de sua
natureza"^38).
H) NO-APRECIAO JURISDICIONAL - A dificuldade de en-contrar
critrio identificador da natureza dos anos de governo acarreta, em
grande parte da doutrina, o enunciado de sua noo na
insuscetibilidade de controle jurisdicional. Ato de governo o que
escapa apreciao pelo Judi-cirio. Vrias crticas se ergueram contra
esse modo de explicao, por exem-plo: MAIRAL^ 3 9) refere-se a
definio tautolgica, na mesma linha de VI-RALLY^ 4 0 ) assim se
responde questo pela questo; MARIENHOFF* 4 1 )
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afirma que o critrio baseia-se em eventuais conseqncias do ato,
no ofere-cendo a noo essencial ou substancial. Para DI GASPARE^42)
as explicaes da doutrina centradas na insuscetibilidade de apreciao
pelo juiz, basearam-se em representao parcial e limitada, do que
resultou teorizao inadequada e incompleta.
I) CRITRIO DA LISTA OU EMPRICO - No direito francs buscou-se
ainda contornar a dificuldde de conceituar-se o ato de governo com
soluo prtica: considera-se ato de governo o que figura em lista
decorrente de deci-ses do Conselho de Estado ou Tribunal de
Conflitos; atualmente, na Frana, a lista contm dois tipos de atos:
os que se referem s relaes entre o Executivo e o Legislativo e s
relaes do governo com Estado estrangeiro ou organismo
internacional. Para M A R I E N H O F F 3^ o critrio vazio de
contedo cientfi-co. Segundo RANNELLElll^44^ "dizer que atos de
governo so aqueles que a jurisprudncia considera como tais,
significa renunciar soluo do problema sem saber com qual critrio a
jurisprudncia dever definir u m ato de governo ou
administrativo".
7. O "ATO DE ESTADO" NO DIREITO INGLS
Ainda no tema dos critrios que permitam caracterizar o ato de
governo parece de interesse verificar o tratamento concedido pelo
direito anglo-ameri-cano.
No direito ingls encontra-se o chamado "ato de Estado", editado
sob prerrogativa da Coroa em relao a Estado estrangeiro ou contra
um indivduo no protegido pelas leis inglesas. E m nenhum dos casos
o ato suscetvel de apreciao pelo Judicirio. Entre os atos relativos
a Estados estrangeiros si-tuam-se os seguintes: declarao de guerra
e paz; reconhecimento de Estados ou governo estrangeiros; anexao ou
cesso de territrios; celebrao de trata-dos e representao
diplomtica*45).
Segundo WADE^46\ o ato de Estado s pode ser invocado se for
pratica-do em territrio estrangeiro; quer dizer, a Coroa no
desfruta de dispensa quanto a atos realizados em territrio ingls,
tanto se o demandante for de na-cionalidade britnica quanto se for
estrangeiro; mas os territrios estrangeiros encontram-se mais alm
dos limites do Governo e a a Coroa atua com plena li-berdade. Como
observa CLARKE^47) "o ato de Estado no pode ser defesa contra leso
causada pela Coroa a direito de cidado ingls".
8. AS "QUESTES POLTICAS" NO DIREITO NORTE-AMERICANO
Na obra Constitucional Law, de BARRON e DIENES (1986) as
"politi-cal questions" vm estudadas no captulo do controle
jurisdicional e seus li-mites. MAIRAL, em sua obra, Control
Judicial de Ia Administracion Publica,
-
35
tambm cuida das questes polticas no mbito dos atos insuscetveis
de apre-ciao jurisdicional. Desses dois autores sero extrados os
dados fundamentais do tema.
Em 1803, no caso Marbury & Madison, Marshall mencionava que
h um tipo de demandas constitucionais que os tribunais no podem
rever porque as matrias so polticas. Os parmetros das questes
polticas aparecem nas con-sideraes do juiz Brennan no caso "Baker
& Carr", e m 1962, e m que a Su-prema Corte aceitou apreciar a
constitucionalidade de lei estadual sobre diviso de distritos
eleitorais, para declar-la invlida por desfavorecer distritos cuja
populao aumentara no decorrer do sculo. O juiz Brennan partiu da
premissa de que a no-apreciao pela justia decorre da separao de
poderes e depois apontou os critrios que permitem caracterizar a
questo poltica.
a) Critrio clssico: tribunal deve verificar se a questo foi
confiada pela Constituio a outro ramo do poder pblico; a
identificao dos assuntos assim atribudos e a constitucionalidade do
exerccio da discrio cabem ao Judici-rio;
b) Critrio funcional: falta de padres "encontrveis" para
solucionar a questo; impossibilidade de decidir sem chegar primeiro
a uma determinao poltica.
c) Critrios de prudncia ou poltico: impossibilidade de deciso
indepen-dente sem faltar com o respeito devido aos demais ramos do
governo; necessi-dade incomum de adeso inquestionvel a deciso
poltica j tomada; potencia-lidade de situaes embaraosas ante
pronunciamentos variados de diversos r-gos do Estado sobre a mesma
questo.
Conforme BARRON e DIENES^48^ a doutrina das questes polticas
invocada sobretudo e m mbitos da competncia tradicional do
Presidente da Repblica ou do Congresso. O mbito das relaes
exteriores, o contexto da segurana nacional, questes sobre o
exerccio do poder de guerra e o processo de emenda constitucional
no so o prato tradicional dos tribunais, mas hoje abrangem o cerne
da definio da doutrina da questo poltica.
9. NEGAO DO ATO DE GOVERNO
No desafio do estudo sobre o ato de governo aparecem as teorias
negati-vistas, umas de carter absoluto, outras de carter
relativo.
A doutrina francesa aponta MICHOUD e BERTHLEMY como expoen-tes
dessa linha.
Tambm clssico na rejeio do ato de governo se apresenta DUEZ para
quem "o ato de governo configura receita tcnica de arte poltica
para cir-
-
36
cunscrever o papel do juiz em relao a certa atividade
governamental que requer maior liberdade do autor do ato; a teoria
do ato de governo no to necessria para salvaguardar a legtima
independncia do Executivo em matrias polticas vitais; o direito
oferece meios suficientes para que se atinja essa finalidade,
permitindo abolir u m smbolo que lembra a antiga razo de Estado,
que significa atentado muito vivo ao princpio da legali-dade para
ser mantido, mesmo com carter residual; suficiente proteo dos atos
de governo contra o controle jurisdicional pode ser assegurada pela
reserva do poder discricionrio; a teoria do ato de governo deve ser
eliminada como praticamente intil49)
Ainda na doutrina francesa, VIRALLY no excelente artigo
"L'Introu-vable Acte de Gouvernement" (1952), enumera uma a uma as
hipteses indi-cadas como atos de governo, para demonstrar que fogem
apreciao jurisdi-cional em virtude da aplicao normal de preceitos
processuais, sobretudo de competncia, da jurisdio administrativa
francesa, abolindo, assim, toda expli-cao poltica para o tratamento
especial ao ato de governo. E conclui: " O ato de governo, subtrado
a todo exame jurisdicional por motivos puramente polticos,
permanece inencontrvel. Desapareceu da jurisprudncia desde o clebre
caso Prince Napoleon Bonaparte (1875)"(5).
Na doutrina espanhola GARCIA DE ENTERRIA e TOMAS RAMON
FERNANDEZ^ 5 1 ) tambm consideram intil essa teoria.
10. EXISTNCIA DO ATO DE GOVERNO NO COMO CATEGORIA AUTNOMA
Outro modo de tratar o tema, relativiza a concepo negativista,
para aceitar a existncia do ato de governo como resultante da atuao
do Executi-vo, sem, no entanto, separ-lo da categoria "ato
administrativo". Essa orien-tao procura enquadrar o ato de governo
no mbito do ato administrativo, em-bora com algumas caractersticas
prprias. J O R L A N D O ^ 5 2 ) rejeitava a exis-tncia de
categoria distinta e sistematicamente determinvel de atos de
governo, mas afirma que no tocante a estes o juiz o Parlamento,
relacionando, a seguir, aqueles que a seu ver configuram atos de
governo. VEDEL^53^ afirma no existir ato de governo como categoria
jurdica autnoma, para depois ponderar que permanece u m fundo de
verdade nessa teoria. Entendimento semlhante adota MARIENHOFF^ 5 4
^: "ato de governo no constitui figu-ra jurdica especfica, mas
simplesmente noo conceituai de certa ativi-dade do rgo Executivo do
Estado. Juridicamente o ato de governo e o ato administrativo
permanecem assimiladas...; o regime jurdico de ambos obedece a
princpios similares, pois a diferena conceituai existente no
consegue separ-los juridicamente para que devam reger-se por
critrios jurdicos diversos" Concepo igual esposa o argentino
FIORINF h so espcie do gnero dos atos do Poder Executivo... O grave
erro tambm de-
-
37
corre de identificar a atividade de governo cem u m ato
determinado e con-siderar que esta espcie de atividade cria
necessariamente ato de gover-no...; a circunstncia que seja de
essncia jurdica e pertena ao gnero administrativo, no quer dizer
que no possa apresentar caracteres pr-prios como espcie de ato
administrativo manifestando atividades de go-verno"
N o direito ptrio C R E T E L L A JUNIOR ( 5 6 ) reconhece a
espcie "ato de governo", como desdobramento do gnero "ato
administrativo"; "ato de governo a manifestao de cunho
administrativo a que no estranho o trao jurdico-poltico".
A formulao por ltimo exposta parece mais adequada realidade do
Estado contemporneo. Considere-se, assim, o Executivo como poder ou
fun-o governamental e o ato administrativo, no com o sentido de
mera execuo de lei ou ato de efeitos internos ou de mbito restrito,
mas de ato que expressa, de vrios modos a funo governamental, que
poltica e administrativa. Por-tanto, o ato de governo apresenta-se
como uma das expresses da funo go-vernamental. Pode ser
especificado pelas caractersticas a seguir indicadas.
11. NOTAS PREDOMINANTES DO ATO DE GOVERNO
A primeira nota orgnica: o ato de governo provm da autoridade ou
r-go mais elevado do Poder Executivo. Nos Estados federais, as
chefias de Exe-cutivo dos Estados-Membros editam atos de governo;
nos municpios e regies autnomas, igualmente.
FIORINF57' aponta outra caracterstica: os atos de governo
decorrem de execuo direta da Constituio; mas, observa o mesmo
autor, h muitos outros atos do Poder Executivo resultantes
diretamente de permisso constitucional, sem a qualificao de atos de
governo. Ento, alm do especto de execuo di-reta de dispositivo
constitucional, FIORINI ressalta as conseqncias jurdicas externas e
os destinatrios: os outros poderes do Estado. Pode-se acrescentar,
ainda, como destinatrios ou interessados, outros Estados e
organismos interna-cionais.
Ante a essas caractersticas, os seguintes exemplos, no direito
ptrio, a se enquadram:
a) apresentao ou retirada de projeto de lei (art. 84, item n, da
Constituio Federal de 5 de outubro de 1988)
b) recusa em apresentar projeto de lei (seria omisso de ato de
governo)
c) sano, promulgao e publicao de leis (art. 84, item IV da
Constituio Federal de 1988)
-
38
d) convocao de sesso extraordinria do Congresso Nacional (art.
57 6- da Constituio de 1988)
e) veto a projetos de lei (art. 84, item V)
f) edio de medidas provisrias com fora de lei (art. 84, item
XXVI)
g) decretao e execuo de interveno federal (art. 84, item X)
h) decretao de estado de defesa e estado de stio (art. 84, item
IX)
i) celebrao de tratados, convenes e atos internacionais (art.
84, item VHI)
j) declarao de guerra no caso de agresso estrangeira (art. 84,
XIX)
1) decretao total ou parcial, de mobilizao nacional (art. 84,
XIX)
m) celebrao da paz (art. 84, XX).
12. CONTROLE
O estudo do ato de governo gira, em muitos autores, em torno da
possibi-lidade ou no de ser apreciado pelo Poder Judicirio. C o m o
j se estudou, bus-ca-se at caracteriz-lo pela qualidade de escapar
a esse controle, do que decor-reria total liberdade do Executivo
para edit-lo. Tambm se encontra na doutri-na a idia de que o ato de
governo representa mancha ou exceo ao princpio da legalidade.
O exame da realidade atual do ordenamento ptrio e estrangeiro
impede sustentar os chaves antigos sobre esse tema.
De incio, verifica-se que os atos de governo editam-se com
fundamento em dispositivos constitucionais. A o emiti-los o
Executivo exerce atribuio conferida pela Constituio, o que afasta a
invocao de mancha no princpio da legalidade, ao menos no aspecto
formal.
Quanto ao controle, nota-se que a matria dos atos de governo
apontados sujeita-se ao exame do Legislativo, que poder, assim,
recusar aprovao. E o caso do Estado de defesa, estado de stio e
interveno federal que dependem de aprovao do Congresso, dotado de
competncia para suspend-los (art. 49, IV da Constituio de 1988);
dependem de manifestao favorvel do Legisla-tivo e celebrao de
tratados, convenes e atos internacionais (art. 84, VHI), a declarao
de guerra e m caso de agresso estrangeira (art. 84, XIX) e a
cele-brao da paz (art. 84, X X ) . A o Legislativo caber apreciar o
mrito das medi-das adotadas.
-
39 N o tocante apreciao jurisdicional, mencione-se para o
direito ptrio, o
controle de constitucionalidade de qualquer ato do Executivo por
via direta, cuja iniciativa a Constituio atual abre, entre outros,
Mesa do Senado, M e -sa da Cmara dos Deputados, ao Conselho Federal
da Ordem dos Advogados do Brasil, a partido poltico com representao
no Congresso Nacional, a con-federao sindical ou entidade de classe
de mbito nacional (art. 103). Portan-to, alm de rgos do
Legislativo, outros entes polticos e associaes civis po-dem
suscitar o juzo de constitucionalidade dos atos de governo.
Ainda a respeito do controle jurisdicional, dificilmente se
mantm hoje em dia a afirmao da no-incidncia sobre os atos de
governo, alm dos limites da discricionaridade dos atos
administrativos, cada vez mais restrita. N o direito estrangeiro,
aponte-se a Frana, onde nas ltimas dcadas reduziu-se o nmero dos
atos do Executivo, considerados de governo, que o Conselho de
Estado re-cusa-se a apreciar; exemplo significativo encontra-se no
estado de stio, cujas medidas de aplicao sujeitam-se a reexame da
jurisdio administrativa, pro-vocado pelos habitantes da rea
atingida, em virtude da limitao de liberdades que acarreta^58); a
extradio tambm foi excluda do rol de atos de governo, assim como a
expulso de estrangeiros e m tempo de guerra; quanto aos tra-tados,
o Conselho de Estado firmou jurisprudncia de que a celebrao
in-suscetvel de apreciao jurisdicional; quanto interpretao, se
clara, o Con-selho aplica diretamente podendo invalidar ato
administrativo contrrio; se o texto nebuloso, o Conselho de Estado,
como preliminar, solicita a interpreta-o do Ministrio das Relaes
Exteriores e a esta se filia; para a execuo vi-gora o entendimento
seguinte: as medidas de execuo fogem apreciao do Conselho de
Estado, salvo quando a autoridade francesa tem certa
discriciona-riedade na escolha, caso e m que o ato considerado
"destacvel" e, portanto, sujeito ao controle, e quando os litgios
suscitados regem-se pelo direito inter-no, no concernente
responsabilidade, o Conselho de Estado tambm admite, desde 1966, a
responsabilidade do Estado por danos sofridos por particular e
decorrentes de conveno internacional, cuja regularidade no se
discutia, quando tais prejuzos apresentam gravidade e carter
especial^59).
N a Itlia, o art. 24 do Texto nico sobre a Justia
Administrativa, de 1889, que previa expressamente a excluso da via
jurisdicional para atos do governo no exerccio do poder poltico,
deixou de prevalecer ante o art. 113 da Constituio (1947), que
dispe o seguinte: "Contra os atos da Administra-o Pblica sempre
admitida a tutela jurisdicional dos direitos e interes-se legtimos
ante os rgos da justia ordinria e administrativa. Essa tu-tela no
pode ser excluda ou limitada a meios particulares de impugnao ou
para determinadas categorias de atos".
Segundo BARILE^60^, o Conselho de Estado italiano tende a
reduzir a categoria dos atos de governo.
Na Espanha registra-se igualmente evoluo na matria. Na Lei sobre
a
-
40
jurisdio contenciosa-admimstrativa de 1956, o art. 2-, b, traz o
preceito se-guinte: a) "No cabero jurisdio
contenciosa-admimstrativa...
b) As questes que se suscitem em relao aos atos polticos do
Governo, como so os que afetam defesa do territrio nacional, relaes
inter-nacionais, segurana interior do Estado e mando e organizao
militar, sem prejuzo das indenizaes que forem procedentes, cuja
determina-o sim compete jurisdio contencioso-administrativa". Para
G A R -CIA D E E N T E R R I A e T O M A S - R A M O N F E R N A N
D E Z ^ 6 1 ) revogado est esse texto ante trs dispositivos da
Constituio de 1978: art. 106 1 - atribui aos tribunais o controle
do poder regulamentar e da legalidade da atuao administrativa, sem
exceo alguma; art. 24. 1 - todas as pessoas tem di-reito a obter
tutela efetiva dos juizes e tribunais, sem que, em caso algum,
possa ocorrer carncia de defesa; art. 103. 1 - parte final -
submisso plena da Administrao Pblica lei e ao Direito.
No ordenamento ptrio, as Constituies de 1924 e 1937, nos arts.
68 e 97, respectivamente, previam de modo expresso, a excluso dos
atos de gover-no da apreciao do Judicirio: " vedado ao Poder
Judicirio conhecer questes exclusivamente polticas" A partir da
Constituio de 1946 (salvo os atos do perodo de exceo) vigora o
princpio da inafastabilidade do con-trole jurisdicional a qualquer
leso de direito; em decorrncia, se o ato de go-verno propiciar leso
a direito, poder ser impugnado perante o Judicirio. E o
entendimento de C R E T E L L A JNIOR^62), S E A B R A FAGUNDES ( 6
3 > e A D A PELLEGRINI GRINOVER ( 6 4 ) .
De se observar, ainda, que a Constituio de 1988 previu
instrumento pa-ra a "omisso de governo" Assim o item L X X I do
art. 5- possibilita conces-so de mandado de injuno "sempre que a
falta de norma regulamentado-ra torne invivel o exerccio dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes
nacionalidade, soberania e cidadania" Por exemplo, a apresentao de
projeto de lei, caracterizada como ato de governo, tem o seu
inverso na omisso em apresent-lo, sanvel, de acordo com texto
constitucional pelo mandado de injuno, nos casos previstos.
13. CONCLUSO
CHALVIDAN, (op. cit.) ao trmino do seu trabalho, ressalta que a
refle-xo da doutrina propiciou avano da legalidade, pela reduo
salutar do mbito do ato de governo.
Nos autores mais recentes nota-se repdio concepo antiga de ato
de governo. Como se viu, as Constituies contemporneas, ao
consagrarem o princpio da inafastabilidade da apreciao
jurisdicional a toda leso de direito
-
41
e ao reforarem os meios de controle de constitucionalidade,
esvaziam as no-es precedentes e impedem a aplicao lesiva a situaes
subjetivas de parti-culares.
Os tribunais atuaram no mesmo sentido, devendo na poca atual,
evitar que razes polticas afastem ou atenuem o controle sobre tais
atos.
Resta ao parlamentar exercer as atribuies que lhe competem e
utilizar os instrumentos previstos na Constituio para fiscalizar a
edio (e contedo) dos atos de governo, cuja existncia dificilmente
se pode negar.
A cada um dos integrantes da coletividade, cabe a vigilncia e o
repdio do arbtrio exercido sob a rubrica de ato de governo, na
antiga concepo, hoje no mais vigente. So Paulo, junho de 1988
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 1 - "L'introuvable acte de gouvernement",
Revue du Droit Public et de Ia Science Po-
litique, Paris, jan.mar. 1952, p. 318.
2 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit Juridique-Droit
Administratif, 20/1/1982, p. 5.
3 - Op. cit., p. 323.
4 - Les actes de gouvernement, Paris, 1935, p. 13.
5 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, Buenos Aires,
1966, p. 699.
6 - Le guarantigie delia giustizia nella Publica
Administrazione, 1934, p. 63 e 73.
7 - Op. cit., p. 702.
8 - Les actes de gouvernement, 1934, p. 30.
9 - Dados do "arret Laffite" extrados de BOQUERA OLIVER, Jos
Maria, Los Ori-genes de Ia Distincion entre Actividad Politica y
Administrativa, Revista de Admi-nistracin Pblica, n? 40, 1963, p.
75-76.
10 - L'introuvable acte de gouvernement, Revu Du Droit Public et
de Ia Science Politi-que, 1952, p. 356, nota 131.
11 - DI GASPARE, op. cit., p. 113.
12 - Texto da sentena extrado de CHALVIDAN Doctrine et acte de
gouverne-ment, L'Actualit Juridique - Droit Administratif, janeiro
dei 982, p. 6.
13 - Op. cit.,p. 114.
14 - El acto administrativo, p. 523.
15 - Les actes de gouvernement, 1935, p. 187.
-
42
16 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit Juridique -
Droit Administratif, 20/1/82, p. 7.
17 - Texto extrado de CHALVIDAN, op. cit., p.8
18 - Contribution Ia Thorie Gnrale de 1'tat, 1920, tomo I, p.
547.
19 - Les actes de gouvernement, p. 37.
20 - L'introuvable acte de gouvernement, Revue du Droit Public
ei de Science Politique, jan.mar. 1952, p. 318, nota 2.
21 - Texto do art. 24 extrado de ORLANDO, Primo Trattado, vol.
III, p.5 47.
22 - Trait de Ia juridiction administrative, Paris, 1896, t. II,
p. 32.
23 - Op. cit., p. 527 e 53 1.
24 - Primo Trattato, vol. II, 1901, p. 903.
25 - Op. cit., p. 904
26 - Op. cit.,p. 188
27 - Droit Administratif, Paris, 1983, p. 12-13.
28 - Science Administrative, 1976, p. 48.
29 - Control Judicial de Ia Administracin Publica, vol. I,
Buenos Aires, 1984, p. 483.
30 - Diritto Arnministrativo, Milo, 1970, vol. I, p. 66.
31 - Derecho Administrativo Alemn, Buenos Aires, 1949, tomo I,
p. 11.
32 - Manuale di Diritto Arnministrativo, 1978, p. 13.
33 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit
Juridique-Droit Administratif, 20/1/82, p.8.
34 - Extrado de CHALVIDAN, op. cit., p. 8.
35 - El acto administrativo, p. 520.
36 - Op. cit., p. 58.
37 - Op. cit., p. 69 e 73.
38 - Op. cit.,p. 59e61.
39 - Control Judicial de Ia Administracin Publica, p. 559.
40 - Op. cit., p.3 38.
41 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, 1966, p.
690.
-
43
42 - Considerazioni sugli atti di governo e sulTatto politico,
1984, p. 11 e 12.
43 - Op. cit., p. 690.
44 - Le guarantigie delia giustizia nella Pubblica
Amministrazione, 1934, p. 67, nota 3.
45 - CLARKE, H.W., Constitutional and Administrative Law,
Londres, 1971, p. 89 e 90.
46 - Derecho Administrativo (trad. espanhola) 1971, p. 441 e
442.
47 - Op. cit., p. 91.
48 - Constitutional Law, 1986, p. 44.
49 - Les Acteds de Gouvernement, p.l 91 e 193.
50 - Op. cit., p. 355. W ALINE critica a teoria de VIR AL Y
alegando que, tendo a apa-rncia de combater a teoria dos atos de
governo, tende, na realidade, a justificar uma jurisprudncia cujo
efeito consagrar denegao de justia; para W A L I N E a teoria do
ato de governo no tem base legal alguma; a jurisprudncia poderia
elimi-nar os atos de governo (Prcis de Droit Administratif, 1969,
p. 166 e 168).
51 - Curso de Derecho Administrativo, tomo I, 1982, p. 486.
52 - Primo Trattato, vol. III, 1901, p. 907, 910 e 911.
53 - Droit Administratif, 1973, p. 307 e 310.
54 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, Buenos Aires,
1966, p. 691 e 692.
55 - Derecho Administrativo, tomo I, Buenos Aires, 1966, p.
338.
56 - Teoria do Ato de Governo, Revista de Informao Legislativa,
n9 95, jul.set. 1987, p. 79.
57 - Derecho Administrativo, tomo I, 1966, p. 339.
58 - Caso Huckel, 1955 citado por M AIR AL, Control Judicial de
Ia Administracin Pu-blica, p. 492.
59 - Dados extrados de MAIRAL, Control Judicial de Ia
Administracin Publica, tomo I,p. 489-491.
60 - Sotto voc Atto de governo (e atto politico), Enciclopdia
dei Diritto, vo. IV.
61 - Curso de Derecho Administrativo, tomo I, 1982, p. 486.
62 - Teoria do Ato de Governo, Revista de Informao Legislativa,
n9 95, jul.set. 1987, p. 81.
63 - Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, 5-
ed. 1979, p. 164.
64 - As Garantias Constitucionais do Direito de Ao, 1973, p.
145-146.