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23 ATO DE GOVERNO Odete Medauar Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Resumo: A preocupação com o estudo dos chamados atos de governo mantém-se constante na doutrina do Direito Administrativo. As contro- vérsias do tema se iniciam com a denominação. Estudado ora com restri- ção ao controle jurisdicional, ora como exceção do princípio da legalidade, ora como tipo e ato administrativo, vários são os critérios propostos para caracterizá-los, a exemplo da teoria do fim político, da soberai ia, da dis- tinção entre atividade de governo e atividade administrativa e ao critério da lista. Registra-se evolução nesses estudos no sentido de repúdio à con- cepção antiga que subtraia os atos de governo de qualquer controle. Resume: Les actes de gouvernement on toujours attiré 1'attention de Ia doctrine du Droit Administratif. Les doutes sur ce sujet viennent déjá à propôs du titre du thème. On le voit soit comme limite au controle par le juge, soit comme excetion au príncipe de Ia legalité, soit comme un des types d'acte administratif. La doctrine a proposé plusieurs critères de caracterisation, par exemple, Ia théorie de Ia fin politique, de Ia souveraineté, de Ia distinction entre 1'activité politique et 1'activité administrative, le critère de liste, parmi d'autres. On note une évolution dans ces études dans le sens du rejet à 1'ancienne conception qu'enlevait ces actes à tout controle. Unitermos: Ato de governo; Ato político; Conselho de Estado. Sumário: 1. Introdução - 2. Terminologia - 3. Quem Edita - 4. Modo focalizado - 5. Origem - 6. Critérios Caracterizadores - 7. O "Ato de Estado" no Direito Inglês - 8. As "Questões Políticas no Direito Norte-Americano" - 9. Negação do Ato de Governo - 10. Existência do Ato de Governo não co- mo Categoria Autônoma - 11. Notas Predominantes no Ato de Governo - 12. Controle -13. Conclusão. 1. INTRODUÇÃO Nas palavras de VIRALLY "a existência de atos de governo, atestada pela doutrina tradicional, constitui surpreendente desafio à razão e ao di- reito, verdadeiro objeto de escândalo. Rebeldes a toda definição, os atos de governo escapariam a toda norma e a todo controle'^ 1 ). A preocupação com os chamados atos de governo mantém-se constante na doutrina do direito
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Aula 4 - MEDAUAR, Odete. Atos de Governo

Nov 10, 2015

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Atos de Governo
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    ATO DE GOVERNO

    Odete Medauar Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    Resumo: A preocupao com o estudo dos chamados atos de governo mantm-se constante na doutrina do Direito Administrativo. As contro-vrsias do tema j se iniciam com a denominao. Estudado ora com restri-o ao controle jurisdicional, ora como exceo do princpio da legalidade, ora como tipo e ato administrativo, vrios so os critrios propostos para caracteriz-los, a exemplo da teoria do fim poltico, da soberai ia, da dis-tino entre atividade de governo e atividade administrativa e ao critrio da lista. Registra-se evoluo nesses estudos no sentido de repdio con-cepo antiga que subtraia os atos de governo de qualquer controle.

    Resume: Les actes de gouvernement on toujours attir 1'attention de Ia doctrine du Droit Administratif. Les doutes sur ce sujet viennent dj props du titre du thme. O n le voit soit c o m m e limite au controle par le juge, soit c o m m e excetion au prncipe de Ia legalit, soit c o m m e un des types d'acte administratif. La doctrine a propos plusieurs critres de caracterisation, par exemple, Ia thorie de Ia fin politique, de Ia souverainet, de Ia distinction entre 1'activit politique et 1'activit administrative, le critre de liste, parmi d'autres. O n note une volution dans ces tudes dans le sens du rejet 1'ancienne conception qu'enlevait ces actes tout controle.

    Unitermos: Ato de governo; Ato poltico; Conselho de Estado.

    Sumrio: 1. Introduo - 2. Terminologia - 3. Quem Edita - 4. Modo como focalizado - 5. Origem - 6. Critrios Caracterizadores - 7. O "Ato de Estado" no Direito Ingls - 8. As "Questes Polticas no Direito Norte-Americano" - 9. Negao do Ato de Governo - 10. Existncia do Ato de Governo no co-mo Categoria Autnoma - 11. Notas Predominantes no Ato de Governo - 12. Controle -13. Concluso.

    1. INTRODUO

    Nas palavras de VIRALLY "a existncia de atos de governo, atestada pela doutrina tradicional, constitui surpreendente desafio razo e ao di-reito, verdadeiro objeto de escndalo. Rebeldes a toda definio, os atos de governo escapariam a toda norma e a todo controle'^ 1). A preocupao com os chamados atos de governo mantm-se constante na doutrina do direito

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    administrativo, podendo-se mencionar nos seus primrdios os estudos do fran-cs Dufour, em 1869 e em poca recente o artigo de C H A L V I D A N , Professor da Universidade de Paris XII, de 1982 e o livro do italiano GIUSEPPE Dl G A S P A R E , de 1984. N o decorrer de mais de u m sculo, doutrinadores de v-rios pases e em diferentes pocas dedicaram-se a enfrentar o desafio que o ato de governo representa, buscando justificativa para sua existncia, tentando ob-ter critrios de diferenciao ou mesmo negando-o como tipo especfico. C H A L V I D A N ^ 2 ) observa que o problema do ato de governo "nos coloca no prprio corao do direito pblico" e vai examinar, no trabalho dedicado a esse tema, o modo de atuao da doutrina, no direito administrativo, sobretudo em comparao com a jurisprudncia francesa.

    Sem pretender avaliar o papel da doutrina no Direito Administrativo, o presente estudo expe teorias, cita autores, reproduz textos, para discorrer so-bre os principais aspectos do ato de governo, buscando sobretudo retratar a multiplicidade de entendimentos que suscitou, a evoluo que sofreu e as ten-dncias contemporneas a respeito.

    2. TERMINOLOGIA

    As controvrsias do tema j se iniciam na denominao. Encontram-se com mais freqncia as expresses "ato de governo" e "ato poltico"; no di-reito norte-americano utiliza-se a locuo "questes polticas" e no direto in-gls, "ato de estado"

    Deixando de lado a terminologia do direito anglo-americano, mencione-se que para alguns autores so sinnimas as expresses ato de governo e ato pol-tico, como C R E T E L L A JNIOR (Teoria do ato de governo, Revista de Infor-mao Legislativa, n? 95, jul.set. 1987, p. 73) e M A N O E L D E OLIVEIRA F R A N C O S O B R I N H O (Atos Administrativos, 1980, p. 99). A doutrina france-sa prefere denomin-los ato de governo. N o direito ptrio, S E A B R A F A G U N -D E S (Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, 5- Edio, 1979, p. 159-160) e A D A PELLEGRINI G R I N O V E R (As Garantias Constitu-cionais do Direito de Ao, 1973, p. 144) adotam a expresso "ato poltico"

    Qual, ento, a terminologia mais adequada pronta identificao do ato que se estuda?

    A considerar o sentido de atuao do poder estatal, seria poltico todo ato que a expresse, tal como deflui das afirmaes de C N D I D O D I N A M A R C O , ao caracterizar a sentena como ato poltico por expressar o exerccio da juris-dio como poder (A instrumentalidade do processo, 1986, p. 124 e p. 375, nota 10). Assim, polticos seriam tambm os atos parlamentares e todos os atos administrativos porque expressam atuao de poderes estatais.

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    Ento, como se trata de ato originado do Poder Executivo, para especifi-c-lo necessrio se tornaria denomin-lo "ato poltico editado pelo Executi-vo".

    Melhor parece a locuo "ato de governo" para significar determinada atuao do Poder Executivo, porque na atualidade o termo "governo" vem as-sociado a este Poder. Como bem nota V E R A L L Y ^ , ningum jamais pensou em qualificar como atos de governo os atos parlamentares.

    Segundo DUEZ^ "os atos ditos de governo configuram categorias de atos emanados do Executivo e seus agentes". Para MARIENHOFE*5) "em-bora o conceito de governo abarque simultaneamente a atividade dos trs rgos essenciais do Estado-Executivo, Legislativo e Judicirio - quando se fala de 'atos de governo' se entende referir somente a certa espcie de atos editados pelo Poder Executivo".

    3. QUEM EDITA

    Se originados do Poder Executivo, qual autoridade emite ato de governo? Insuscetvel de dvida que o rgo supremo do Executivo - Chefe de Estado, Chefe de Governo ou Chefe de Governo em conjunto com Chefe de Estado -pode editar atos de governo. Quanto aos Ministros, VIRGA (H Provvedimento Administrativo, 1972, p. 12) admite que emitam atos de governo. Necessrio verificar preliminarmente o sistema de governo e o modo de atuao dos Mi-nistros. N o sistema presidencial e na concepo adotada neste estudo, Ministros no editam atos de governo.

    Nos Estados Federais, editam atos de governo os chefes do Executivo es-tadual, o mesmo ocorrendo nos Municpios dotados de autonomia poltica, co-mo no Brasil.

    RANELLETTl(6) e MARIENHOFF

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    4. MODO COMO FOCALIZADO

    O ato de governo merece exame em muitas obras destinadas ao estudo do exerccio do direito de ao em geral ou do controle jurisdicional da Adminis-trao, como restrio ou limite. Assim aparece em: A D A PELLEGRINI GRI-N O V E R , As Garantias Constitucionais do Direito de Ao; S E A B R A FA-G U N D E S , Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio; K A Z U O W A T A N A B E , Controle Jurisdicional; JEAN RIVERO, Droit Administratif, 10 ed., 1983, p. 161; PIERRE D E V O L V E , L'Acte Administratif, Paris, 1983, p. 33; H E C T O R M A I R A L , Control Judicial de Ia Administracin Publica, vol. 1, Buenos Aires, 1984. Outros autores o focalizam como inflexo ao princpio da legalidade, como V E D E L , Droit Administratif, 1973, p. 299 e STASSINO-P O U L O S , Trait des Actes Administratifs. C A R R E D E M A L B E R G , no clssi-co Contribution Ia Thorie Generale de 1'Etat, tomo I ao estudar a funo ad-ministrativa, dedica seo ao exame dos atos de governo. Tambm considera-do como tema nas obras dedicadas ao ato administrativo, como por exemplo em: C R E T E L L A JNIOR, Tratado de Direito Administrativo, vol. II - Ato Administrativo; M A N O E L D E OLIVEIRA F R A N C O SOBRINHO, Atos Ad-ministrativos, 1980; M A N U E L M A R I A DIEZ, El Acto Administrativo, Buenos Aires, 1961, p. 509.

    5. ORIGEM

    A teoria do ato de governo surgiu na Frana em decorrncia de decises do Conselho de Estado que rejeitavam apreciar determinados atos do Executivo com a seguinte frmula: "atos cuja interpretao e execuo no podiam lhe ser atribudas pela via contenciosa"

    Parte da doutrina que se dedicou ao estudo do ato poltico buscou o moti-vo da rejeio em autolimitao determinada pelo prprio Conselho de Estado para preservar sua permanncia institucional em poca em que recebia crticas de vrias correntes polticas. Assim, de acordo com DUEZ^ 8 \ a matria dos atos de governo desconhecida sob a Revoluo e no Primeiro Imprio; em virtude da interpretao vigente na poca, da separao de poderes, os litgios em que a Administrao era parte fugiam apreciao do Judicirio, cabendo prpria Administrao decidi-los. N o tocante concepo de justia adminis-trativa era o perodo da chamada "justia retida"

    Com a Restaurao e a Monarquia de Julho, os Bourbons retornaram ao trono (1815); o Conselho de Estado, criao napolenica, criticado pelos libe-rais e pelos partidrios dos Bourbons, por ter consolidado a situao dos adqui-rentes de bens nacionais. Da o Conselho de Estado ter limitado espontanea-mente suas funes no tocante ao mbito de alcance do recurso por excesso de poder, do qual escapavam os atos de governo.

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    A deciso mais clebre o "arret Laffite", de maio de 1822; o caso foi o seguinte: Napoleo havia concedido Princesa Borghese uma renda de 670.000 francos, que posteriormente foi transferida pela Princesa ao banqueiro Laffite; no pagas as rendas vencidas, desde o retorno dos Bourbons, uma Lei de janeiro de 1816 privou todos os membros da famlia Bonaparte dos bens ha-vidos a ttulo gratuito e entre estes a renda em questo; Laffite, que havia ad-quirido o crdito, depois de reclamar ao governo, ingressou com ao perante o Conselho de Estado, para que lhe fossem pagas as rendas, ao menos at a data da lei de 1816; o Conselho de Estado deixou de apreciar o fundo da questo, alegando o seu carter poltico^.

    Outras sentenas do Conselho de Estado, nesse perodo, mencionam o ca-rter poltico dos atos: "Duchesse de Saint Lieu" (1838), "Prince Louis" (1844), "Argentau" (1834), de regra referentes a medidas adotadas contra membros de antigas dinastias ou aplicao de convenes diplomticas. N o Se-gundo Imprio, tais sentenas estendem-se a outros campos: seqestro de livros e peridicos; fatos de guerra; medidas de segurana pblica; medidas de polcia sanitria.

    A explicao da origem do ato de governo na poltica de autolimitao do Conselho de Estado recebe crtica do italiano Di Gaspare, na obra Considera-zioni sugli Atti di Governo e sull'atto poltico, 1984, e m que analisa o tema no direito francs e italiano, mediante aprofundado exame da realidade histrico-institucional. Di Gaspare no consegue ver nexo entre a noo jurisprudencial de ato de governo e a chamada autolimitao do Conselho de Estado, com o advento da Restaurao (op. cit., p. 64); para melhor expor seu entendimento sobre a origem do ato de governo, chama a ateno e m alguns pontos de seu li-vro (p. 54 e 64, nota 16) sobre a ambigidade da repartio do poder de norma-o primria na Frana da Restaurao e a imprecisa "tipificao" dos atos dos poderes pblicos; partindo do que chama "opinio c o m u m " da atual dou-trina que reconhece o ato normativo com base na existncia, no ato, de idonei-dade a produzir proposies prescritivas munidas de potencialidades sanciona-doras, afirma que o fundamento da no apreciao dos atos de governo, na M o -narquia dos Bourbons encontra-se na persistncia de u m poder normativo pri-mrio da Coroa, includo nos atributos da soberania regia (p. 17 e 54); atos editados pelo soberano para a segurana do Estado demonstravam continuidade com aqueles atos de exerccio da prerrogativa soberana que nos precedentes re-gimes absolutos se denominavam atos de alta polcia (p. 55); tem-se a impres-so de que a incompetncia do juiz administrativo derivava sobretudo da inido-neidade do ato a ser objeto de julgamento, portanto, imunidade decorrente da prpria natureza dos atos de governo; na ocasio, tais atos seriam de normao primria, equiparveis aos atos legislativos (p. 70, 77 e 79).

    A justificativa oferecida por DI GASPARE, com base na realidade insti-tucional da poca, parece mais coerente do que a teoria da autolimitao. VI-

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    R A L L Y observa que a existncia dos atos de governo estaria ligada ao sistema de "justia retida" vigente na poca das primeiras sentenas negativas de apreciao: "como o Conselho de Estado poderia pedir ao Chefe de Estado que assinasse deciso anulatria de ato que este editara com fim de 'alta polcia?' 'Como lhe pedir para reconhecer a responsabilidade do Estado no tocante a tal medida?' "*10)

    Como jurisdio independente o Conselho de Estado poderia apreciar tais atos.

    Com a queda do Segundo Imprio e surgimento da Terceira Repblica, veio a Lei de 24 de maio de 1872 que atribuiu independncia ao Conselho de Estado no exerccio da funo contenciosa, iniciando o chamado sistema da "justia delegada".

    Com a sentena no caso "Prince Napoleon", de 1875, registraram-se mudanas na jurisprudncia do Conselho de Estado. Neste caso, o Prncipe Na-poleon Jos Bonaparte ingressou com recurso por excesso de poder perante o Conselho de Estado contra ato do Ministro da Guerra que negara reintegr-lo no estado-maior do exrcito, do qual fora eliminado depois da queda do Segun-do Imprio; o Ministro invocou a impossibilidade de apreciao, com base no carter poltico do ato; o Conselho de Estado no acolheu o recurso, mas rejei-tou a alegao de inadmissibilidade invocada pelo Ministro; pela primeira vez, em lugar de aceitar a qualificao de "poltico" que o prprio Governo apre-sentava, observou o seguinte, nas concluses do comissrio David: "para que o ato de governo apresente as caractersticas que o situam fora e alm de todo controle jurisdicional, no suficiente que venha decidido e m Con-selho de Ministros ou que esteja motivado por interesse poltico; o Conse-lho de Estado reivindica a tarefa de verificar, caso a caso, a real subsistn-cia do carter poltico"^1 ^

    Para muitos autores, o caso "Prince Napoleon" assinalaria o abandono, pelo Conselho de Estado, da referncia ao fim poltico dos atos de governo.

    Logo depois, em 1887, a sentena no caso "Duc d'Aumale et Prince Murat" afirmou o seguinte, nas concluses do comissrio Marguetire: " O pensamento poltico que levou u m representante do poder pblico a editar determinado ato, no lhe retira necessariamente o carter administrativo, se esse ato, por sua natureza, u m ato administrativo"^12).

    De acordo com DI GASPARE, as duas sentenas assinalam a evoluo da jurisprudncia; com a primeira se fixa a competncia do Conselho de Estado para qualificar os atos como de governo; com a segunda se afirma que a quali-ficao deve ser efetuada com base na natureza do ato, cabendo ao juiz admi-nistrativo o reconhecimento objetivo dessa natureza" 3 .^

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    Mas, a no apreciao dos atos de governo permaneceu, embora parecesse repudiado o fim poltico.

    A doutrina, ento, continuou a buscar os critrios de caracterizao do ato de governo.

    6. CRITRIOS CARACTERIZADORES

    A) TEORIA DO FIM POLTICO - Ainda na poca da chamada "jus-tia retida", autores franceses procuraram explicar a casustica jurisprudencial que rejeitava apreciar medidas do Executivo mediante invocao do ato de go-verno. A teoria do fim poltico predominou no perodo, atribuindo-se a D U -F O U R , na obra Trait general de droit administratif appliqu, 1866, sua pri-meira formulao. D e acordo com essa teoria o que especifica o ato de governo o fim que norteia seu autor; a natureza poltica do ato que impede o controle jurisdicional.

    A concepo do fim poltico, segundo alguns autores, deixou de prevale-cer a partir de 1875, com o "arrt Prince Napoleon" Recebeu muitas crticas da doutrina, que, e m geral, aponta a possibilidade de que o prprio autor do ato o considerasse poltico para fugir ao controle jurisdicional, o que levaria am-plitude desmesurada dos casos insuscetveis de apreciao.

    Aps 1875, outras teorias tentaram demonstrar que o ato de governo teria natureza especfica, justificadora de sua imunidade ante o Judicirio.

    B) SOBERANIA - Segundo MANUEL MARIA DIEZ alguns autores justificaram os atos de governo com a noo de soberania; argumenta DIEZ que a teoria no se pode manter, pois soberano o Estado em seu conjunto; se o Executivo invoca razo de soberania para fugir ao controle jurisdicional de seus atos de governo, o Poder Judicirio, alegando tambm a soberania, poderia efetuar o controle^14)- D U E Z observa que a idia de soberania significa resduo da concepo autoritria do poder pblico, substituindo-se, nessa teoria, a so-berania do Estado pela soberania do Governo, o que no passa de yerbalis-nu/ -*

    C) DISTINO ENTRE ATIVIDADE DE GOVERNO E ATIVI-D A D E A D M I N I S T R A T I V A - Segundo C H A L V I D A N ^ 1 6 \ aps o abandono da teoria do fim poltico, a doutrina vai tentar elaborar teoria jurdica, ou seja, teoria que introduza o ato de governo na ordem jurdica. Procuraro os autores no ordenamento jurdico geral e no direito constitucional as bases para o fun-damento positivo e para a natureza jurdica dos atos de governo. O ncleo dessa orientao a distino entre funo ou atividade de go-verno e funo ou atividade administrativa, do que resultariam, respectivamen-te, o ato de governo e o ato administrativo.

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    N o direito francs, o primeiro texto mencionado com freqncia o de-creto de descentralizao aclministrativa de 25 de maro de 1852: "Conside-rando que se pode governar de longe, mas que se administra bem somente de perto; que em conseqncia importa tanto centralizar a ao governa-mental quanto necessrio descentralizar a ao puramente administrati-va..."

    Outro texto invocado para justificar juridicamente o ato de governo situa-se no art. 26 da lei de 24 de maio de 1872 (a mesma lei que atribuiu indepen-dncia ao Conselho de Estado), segundo o qual "os ministros tm o direito de reivindicar perante o Tribunal de Conflitos os assuntos levados Sec-o do contencioso e que no caberiam ao contencioso administrativo" ^ 17\ C A R R E D E M A L B E R G , mencionando o exemplo de LEFERRIRE, afirma que a excluso do controle jurisdicional dos atos de governo no criao ar-bitrria da autoridade executiva ou da jurisprudncia, mas tem base em textos legais e cita esse art. 26^18^. D U E Z nega que o art. 26 consagre positivamente a existncia do ato de governo, pois os atos a serem reivindicados perante o Tri-bunal de Conflitos so aqueles que deveriam ir aos tribunais da ordem judici-ria, em razo da norma da separao das autoridades administrativas e judici-rias^19). V IRALLY, de seu lado observa que por paradoxo singular o art. 26 jamais foi objeto de meno na jurisprudncia, apesar do grande nmero de sentenas vinculadas idia de ato de governo^ \

    No direito italiano, o art. 24 do Texto nico sobre a justia administrati-va, de 31 de maro de 1889, deu fundamento positivo ao ato de governo: "Ca-be IV Seo do Conselho de Estado decidir recursos contra atos de u m a autoridade administrativa deliberante... quando os prprios recursos no sejam de competncia da autoridade judiciria, nem se trate de matria que cabe jurisdio ou s atribuies contenciosas de corpos ou colgios especiais. O recurso no admitido quando se trata de atos emanados do governo no exerccio do poder poltico"W.

    Tais textos, embora pudessem, conforme a interpretao dada, oferecer fundamento positivo ao ato de governo, no explicavam sua natureza.

    Para encontr-la, a doutrina elaborou a teoria da funo governamental distinta da funo administrativa.

    Muito difundido se apresenta o pensamento de LAFERRIERE, expresso no seguinte trecho: "Administrar assegurar a aplicao diria das leis, zelar pelas relaes dos cidados com a administrao central ou local e das diversas administraes entre si. Governar prover s necessidades de toda sociedade poltica, zelar pela observao de sua Constituio, pelo funcionamento dos grandes poderes pblicos, pelas relaes do Estado com as potncias estrangeiras, pela segurana interna e externa"( '

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    A teoria da funo governamental recebeu outras conotaes, sem que se deixasse de ressaltar a diferena das funes. Assim, por exemplo, C A R R D E M A L B E R G vincula a teoria distino entre Constituio e leis ordinrias; a autoridade administrativa, no exerccio da funo governamental, detm poder autnomo decorrente de concesso superior s leis ordinrias, poder esse que no poderia, ento, ser considerado como poder executivo das leis (funo ad-ministrativa); o ato administrativo ordinrio fundamenta-se e m poder simples-mente legal e o ato de governo tem base em poder constitucional; tanto u m quanto outro se editam de acordo com a ordem jurdica estabelecida no Esta-do

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    D E B B A S C H , sob outro prisma, refere-se mescla entre o poltico e o administrativo: "na realidade no h fixao de finalidade pelo poder pol-tico e execuo administrativa, mas emaranhado de fins e meios que favo-rece interferncias recprocas" ^ 28\

    MAIRAL, em linha semelhante, pondera que "a noo de funo gover-namental mais fcil de expressar do que de aplicar. Se formalmente os atos de governo no se diferenciam dos atos administrativos, a distino intrnseca proposta no permite traar linha divisria clara e livre de apreciaes subjetivas; nos extremos no cabem dvidas, mas a zona que as suscita muito ampla"^29^

    Como ensina GIANNINI, "o governo sempre participou da formao de diretrizes polticas, de u m modo ou de outro... Existiu e existe, portan-to, no u m poder executivo, mas u m poder governamental, que nas diver-sas constituies consta ora do Chefe de Estado (repblica presidencialis-ta), ora do governo e m conjunto com o Chefe de Estado (p. ex. nos Esta-dos parlamentares do sculo passado), ora do governo somente (p. ex. na Constituio italiana atual), junto ao complexo de rgos que formam a administrao do Estado. De tal modo, a Administrao estatal pode ser simplesmente indicada como o aparato de poder governamental, tendo to-dos os atributos e as funes deste"^30^

    E ainda GIANNINI, na obra Istituzioni di Diritto Amministrativo, que, ao mencionar a crescente importncia das administraes pblicas no funciona-mento do Estado, observa que isso levou alguns cientistas polticos a dizer que fazer poltica significa administrar (p. 111).

    Ante a atuao e estrutura do Estado contemporneo parece difcil afirmar a existncia de fronteira rgida entre poltica e administrao ou atividade go-vernamental e atividade administrativa. A realidade cotidiana da Administrao Pblica demonstra a interferncia recproca dos altos escales do Executivo e do chamado "pessoal tcnico" ou administrativo. Dvida alguma paira sobre a influncia exercida pela burocracia sobre a tomada de decises da Chefia do Executivo.

    Mescladas, na atualidade, a funo governamental e a funo administra-tiva, impossvel extrair da diferena entre ambas a natureza do ato de governo.

    D) TEORIA DO QUARTO PODER - Da concepo de diferena rgi-da entre funo governamental e funo administrativa decorre outro modo de justificar o ato de governo: o de considerar o governo como quarto poder do Estado. A idia encontrou sua formulao mais conhecida em O T T O M A Y E R , no trecho seguinte: "Mas existe ainda outro grupo, ainda mais importante, que nos apresenta o Estado ocupado e m realizar seus fins, como na admi-

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    nistrao, e que, no entanto, outra coisa. No se trata aqui de legislao, nem de justia. u m a quarta espcie, situada ao lado das trs atividades que costume indicar'^3l). N a Itlia, S A N D U L L I filia-se a essa teoria(32). A idia do governo como quarto poder, diferenciado da Administrao, torna mais rgida a separao terica entre as duas funes, o que no corresponde reali-dade atual da vida do Estado onde ambas se mesclam. E mesmo que se cogitas-se de formular novo modo de dividir poderes ou funes estatais para especifi-car outros, alm dos trs tradicionais, dificilmente se afastariam governo de administrao.

    E) EXECUO DA CONSTITUIO - Segundo CHALVIDAN, a doutrina encontra outro alento para indicar a base jurdica da funo governa-mental apoiando-se solidamente em disposies constitucionais^ \ V e m pri-meiramente de D U C R O C Q a afirmao de que os atos de governo so aquele que executam diretamente disposio formal da Constituio e os Atos Admi-nistrativos resultam da execuo de lei ordinria(35) R A N E L L E T T I critica a teoria alegando que muitas constituies contm matria de natureza estrita-mente administrativa^ ' Acrescente-se ainda que vrios atos admimstrativos tambm executam diretamente preceito constitucional.

    F) INTERESSE GERAL DO ESTADO EM SUA UNIDADE - RA-NELLETTI aceita a distino entre governo e administrao e afirma que o ca-rter poltico do ato se configura pela considerao unitria do interesse geral do Estado, em que encontra sua causa; o ato editado para tutela daquelas exi-gncias supremas da vida do Estado^37). O critrio de R A N E L L E T T I poderia receber as mesmas crticas dirigidas teoria do fim poltico, sobretudo porque quem o edita invocar certamente o interesse geral do Estado em sua unidade mesmo para medidas sem esse alcance.

    G) TEORIA DA ATIVIDADE LIVRE OU DISCRICIONRIA -Outra orientao pretende caracterizar o ato de governo como decorrente de atividade livre ou discricionria do Estado. Evidente que a discricionariedade existe tambm em atos da Administrao no caracterizados como de governo. Para R A N N E L L E T T I "no se pode identificar atividade de governo com discricionariedade; a discricionariedade u m a qualidade dos atos de go-verno inerente a sua natureza poltica; mas no sua caracterstica e mui-to menos razo de ser de sua natureza"^38).

    H) NO-APRECIAO JURISDICIONAL - A dificuldade de en-contrar critrio identificador da natureza dos anos de governo acarreta, em grande parte da doutrina, o enunciado de sua noo na insuscetibilidade de controle jurisdicional. Ato de governo o que escapa apreciao pelo Judi-cirio. Vrias crticas se ergueram contra esse modo de explicao, por exem-plo: MAIRAL^ 3 9) refere-se a definio tautolgica, na mesma linha de VI-RALLY^ 4 0 ) assim se responde questo pela questo; MARIENHOFF* 4 1 )

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    afirma que o critrio baseia-se em eventuais conseqncias do ato, no ofere-cendo a noo essencial ou substancial. Para DI GASPARE^42) as explicaes da doutrina centradas na insuscetibilidade de apreciao pelo juiz, basearam-se em representao parcial e limitada, do que resultou teorizao inadequada e incompleta.

    I) CRITRIO DA LISTA OU EMPRICO - No direito francs buscou-se ainda contornar a dificuldde de conceituar-se o ato de governo com soluo prtica: considera-se ato de governo o que figura em lista decorrente de deci-ses do Conselho de Estado ou Tribunal de Conflitos; atualmente, na Frana, a lista contm dois tipos de atos: os que se referem s relaes entre o Executivo e o Legislativo e s relaes do governo com Estado estrangeiro ou organismo internacional. Para M A R I E N H O F F 3^ o critrio vazio de contedo cientfi-co. Segundo RANNELLElll^44^ "dizer que atos de governo so aqueles que a jurisprudncia considera como tais, significa renunciar soluo do problema sem saber com qual critrio a jurisprudncia dever definir u m ato de governo ou administrativo".

    7. O "ATO DE ESTADO" NO DIREITO INGLS

    Ainda no tema dos critrios que permitam caracterizar o ato de governo parece de interesse verificar o tratamento concedido pelo direito anglo-ameri-cano.

    No direito ingls encontra-se o chamado "ato de Estado", editado sob prerrogativa da Coroa em relao a Estado estrangeiro ou contra um indivduo no protegido pelas leis inglesas. E m nenhum dos casos o ato suscetvel de apreciao pelo Judicirio. Entre os atos relativos a Estados estrangeiros si-tuam-se os seguintes: declarao de guerra e paz; reconhecimento de Estados ou governo estrangeiros; anexao ou cesso de territrios; celebrao de trata-dos e representao diplomtica*45).

    Segundo WADE^46\ o ato de Estado s pode ser invocado se for pratica-do em territrio estrangeiro; quer dizer, a Coroa no desfruta de dispensa quanto a atos realizados em territrio ingls, tanto se o demandante for de na-cionalidade britnica quanto se for estrangeiro; mas os territrios estrangeiros encontram-se mais alm dos limites do Governo e a a Coroa atua com plena li-berdade. Como observa CLARKE^47) "o ato de Estado no pode ser defesa contra leso causada pela Coroa a direito de cidado ingls".

    8. AS "QUESTES POLTICAS" NO DIREITO NORTE-AMERICANO

    Na obra Constitucional Law, de BARRON e DIENES (1986) as "politi-cal questions" vm estudadas no captulo do controle jurisdicional e seus li-mites. MAIRAL, em sua obra, Control Judicial de Ia Administracion Publica,

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    tambm cuida das questes polticas no mbito dos atos insuscetveis de apre-ciao jurisdicional. Desses dois autores sero extrados os dados fundamentais do tema.

    Em 1803, no caso Marbury & Madison, Marshall mencionava que h um tipo de demandas constitucionais que os tribunais no podem rever porque as matrias so polticas. Os parmetros das questes polticas aparecem nas con-sideraes do juiz Brennan no caso "Baker & Carr", e m 1962, e m que a Su-prema Corte aceitou apreciar a constitucionalidade de lei estadual sobre diviso de distritos eleitorais, para declar-la invlida por desfavorecer distritos cuja populao aumentara no decorrer do sculo. O juiz Brennan partiu da premissa de que a no-apreciao pela justia decorre da separao de poderes e depois apontou os critrios que permitem caracterizar a questo poltica.

    a) Critrio clssico: tribunal deve verificar se a questo foi confiada pela Constituio a outro ramo do poder pblico; a identificao dos assuntos assim atribudos e a constitucionalidade do exerccio da discrio cabem ao Judici-rio;

    b) Critrio funcional: falta de padres "encontrveis" para solucionar a questo; impossibilidade de decidir sem chegar primeiro a uma determinao poltica.

    c) Critrios de prudncia ou poltico: impossibilidade de deciso indepen-dente sem faltar com o respeito devido aos demais ramos do governo; necessi-dade incomum de adeso inquestionvel a deciso poltica j tomada; potencia-lidade de situaes embaraosas ante pronunciamentos variados de diversos r-gos do Estado sobre a mesma questo.

    Conforme BARRON e DIENES^48^ a doutrina das questes polticas invocada sobretudo e m mbitos da competncia tradicional do Presidente da Repblica ou do Congresso. O mbito das relaes exteriores, o contexto da segurana nacional, questes sobre o exerccio do poder de guerra e o processo de emenda constitucional no so o prato tradicional dos tribunais, mas hoje abrangem o cerne da definio da doutrina da questo poltica.

    9. NEGAO DO ATO DE GOVERNO

    No desafio do estudo sobre o ato de governo aparecem as teorias negati-vistas, umas de carter absoluto, outras de carter relativo.

    A doutrina francesa aponta MICHOUD e BERTHLEMY como expoen-tes dessa linha.

    Tambm clssico na rejeio do ato de governo se apresenta DUEZ para quem "o ato de governo configura receita tcnica de arte poltica para cir-

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    cunscrever o papel do juiz em relao a certa atividade governamental que requer maior liberdade do autor do ato; a teoria do ato de governo no to necessria para salvaguardar a legtima independncia do Executivo em matrias polticas vitais; o direito oferece meios suficientes para que se atinja essa finalidade, permitindo abolir u m smbolo que lembra a antiga razo de Estado, que significa atentado muito vivo ao princpio da legali-dade para ser mantido, mesmo com carter residual; suficiente proteo dos atos de governo contra o controle jurisdicional pode ser assegurada pela reserva do poder discricionrio; a teoria do ato de governo deve ser eliminada como praticamente intil49)

    Ainda na doutrina francesa, VIRALLY no excelente artigo "L'Introu-vable Acte de Gouvernement" (1952), enumera uma a uma as hipteses indi-cadas como atos de governo, para demonstrar que fogem apreciao jurisdi-cional em virtude da aplicao normal de preceitos processuais, sobretudo de competncia, da jurisdio administrativa francesa, abolindo, assim, toda expli-cao poltica para o tratamento especial ao ato de governo. E conclui: " O ato de governo, subtrado a todo exame jurisdicional por motivos puramente polticos, permanece inencontrvel. Desapareceu da jurisprudncia desde o clebre caso Prince Napoleon Bonaparte (1875)"(5).

    Na doutrina espanhola GARCIA DE ENTERRIA e TOMAS RAMON FERNANDEZ^ 5 1 ) tambm consideram intil essa teoria.

    10. EXISTNCIA DO ATO DE GOVERNO NO COMO CATEGORIA AUTNOMA

    Outro modo de tratar o tema, relativiza a concepo negativista, para aceitar a existncia do ato de governo como resultante da atuao do Executi-vo, sem, no entanto, separ-lo da categoria "ato administrativo". Essa orien-tao procura enquadrar o ato de governo no mbito do ato administrativo, em-bora com algumas caractersticas prprias. J O R L A N D O ^ 5 2 ) rejeitava a exis-tncia de categoria distinta e sistematicamente determinvel de atos de governo, mas afirma que no tocante a estes o juiz o Parlamento, relacionando, a seguir, aqueles que a seu ver configuram atos de governo. VEDEL^53^ afirma no existir ato de governo como categoria jurdica autnoma, para depois ponderar que permanece u m fundo de verdade nessa teoria. Entendimento semlhante adota MARIENHOFF^ 5 4 ^: "ato de governo no constitui figu-ra jurdica especfica, mas simplesmente noo conceituai de certa ativi-dade do rgo Executivo do Estado. Juridicamente o ato de governo e o ato administrativo permanecem assimiladas...; o regime jurdico de ambos obedece a princpios similares, pois a diferena conceituai existente no consegue separ-los juridicamente para que devam reger-se por critrios jurdicos diversos" Concepo igual esposa o argentino FIORINF h so espcie do gnero dos atos do Poder Executivo... O grave erro tambm de-

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    corre de identificar a atividade de governo cem u m ato determinado e con-siderar que esta espcie de atividade cria necessariamente ato de gover-no...; a circunstncia que seja de essncia jurdica e pertena ao gnero administrativo, no quer dizer que no possa apresentar caracteres pr-prios como espcie de ato administrativo manifestando atividades de go-verno"

    N o direito ptrio C R E T E L L A JUNIOR ( 5 6 ) reconhece a espcie "ato de governo", como desdobramento do gnero "ato administrativo"; "ato de governo a manifestao de cunho administrativo a que no estranho o trao jurdico-poltico".

    A formulao por ltimo exposta parece mais adequada realidade do Estado contemporneo. Considere-se, assim, o Executivo como poder ou fun-o governamental e o ato administrativo, no com o sentido de mera execuo de lei ou ato de efeitos internos ou de mbito restrito, mas de ato que expressa, de vrios modos a funo governamental, que poltica e administrativa. Por-tanto, o ato de governo apresenta-se como uma das expresses da funo go-vernamental. Pode ser especificado pelas caractersticas a seguir indicadas.

    11. NOTAS PREDOMINANTES DO ATO DE GOVERNO

    A primeira nota orgnica: o ato de governo provm da autoridade ou r-go mais elevado do Poder Executivo. Nos Estados federais, as chefias de Exe-cutivo dos Estados-Membros editam atos de governo; nos municpios e regies autnomas, igualmente.

    FIORINF57' aponta outra caracterstica: os atos de governo decorrem de execuo direta da Constituio; mas, observa o mesmo autor, h muitos outros atos do Poder Executivo resultantes diretamente de permisso constitucional, sem a qualificao de atos de governo. Ento, alm do especto de execuo di-reta de dispositivo constitucional, FIORINI ressalta as conseqncias jurdicas externas e os destinatrios: os outros poderes do Estado. Pode-se acrescentar, ainda, como destinatrios ou interessados, outros Estados e organismos interna-cionais.

    Ante a essas caractersticas, os seguintes exemplos, no direito ptrio, a se enquadram:

    a) apresentao ou retirada de projeto de lei (art. 84, item n, da Constituio Federal de 5 de outubro de 1988)

    b) recusa em apresentar projeto de lei (seria omisso de ato de governo)

    c) sano, promulgao e publicao de leis (art. 84, item IV da Constituio Federal de 1988)

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    d) convocao de sesso extraordinria do Congresso Nacional (art. 57 6- da Constituio de 1988)

    e) veto a projetos de lei (art. 84, item V)

    f) edio de medidas provisrias com fora de lei (art. 84, item XXVI)

    g) decretao e execuo de interveno federal (art. 84, item X)

    h) decretao de estado de defesa e estado de stio (art. 84, item IX)

    i) celebrao de tratados, convenes e atos internacionais (art. 84, item VHI)

    j) declarao de guerra no caso de agresso estrangeira (art. 84, XIX)

    1) decretao total ou parcial, de mobilizao nacional (art. 84, XIX)

    m) celebrao da paz (art. 84, XX).

    12. CONTROLE

    O estudo do ato de governo gira, em muitos autores, em torno da possibi-lidade ou no de ser apreciado pelo Poder Judicirio. C o m o j se estudou, bus-ca-se at caracteriz-lo pela qualidade de escapar a esse controle, do que decor-reria total liberdade do Executivo para edit-lo. Tambm se encontra na doutri-na a idia de que o ato de governo representa mancha ou exceo ao princpio da legalidade.

    O exame da realidade atual do ordenamento ptrio e estrangeiro impede sustentar os chaves antigos sobre esse tema.

    De incio, verifica-se que os atos de governo editam-se com fundamento em dispositivos constitucionais. A o emiti-los o Executivo exerce atribuio conferida pela Constituio, o que afasta a invocao de mancha no princpio da legalidade, ao menos no aspecto formal.

    Quanto ao controle, nota-se que a matria dos atos de governo apontados sujeita-se ao exame do Legislativo, que poder, assim, recusar aprovao. E o caso do Estado de defesa, estado de stio e interveno federal que dependem de aprovao do Congresso, dotado de competncia para suspend-los (art. 49, IV da Constituio de 1988); dependem de manifestao favorvel do Legisla-tivo e celebrao de tratados, convenes e atos internacionais (art. 84, VHI), a declarao de guerra e m caso de agresso estrangeira (art. 84, XIX) e a cele-brao da paz (art. 84, X X ) . A o Legislativo caber apreciar o mrito das medi-das adotadas.

  • 39 N o tocante apreciao jurisdicional, mencione-se para o direito ptrio, o

    controle de constitucionalidade de qualquer ato do Executivo por via direta, cuja iniciativa a Constituio atual abre, entre outros, Mesa do Senado, M e -sa da Cmara dos Deputados, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a partido poltico com representao no Congresso Nacional, a con-federao sindical ou entidade de classe de mbito nacional (art. 103). Portan-to, alm de rgos do Legislativo, outros entes polticos e associaes civis po-dem suscitar o juzo de constitucionalidade dos atos de governo.

    Ainda a respeito do controle jurisdicional, dificilmente se mantm hoje em dia a afirmao da no-incidncia sobre os atos de governo, alm dos limites da discricionaridade dos atos administrativos, cada vez mais restrita. N o direito estrangeiro, aponte-se a Frana, onde nas ltimas dcadas reduziu-se o nmero dos atos do Executivo, considerados de governo, que o Conselho de Estado re-cusa-se a apreciar; exemplo significativo encontra-se no estado de stio, cujas medidas de aplicao sujeitam-se a reexame da jurisdio administrativa, pro-vocado pelos habitantes da rea atingida, em virtude da limitao de liberdades que acarreta^58); a extradio tambm foi excluda do rol de atos de governo, assim como a expulso de estrangeiros e m tempo de guerra; quanto aos tra-tados, o Conselho de Estado firmou jurisprudncia de que a celebrao in-suscetvel de apreciao jurisdicional; quanto interpretao, se clara, o Con-selho aplica diretamente podendo invalidar ato administrativo contrrio; se o texto nebuloso, o Conselho de Estado, como preliminar, solicita a interpreta-o do Ministrio das Relaes Exteriores e a esta se filia; para a execuo vi-gora o entendimento seguinte: as medidas de execuo fogem apreciao do Conselho de Estado, salvo quando a autoridade francesa tem certa discriciona-riedade na escolha, caso e m que o ato considerado "destacvel" e, portanto, sujeito ao controle, e quando os litgios suscitados regem-se pelo direito inter-no, no concernente responsabilidade, o Conselho de Estado tambm admite, desde 1966, a responsabilidade do Estado por danos sofridos por particular e decorrentes de conveno internacional, cuja regularidade no se discutia, quando tais prejuzos apresentam gravidade e carter especial^59).

    N a Itlia, o art. 24 do Texto nico sobre a Justia Administrativa, de 1889, que previa expressamente a excluso da via jurisdicional para atos do governo no exerccio do poder poltico, deixou de prevalecer ante o art. 113 da Constituio (1947), que dispe o seguinte: "Contra os atos da Administra-o Pblica sempre admitida a tutela jurisdicional dos direitos e interes-se legtimos ante os rgos da justia ordinria e administrativa. Essa tu-tela no pode ser excluda ou limitada a meios particulares de impugnao ou para determinadas categorias de atos".

    Segundo BARILE^60^, o Conselho de Estado italiano tende a reduzir a categoria dos atos de governo.

    Na Espanha registra-se igualmente evoluo na matria. Na Lei sobre a

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    jurisdio contenciosa-admimstrativa de 1956, o art. 2-, b, traz o preceito se-guinte: a) "No cabero jurisdio contenciosa-admimstrativa...

    b) As questes que se suscitem em relao aos atos polticos do Governo, como so os que afetam defesa do territrio nacional, relaes inter-nacionais, segurana interior do Estado e mando e organizao militar, sem prejuzo das indenizaes que forem procedentes, cuja determina-o sim compete jurisdio contencioso-administrativa". Para G A R -CIA D E E N T E R R I A e T O M A S - R A M O N F E R N A N D E Z ^ 6 1 ) revogado est esse texto ante trs dispositivos da Constituio de 1978: art. 106 1 - atribui aos tribunais o controle do poder regulamentar e da legalidade da atuao administrativa, sem exceo alguma; art. 24. 1 - todas as pessoas tem di-reito a obter tutela efetiva dos juizes e tribunais, sem que, em caso algum, possa ocorrer carncia de defesa; art. 103. 1 - parte final - submisso plena da Administrao Pblica lei e ao Direito.

    No ordenamento ptrio, as Constituies de 1924 e 1937, nos arts. 68 e 97, respectivamente, previam de modo expresso, a excluso dos atos de gover-no da apreciao do Judicirio: " vedado ao Poder Judicirio conhecer questes exclusivamente polticas" A partir da Constituio de 1946 (salvo os atos do perodo de exceo) vigora o princpio da inafastabilidade do con-trole jurisdicional a qualquer leso de direito; em decorrncia, se o ato de go-verno propiciar leso a direito, poder ser impugnado perante o Judicirio. E o entendimento de C R E T E L L A JNIOR^62), S E A B R A FAGUNDES ( 6 3 > e A D A PELLEGRINI GRINOVER ( 6 4 ) .

    De se observar, ainda, que a Constituio de 1988 previu instrumento pa-ra a "omisso de governo" Assim o item L X X I do art. 5- possibilita conces-so de mandado de injuno "sempre que a falta de norma regulamentado-ra torne invivel o exerccio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade, soberania e cidadania" Por exemplo, a apresentao de projeto de lei, caracterizada como ato de governo, tem o seu inverso na omisso em apresent-lo, sanvel, de acordo com texto constitucional pelo mandado de injuno, nos casos previstos.

    13. CONCLUSO

    CHALVIDAN, (op. cit.) ao trmino do seu trabalho, ressalta que a refle-xo da doutrina propiciou avano da legalidade, pela reduo salutar do mbito do ato de governo.

    Nos autores mais recentes nota-se repdio concepo antiga de ato de governo. Como se viu, as Constituies contemporneas, ao consagrarem o princpio da inafastabilidade da apreciao jurisdicional a toda leso de direito

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    e ao reforarem os meios de controle de constitucionalidade, esvaziam as no-es precedentes e impedem a aplicao lesiva a situaes subjetivas de parti-culares.

    Os tribunais atuaram no mesmo sentido, devendo na poca atual, evitar que razes polticas afastem ou atenuem o controle sobre tais atos.

    Resta ao parlamentar exercer as atribuies que lhe competem e utilizar os instrumentos previstos na Constituio para fiscalizar a edio (e contedo) dos atos de governo, cuja existncia dificilmente se pode negar.

    A cada um dos integrantes da coletividade, cabe a vigilncia e o repdio do arbtrio exercido sob a rubrica de ato de governo, na antiga concepo, hoje no mais vigente. So Paulo, junho de 1988 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 1 - "L'introuvable acte de gouvernement", Revue du Droit Public et de Ia Science Po-

    litique, Paris, jan.mar. 1952, p. 318.

    2 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit Juridique-Droit Administratif, 20/1/1982, p. 5.

    3 - Op. cit., p. 323.

    4 - Les actes de gouvernement, Paris, 1935, p. 13.

    5 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, Buenos Aires, 1966, p. 699.

    6 - Le guarantigie delia giustizia nella Publica Administrazione, 1934, p. 63 e 73.

    7 - Op. cit., p. 702.

    8 - Les actes de gouvernement, 1934, p. 30.

    9 - Dados do "arret Laffite" extrados de BOQUERA OLIVER, Jos Maria, Los Ori-genes de Ia Distincion entre Actividad Politica y Administrativa, Revista de Admi-nistracin Pblica, n? 40, 1963, p. 75-76.

    10 - L'introuvable acte de gouvernement, Revu Du Droit Public et de Ia Science Politi-que, 1952, p. 356, nota 131.

    11 - DI GASPARE, op. cit., p. 113.

    12 - Texto da sentena extrado de CHALVIDAN Doctrine et acte de gouverne-ment, L'Actualit Juridique - Droit Administratif, janeiro dei 982, p. 6.

    13 - Op. cit.,p. 114.

    14 - El acto administrativo, p. 523.

    15 - Les actes de gouvernement, 1935, p. 187.

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    16 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit Juridique - Droit Administratif, 20/1/82, p. 7.

    17 - Texto extrado de CHALVIDAN, op. cit., p.8

    18 - Contribution Ia Thorie Gnrale de 1'tat, 1920, tomo I, p. 547.

    19 - Les actes de gouvernement, p. 37.

    20 - L'introuvable acte de gouvernement, Revue du Droit Public ei de Science Politique, jan.mar. 1952, p. 318, nota 2.

    21 - Texto do art. 24 extrado de ORLANDO, Primo Trattado, vol. III, p.5 47.

    22 - Trait de Ia juridiction administrative, Paris, 1896, t. II, p. 32.

    23 - Op. cit., p. 527 e 53 1.

    24 - Primo Trattato, vol. II, 1901, p. 903.

    25 - Op. cit., p. 904

    26 - Op. cit.,p. 188

    27 - Droit Administratif, Paris, 1983, p. 12-13.

    28 - Science Administrative, 1976, p. 48.

    29 - Control Judicial de Ia Administracin Publica, vol. I, Buenos Aires, 1984, p. 483.

    30 - Diritto Arnministrativo, Milo, 1970, vol. I, p. 66.

    31 - Derecho Administrativo Alemn, Buenos Aires, 1949, tomo I, p. 11.

    32 - Manuale di Diritto Arnministrativo, 1978, p. 13.

    33 - Doctrine et acte de gouvernement, L'Actualit Juridique-Droit Administratif, 20/1/82, p.8.

    34 - Extrado de CHALVIDAN, op. cit., p. 8.

    35 - El acto administrativo, p. 520.

    36 - Op. cit., p. 58.

    37 - Op. cit., p. 69 e 73.

    38 - Op. cit.,p. 59e61.

    39 - Control Judicial de Ia Administracin Publica, p. 559.

    40 - Op. cit., p.3 38.

    41 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, 1966, p. 690.

  • 43

    42 - Considerazioni sugli atti di governo e sulTatto politico, 1984, p. 11 e 12.

    43 - Op. cit., p. 690.

    44 - Le guarantigie delia giustizia nella Pubblica Amministrazione, 1934, p. 67, nota 3.

    45 - CLARKE, H.W., Constitutional and Administrative Law, Londres, 1971, p. 89 e 90.

    46 - Derecho Administrativo (trad. espanhola) 1971, p. 441 e 442.

    47 - Op. cit., p. 91.

    48 - Constitutional Law, 1986, p. 44.

    49 - Les Acteds de Gouvernement, p.l 91 e 193.

    50 - Op. cit., p. 355. W ALINE critica a teoria de VIR AL Y alegando que, tendo a apa-rncia de combater a teoria dos atos de governo, tende, na realidade, a justificar uma jurisprudncia cujo efeito consagrar denegao de justia; para W A L I N E a teoria do ato de governo no tem base legal alguma; a jurisprudncia poderia elimi-nar os atos de governo (Prcis de Droit Administratif, 1969, p. 166 e 168).

    51 - Curso de Derecho Administrativo, tomo I, 1982, p. 486.

    52 - Primo Trattato, vol. III, 1901, p. 907, 910 e 911.

    53 - Droit Administratif, 1973, p. 307 e 310.

    54 - Tratado de Derecho Administrativo, tomo II, Buenos Aires, 1966, p. 691 e 692.

    55 - Derecho Administrativo, tomo I, Buenos Aires, 1966, p. 338.

    56 - Teoria do Ato de Governo, Revista de Informao Legislativa, n9 95, jul.set. 1987, p. 79.

    57 - Derecho Administrativo, tomo I, 1966, p. 339.

    58 - Caso Huckel, 1955 citado por M AIR AL, Control Judicial de Ia Administracin Pu-blica, p. 492.

    59 - Dados extrados de MAIRAL, Control Judicial de Ia Administracin Publica, tomo I,p. 489-491.

    60 - Sotto voc Atto de governo (e atto politico), Enciclopdia dei Diritto, vo. IV.

    61 - Curso de Derecho Administrativo, tomo I, 1982, p. 486.

    62 - Teoria do Ato de Governo, Revista de Informao Legislativa, n9 95, jul.set. 1987, p. 81.

    63 - Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judicirio, 5- ed. 1979, p. 164.

    64 - As Garantias Constitucionais do Direito de Ao, 1973, p. 145-146.