Apostila de Filosofia – Escola Juliano Neto Terceiro Ano do Ensino Médio - 2011 Wilson Fernandes “… é impossível negar que a Filosofia coxeia. Habita a história e a vida, mas quereria instalar-se no seu centro, naquele ponto em que são advento, sentido nascente. Sente-se mal no já feito. Sendo expressão, só se realiza renunciando a coincidir com aquilo que exprime e afastando-se dele para lhe captar o sentido. É a utopia de uma posse a distância”. Merleau-Ponty (1998) Períodos da História da Filosofia A História da Filosofia, como toda divisão cronológica, é uma escolha de quem estabelece os pontos de ruptura para justificar as separações entre um período e outro. É claro que esta “escolha arbitrária” está sustentada em algum critério que permite aproximações entre temas, características e proposições dos autores. Neste caso, as periodizações da História da Filosofia devem ser buscadas nos critérios de quem as fez, mais do que nas relações dos próprios filósofos, que ao escreverem e muitas vezes dialogando com textos de antepassados não estavam preocupados em pertencer a um período específico.
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Apostila de Filosofia – Escola Juliano Neto
Terceiro Ano do Ensino Médio - 2011
Wilson Fernandes
“… é impossível negar que a Filosofia coxeia. Habita a história e a vida,
mas quereria instalar-se no seu centro, naquele ponto em que são
advento, sentido nascente. Sente-se mal no já feito. Sendo expressão, só
se realiza renunciando a coincidir com aquilo que exprime e afastando-se
dele para lhe captar o sentido. É a utopia de uma posse a distância”.
Merleau-Ponty (1998)
Períodos da História da Filosofia
A História da Filosofia, como toda divisão cronológica, é uma escolha
de quem estabelece os pontos de ruptura para justificar as separações entre
um período e outro. É claro que esta “escolha arbitrária” está sustentada em
algum critério que permite aproximações entre temas, características e
proposições dos autores. Neste caso, as periodizações da História da Filosofia
devem ser buscadas nos critérios de quem as fez, mais do que nas relações
dos próprios filósofos, que ao escreverem e muitas vezes dialogando com
textos de antepassados não estavam preocupados em pertencer a um período
específico.
As caracterizações de um determinado período são úteis para uma
sistematização didática, mas como toda caracterização, ao mesmo tempo em
que dá identidade e especificidade ao período que está sendo caracterizado,
também serve para simplificar e reduzir um determinado pensamento ao
período em que ele surge.
Dialogando entre uma caracterização geral e as particularidades de cada
filósofo, a periodização que fazemos a seguir parte de algumas das principais
obras de História da Filosofia e se aproxima das divisões clássicas da própria
História: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. São breves exposições
e referências a alguns dos nomes que serão abordados nesse volume de
textos.
Filosofia Antiga
A Filosofia Antiga refere-se a um grupo diversificado e que se localiza desde
o século VI a.C. na Jônia até os primeiros tempos da era cristã. Pela dimensão
temporal podemos localizar temáticas díspares que são sistematizadas neste
mesmo grupo. Entre estes grupos estão:
- os pré-socráticos ou físicos: os filósofos, desde Tales de Mileto, que se
localizam antes de Sócrates e se interrogavam sobre a physis (natureza), daí o
nome físicos ou filósofos da natureza. A preocupação deles sobre o princípio
(a arché) da natureza, da ordem do mundo fez com que estabelecessem as
primeiras elaborações à procura de um princípio lógico ordenador e imanente
que explicasse a própria natureza.
- Sócrates: é a figura central da Filosofia grega. Embora nunca tenha escrito
nada foi a partir dele que as questões humanas superaram as preocupações
sobre o princípio ordenador da natureza. Sócrates é uma figura emblemática
por ter legado à Filosofia a figura do homem questionador, que procura
conhecer, interrogando as pessoas que julgava sábias. Ele dialogava e
interrogava as pessoas à exaustão, através da ironia e da maiêutica, as partes
constitutivas do seu método dialético: inquiria para que as pessoas pudessem
“dar a luz às idéias”. Incorporou o lema de um Oráculo (“Conhece-te a ti
mesmo”) como parte de sua tarefa e foi condenado à morte.
- A Filosofia sistemática. Platão e Aristóteles são os dois principais nomes
deste período:
Platão dói discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles. Ele foi o primeiro a
sistematizar uma obra filosófica em que expressa uma determinada concepção
de mundo. Sua obra é marcada pela questão do conhecimento e a associação
com a atividade política. A Filosofia é filha da cidade (polis) e ao mesmo está a
sua margem, por isso, os diálogos platônicos expõem os temas de um debate
articulado, através da argumentação e do impulso que desperta o pensamento
e o conhecimento autêntico (epistéme) que ultrapasse as aparências (doxa).
Aristóteles apresentou diferenças substantivas em relação a Platão. Sua
obra apresenta, em seu próprio modo de escrever e na escolha dos temas,
uma organização que expressa o objeto e os modelos de investigação que
propõe.
Obras como “Metafísica”, “Física”, “Política”, “Organon”, “Poética”, “Ética”
identificam percursos e temas de um trabalho de demonstração argumentativa
em que o logos é sistematizado.
- Filosofias do helenismo: é o período de expansão da Filosofia a partir do
domínio exercido pelos macedônios e depois pelos romanos. A Filosofia deixa
de ser centrada no mundo grego e ultrapassa as antigas fronteiras da Ática.
Nesse período podemos identificar algumas correntes como o estoicismo,
o epicurismo, o cinismo, o ceticismo, o neoplatonismo.
- As primeiras elaborações da tradição cristã: embora haja um longo debate
sobre a existência de uma Filosofia Cristã, nos primeiros séculos da era cristã
há uma disputa entre as tradições do helenismo e o Cristianismo nascente.
Embora este não tenha um caráter especulativo como as Filosofias helenistas,
podemos identificar, sobretudo a partir dos apologistas do século II, a tentativa
de um diálogo entre a Fé e a Razão, para atrair os pagãos e a incorporação
de princípios da exposição filosófica. O aprofundamento dessas relações
marca a passagem final do período antigo para o início do período medieval.
Filosofia Medieval
A figura de Agostinho de Hipona é apresentada como um dos últimos
representantes da Antiguidade e por outros como o primeiro representante da
tradição medieval. Longe de esgotar este debate, nos interessa identificar que
a obra de Santo Agostinho é o resultado de uma sistematização que foi muito
útil para a afirmação dos ensinamentos do Cristianismo, combatendo os
céticos, e retomando parte da elaboração platônica, sem, contudo ser ele
mesmo um platônico.
O período da Filosofia medieval foi marcado pela instauração dos
debates, as disputas como o choque entre Nominalistas e Universalistas.
Houve uma separação dos saberes e dois campos de conhecimento:
a Teologia, que investigava sobre as questões relativas a Deus, vista como
superior; e a Filosofia, que abrangia todos os outros saberes, inclusive as
investigações sobre natureza, fazendo com que a Filosofia fosse um nome
dado a um grande número de saberes.
Outro grande nome da Filosofia medieval foi o de Tomás de Aquino, um
dos responsáveis pela cristianização do pensamento aristotélico e pela
modernização das teorias do mundo cristão. A apropriação de conceitos como
“motor primeiro imóvel” e a clareza da demonstração tomista em que é exposta
uma tese, seguida dos argumentos favoráveis e contrários e a refutação
desses últimos, indicava a capacidade do mestre em organizar os argumentos
e realizar as sínteses de sua religião e também da obra de Aristóteles.
Filosofia Moderna
A Filosofia do período moderno tem uma pulverização de temas e
abordagens. O humanismo, desde o século XIV, propunha a revalorização dos
textos da Antiguidade e a defesa de uma nova ordem política, na qual a ação
seria um elemento fundamental. Esta redescoberta dos textos da Antiguidade
representou uma nova perspectiva não apenas política, mas também
metodológica, que permitiu uma nova leitura do texto, superando os debates da
escolástica medieval.
Com este despertar a teoria política e científica ganhou novos ares e as
transformações pelas quais passava o continente europeu entre os séculos XV
e XVIII foi marcada por um movimento de novas elaborações filosóficas:
Maquiavel, Montaigne, Erasmo, More, Galileu, Descartes, Thomas
Hobbes e Locke são alguns nomes que marcaram a História da Filosofia
Moderna.
As perguntas sobre os fundamentos da realidade eram revestidas de
questionamentos sobre o que é conhecer e o papel do que se passou a chamar
de “sujeito moderno”. Do “cogito” cartesiano aos princípios da experiência,
passando pelas novas invenções, o renascimento cultural e artístico, temos um
panorama de algumas das questões do contexto daquele momento.
Ao longo de todo o século XVIII desenvolveu-se a escola iluminista com suas
críticas ao mundo do Antigo Regime. Montesquieu, Voltaire, Rousseau,
Diderot e outros elaboraram propostas que, muitas vezes foram invocadas
pelos revolucionários das 13 colônias inglesas ou da França.
Filosofia Contemporânea
Um filósofo do século XVIII (David Hume) e outro da transição do XVIII para
o XIX (Kant) estabeleceram a grande critica à metafísica que marca o início da
Filosofia Contemporânea. O idealismo kantiano marcaria muitas formas de
expressão da Filosofia Contemporânea.
Porém, a partir do XIX é quase impossível estabelecer uma unidade efetiva
para o pensamento filosófico. Isto se deve em grande parte às transformações
sociais, econômicas e políticas ocorridas principalmente na Europa, que gerou
uma pluralidade de vozes, idéias e atitudes. O pensamento Hegeliano é
duramente atacado pela obra de Karl Marx e Friedrich Engels. A idéia de
que a Filosofia deveria transformar o mundo e não apenas interpretá-lo
encontrará poderoso eco na obra da dupla Marx/Engels. Ao mesmo tempo, o
pensamento mais conservador de sistematização do conhecimento surgia dos
escritos de Augusto Comte e seu Positivismo, defendendo suas leis sociais e
necessidade da ordem para o progresso.
No XIX estão as origens do pensamento Existencialista que teria muita
força no século seguinte. É impossível entender os fundamentos da obra
de Jean-Paul Sartre se não se levar em conta os escritos anteriores
deKierkegaard. A liberdade humana, o papel da angústia, a liberdade e uma
“existência que precede uma essência” estiveram presentes em pensamentos
existencialistas no século XX.
Também no final do século XIX todo o sistema racional filosófico sofre duras
críticas de Nietzsche e sua forma original de escrever Filosofia.
Além do já citado Existencialismo, o século XX é acompanhado pelo
desenvolvimento da Escola de Frankfurt, que a partir do período entre guerras
projetou os nomes de filósofos como Max Horkheimer, Theodor Adorno,
Herbert Marcuse e Walter Benjamin. Questões sobre estética, as funções da
linguagem uma teoria crítica da cultura marcaram a produção desta escola.
Lista de exercícios I – Questões:
1 – O que significa dizer que o recorte é arbitrário na História da Filosofia?
Qualquer recorte é válido?
2 – Quais são os temas centrais do pensamento antigo?
3 – Quais as características essenciais do pensamento medieval?
4 – O que caracteriza a Filosofia Moderna?
5 - Porque a partir do século XIX é quase impossível estabelecer uma unidade
efetiva para o pensamento filosófico?
Textos de Filosofia Antiga
I - Epicuro (341 – 270 aC)
Epicuro foi criado em Samos. Decidiu abrir em Atenas uma escola ao redor
de um jardim. Disto decorreu o nome de sua escola: o Jardim. Sua defesa do
prazer fez com que fosse associado ao simples hedonismo, o que não
corresponde aos pensamentos de Epicuro. O filósofo defende um prazer
mediado pela Filosofia e pela reflexão e não o sentimento que ele considera
vulgar de buscar prazer imediato pelo prazer imediato. A busca do equilíbrio da
alma, o distanciamento das paixões (ataraxia), decorre da identificação dos
verdadeiros desejos separados dos desejos supérfluos ou vãos. Todas as
pessoas, homens ou mulheres, podem atingir a ataraxia, pois a Filosofia pode
ser aprendida por todos e todos, por sua vez, podem libertar-se através dela.
Baseado na crença material dos átomos que tudo constituem, pregava uma
atitude de não temermos diante da morte, pois ela é inevitável e nada mais
existe depois dela. Também os homens não devem ter medo dos deuses, pois
os seres divinos não interferem na nossa existência. Apesar de ter escrito
muito, dele pouco chegou até nossos dias, geralmente por via indireta, como
na obra de Lucrécio ou na biografia de Diógenes Laércio. Em parte por ter sido
erradamente associado ao hedonismo sensualista e a um certo tipo de
ateísmo, o epicurismo sofreu ataques posteriores, especialmente da tradição
cristã.
Fragmentos
Todo desejo incômodo e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia.
¯
Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando
se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro
para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não
chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já
passou a hora de ser feliz.
¯
Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos
males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das
paixões da alma.
¯
Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo mal e todo
o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade.
¯
É insensato aquele que diz temer a morte, não porque ela o aflija quando
sobrevier, mas por que o aflige o prevê-la: o que não nos perturba quando está
presente inutilmente nos perturba também enquanto o esperamos.
¯
Tem de saber-se extrair pelo raciocínio conclusões concordantes com os
fenômenos.
¯
A sensação deve servir-nos para proceder, raciocinando, à indução de
verdades que não são acessíveis aos sentidos.
¯
É verdadeiro tanto o que vemos com os olhos como aquilo que
apreendemos mediante a intuição mental.
¯
Quando te angustias com as tuas angústias, te esqueces da natureza: a ti
mesmo te impões infinitos desejos e temores.
¯
Então quem obedece à natureza e não às vãs opiniões a si próprio se basta
em todos os casos. Com efeito, para o que é suficiente por natureza, toda a
aquisição é riqueza, mas, por comparação com o infinito dos desejos, até a
maior riqueza é pobreza.
¯
Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que
é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa
e chegamos a ele valorizando todo bem com um critério do efeito que nos
produz.
¯
Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de
cargos ou poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a
ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se
mantenha nos limites impostos pela natureza.
¯
A ausência de perturbação e de dor são prazeres estáveis; por seu turno, o
gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua vivacidade.
¯
Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos
prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem
certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos
compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo
e de perturbações da alma.
¯
E como o prazer é o primeiro e inato bem, é igualmente por este motivo que
não escolhemos qualquer prazer; antes, pomos de lado muitos prazeres
quando, como resultado deles, sofremos maiores pesares; e igualmente
preferimos muitas dores aos prazeres quando, depois de longamente
havermos suportado as dores, gozamos de prazeres maiores. Por conseguinte,
cada um dos prazeres possui por natureza um bem próprio, mas não deve
escolher-se cada um deles; do mesmo modo, cada dor é um mal, mas nem
sempre se deve evitá-las. Convém, então, valorizar todas as coisas de acordo
com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que, segundo as
ocasiões, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem.
¯
Alguns dos desejos são naturais e necessários; outros são naturais e não
necessários; outros nem naturais nem necessários, mas nascidos apenas de
uma vã opinião.
¯
Aqueles desejos que não trazem dor se não são satisfeitos não são
necessários; o seu impulso pode ser facilmente posto de parte, quando é difícil
obter a sua satisfação ou parecem trazer consigo algum prejuízo.
¯
E consideramos um grande bem o bastar-se a si próprio, não com o fim de
possuir sempre pouco, mas para nos contentarmos com pouco no caso em que
não possuamos muito, legitimamente persuadidos de que desfrutam da
abundância do modo mais agradável aqueles que menos necessidades têm, e
que é fácil tudo o que a natureza quer e difícil o que é vaidade.
¯
Se queres enriquecer (...) não lhe acrescentes riquezas: diminui-lhe os
desejos.
¯
A quem não basta pouco, nada basta.
¯
A vida do insensato é ingrata, encontra-se em constante agitação e está
sempre dirigida para o futuro.
¯
Recordemos que o futuro não é nosso nem de todo não nosso, para não
termos de esperá-lo como se estivesse para chegar, nem nos desesperarmos
como se em absoluto não estivesse para vir.
¯
Se recusas todas as sensações, não terás mais possibilidade de recorrer a
nenhum critério para julgar as que, entre elas, consideras falsas.
¯
De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a
vida, a maior é a aquisição da amizade.
¯
Toda amizade é desejável por si própria, mas inicia-se pela necessidade do
que é útil.
¯
Não temos tanta necessidade da ajuda dos amigos como de confiança na
sua ajuda.
¯
Não é amigo quem sempre busca a utilidade, nem quem jamais a relaciona
com a amizade, porque um trafica para conseguir a recompensa pelo benefício
e o outro destrói a confiada esperança para o futuro.
¯
O sábio que se pôs à prova nas necessidades da vida, melhor sabe dar
generosamente que receber: tão grande é o tesouro de íntima segurança e
independência dos desejos que em si possui.
(EPICURO: antologia de textos. In: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco
Aurélio
Abril Cultural, 1973. Col. “ Os Pensadores”. P. 21-28)
II - Estoicismo
A filosofia estóica, que recebeu este nome por ser uma escola que se
localizava num Pórtico (“Stoa” em grego), assim como o epicurismo, é uma
filosofia que propunha um modo de viver. No entanto, em sua origem, não se
restringia a esta “arte de viver”: havia uma concepção da natureza, de seus
princípios incorpóreos e uma sistematização lógica. O estoicismo foi fundado
por Zenão de Cício, por volta do final do século III a.C. e perdurou até Marco
Aurélio, no século II da era cristã. Dos primeiros estóicos gregos temos apenas
comentários e pequenos fragmentos. Dos estóicos romanos temos obras
integrais. Embora não existia uma composição homogênea nos quase
quinhentos anos de estoicismo, os principais historiadores da Filosofia
incorporaram os ensinamentos dos estóicos romanos, como a busca da
ataraxia, a supressão das paixões, a austeridade.
Em meio às riquezas do mundo romano, os estóicos ficaram associados às
noções de virtude da alma: uma aparência que o filósofo estóico deveria
ostentar como forma de ensinamento e um rigor que deveria ser perseguido
para se obter equilíbrio e bem viver.
Sêneca (4 aC – 65 dC)
Nascido na península Ibérica romanizada, Lucis Annaeus Sêneca era de
família tradicional e cedo a política o trouxe ao centro do poder romano. Com
Cícero e Marco Aurélio, tornou-se um dos grandes representantes do
estoicismo em Roma. Para atingir a indiferença (apathea), base da realização
nesta vida, o filósofo deveria evitar os excessos, viver de modo frugal e
enfrentar com serenidade os reveses naturais da existência. A proximidade de
seus ensinamentos morais com alguns aspectos do Cristianismo deu a Sêneca
grande destaque nos estudos humanistas na Idade Média e na constituição do
modelo da tragédia do Renascimento. Suas ligações com a política o levaram
ao exílio durante uma perseguição do imperador Cláudio de quem se vingou
escrevendo uma sátira (Apocolocyntosis) e à morte por seu ex-aluno, Nero,
que desconfiava que o filósofo tivesse participado de uma conspiração. Foi
obrigado ao suicídio, juntamente com sua esposa.
Fragmentos
Como se portar na infelicidade
X – 1. Todavia, eis que tombaste em qualquer situação difícil, sem que hajas
feito nada para isso: a adversidade pública ou particular passou-te um laço pelo
pescoço, laço que não podes mais nem arrebentar. Lembra-te de que os
desventurados que são peados começam por se revoltar contra os pesos e as
cadeias de suas pernas; e que, desde que eles começam a se resignar, em
lugar de se revoltar, a necessidade lhes ensina a suportar sua sorte com
coragem e o hábito torna-a suportável. Encontrarás em qualquer situação
divertimentos, descansos e prazeres, se te esforçares para julgar teus males
leves, antes de considerá-los intoleráveis.
2. O melhor título da natureza ao nosso reconhecimento é que, conhecendo
todos os sofrimentos para os quais estávamos destinados na vida, para
abrandar nossos padecimentos ela criou o hábito que nos familiariza em pouco
tempo com os mais rudes tormentos. Pessoa alguma resistiria, se, ao
continuar, a adversidade conservasse a mesma violência que tem na primeira
desgraça.
3. Estamos todos ligados à fortuna: para uns a cadeia é de ouro e frouxa,
para outros é apertada e grosseira; mas que importa? Todos os homens
participam do mesmo cativeiro, e aqueles que encadeiam os outros não são
menos algemados; pois tu não afirmarás, suponho eu, que os ferros são menos
pesados quando levados no braço esquerdo. As honras prendem este, a
riqueza aquele outro; este leva o peso de sua nobreza, aquele o de sua
obscuridade; um curva a cabeça sob a tirania de outrem, outro sobre a própria
tirania; a este sua permanência num lugar é imposta pelo exílio, àquele outro
pelo sacerdócio. Toda vida é uma escravidão.
4. É preciso, pois, acostumar-se a sua condição, queixando-se o menos
possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela possa
oferecer: nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não
encontre qualquer coisa para consolo. Vê-se freqüentemente um terreno
diminuto prestar-se, graças ao talento do arquiteto, às mais diversas e incríveis
aplicações, e um arranjo hábil torna habitável o menos canto. Para vencer os
obstáculos, apela à razão: verás abrandar-se o que resistia, alargar-se o que
era apertado e os fardos tornarem-se mais leves aos ombros que saberão
suportá-los.
5. Não descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais aos nossos
desejos: limitemos o vôo aos objetos mais próximos, visto que não podemos
pensar em reprimi-los inteiramente. Renunciando ao que é impossível ou difícil
demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estando mais próximo, anima
nossa esperança; mas sem esquecer que todas as coisas são igualmente
frívolas e que, se as aparências diferem, é sempre no interior a mesma
futilidade. Não invejemos as situações elevadas: pois o que julgamos ser o
cume não é mais do que a beira de um abismo.
6. Em compensação, aqueles que a sorte pérfida colocou sobre estes
perigosos picos diminuirão os riscos que correm, se despojarem do orgulho
natural e reduzirem sua fortuna na medida do possível, e a um nível mais
modesto.
Há, sem dúvida, muitos homens que não tem o direito de abandonar o cimo
onde então colocados e de onde não podem descer a não ser ao preço de uma
queda: homens que consideram sua mais pesada obrigação, precisamente, o
serem obrigados a pesar sobre os outros, sobre os quais não estão elevados,
mas sim, amarrados. Que por sua justiça, sua doçura, sua clemência e sua
generosa bondade, eles preparem forças para a sorte que os espera e cuja
esperança lhes suavize os perigos da inconstância.
7. Todavia, nada nos preservará melhor das inquietudes deste gênero do
que fizermos sempre um limite para nossas ambições, sem esperar que a
fortuna nos interrompa, como é seu costume; e suspendermos nosso
progresso muito tempo antes do instante fatal. Do destino ainda sentiremos a
picada de muitos desejos; mas estes serão desejos acanhados, que não nos
poderão lançar em intermináveis aventuras.
(SÊNECA. Da tranqüilidade da alma. In: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca,
Marco Aurélio.
Abril Cultural, 1973. Col. “Os Pensadores”. P. 216)
III – Cinismo
Antístenes (444 – 365 aC)
Filósofo grego que foi discípulo de Sócrates e mestre de Diógenes. Fundou a
escola Cínica ou o Cinismo defendendo uma doutrina filosófica que pregava o
abandono das convenções sociais e das leis existentes, a negação de posses
materiais e a busca da auto-suficiência. Ensinava seu modo de vida num
mausoléu. Considerava a si mesmo o cão e vivia como tal.
Diógenes, o cínico, foi seu seguidor mais popular que viveu também na
cidade de Atenas. Sua casa era um tonel, um barril, e ele costumava caminhar
com uma lanterna acesa em plena luz do dia à procura de um homem virtuoso.
Também se considerava o cão e desprezava as opiniões públicas, as
convenções sociais, a hipocrisia moral, ironizando todos que a elas se
submetiam. Diógenes defendia um retorno à vida simples e uma existência
conforme a natureza.
IV – Ceticismo
Pirro de Élida (365 – 275 aC)
Pirro fundou o Ceticismo propriamente dito. Sua doutrina eminentemente
prática defendia a suspensão do juízo (epoché) sobre as coisas do mundo,
uma vez que nada podemos saber com certeza, tudo que se apresenta como
verdadeiro não passa de hábito e convenção. Suspensão do juízo, pois ainda
que existisse a verdade, para o cético, ela seria impossível de ser atingida, pois
o conhecimento do real é incomunicável à razão humana. Pirro, entretanto
acredita que mesmo com essa impossibilidade devemos continuar buscando a
certeza e a verdade. Outro pensador que sistematizou as idéias do ceticismo
chamado Sexto Empírico diverge de Pirro, pois para ele devemos suspender o
juízo e renunciar à crença na possibilidade de se atingir um conhecimento
verdadeiro. A indiferença torna-se, portanto, para Sexto Empírico, o segredo da
felicidade.
Lista III – Questões:
1 – No final da Antiguidade Clássica, a filosofia deixa de ser centrada no
mundo grego e ultrapassa as antigas fronteiras da Ática. Quais são as
principais correntes do Helenismo?
2 – Mostre quais são as idéias centrais do Epicurismo.
3 – Aponte o que caracteriza o Estoicismo de Zenão e Sêneca.
4 – Como podemos compreender o Cinismo de Antístenes e Diógenes?
5 – Qual é a tese central do Ceticismo de Pirro?
6 – Aponte a diferença existente entre o Ceticismo de Pirro e o de Sexto
Empírico.
7 - Escreva nos espaços entre parêntesis qual a escola do helenismo que
defende a idéia apresentada (Estóicos, Epicuristas, Cínicos ou Céticos).
a) Estamos todos ligados à fortuna: para uns a cadeia é de ouro e
frouxa, para outros é apertada e grosseira; mas que importa? Todos os
homens participam do mesmo cativeiro, e aqueles que encadeiam os outros
não são menos algemados; pois tu não afirmarás, suponho eu, que os ferros
são menos pesados quando levados no braço esquerdo. As honras prendem
este, a riqueza aquele outro; este leva o peso de sua nobreza, aquele o de sua
obscuridade; um curva a cabeça sob a tirania de outrem, outro sobre a própria
tirania; a este sua permanência num lugar é imposta pelo exílio, àquele outro
pelo sacerdócio. Toda vida é uma escravidão. (______________________)
b) Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo
mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da
sensibilidade. (______________________)
c) Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a
obtenção de cargos ou poder produzem a felicidade e a bem-aventurança;
produzem-na a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de
espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza.
(______________________)
d) Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos refirir-
nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade,
como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou
não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos
do corpo e de perturbações da alma. (___________________)
e) Não descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais aos
nossos desejos: limitemos o vôo aos objetos mais próximos, visto que não
podemos pensar em reprimi-los inteiramente. Renunciando ao que é
impossível ou difícil demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estando mais
próximo, anima nossa esperança; mas sem esquecer que todas as coisas são
igualmente frívolas e que, se as aparências diferem, é sempre no interior a
mesma futilidade. Não invejemos as situações elevadas: pois o que julgamos
ser o cume não é mais do que a beira de um abismo.
(______________________)
f) Ainda que a verdade existisse, eu não teria condições de atingi-
la. (_______________________)
g) Doutrina que desprezava as riquezas e todas as convenções
sociais. (_______________________)
h) E como o prazer é o primeiro e inato bem, é igualmente por este
motivo que não escolhemos qualquer prazer; antes, pomos de lado muitos
prazeres quando, como resultado deles, sofremos maiores pesares; e
igualmente preferimos muitas dores aos prazeres quando, depois de
longamente havermos suportado as dores, gozamos de prazeres maiores. Por
conseguinte, cada um dos prazeres possui por natureza um bem próprio, mas
não deve escolher-se cada um deles; do mesmo modo, cada dor é um mal,
mas nem sempre se deve evitá-las. Convém, então, valorizar todas as coisas
de acordo com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que,
segundo as ocasiões, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem.
(_____________________)
i) Alguns dos desejos são naturais e necessários; outros são
naturais e não necessários; outros nem naturais nem necessários, mas
nascidos apenas de uma vã opinião. (_____________________)
j) A mais anticultural das filosofias, pregava a virtude de viver
segundo a natureza e tinha nos cães um paradigma de existência.
(________________)
k) Recordemos que o futuro não é nosso nem de todo não nosso,
para não termos de esperá-lo como se estivesse para chegar, nem nos
desesperarmos como se em absoluto não estivesse para vir.
(____________________)
l) Doutrina que inspira a dúvida, a suspensão do juízo sobre o
mundo. (_____________________)
m) De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade
de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade. (_________________)
n) O sábio que se pôs à prova nas necessidades da vida, melhor
sabe dar generosamente que receber: tão grande é o tesouro de íntima
segurança e independência desejos que em si possui.
(_____________________)
o) Todavia, eis que tombaste em qualquer situação difícil, sem que
hajas feito nada para isso: a adversidade pública ou particular passou-te um
laço pelo pescoço, laço que não podes mais nem arrebentar. Lembra-te de que
os desventurados que são peados começam por se revoltar contra os pesos e
as cadeias de suas pernas; e que, desde que eles começam a se resignar, em
lugar de se revoltar, a necessidade lhes ensina a suportar sua sorte com
coragem e o hábito torna-a suportável. Encontrarás em qualquer situação
divertimentos, descansos e prazeres, se te esforçares para julgar teus males
leves, antes de considerá-los intoleráveis. (_____________________)
p) É preciso, pois, acostumar-se à sua condição, queixando-se o
menos possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela
possa oferecer: nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não
encontre qualquer coisa para consolo. Vê-se freqüentemente um terreno
diminuto prestar-se, graças ao talento do arquiteto, às mais diversas e incríveis
aplicações, e um arranjo hábil torna habitável o menor canto. Para vencer os
obstáculos, apela à razão: verás abrandar-se o que resistia, alargar-se o que
era apertado e os fardos tornarem-se mais leves sobre os ombros que saberão
suportá-los. (_____________________)
q) Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o
fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem
demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de
filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda
não chegou ou já passou a hora de ser feliz. (_________________)
SOCIOLOGIA
Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895)
Os dois filósofos alemães constituíram uma das mais influentes teorias
filosóficas da idade Contemporânea. Karl Marx nasceu numa família de judeus
convertidos ao luteranismo. Engels pertencia a uma sólida família de industriais
alemães. A formação filosófica de Marx ocorreu num ambiente universitário
bastante influenciado pelas idéias de Hegel. Em 1848, Marx eEngels lançaram
um texto chamado Manifesto do Partido Comunista estabelecendo grande
parte das idéias que desenvolveriam de forma mais aprofundada ao longo da
vida: leitura da História a partir de condições materiais concretas, materialismo
dialético, luta de classes como elemento dinâmico das sociedades, luta de
classes como motor da História, união proletária para constituir um Estado sem
classes e releitura da dialética hegeliana. A proximidade do movimento da
primavera dos povos de 1848 deu ainda mais visibilidade ao documento.
Movendo-se como exilados ou perseguidos entre Paris, Bruxelas e Londres,
Marx e Engels produziram ainda obras como A Sagrada Família, A Ideologia
Alemã e O Capital, obra que foi completada por Engels após a morte de Marx.
Marx e Engels escreveram em conjunto ou separadamente: A Miséria da
Filosofia; O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte; A origem da família, da
propriedade privada e do Estado; O Anti-Dühring entre outras.
A alienação social
Marx era filósofo, advogado e historiador, e interessou-se por um estudo
feito por outro filósofo, Feuerbach. Este investigara o modo como se formam as
religiões, isto é, o modo como os seres humanos sentem necessidade de
oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo.
Ao buscar essa explicação, explica Feuerbach, os humanos projetam para
fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores:
inteligência, vontade livre, bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse
ser supremo como superlativas, isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe tudo,
faz tudo, pode tudo. Pouco a pouco, os humanos se esquecem de que foram
os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou seja, que esse ser
foi quem os criou e os governa. Passam a adorá-lo prestar-lhe culto, temê-lo.
Não se reconhecem, nesse outro que criaram. Em latim, “outro” se diz alienus.
Quando os homens não se reconhecem num outro que eles mesmos criaram,
eles se alienam. Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação.
A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma
coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e
em si mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse poder em si e
por si mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-
outro, separado dos homens, superior a eles com poder sobre eles.
Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas investigou,
sobretudo a alienação social.
Para Marx a essência humana é o trabalho.
Conceito de Trabalho para Marx: Transformação dos elementos da natureza
onde o ser, enquanto espécie, se humaniza. O ser humano modifica a natureza
através do seu trabalho. O subjetivo humano projetado na natureza se objetiva
na produção concreta de um artefato humano. Isto, para Marx, é Trabalho.
A ideologia alemã
Marx e Engels nesta primeira parte da Ideologia Alemã analisam a influencia
do pensamento hegeliano na Alemanha e o falso embate entre os antigos e
novos hegelianos. Para Marx e Engels a ideologia é uma forma de mascarar a
realidade, recorrendo a uma forma de explicação absoluta e idealizada. A
superação deste jogo é a inversão da análise que Marx e Engels propõem.
Para eles os homens são diferentes dos animais pelas próprias condições
materiais e a consciência que se estabelece a partir da busca pela
sobrevivência. Qualquer forma de consciência ou explicação só tem validade
se partir desse pressuposto. Os idealistas estariam equivocados em suas
explicações por não considerar a realidade material, fixando-se num jogo de
encobrimentos que é a própria ideologia.
A ideologia em geral e em particular a ideologia alemã
Mesmo em seus mais recentes esforços, a critica alemã não deixou o
terreno da filosofia. Longe de examinar suas bases filosóficas gerais, todas as
questões, sem exceção, que ela formulou para si brotaram do solo de um
sistema filosófico determinado, o sistema hegeliano. Não só em suas
respostas, mas também nas próprias questões, havia uma mistificação. Essa
dependência de Hegel é a razão pela qual não encontramos um só crítico
moderno que tenha sequer tentado passado Hegel. A polêmica que travam
contra Hegel e entre si mesmo limitam-se ao seguinte: cada um isola um
aspecto do sistema hegeliano e o faz voltar-se ao mesmo tempo contra todo o
sistema e contra os aspectos isolados pelos outros. Começou-se por escolher
categorias hegelianas puras, não-falsificadas, tais como a Substância, a
Consciência de si, para mais tarde profanarem-se essas mesmas categorias,
com termos mais temporais, como o Gênero, o Único, o Homem etc.
(...) Os velhos hegelianos tinham compreendido tudo desde que tinham
reduzido tudo a uma categoria de lógica hegeliana. Os jovens hegelianos
criticaram tudo, substituindo cada coisa por representações religiosas ou
proclamando-a como teológica. Jovens e velhos hegelianos estão de acordo
em acreditar que a religião, os conceitos e o Universal reinavam no mundo
existente. A única diferença é que uns combatem, como se fosse usurpação, o
domínio que os outros celebram como legítimo.
Para os jovens hegelianos, as representações, idéias, conceitos, enfim, os
produtos da consciência aos quais eles próprios deram autonomia, eram
considerados como verdadeiros grilhões da humanidade, assim como os
velhos hegelianos proclamavam ser eles os vínculos verdadeiros da sociedade
humana. Torna-se assim evidente que os jovens hegelianos devem lutar
unicamente contra essas ilusões da consciência. Como, em sua imaginação
dos homens, todos os seus atos e gestos, suas cadeias e seus limites são
produtos da sua consciência, coerentes consigo próprios, os jovens hegelianos
propõem aos homens este postulado moral: trocar a sua consciência atual pela
consciência humana, crítica ou egoísta e, assim fazendo, abolir seus limites.
Exigir assim a transformação da consciência equivale a interpretar de modo
diferente o que existe, isto é, reconhecê-lo por meio de uma outra
interpretação. (...)
Nenhum desses filósofos teve a idéia de se perguntar qual era a relação
entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a ligação entre a sua crítica e o seu
próprio meio material.
As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases
reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua
ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já
encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação.
Essas bases são, pois verificáveis por via puramente empírica.
A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de
seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a
constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e
o restante da natureza. Não podemos, naturalmente, fazer aqui um estudo
mais profundo da própria constituição física do homem, nem das condições
naturais, que os homens encontraram já prontas, condições geológicas,
orográficas, hidrográficas, climáticas e outras. Toda historiografia deve partir
dessas bases naturais e de sua transformação pela ação dos homens, no
curso da história.
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e
por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos
animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse
passo à frente é a própria consciência de sua organização corporal. Ao
produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua
própria vida material.
(...) Eis, portanto, os fatos; indivíduos determinados com atividade produtiva
segundo um modo determinado entram em relações sociais e políticas
determinadas. Em cada caso isolado, a observação empírica deve mostrar nos
fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, a ligação entre a
estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem
continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas desses
indivíduos não tais como aparecem nas representações que fazem de si
mesmos ou nas representações que os outros fazem deles, mas na sua
existência real, isto é, tais como trabalham e produzem materialmente;
portanto, do modo como atuam em bases, condições e limites materiais
determinados e independentes de sua vontade.
A produção das idéias, das representações e da consciência está, a
princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comercio
material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As representações, o
pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aqui ainda como a
emanação direta de seu comportamento material. O mesmo acontece com a
produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, na das
leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo. São os homens
que reproduzem suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais,
atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento
de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive
as mais amplas formas que estas podem tomar.
A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos
homens é o seu processo vida real. E, se, em toda a ideologia, os homens e
suas relações nos aparecem de cabeça para baixo em uma câmera escura,
esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a
inversão dos objetos na retina de seu processo de vida diretamente físico.
Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da
terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens
dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no
pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se
chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua
atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos
também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse
processo vital. E mesmo as fantasmagorias existentes no cérebro humano são
sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida material,
que podemos constatar empiricamente e que repousa em bases materiais.
Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem
como as formas de consciência a elas correspondentes perdem logo toda a
aparência de autonomia. Não têm historia, não têm desenvolvimento; ao
contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas
relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu
pensamento e também os produtos do seu pensamento. Não é a consciência
que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Na
primeira forma de considerar as coisas, partimos da consciência como sendo o
indivíduo vivo; na segunda, que corresponde à vida real, partimos dos próprios
indivíduos reais e vivos, e consideramos a consciência unicamente como a sua
consciência.
(MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 10-13; 19-21)
Para Marx, é justamente na consciência de classe que a alienação desaparece
ou pode ser superada, é precisamente quando o indivíduo não morre na sua
subjetividade e nem é expropriado objetivamente em seu trabalho que ele
resgata sua essência humana.
É na luta coletiva, na práxis revolucionária que a consciência de classe percebe
sua força e entende por fim, que a subjetividade é indissociável da
intersubjetividade, ou seja, a luta é de todos os oprimidos e alienados da terra e
do trabalho pelo modo de produção capitalista, é contra esse modo de
produção opressor e alienante que devemos lutar.
Daí decorre a necessidade de uma sociedade sem classes,
a saber: A Sociedade Comunista.
Lista VI – Questões:
1 – Explique o fenômeno da Alienação.
2 – Quais são as teses centrais do Manifesto do Partido Comunista e o que
Marx e Engels pretendiam com ele?
3 – O que é uma Ideologia?
4 – Porque podemos considerar Marx e Engels como sendo Materialistas
Dialéticos?
5 – Pesquise no Dicionário do Pensamento Marxista e explique os seguintes
conceitos: trabalho, proletariado, mais-valia, luta de classes, meios de
produção, estrutura material e superestrutura ideológica, burguesia, estado e
comunismo.
FILOSOFIA ALEMÃ
Aforismos do criador de valores
Friedrich Nietzsche
(1844–1900)
Nascido numa tradicional família de pastores luteranos, o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche foi encaminhado para uma formação religiosa. Seus
estudos acadêmicos o afastaram da tradição familiar e ele se dedicou à
Filosofia e à Filologia (estudo da genealogia, da origem etimológica), iniciando
numa precoce carreira universitária. Sua reflexão incidiu sobre questões como
a mortalidade religiosa, a razão, a origem da tragédia, a musica de Wagner, o
tema da morte de Deus. Durante uma visita à Itália teve uma crise nervosa e
nunca mais recuperou a sanidade. Seu estilo aforismático e suas idéias
ousadas tiveram grande influência na filosofia do século XX. Escreveu O
Nascimento da Tragédia, O Anticristo, A Gaia Ciência, Humano
Demasiado Humano, Assim Falava Zaratustra, Além do Bem e do Mal,
Ecce Homo entre outras obras.
O canto da dança
... “e quando conversei a sós com a minha selvagem sabedoria, disse-me
esta zangada: “Tu queres, desejas, amas; e somente por isso louvas a
vida”.
Quase lhe respondi mal e disse a verdade àquela zangada; e nunca
podemos responder pior do que quando dizemos a verdade à nossa
sabedoria.
Tais são, com efeito, as relações entre nós três. Do fundo do meu ser, amo
somente a vida – e, na verdade, nunca a amo tanto como quando a detesto.
Que, porém, eu seja condescendente com a sabedoria, e muitas vezes
condescendente demais: isto provém de que ela me lembra demasiado a
vida”.
“Sobre leves esteios [a Filosofia] salta para diante: a esperança e o
pressentimento põem asas em seus pés. Pesadamente o entendimento
calculador arqueja em seu encalço e busca esteios melhores para também
alcançar aquele alvo sedutor ao qual sua companheira mais divina já
chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem, que
corre rodopiando pedras: o primeiro com pés ligeiros, salta sobre ele usando
pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que atrás
dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante,
detém-se desamparado, precisa antes construir fundamentos que
sustentem seu passo pesado e cauteloso...”.
Vida e Obra
Filósofo alemão, nascido em 15 de outubro de 1844, filho de um pastor
protestante, foi educado muito rigidamente. Excelente aluno estudou
filosofia clássica grega e entusiasmou-se com a obra O Mundo como
Vontade e Representação, de Schopenhauer, outro filósofo alemão.
Lecionou filosofia grega na Universidade da Basiléa, e tornou-se admirador
da música de Richard Wagner. Tempestuoso e com problemas de saúde,
alimentou polêmicas com outros estudiosos e escreveu obras com grande
estilo, conhecimento e poder de destroçar as bases da lógica e da moral
tradicional. Seus escritos têm alimentado controvérsias e várias
interpretações. Segundo a imagem que tinha dele mesmo, não era um
homem, mas dinamite, um extemporâneo que escrevia "para todos e para
ninguém".Dizia que a filosofia se fazia "às marteladas". Suas obras
principais são: O Nascimento da Tragédia no Espírito da
Música (1872) Humano Demasiado Humano (1878) A Gaia
Ciência (1882), Assim Falou Zaratustra (1883), A Genealogia da
Moral (1887), Crepúsculo dos Ídolos (1888).
Em 1896, Freud utiliza, pela primeira vez, o termo psicanálise.
Em 1898, nasce Bertold Brecht.
Em 1899, Freud termina a Interpretação dos Sonhos.
Nietzsche faleceu a 25 de agosto de 1900, em Weimar.
O pequeno gigante
O pensamento de Nietzsche, diz o livro Filosofando, "se orienta no sentido
de recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela
razão durante séculos. Para tanto, critica Sócrates, por ter encaminhado
pela primeira vez a reflexão moral em direção ao controle racional das
paixões. Segundo Nietzsche, nasce ai o homem desconfiado de seus
instintos, tendo essa tendência culminado com o cristianismo, que acelerou
a "domesticação" do homem.
Em diversas obras, como Sobre a Genealogia da Moral, Para Além do
Bem e de Mal e Crepúsculo dos Ídolos, em estilo apaixonado e mordaz,
Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade
entre esta e a vida. Em outras palavras, o homem sob o domínio da moral,
se enfraquece, tornando-se doentio e culpado.
Nietzsche relembra a Grécia homérica do tempo das epopéias e das
tragédias, considerando-a como momento em que predominam os
verdadeiros valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na
potência, sendo atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses.
Nessa perspectiva, o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto
o troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano,
mas aquele que é desprezível".
Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche preconiza a
"transvaloração de todos os valores". Denuncia as falsas morais,
decadentes, de rebanho, "de escravos", cujos valores seriam a bondade, a
humildade, a piedade e o amor ao próximo. Contrapõe a ela a moral "de
senhores", uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus
instintos fundamentais. A moral dos senhores é positiva, porque baseada no
sim à vida, e se configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Por isso
se funda na capacidade de criação, de invenção, cujo resultado é a alegria,
conseqüência da afirmação da potência.
O homem que consegue superar-se é o super homem (Übermensch,
expressão alemã que significa "além-do-homem", "sobre-humano", "que
transpõe os limites do humano").
A moral dos escravos nega os valores vitais e resulta na passividade, na
procura de paz e do repouso. O homem se torna enfraquecido e diminuído
em sua potência. A alegria é transformada em ódio à vida, o ódio dos
impotentes. A conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se
marcada pelo ressentimento e pela má consciência. O ressentimento nasce
e é nocivo ao fraco. O homem ressentido, incapaz de esquecer, é como o
dispéptico: fica "envenenado" pela inveja e impotência de vingança. Ao
contrário, o homem nobre sabe "digerir" suas experiências, e esquecer é
uma das condições de manter-se saudável. A má consciência ou sentimento
de culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a
noção de pecado, que inibe a ação. O ideal ascético nega a alegria da vida
e coloca a mortificação como meio para alcançar a outra vida num mundo
superior, do além. Assim, as práticas de altruísmo destroem o amor de si,
domesticando os instintos e produzindo gerações de fracos.
Durante o período que Nietzsche foi influenciado por Schopenauer, e seu
niilismo radical, ou seja, a ausência de crença em qualquer verdade moral
ou hierarquia de valores, com a morte de Deus, parecia ser insuperável do
ponto de vista existencial. Entretanto, Nietzsche fará a travessia do Niilismo
ao formular sua Doutrina do Eterno Retorno, onde apresenta a possibilidade
de "triunfar da tristeza pelo riso, triunfar do niilismo mais radical pelo lirismo
mais louco, esta “magia do extremo” e essa transmutação da negação em
afirmação, constituindo seu paradoxo”.
“Aquele a quem o esforço proporciona o mais alto sentimento, que se
esforce; aquele a quem o repouso proporciona o mais alto sentimento, que
repouse; aquele a quem se integrar, seguir, obedecer proporciona o mais
alto sentimento, que obedeça. Possa ele tornar-se consciente do que lhe
proporciona o mais alto sentimento e não recuar diante de nenhum meio! A
eternidade está em jogo”.
“Perder-se a si mesmo. Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é
preciso saber, de tempo em tempo, perder-se – e depois reencontrar-se:
pressuposto que seja um pensador”.
Scarlett Marton (Professora da FFLCH-USP)
Estilo Aforismático
"Mais do que problema psicológico ou questão existencial, em Nietzsche, o
experimentalismo é opção filosófica. Ao colocar um problema em seus
múltiplos aspectos, abordar uma questão a partir de vários ângulos, tratar
de um tema adotando diversos pontos de vista, o filósofo está a fazer
experimentos com o pensar. Não é por acaso, aliás, que privilegia o estilo
aforismático; se perseguir uma idéia é abandonar várias outras pelo
caminho, o que é o aforismo senão a possibilidade de perseguir uma idéia
partindo de diferentes pontos de vista? Adequado ao perspectivismo, o
estilo aforismático que ele adota põe-se assim a serviço do
experimentalismo”.
Assim Falou Zaratustra - um livro para todos e ninguém
Das três transmutações
Três transmutações vos cito do espírito: como o espírito se torna em
camelo, e em leão o camelo, e em criança, por fim, o leão.
Muito de pesado há para o espírito, para o espírito forte, que suporta carga,
em que reside o respeito: pelo pesado e pelo pesadíssimo reclama sua
força.
O que é pesado? Assim pergunta o espírito de carga, assim ele se ajoelha,
igual ao camelo, e quer ser bem carregado.
O que é o pesadíssimo, o heróis? Assim pergunta o espírito de carga, para
que eu o tome sobre mim e me alegre de minha força.
Não é isto: abaixar-se, para fazer mal a sua altivez? Deixar brilhar sua
tolice, para zombar de sua sabedoria?
Ou é isto: apartar-nos de nossa causa, quando ela festeja sua vitória?
Galgar altas montanhas, para tentar o tentador?
Ou é isto: nutrir-se de bolotas e grama do conhecimento e por amor à
verdade sofrer fome na alma?
Ou é isto: estar doente e mandar embora os consoladores e fazer amizade
com surdos, que nunca ouvem o que tu queres?
Ou é isto: entrar em água suja, se for a água da verdade, e não afastar de si
frias rãs e sapos que queimam?
Ou é isto: amar aqueles que nos desprezam e estender a mão ao espectro
quando ele nos quer fazer medo?
Todo esse pesadíssimo o espírito de carga toma sobre si: igual ao camelo,
que carregado corre para o deserto, assim ele corre para seu deserto.
Mas no mais solitário deserto ocorre a segunda transmutação: em leão se
torna aqui o espírito, liberdade quer ele conquistar, e ser senhor do seu
próprio deserto.
Seu último senhor ele procura aqui: quer tornar-se inimigo dele e de seu
último deus, pela vitória quer lutar com o grande dragão.
Qual é o grande dragão, a que o espírito não quer mais chamar de senhor
e deus? "Tu deves" se chama o grande dragão. Mas o espírito do leão diz
"eu quero".
"Tu deves" está em seu caminho, cintilante de ouro, um animal de escamas,
e em cada escama resplandece em dourado: "Tu deves!"
Valores milenares resplandecem nessas escamas, e assim fala o mais
poderoso de todos os dragões: "todo o valor das coisas - resplandece em
mim".
"Todo o valor já foi criado e todo valor criado - sou eu. Em verdade, não
deve haver mais nenhum 'Eu quero'! " Assim fala o dragão.
Meus irmãos, para que é preciso o leão no espírito? Em que não basta o
animal de carga, que renuncia e é respeitoso?
Criar novos valores - disso nem o leão ainda é capaz: mas criar liberdade
para nova criação - disso é capaz a potência do leão.
Criar liberdade e um sagrado Não, mesmo diante do dever: para isso, meus
irmãos, é preciso o leão.
Tomar para si o direito a novos valores - eis o mais terrível tomar, para um
espírito de carga e respeitoso. Em verdade para ele é uma rapina, e coisa
de animal de rapina.
Como seu mais sagrado amava ele outrora o "Tu deves": agora tem de
encontrar ilusão e arbítrio até mesmo no mais sagrado, para conquistar sua
liberdade desse amor: é preciso o leão para essa rapina.
Mas dizei, meus irmãos, de que ainda é capaz a criança, de que nem
mesmo o leão foi capaz? Em que o leão rapidamente tem ainda de se tornar
em criança? Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo,
um jogo, uma roda rodando sobre si mesma, um primeiro movimento, um
sagrado dizer-sim.
Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua
vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do
mundo.
Três transmutações vos citei do espírito: como o espírito se tornou em
camelo, e em leão o camelo, e o leão, por fim, em criança.-
Assim falou Zaratustra. E naquele tempo ele se demorava na cidade, que é
chamada: A vaca colorida”.
Vontade de Potência (wille zur macht)
Elo de ligação entre a ciência da natureza e a ciência do espírito.
Vida é Vontade de Potência.
VP não só do ser humano, mas de todo ser vivo, também em seus órgãos,
tecidos e células.
A precedência da VP não se confunde com supremacia e o combate, a luta
não visa o extermínio. A luta não pode levar à destruição dos elementos (em
alemão, Wilhelm Roux, quer dizer, concorrência vital, conflito interno, Rolph
significa desejo de sobrepor-se e Wirklichkeit representa a efetividade, a
realidade efetiva) e a força é desprovida de qualquer caráter teleológico
(telos = finalidade, objetivo), não almeja um fim, uma meta. VP como caráter
intrínseco dos elementos visando efetivar-se da força, sem permitir
dicotomia entre efeito e a obra de um sujeito. Não vemos a força, vemos
apenas o efetivar-se da força, pois há em Nietzsche uma impossibilidade de
distinguir a força de suas manifestações. A vida se expressaria por
diferenciação, não se tratando de uma realidade fixada, mas sim de
um processo dinâmico do vir-a-ser. Combate inútil do orgânico com o
inorgânico, pois o orgânico necessariamente se deteriora. "o vivente é
somente uma espécie de morto". Tudo o que existe é o vir-a-ser. VP como
desejo de prevalecer que leva a suprimir culpa e aceitar a natureza
agonística da força, gerando a idéia de que a força estaria presente em todo
ser vivente, variando seu grau e sua intensidade a partir das configurações
estabelecidas. Nietzsche diz: "Naquele que serve encontrei o desejo de se
tornar senhor". Sempre existe uma pluralidade de forças, o mundo é
constituído por forças agindo e resistindo uma em relação às outras, sendo
que todas querem se expandir, o que leva à disputa e ao combate
incessante, sem finalidade, apenas combater pelo caráter intrínseco da
VP."O caráter essencialmente dinâmico da força impede que ela não se
exerça; seu querer-vir-a-ser-mais-forte impede que cesse o combate. A
vontade de potência, impulso de apropriar e dominar, leva a força a querer
prevalecer na relação com os demais; atuando em todas elas, desencadeia
uma luta geral e permanente. Em suma, se o mundo tivesse algum objetivo,
já o teria atingido; se tivesse alguma finalidade, já a teria realizado."
(Scarlett Marton)
No conceito de Vontade de Potência se acham subsumidas duas outras
idéias: Apolo e Dionísio
Apolo representa o domínio de si, a forma contida, o equilíbrio racional,
simétrico, a contenção, a regra, a ordem e a medida, a forma, a escultura, a
visão íntima, a beleza, representa as potências formadoras, os limites,
existindo como princípio de individuação dos seres e das coisas.
Dionísio incorpora as forças irracionais, o desregramento, a liberdade dos
instintos sem barreiras nem entraves, o princípio de indiferenciação, a
insubmissão, a desmedida, indiferenciação, é o deus pagão do vinho e do
teatro, o desejo de embriaguez, a desordem, a incontinência, a crueldade, a
volúpia, a unidade indiferenciada com a natureza, o dissolver-se no coletivo,
enfim, representa a torrente caudalosa e indomável desse fundo comum de
todos nós.
Ambos são indispensáveis, como luz e sombra, são pulsões cósmicas, dois
princípios: o apolíneo representa o delineamento, a distinção, a forma
contida na individuação. Já o dionisíaco é pura indiferenciação, expansão
das forças.
Duas divindades da arte grega que coexistem num antagonismo profundo
de instintos e impulsos quase sempre em franca discórdia, incitando-se
mutuamente para novas e vigorosas criações, perpetuando o duelo deste
contraste.
A Doutrina do Eterno Retorno do Mesmo
"o mais pesado dos pesos"
"E se um dia ou uma noite", escreve Nietzsche na Gaia Ciência, "um
demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta
vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda
uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor
e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na
mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar
entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna
ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela,
poeirinha da poeira!' - Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e
amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um
instante descomunal, em que lhe responderias: 'Tu és um deus, e nunca
ouvi nada mais divino!' Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti,
assim como tu és" continua o filósofo “ele ti transformaria e talvez te
triturasse”; a pergunta diante de tudo e de cada coisa: 'Quero isto ainda
uma vez e ainda inúmeras vezes ?'Pesaria como o mais pesado dos
pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo
e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna
confirmação e chancela?"
Contradições e Ambigüidades:
1 - O tipo decadente é o pessimista, o ressentido.
2 - O tipo medíocre ou gregário é o otimista, buscando a felicidade
e o progresso, quer o bem estar e a segurança do rebanho,
igualitário e pacífico.
3 - O tipo aristocrático é o solitário, aquele que busca elevar-se num
além do homem, é potência criadora.
A respeito da Justiça, Nietzsche nos ensina a olhar nos olhos e superar a
vingança, o juízo e o carrasco: “Não me agrada vossa justiça fria; e de
dentro dos olhos de vossos juízes olham-me sempre o carrasco e seu ferro
frio”.
Para Nietzsche, a civilização tende a arrebatar da vida tudo o que a torna
perigosa, aventurosa, problemática, e, sobretudo, a nivelar os privilégios e
as desigualdades intoleráveis. "O nivelamento, é, pois para qualquer
sociedade superior o começo do fim" O Judaísmo, O Platonismo (Sócrates
e Platão) e o Cristianismo universalizantes operaram uma "inversão total
das hierarquias naturais", transformaram o sentimento trágico da vida que
havia entre os gregos pré-socráticos e também entre os "bárbaros" em uma
moral do rebanho, submissa, servil, idealista e transcendental.
“Uma luz se acendeu para mim: é de companheiros de viagem que eu
preciso, e vivos - não de companheiros mortos e cadáveres, que carrego
comigo para onde eu quero ir”.
Mas é de companheiros vivos que eu preciso, que me sigam porque querem
seguir a si próprios - e para onde eu quero ir.
Uma luz se acendeu para mim: não é ao povo que deve falar Zaratustra,
mas a companheiros! Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um
rebanho.
Desgarrar muitos do rebanho - foi para isso que eu vim. Devem vociferar
contra mim povo e rebanho: rapinante quer chamar-se Zaratustra para os
pastores.
Pastores digo eu, mas eles se denominam os bons e os justos. Pastores
digo eu: mas eles se denominam os crentes da verdadeira crença.
Vede os bons e os justos! Quem eles odeiam mais? Aquele que quebra sua
tábua de valores, o quebrador, o infrator: - mas este é o criador.
Vede os crentes de toda crença! Quem eles odeiam mais? Aquele que
quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o infrator: - Mas este é o
criador".
"Se a ruína do cristianismo trouxe como conseqüência a sensação de que
nada tem sentido e que tudo é em vão, trata-se agora de mostrar que a
visão cristã não é a única interpretação do mundo - é só mais uma.
Perniciosa, ela inventou a vida depois da morte para justificar a existência;
nefasta, fabricou o reino de Deus para legitimar avaliações humanas. Na
tentativa de negar este mundo em que nos achamos, procurou estabelecer
a existência de outro, essencial, imutável, eterno; durante séculos, fez dele
a sede e a origem dos valores. É urgente, pois, suprimir o além e voltar-se
para a terra; é premente entender que eterna é esta vida tal qual a vivemos
aqui e agora. Ao revelar a intenção de pôr "no lugar da metafísica e da
religião, aDoutrina do Eterno Retorno", o filósofo deixa claro que a
travessia do niilismo deve levar a uma superação. Ela tem de desembocar
num gesto afirmativo, num "dionisíaco-dizer-sim ao mundo", diz ele - e
completa: "ao mundo, tal como é". Nietzsche representa assim a suprema
afirmação do real, de uma realidade cujo recomeçar é querido
integralmente, exatamente tal qual ele é, com todas sua dores e todas suas
alegrias, sem somar nem diminuir, sem modificação nem correção – em
resumo: é a suprema prova em que se reconhece um destino que venceu
seu pessimismo”.
"É inevitável que a existência tal como é, sem sentido ou finalidade, se
repita; é imprescindível que o homem, não possuindo outra vida além desta,
a afirme. Não temos escapatória: estamos condenados a viver inúmeras
vezes e, todas elas, sem razão ou objetivo; tudo o que nos resta é aprender
a amar o nosso destino.
"Corações ao alto, meus irmãos, vamos, mais alto ainda! E não esqueçais
as pernas! Pernas ao alto, admiráveis dançarinos, e melhor ainda - de
cabeça para baixo!"
A Gaia Ciência e Assim Falou Zaratustra
O anúncio da morte de Deus neste fragmento da Gaia Ciência, segundo os
estudiosos, o anúncio do fim do modelo metafísico do pensar. A idéia de Deus,
que se encontra morto, é a ilustração da insuficiência da idéia de verdade
incontestável que a metafísica tradicional expressava e da qual religião era um
dos suportes. Não existem, com o fim desta metafísica, valores fixos e
incontentáveis: não há uma essência que todos deveriam atingir. A crítica
de Nietzsche é ao mundo permanente e à tradição de um conhecimento
aprisionado. A morte de Deus expressa o surgimento de homens de “espíritos
livres”. Para se chegar a este espírito a ousadia é um dos requisitos como
podemos ler em outro fragmento que está em Assim falou Zaratustra: um
livro para todos e para ninguém. A virtude está com os que desafiam e se
arriscam: é a proposta do além-do-homem. Um novo homem que não pode
ser nivelado pelos códigos vigentes, mas um homem que se recria e