Tertuliano - Apologia
CAPTULO I
Governantes do Imprio Romano:
Se, sendo constitudos para a administrao da justia em vosso
elevado Tribunal, sob os olhares de todos os cidados, ocupando ali
a mais elevada posio no Estado, vs no podeis abertamente inquirir e
perscrutar, diante de todo o mundo, a verdade real com respeito s
perseguies feitas contra os CristosSe, somente nesse caso, tendes
receio ou ficais inibidos para exercer vossa autoridade, fazendo
uma inquirio pblica com os cuidados que promovem a justiaSe,
finalmente, os extremos rigores usados para com nosso povo,
recentemente, em julgamentos privados, so para ns obstculo para
defender-nos perante vsEnto, seguramente no podeis impedir de a
Verdade chegar aos vossos ouvidos pelas vias secretas de um
silencioso livro.
A Verdade no tem como apelar para vos fazer verificar sua
condio, porque isso no promove vossa curiosidade por Ela. Ela sabe
que no seno uma transeunte na terra, e que entre estranhos,
naturalmente encontra inimigos. E, mais do que isso, sabe que sua
origem, sua habitao natural, sua esperana, sua recompensa, sua
honra esto l em cima. Uma coisa, enquanto isso, Ela deseja
ansiosamente dos governantes terrestres: no ser condenada sem ser
conhecida. Que dano pode causar s leis - supremas em seu poder -
conceder-lhe ser ouvida? Absolutamente nada lhe prejudicaria e sua
supremacia no seria mais distinguida ao conden-la, mesmo depois que
Ela apresentasse sua defesa? Mas se for pronunciada uma sentena
contra Ela, sem ter sido ouvida, ao lado do dio de uma injusta ao,
vs incorrereis na suspeita merecida de assim agirdes com alguma
inteno que injusta, como no desejando ouvir o que vs no estais
capacitados a ouvir e a condenar.
Colocamos isto ante vs como primeira argumentao pela qual
insistimos que injusto vosso dio ao nome de "Cristo". E a
verdadeira razo que parece escusar esta injustia (eu diria
ignorncia) ao mesmo tempo a agrava e a condena. Pois que o que mais
injusto do que odiar uma coisa da qual nada sabeis, mesmo se
pensais que ela merea ser odiada? Algo digno de dio somente quando
se sabe que merecido. Mas sem esse conhecimento, por que se
reivindicar justia? Pois se deve provar, no pelo simples fato de
existir uma averso, mas pelo conhecimento do assunto. Quando os
homens, portanto, cultivam uma averso simplesmente porque
desconhecem inteiramente a natureza da coisa odiada, quem diz que
no se trata de uma coisa que exatamente no deveriam odiar?
Assim, confirmamos que tanto so ignorantes enquanto nos odeiam,
e odeiam descabidamente, quanto quando continuam em sua ignorncia,
sendo uma coisa o resultado da outra, se no o instrumento da outra.
A prova de sua ignorncia, ao mesmo tempo condenando e se escusando
de sua injustia, esta - odeiam o Cristianismo porque no conhecem
nada sobre ele nem querem conhec-lo antes de por a todos debaixo de
sua inimizade.
Quantos, se antes foram seus inimigos, tornam-se seus discpulos.
Simplesmente aprendendo sobre eles, logo comeam a odiar o que antes
tinham sido e a professar o que antes tinham odiado. E o nmero
destes to grande que atraem a vossa preocupao. O clamor de que o
Estado est cheio de cristos - que esto nos campos, nos vilarejos,
nas ilhas; levantam-se lamentaes, como se por alguma calamidade,
pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e condies, mesmo de
classe alta, esto se convertendo profisso de f crist.
Entretanto, no ocorre a ningum o pensamento de que esto deixando
de ver alguma coisa boa. No se permitem que nenhum pensamento mais
justo chegue sua mente, no desejam fazer um julgamento mais
correto. Somente neste caso fica adormecida a curiosidade da
natureza humana. Preferem ficar ignorantes, embora aos outros o
conhecimento tenha trazido a felicidade.
Anacarse reprova o estpido prazer de criticar os cultos. Quanto
mais no reprovaria ele o julgamento daqueles que sabe que podem ser
denunciados por homens que so inteiramente ignorantes! Porque deles
preconcebidamente no gostam, no querem saber mais. Assim, prejulgam
aquilo que no conhecem at que, caso venham a conhec-lo, deixem de
lhe ter inimizade. Mas isso desde que pesquisem e nada encontrem
digno de sua inimizade, quando deixam, ento, certamente de ter uma
averso injusta. Entretanto, se seu mau carter se manifesta, em vez
de abandonarem o dio encontram mais uma forte razo para
perseverarem nesse dio, mesmo sob a prpria autoridade da
justia.
Mas argumenta algum: uma coisa no boa simplesmente porque as
multides se convertem a ela, pois que quantos so por sua natureza
inclinados para o que mal?! Quantos se desviam para os caminhos do
erro?! Isso verdade, sem dvida. Contudo uma coisa completamente m,
nem mesmo aqueles que a ela so levados ousam defend-la como boa. A
natureza encobre tudo o que mau com um vu, seja de medo seja de
vergonha. Por exemplo, vedes que criminosos ficam ansiosos para se
esconderem eles mesmos, evitam de aparecer em pblico, ficam
tremendo quando so caados, negam sua culpa quando so acusados e,
mesmo quando so submetidos tortura, no confessam facilmente, nem
sempre chegam a confessar; e quando no h dvidas sobre sua culpa,
lamentam o que fizeram. Em suas confisses admitem terem sido
impelidos por disposies malignas, at pem a culpa seja no destino,
seja nas estrelas. So incapazes de reconhecerem que aquilo veio
deles, porque eles prprios sabem que aquilo mau.
Mas o que tem isso de semelhante com o caso dos cristos? Eles se
envergonham ou se lamentam de no terem sido cristos h mais tempo.
Se so apontados cristos, disso se gloriam. Se so acusados, no
oferecem defesa. Interrogados, fazem uma confisso voluntria.
Condenados, agradecem... Que espcie de mal este que no apresenta as
peculiaridades comuns do mal, do medo, da vergonha, do subterfgio,
do arrependimento, do remorso? Que mal, que crime este de que o
criminoso se alegra? Serem acusados cristos seu mais ardente
desejo, serem punidos por isso sua felicidade! Vs no podeis chamar
isto de mal - vs que continuais convictos de nada saberdes do
assunto.
CAPTULO II
Se, repetindo, certo que somos os mais malvolos dos homens, por
que nos tratais to diferentemente de nossos companheiros, ou seja,
de outros criminosos, sendo justo que o mesmo crime deva receber o
mesmo tratamento? Quando os ataques feitos contra ns so feitos
contra outros, a esses so permitidos falarem ou contratar advogados
para demonstrar sua inocncia. Eles tm plena oportunidade de
resposta e de discusso.
De fato, contra a lei condenar algum sem defesa e sem audincia.
Somente os cristos so proibidos de dizerem algo em sua defesa, na
salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa deciso de direito.
Tudo o que levado em conta que o pblico, com dio, pede a confisso
de um "nome", no o exame da acusao, enquanto em vossas investigaes
ordinrias judiciais, no caso de um homem que confessa assassinato,
ou sacrilgio, ou incesto, ou traio - para se ter idia do crime de
que so acusados - vs no vos contentais em imediatamente emitir uma
sentena. No o fazeis at que examinais as circunstncias da confisso,
qual o tipo do crime, quantas vezes, onde, de que maneira, quando
ele o fez, quem estava com ele e quem tomou parte com ele no
crime.
Nada semelhante feito em nosso caso, embora as falsidades
disseminadas a nosso respeito devessem passar pelo mesmo exame para
saber quantas crianas foram mortas por cada um de ns, quantos
incestos cometemos cada um de ns na escurido, que cozinheiros, que
biltres foram testemunhas de nossos crimes. que grande glria para
os governantes que trouxessem luz alguns cristos que tivessem
devorado uma centena de crianas. Mas, em vez disso, constatamos que
mesmo uma inquisio, no nosso caso, proibida.
Plnio, o Moo, quando era governador de uma provncia, tendo
condenado alguns cristos morte, e abalado outros em sua firmeza,
mas ficando aborrecido com o grande nmero deles, procurou, em ltima
instncia, o conselho de Trajano, o imperador reinante, para saber o
que fazer com eles. Explicou a seu senhor que, com exceo de uma
recusa obstinada de oferecer sacrifcios, nada encontrou em seus
cultos religiosos a no ser reunies de manh cedinho em que cantavam
hinos a Cristo e a Deus, confirmando que, em suas casas, seu modo
de vida era um geral compromisso de ser fiel a sua religio,
proibido-se assassnios, adultrio, desonestidade e outros crimes. A
respeito disso, respondeu Trajano que os cristos no deveriam de
modo algum ser procurados, mas se fossem trazidos diante dele,
Plnio, deveriam ser punidos.
miservel libertao - de acordo com o caso, uma extrema contradio!
Probe-se que sejam procurados, na qualidade de inocentes, mas
manda-se que sejam punidos como culpados. ao mesmo tempo
misericordioso e cruel. Deixa-os em paz, mas os pune. Por que
entrais num jogo de evaso convosco mesmo, julgamento? Se vs os
condenais, por que tambm no os inquiris? Se no quereis inquiri-los,
por que no os absolveis?
Postos militares esto espalhados atravs de todas as provncias
para prenderem ladres. Contra traidores e inimigos pblicos, todo
cidado um soldado. Buscas so feitas mesmo de seus aliados e
auxiliares. Somente os cristos no devem ser procurados, embora
possam ser levados e acusados diante do juiz, se uma busca tiver um
resultado diferente do previsto. Deste modo, condenais um homem que
ningum deseja perseguir, quando ele vos apresentado e que, nem por
isso, merece punio. Suponho que no por sua culpa, mas porque,
embora seja proibido persegui-lo, ele foi encontrado.
Novamente, neste caso, no concordais conosco sobre os
procedimentos ordinrios de julgamento de criminosos, porque, no
caso de negarem, aplicais a tortura para forar uma confisso. Aos
cristos somente torturais para faz-los negarem. como se
considersseis que se somos culpados de algum crime, ns o negaramos,
e vs com vossas torturas nos forareis a uma confisso. Mas no podeis
pensar assim pois, na verdade, nossos crimes no requerem tal
investigao simplesmente porque j estais cientes por nossa confisso
do nome de nosso crime. Estais diariamente acostumados a isso,
sabendo de que crime se trata porque seno exigireis uma confisso
completa de como o crime foi executado.
Deste modo, agis com a mxima perversidade quando verificando
nossos crimes comprovados por nossa confisso do nome de Cristo, nos
levais tortura para obter nossa confisso que no consiste seno em
repudiar tal nome, e que logo deixais de lado os crimes de que nos
acusais quando mudamos nossa confisso. Suponho que, embora que
acreditando que sejamos os piores dos homens, no desejais que
morramos. No h dvida de que, por conseguinte, estais habituados a
compelir o criminoso a negar e a ordenar o homem culpado de
sacrilgio a ser torturado se ele persevera em sua confisso. esse o
sistema? Mas, ento, no concordais que sejamos criminosos, e nos
declarais inocente, e como inocentes que somos, ficais ansiosos
para que no perseveremos na confisso que sabeis que vos far assumir
uma condenao por necessidade, no por justia.
"Sou cristo" - o homem brada. Ele est lhe dizendo o que . Vs,
porm, desejareis ouvi-lo dizer que no o . Assumindo vosso cargo de
autoridade para extorquir a verdade, fazeis o mximo para ouvir uma
mentira nossa. "Eu sou o que me perguntais se eu sou" - ele diz.
Por que me torturais como criminoso? Eu confesso e vs me torturais.
O que me fareis se tivesse negado? Certamente a outros vs no dareis
crdito se negassem. Quando ns negamos, vs logo acreditais. Essa
perversidade vossa faz suspeitar que h um poder escondido no caso,
sob a influncia do qual agis contra os hbitos, contra a natureza da
justia pblica, at mesmo contra as prprias leis. Pois que - salvo se
estou errado - as leis obrigam a que os malfeitores sejam
procurados e no que sejam acobertados. A lei foi feita para que as
pessoas que praticarem um crime sejam condenadas, e no absolvidas.
Os decretos do Senado, as instrues dos vossos superiores expem isso
claramente. O poder do qual sois executores civil, no uma tirnica
dominao. Entre tiranos, de fato, os tormentos so utilizados para
serem aplicados como punies; entre vs so mitigados como um
instrumento de interrogatrio. Guardai vossa lei como necessria at
que seja obtida a confisso. E se a tortura antecipada pela
confisso, no h necessidade dela. A sentena foi passada. O criminoso
deve ser entregue ao castigo devido e no libertado.
De acordo com isso, ningum anseia pela absolvio do culpado, no
certo desejar isso, e assim ningum nunca deve ser compelido a
negar. Bem, julgais um cristo um homem culpado de todos os crimes,
um inimigo dos deuses, do Imperador, das leis, da boa moral de
qualquer natureza. Contudo vs o obrigais a negar, porque, assim,
podeis absolv-lo, o que sem sua negao no podeis faz-lo. Vs agis
rpido e desmereceis as leis. Quereis que ele negue sua culpa,
porque podeis sempre, mesmo contra sua vontade, isent-lo de censura
e livrar-lhe de toda culpa em referncia a seu passado. De onde vem
essa estranha perversidade da vossa parte? Como no refletis que uma
confisso espontnea mais digna de crdito do que uma negao obrigada?
Considerai que, quando compelido a negar, a negao de um homem pode
ser feita de m f, e se absolvido, ele pode, agora e ali, logo que o
julgamento termine, rir da vossa hostilidade; e um cristo
igualmente.
Vendo, ento, que em tudo agis conosco diferentemente de que com
outros criminosos, preocupados por um nico objetivo - o de obter de
ns o nosso nome (na verdade, no nos cabe dizer que os cristos no
existam) - fica perfeitamente claro que no h crime de nenhuma
espcie nesse caso, mas simplesmente um nome que um determinado
sistema - mesmo indo contra a verdade - persegue com sua inimizade.
E age assim principalmente com o objetivo de se assegurar que os
homens no venham a ter como certo o que conhecem como certo e de
que esse sistema completamente desconhecedor.
Consequentemente, tambm, acontece que eles acreditam em coisas
sobre ns das quais no tm prova, sobre as quais no esto inclinados a
pesquisar, incomodados com as perseguies. Eles gostariam mais de
confiar, pois est provado que nada h de fundamentado contra os
cristos. Com esse nome to hostil quele poder rival - seus crimes
sendo presumidos, no provados - eles poderiam ser condenados
simplesmente por causa de sua prpria confisso. Assim, somos levados
tortura se confessamos e somos punidos se perseveramos, mas se
negamos somos absolvidos porque toda a hostilidade contra o
nome.
Finalmente, por que ides constar em vossas listas que tal homem
cristo? Por que no tambm que ele um criminoso, por que no um
culpado de incesto ou de outra coisa vil de que nos acusais?
Somente em nosso caso, ficais incomodados ou envergonhados de
mencionar os nomes verdadeiros de nossos crimes. Se ser chamado
"Cristo" no implica em nenhum crime, esse nome seguramente muito
odiado quando por si s constitui crime.
CAPTULO III
Que pensarmos disto: a maioria do povo to cega bate suas cabeas
contra o odiado nome de "Cristo"? Quando do testemunho de algum,
eles confundem com averso o nome de quem testemunham. "Gaio Seius
um bom homem" - diz algum... "s que cristo". E outro: "Fico atnito
como um homem inteligente como Lcio pode de repente se tornar
cristo". Ningum considera necessrio apreciar se Gaio bom ou no, e
Lcio, inteligente ou no. O que conta no caso se cristo ou se cristo
embora sendo inteligente e bom. Eles louvam o que conhecem e
desprezam aquilo que no conhecem. Baseiam seu conhecimento em sua
ignorncia embora, por justia, preferencialmente se deva julgar o
que desconhecido pelo que conhecido e no o que conhecido pelo que
desconhecido.
Outros, no caso de pessoas a quem conheceram antes de se
tornarem cristos, que conheciam como mundanas, vis, ms,
aplicam-lhes a marca da qualidade que verdadeiramente apreciam. Na
cegueira de sua averso, tornam-se grosseiros em seu prprio
julgamento favorvel: "Que mulher era ela! Que temerria! Como era
alegre! Como ele era jovem! Que descarado! Como era amigo do
prazer! - E pena, se tornaram cristos!".
Assim, o nome odiado usado preferencialmente a uma reforma de
carter. Alguns at trocam seus confortos por este dio,
satisfazendo-se em cometer uma injria para livrarem sua casa dessa
sua mais odiosa inimizade. O marido, agora no mais ciumento,
expulsa de sua casa a esposa, agora casta. O pai, que costumava ser
to paciente, deserda o filho, agora obediente. O patro, outrora to
educado, manda embora o servo, agora fiel. Constitui grave ofensa
algum reformar sua vida por causa do nome detestado. Bondade de
menos valor do que o dio aos Cristos.
Bem, ento, se tal a averso pelo nome, que censura podeis vs
aplicar a nomes? Que acusao podeis levantar contra simples
designaes, a no ser que o nome indique algo brbaro, algo desgraado,
algo vil, algo libidinoso. Mas Cristo, tanto quanto indica o nome,
derivado de "ungido". Sim, e mesmo quando pronunciado de forma
errada por vs, "Chrestianus", - por vs que no sabeis precisamente o
nome que odiais - ele lembra doura e benignidade.
Odiais, portanto, gratuitamente, um nome inocente.
Mas o especial motivo de desagrado com a seita que lembra o nome
de seu Fundador. Existe novidade numa seita religiosa que d a seus
seguidores o nome de seu Mestre? No so os filsofos designados com o
nome dos fundadores de seus sistemas: Platnicos, Epicuristas,
Pitagricos? No so os Esticos e Acadmicos assim chamados tambm por
causa dos lugares nos quais se reuniam e permaneciam? No so os
mdicos chamados por nome derivado de Erasistrato, os gramticos, de
Aristarco, e tambm os cozinheiros, de Apcio? E, contudo, a exibio
do nome, derivado do fundador original, ou qualquer nome designado
por ele, no ofende a ningum. No h dvida de que se a seita se
comprova malfica, e, igualmente, mau seu fundador, isso nos leva a
considerar malfico o nome e nos merece averso o carter seja da
seita, seja do autor. Antes, contudo, de assumir uma averso ao
nome, sois obrigados a julgar a seita pelo que o autor, ou o autor
pelo que a seita.
Mas, no caso em questo, sem nenhum exame ou conhecimento de
ambos, o simples nome se torna objeto de acusao; o simples nome
atacado, e somente uma palavra leva condenao da seita e de seu
autor, conquanto a ambos desconheceis, mas apenas porque eles tm
tal e tal nome, no porque foram julgados por algo errado.
CAPTULO IV
Assim, tendo feito essas observaes como se fossem um prefcio,
pelo qual mostro em verdadeiras cores a injustia do nosso inimigo
pblico, posso agora fundamentar o argumento da nossa inocncia. E
poderei no somente refutar as coisas de que nos acusam, como tambm
replicar aos nossos acusadores, para que assim todos saibam que os
Cristos esto inocentes desses muitos crimes que os acusadores sabem
existirem entre eles mesmos, mas que, em suas acusaes contra ns,
consideram vergonhosos.
So acusaes - eu no saberia dizer - dos piores homens contra os
melhores, pois eles mesmos praticam tais crimes; [acusam] contra
aqueles que, no caso, apenas seriam seus companheiros de
pecado!
Poderemos refutar a acusao dos variados crimes de que nos acusam
cometer em segredo, j que os vemos cometendo-os luz do dia. Como so
culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, so
merecedores de castigo, caindo no ridculo.
Mas, mesmo que nossa verdade vos refute com sucesso em todos os
pontos, vem se interpor a autoridade da lei, como um ltimo recurso,
e alegais que suas determinaes so absolutamente conclusivas, que
devem ser obedecidas, embora de m vontade, e preferidas
verdade.
Assim, nesse assunto das leis, me entenderei primeiramente
convosco como sendo elas vossos protetores escolhidos. Em primeiro
lugar, quando rigidamente as aplicais em vossas declaraes: "No
legal a vossa existncia", e, com rigor sem hesitaes, ordenais que
assim continue, estais demonstrando a dominao violenta e injusta de
uma simples tirania, afirmando que algo ilegal simplesmente porque
quereis que seja ilegal e no porque deva ser ilegal. Mas se quereis
que seja ilegal porque tal coisa no merece ser legal, sem dvida no
deve ser dada permisso da lei para o que prejudicial.
Deste modo, de fato, j est definido que o que benfico legtimo.
Bem, se eu verificar algo que em vossa lei proba ser bom porque
algum concluiu assim por opinio prvia, no perdeu seu poder de me
proibi-la, embora se tal coisa fosse m poderia me proibi-la?
Se vossa lei incidiu em erro, de origem humana, julgo. Ela no
caiu do cu. No admirvel que um homem possa errar ao fazer uma lei
ou cair em seus sentidos e rejeit-la? Os Lacedemonios no emendaram
as leis do prprio Licurgo, da causando tal desgosto a seu autor que
ele se calou, e se condenou a si prprio morte por inanio? No
estais, a cada dia, fazendo esforos para iluminar a escurido da
antigidade, eliminando e aparando com os novos machados das
prescries e editos todos os galhos obsoletos e emaranhados das
vossas leis?
Severo, o mais resoluto dos governantes, no acabou somente ontem
com as leis do ridculo Ppias, que compeliam as pessoas a terem
filhos antes que as leis de Juliano as permitissem contrair
matrimnio e isso embora tivessem a autoridade da idade a seu favor?
Houve leis, tambm, antigamente, legislando que as partes contra as
quais havia sido dada uma deciso, podiam ser cortadas aos pedaos
por seus credores.
Contudo, por consenso comum, aquela crueldade foi posteriormente
retirada dos regimentos, e a pena capital se transformou numa marca
de vergonha. Adotando o plano de confiscar os bens dos devedores,
obteve-se mais tingindo de rubor suas faces do que fazendo jorrar
seu sangue. Quantas leis permanecem escondidas fora das vistas que
ainda necessitam ser reformadas! Para isso, nem o nmero de seus
anos, nem a dignidade de seus legisladores que as recomendam, mas
simplesmente se so justas; e, portanto, quando sua injustia
reconhecida, so merecidamente condenadas.
At mesmo os governantes as condenam. Ento, por que os chamamos
injustos? No apenas! Se eles punem simples nomes, podemos cham-los
de irracionais. Mas, eles punem atos! Por que, em nosso caso,
castigam atos somente com fundamento num nome enquanto nos outros
casos exigem que eles sejam provados no apenas por um nome, mas
pelo mal feito?
Eu sou praticante de incesto (assim o dizem): por que no fazem
uma investigao sobre isso? Eu sou um matador de crianas, por que no
aplicam a tortura para obterem de mim a verdade? Eu sou culpado de
crimes contra os deuses, contra os Csares. Por que? Ora, eu sou
capaz de me defender, por que sou impedido de ser ouvido em minha
prpria crena?
Nenhuma lei probe examinar minuciosamente os crimes que
condenam, porque um juiz nunca aplica um castigo adequado se no est
bem seguro de que foi cometido um crime, nem obriga um cidado s
justas cominaes da lei, se no sabe a natureza do ato pelo qual est
sendo punido. No suficiente que a lei seja justa, nem que o juiz
esteja convencido da sua justia. Aqueles dos quais se espera
obedincia devero estar convencidos disto tambm.
No apenas! Uma lei fica sob forte suspeita se no se preocupam
que ela mesma seja examinada e aprovada. realmente uma m lei se, no
homologada, tiranizar os homens.
CAPTULO V
Para mencionar algumas palavras sobre a origem de tais leis das
quais estamos agora falando, cito um antigo decreto que diz que
nenhum deus deve ser institudo pelo imperador antes que
primeiramente seja aprovado pelo Senado.
Marco Emlio passou por essa experincia com relao a seu deus
Alburno. E assim, tambm, acontece em nosso caso, porque entre vs a
divindade deificada por julgamento dos seres humanos. A no ser que
os deuses dem satisfao aos homens, no lhe reconhecida a divindade:
Deus deve ser propcio ao homem.
Tibrio, em cujos dias surgiu o nome Cristo no mundo, tendo
recebido informaes da Palestina sobre os acontecimentos que
demonstraram claramente a verdade da divindade de Cristo, levou,
adequadamente, o assunto ante o Senado com sua prpria deciso a
favor de Cristo. O Senado rejeitou sua proposta porque no fora ele
mesmo que dera sua aprovao. O imperador manteve sua posio ameaando
com sua ira todos os acusadores dos cristos.
Consultai vossas histrias. Verificareis que Nero foi o primeiro
que atacou com seu poder imperial a seita Crist, fazendo isso,
ento, principalmente em Roma. Mas ns nos gloriamos de termos nossa
condenao lavrada pela hostilidade de tal celerado porque quem quer
que saiba quem ele foi, sabe que nada a no ser uma coisa de
especial valor seria objeto da condenao de Nero.
Domiciano, igualmente, um homem do tipo de Nero em crueldade,
tentou erguer sua mo em nossa perseguio, mas possua algum
sentimento humano; logo ps um fim ao que havia comeado, chegando a
restituir os direitos daqueles que havia banido.
Assim, como foram sempre nossos perseguidores, homens injustos,
mpios, desprezveis, dos quais vs mesmos nada tendes de bom a dizer,
vs tendes por costume revalidar suas sentenas sobre ns, os
perseguidos. Mas entre tantos prncipes daquele tempo at nossos
dias, dotados de alguma sabedoria divina e humana, assinalem um
nico perseguidor do nome Cristo. Bem pelo contrrio, ns trazemos
ante vs um que foi seu protetor, como podereis ver examinando as
cartas de Marco Aurlio, o mais srio dos imperadores, cartas nas
quais ele d seu testemunho daquela seca na Germnia que terminou com
as chuvas obtidas pelas preces dos cristos, as quais permitiu que
os germnicos fossem atacados. Como no pde suspender a ilegalidade
dos cristos por lei pblica, contudo, a seu modo, ele a colocou
abertamente de lado e at acrescentou uma sentena de condenao, esta
da maior severidade, contra os seus acusadores.
Que qualidade de leis so essas que somente os mpios e injustos,
os vis, os sanguinrios, os sem sentimentos, os insanos, executam
contra ns? Que Trajano por muito tempo tornou nula proibindo
procurar os cristos? Que nem Adriano, embora dedicado no procurar
tudo o que fosse estranho e novo, nem Vespasiano, embora fosse o
subjugador dos Judeus, nem Pio, nem Vero, jamais as puseram em
prtica?
Certamente, seria considerado mais natural homens maus serem
aniquilados por bons prncipes, na qualidade de seus naturais
inimigos, do que o serem aqueles possuidores de espirito
assemelhado com o desses ltimos.
CAPTULO VI
Eu gostaria de ter agora esses protetores inteligentes e
defensores das leis e instituies de seus ancestrais, em ateno sua
fidelidade, honra e submisso que demonstraram s instituies
ancestrais; eles que partiram do nada; eles que em nada se
afastaram das antigos normas; eles que nada relegaram do que mais
til e necessrio, como normas de uma vida virtuosa.
O que aconteceu com as leis que reprimiam os caros e ostensivos
modos de vida? Que proibiam gastar mais do que cem asses num
jantar, e mais do que uma ave para se sentar mesa por algum tempo,
e essa no engordada... Que expulsavam severamente um patrcio do
Senado, como se conta, porque ambicionava ser demasiado poderoso,
porque tinha lucrado 10 libras de prata... Que fechavam os teatros
logo que comeassem a debochar das maneiras do povo... Que no
permitiam que a insgnia de dignidades de oficial ou de nobre
nascimento fossem precipitadas ou impunemente usurpadas...
Pois eu vejo os jantares de uma centena de asses se apresentarem
agora, no como de uma centena de asses, mas que gastam um milho de
sestrcios1. Vejo que minas de prata so feitas em cinzas (isso,
alis, pouco se fossem apenas os senadores que fizessem tal, e no
tambm os libertos ou tambm os simples espoliadores).
E vejo, tambm, que um simples teatro no o suficiente, nem h
teatros descobertos: no h dvidas que isso em busca desse imoderado
luxo, que poderia at no ser desprezvel no inverno, pois que os
Lacedemonios inventaram seus capotes de l para os jogos.
Vejo agora que no h diferena entre as vestes das senhoras e das
prostitutas. Com respeito s mulheres, na verdade, aquelas leis de
vossos pais, que costumavam ser de encorajamento modstia e
sobriedade, caram tambm em desuso. Ento, uma mulher no sabia o que
era possuir, com suas economias, ouro no dedo que no fosse o do
anel nupcial com que seu marido tinha, de forma sagrada, se
comprometido.
Ento, a abstinncia das mulheres quanto ao vinho era levada to a
srio que uma senhora, por abrir o compartimento da adega de vinho,
foi condenada morte por inanio pelos seus amigos. No tempo de
Rmulo, Mecnio matou sua esposa simplesmente por testar um vinho,
nada sofrendo por conta dessa morte. Com referncia a isso, tambm,
era costume das mulheres beijar seus parentes porque eles podiam
ser conhecidos por seu hlito.
Onde est a felicidade da vida de casado, sempre to desejvel, que
distinguiam nossos antigos costumes e por consequncia dos quais por
cerca de 600 anos no houve entre ns um nico divrcio?
Agora, as mulheres tm cada membro do corpo carregado com ouro,
beber vinho to comum entre elas que nunca do o beijo
espontaneamente, e para forar o divrcio, elas sonham com ele como
se fosse a consequncia natural do casamento.
As leis de vossos antepassados em sua sabedoria regulavam a
respeito dos prprios deuses, as quais, vs, seus descendentes,
revogaram.
Os cnsules, por autoridade do Senado, baniram o Pai Baco e seus
cultos, no simplesmente da cidade, mas de toda Itlia. Os cnsules
Piso e Gabnio, decerto no cristos, impediram os deuses Serpis, sis
e Arpocrates, com seu amigo cabea de co, de serem admitidos no
Capitlio, cassando-os de imediato da assemblia dos deuses,
destruindo seus altares, expulsando-os do pas, ansiosos de evitarem
que se espalhassem os vcios em que se baseavam, bem como sua
religio lasciva. A esses vs restaurastes e lhes conferistes as
honras.
O que aconteceu com vossa religio, que venerava os vossos
ancestrais? Em vossas vestes, em vossos alimentos, em vosso estilo
de vida, em vossas opinies, e, por ltimo, em vossos ensinamentos,
renunciastes aos vossos progenitores!
Estais sempre louvando os tempos antigos e, contudo, a cada dia
aceitais novidades em vosso modo de vida. Falhastes em manter o que
deveis, fazeis isso claramente, porque enquanto abandonastes os
bons costumes de vossos pais, retendes e guardais aquilo que no
deveis.
Ainda que pareais defender to fielmente a tradio verdadeira, na
qual encontrais a principal razo de acusao contra os Cristos -
quero dizer, o zelo na adorao aos deuses, ponto principal no qual
os antigos incidiram em erro, embora tenhais reconstrudo os altares
de Serpis, agora uma divindade romana, e a de Baco, agora tornado
um deus da Itlia, a quem ofereceis vossas orgias - demonstrarei na
ocasio adequada, contudo, que desprezais, negligenciais e destrus a
autoridade dos antigos, pondo-a inteiramente de lado.
Vou, por enquanto, responder quela infame acusao de crimes
secretos, trazendo as coisas luz do dia.
CAPTULO VII
Monstros de maldade, somos acusados de realizar um rito sagrado
no qual imolamos uma criancinha e ento a comemos, e no qual, aps o
banquete, praticamos incesto, e os ces, nossos alcoviteiros, pois
no, apagam as luzes para na imoralidade da escurido nos entregarmos
a nossas mpias luxurias!
Isto o que constantemente usais para nos perseguir, embora no
tenhais tido o cuidado de elucidar a veracidade de tais coisas de
que somos acusados h tanto tempo. Tragam, ento, esse assunto luz do
dia, se acreditais nisso, ou no lhes deis crdito, se nunca
investigastes a respeito. Com base nesse dissimulado jogo, somos
levados a vos esclarecer que no verdade um fato que no ousais
investigar.
Determinais aos executores, no caso dos Cristos, um processo bem
diferente de investigao: no lhes cabe fazer-nos confessar o que
praticamos, mas fazer-nos negar o que somos.
Datamos a origem de nossa religio, como antes j mencionamos, do
tempo do reino de Tibrio. A verdade e a averso verdade vieram ao
mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como
inimiga. Nesse processo h tantos loucos quantos desconhecedores
dele: os Judeus, como se deve pensar, levados por um espirito de
rivalidade; os soldados, levados pelo desejo de extorquir dinheiro;
nossos domsticos, levados por sua natureza. Somos diariamente
atacados por ensandecidos, diariamente trados, somos muitas vezes
surpreendidos em nossas assemblias ou cultos.
Quem encontrou algo por pequeno que seja sobre uma criana
chorando, de acordo com o boato popular? Quem procurou o juiz
porque encontrou, de fato, as ensangentadas fauces dos Ciclopes e
das Sereias? Quem achou quaisquer traos de impureza em nossas
vivas? Onde est o homem que quando encontrou tais atrocidades as
ocultou? Ou ser que no ato de levar os culpados presena do juiz foi
subornado para no proceder a acusao?
Se sempre mantemos nossos segredos, quando se tornaram
conhecidos do pblico nossos atos? Ento, por quem poderiam ter sido
desvendados? De certo no pelos prprios acusados, mesmo porque h o
conceito de fidelidade ao silncio que sempre prpria dos mistrios.
Por acaso, os Samotrcios e os Eleusnios no escondem o quanto
procuram manter silncio a respeito do que verdadeiramente so, em
seus segredos, promovendo castigos humanos oportunos e ameaando com
a futura ira divina?
Se, ento, os Cristos no so eles prprios os denunciadores de seus
crimes, conclui-se que so os estranhos. E como tm conhecimento
deles, quando tambm um costume universal nas iniciaes religiosas
manter os profanos distncia e se precaver de testemunhas? A menos
que acontea que esses que so to perversos tenham menos medo do que
seus vizinhos!
Todo mundo sabe que coisa o boato. Diz um de vossos provrbios:
"Dentre todos os males nada voa mais depressa do que o boato".
porque ele d informaes? Ou porque ele tremendamente mentiroso? No
uma coisa que nem mesmo quando diz alguma verdade, apresenta uma
mancha de falsidade, seja detratando, seja aumentando, seja mudando
o fato em si? E no faz parte de sua natureza sobreviver somente
enquanto mente, e viver somente enquanto no h provas? Pois que
quando se tem a prova, ele deixa de existir.
Tendo feito seu trabalho de simplesmente espalhar uma notcia,
ele conta algo que da em diante passa a ser um fato e a ser chamado
um fato. Ento, j ningum diz, por exemplo: "Dizem que aconteceu em
Roma", ou "H um boato de que ele ganhou uma provncia", mas "Ele
ganhou uma provncia", e "Aconteceu em Roma". Boato a verdadeira
designao da incerteza, no sobrevive quando o fato comprovado.
Ningum exceto um louco confia nele, no ? Um homem prudente nunca
acredita naquilo que duvidoso.
Todo mundo sabe como ele se espalha com afinco, como sobrevive
com uma afirmao sem limites, como apenas uma vez ou outra que
mostra sua origem. Por isso, necessita se infiltrar atravs das
lnguas e ouvidos. Uma pequena semente obscurece toda a histria, de
modo que ningum pode determinar se os lbios dos quais se originou,
plantou a semente da falsidade, como muitas vezes acontece, por um
espirito de oposio ou por um julgamento suspeito ou por um
julgamento confirmado ou, como em alguns casos, por um inato prazer
em mentir.
certo que o tempo traz tudo luz, como vossos provrbios e ditos
testemunham, por um procedimento da natureza da verdade que desvela
as coisas de tal modo que nada fica escondido por muito tempo,
mesmo embora o boato no o faa.
justamente, ento, o que deve acontecer, com essa fama to
duradoura que denuncia os crimes dos cristos.
Esse boato a testemunha que trazeis contra ns - boato que nunca
foi capaz de provar a acusao que vez ou outra se espalha e,
ultimamente, por simples repetio se fez opinio firmada no
mundo.
Assim, confiantemente apelo quela natureza da verdade, sempre
reveladora, contra os que infundadamente levantam tais acusaes.
CAPTULO VIII
Atentai agora! Apresentamo-vos a recompensa por essas
monstruosidades: os Cristos prometem a vida eterna. Asseguram-na
assim tambm como de vossa prpria convico.
Pergunto-vos: se assim crem, no julgais que se faro dignos de
obt-la mantendo uma conscincia igual a que pretendeis ter? Vamos,
enfiai vossa faca numa criana que no faz mal a ningum, toda
inocncia, amada por todos. Ou se isso feito por outro, simplesmente
assisti de vosso lugar a um ser humano morrendo antes de ter
realmente vivido, esperai a partida da ltima alma, recebei o sangue
fresco, molhai com ele vosso po, participai disso livremente.
Enquanto vos reclinais mesa, vede os lugares que vossa me e vossa
irm ocupam. Guardai-os bem, de modo que quando o co trouxer a
escurido para vos envolver, no possais cometer erro, porque sereis
culpados de crime se no cometerdes uma ao de incesto.
Iniciados e marcados em semelhantes barbaridades, tendes a vida
eterna! Dizei-me, imploro-vos, a eternidade digna disso? Se no ,
ento tais coisas no devem merecer crdito.
Mesmo se acreditastes, nego essa vossa vontade. E mesmo se
tivestes a vontade, nego a possibilidade. Por que, ento, outros
poderiam faz-lo? Por que no podeis se outros podem? Suponho, ento,
que somos de uma natureza diferente. Somos Ces ou Monstros? Sois
homens tanto quanto os cristos; se no podeis faz-lo, no podeis
acreditar que outros o possam, porque os cristos so humanos tanto
quanto vs.
Mas os que desconhecem essas coisas certamente esto
decepcionados e se prevalecem disso. Esto perfeitamente inscientes
de que algo dessa natureza imputado aos cristos ou, certamente, se
informaram por si prprios e desvendaram o assunto.
Mas, em vez disso, costume das pessoas que desejam iniciao a
ritos sagrados, penso eu, ir antes de tudo ao Lder deles para que
lhes possa explicar os preparativos que devem ser feitos. Ento,
nesse caso, no h dvidas que este diria: deveis levar uma criana
ainda de tenra idade, que no saiba o que morrer, e possa sorrir sob
vossa faca; tambm, po para aparar o sangue que correr. Alm disso,
candelabros, lmpadas, e ces, com iscas para atra-los ao apagar das
luzes. E, antes de tudo, deveis levar vossa me e vossa irm
convosco. Mas o que fazer se a me e a irm no quiserem ir? Ou se no
tiver nem uma nem outra? O que fazer se houver cristos sem parentes
cristos? No ser tido, suponho, por um verdadeiro seguidor de
Cristo, quem no tiver um irmo ou um filho.
E o que acontecer, se essas coisas todas estiverem dispostas
como dito, sem o conhecimento deles? No mximo, depois que eles os
virem, se afastam e os perdoam.
Temem - de se concluir - que pagaro por isso se divulgarem o
segredo? De modo algum, antes iro, em tal caso, pedir proteo.
Preferiro mesmo - pode-se entender - morrer por suas prprias mos a
viver sob o fardo de to terrvel conhecimento. Admitamos que eles
tero medo. Contudo por que eles iriam continuar com a coisa?
Pois bastante claro que vs no desejareis continuar sendo o que
nunca quisestes ser, se tivsseis tido prvio conhecimento do
assunto.
CAPTULO IX
Eis como posso refutar tais acusaes: mostrar-vos-ei prticas que
vigoram entre vs, em parte abertamente, em parte secretamente, que
vos levaram, talvez, a nos acusar de coisas semelhantes.
Os meninos eram sacrificados abertamente na frica a Saturno at o
proconsulado de Tibrio, que exps vista do pblico os seus sacerdotes
crucificados nas rvores sagradas, que lanavam sombras sobre seus
templos - tantas eram as cruzes nas quais a justia exigida aplicou
o castigo por seus crimes, como os nossos soldados podem ainda
testemunhar, tendo sido, de fato, esta uma obra daquele Procnsul.
At presentemente aquele criminoso culto continua a ser feito,
secretamente.
No seriam somente os Cristos, estais vendo, que vos
menosprezariam, porque com isso tudo o que fazeis nenhum crime foi
inteiramente e permanentemente erradicado, nem nenhum de vossos
deuses reformou seus costumes. Se Saturno no poupou seus prprios
filhos, ele tambm no poupou os filhos dos outros, e os pais desses,
na verdade, tinham, eles mesmos, o hbito de fazer tal oferenda,
atendendo contentes ao pedido que lhes era feito, mantendo as
crianas satisfeitas na ocasio, para que no morressem aos
choros.
Destacamos tambm que h uma grande diferena entre homicdio e
parricdio. Mas homens idosos eram sacrificados a Mercrio, nas
Glias. Tenho em mos as lendas turicas feitas para vossos prprios
teatros. Por que, mesmo nesta profundamente religiosa cidade de
piedosos descendentes de Enias, h um certo Jpiter que em vossos
jogos banhado com sangue humano? o sangue de um lutador feroz,
dizeis. Por isso, o sangue de um homem se torna irrelevante? Ou no
mais infame o sangue porque corre das veias de um homem mau? De
qualquer modo, sangue derramado at a morte. Jpiter, vs soi um
Cristo, e de fato, por vossa crueldade, digno filho de vosso
pai!
Mas com respeito morte de uma criana, como se no interessasse se
fosse cometido para um sagrado culto, ou simplesmente por um
impulso prprio (embora haja uma grande diferena, como dissemos,
entre parricdio e homicdio), me voltarei para o povo em geral. A
quantos - pensai nisso - desses aglomerados de pessoas investindo
em busca de sangue Cristo, a quantos, mesmo, de vossos governantes,
notveis por sua justia para convosco e por suas severas medidas
para conosco, posso acusar perante sua conscincia do pecado de
condenar sua descendncia morte?
Se h alguma diferena no tipo de assassinato, a forma mais cruel
certamente matar por afogamento ou exposio ao frio, fome e aos ces.
Uma costume mais civilizado tem sempre preferido a morte pela
espada.
Em nosso caso, para os cristos, a morte foi de uma vez por todas
proibida. No podemos nem mesmo destruir o feto no tero, porque,
mesmo ento, o ser humano retira sangue de outras partes de seu
corpo para sua subsistncia. Impedir um nascimento simplesmente uma
forma mais rpida de matar um homem, no importando se mata a vida de
quem j nasceu, ou pe fim a de quem est para nascer. Esse um homem
que est se formando, pois tendes o fruto j em sua semente.
Com relao a alimentos de sangue e de outros to macabros pratos -
Eu no estou seguro onde li isto, em Herdoto, penso - o sangue
tirado dos braos e bebido por ambas as partes, constitua um aval ao
tratado entre algumas naes. No estou certo se foi assim bebido no
tempo de Catilina. Dizem, tambm, que entre algumas tribos citas os
amigos so comidos por seus amigos. Mas estou indo longe demais de
casa.
Atualmente, mesmo entre vs, o sangue consagrado a Bellona,
sangue retirado da coxa perfurada e ento partilhada, sela a iniciao
aos ritos daquela divindade. Que dizer daqueles, tambm, que nos
espetculos dos gladiadores, para a cura da epilepsia, bebem com
gananciosa sede o sangue dos criminosos mortos na arena, assim que
corre fresco de seus ferimentos, apressando-se para chegarem aos
que lhes pertencem? E daqueles, tambm, que fazem alimentos no
sangue de feras selvagens no lugar dos combates - que tm agudo
apetite por ursos e veados? Na luta, esse urso foi molhado com o
sangue do homem dilacerado por ele; aquele veado rolou no sangue do
gladiador ferido pelas suas chifradas. As entranhas das prprias
feras, embora misturadas com indigestas vsceras humanas, so muito
procuradas. E de vossos homens disputando carne nutrida por carne
humana?
Se vs partilhais de alimentos como esses, em que vossos repastos
diferem daqueles de que acusais a ns, cristos? Aqueles que, com
luxria selvagem, disputam corpos humanos, cometem menor mal porque
devoram os vivos? Esto menos contaminados do sangue humano porque
degustam aquilo que est para se tornar sangue? Eles se alimentam,
isto evidente, no tanto de crianas, como de adultos.
Ruborizai-vos por vossos vis costumes perante os cristos, que no
tm sequer o sangue de animais entre seus alimentos, alimentos que
so simples e naturais, que se abstm de animais estrangulados ou que
morrem de morte natural. E isso pela nica razo de que eles no
querem se contaminar, nem mesmo de sangue contido nas vsceras.
Para encerrar o assunto com um simples exemplo, vs tentais os
cristos com lingias de sangue, exatamente porque estais
perfeitamente cientes de que assim tentais faz-los transgredir o
hbito que eles consideram ilegal. E como irracional acreditar que
aqueles sobre os quais bem sabeis que olham com horror a idia de
beber o sangue de bois, estejam ansiosos por sangue de homens. Isso
a no ser que vs tenhais saboreado o sangue humano e o achastes mais
gostoso!
Sim, realmente, eis aqui um teste que podereis aplicar para
descobrir os cristos, bem como a panela e o censor. Eles poderiam
ser testados pelo seu apetite por sangue humano, tanto quanto por
sua recusa de oferecer sacrifcios. E assim como poder-se-ia afirmar
serem cristos por sua recusa de beber sangue e sua recusa de
oferecer sacrifcios, no haveria necessidade de sangue de homens, to
solicitado como nas torturas e na condenao dos prisioneiros
cristos.
Ora, quem se entrega mais ao crime de incesto do que aqueles que
seguem as instrues do prprio Jpiter? Csio nos diz que os persas
mantm relao carnal ilcita com suas mes. Os macednios, igualmente,
so suspeitos do mesmo; porque ouvindo pela primeira vez a tragdia
de dipo, eles coroaram com mirto o incesto, com exclamaes em sua
lngua.
Ainda atualmente, reflitam quantas oportunidades existem para
erros que vos levem a unies incestuosas - vosso promscuo
relaxamento fornece essas oportunidades. Antes de tudo, abandonais
vossas crianas que podem ser levadas por qualquer transeunte
compadecido, para os quais elas so totalmente desconhecidas; ou as
entregais para serem adotados por aqueles que podem cumprir melhor
para elas o papel de pais. Bem, com algum tempo toda a memria do
parentesco alienado pode ser esquecida; e quando se faz um erro, a
transmisso do incesto poder at ocorrer - o parentesco e o crime
caminhando juntos. Pois, mais tarde, onde estejais, em casa ou
fora, nos mares - vossa luxria est vossa disposio, com indulgncia
geral, ou mesmo com uma menor indulgncia, e podeis facilmente, e no
propositadamente, procriar em algum lugar uma criana, de modo que
dessa maneira um parente lanado na corrente da vida poder vir a ter
relao carnal com aqueles que so de sua prpria carne, sem ter noo
que est ocorrendo incesto no caso.
Uma castidade perseverante e firme nos tem protegido de algo
assim, pois, resguardando-nos, como fazemos, de adultrios e todas
as infidelidades aps o matrimnio, no estamos expostos a infortnios
incestuosos. Alguns de ns - tornando o assunto ainda mais seguro -
nos abstemos inteiramente do pecado sensual, pela continncia
virginal; mesmos meninos nossos tomam tal deciso quando ficam
adultos. Se tiverdes notcia de que tais pecados que mencionei
existem entre vs, examinem e vejam que eles no existem entre os
cristos.
Os mesmos olhos podero constatar ambos os fatos. Mas as duas
cegueiras caminham juntas. Aqueles que no vem o que acontece,
pensam que vem o que no acontece. Demonstrarei como ocorre assim em
qualquer assunto. Mas, por enquanto deixai-me falar de assuntos que
so mais importantes.
CAPTULO X
Vs nos acusais: "No adorais os deuses e no ofereceis sacrifcios
aos imperadores".
Sim, no oferecemos sacrifcios a outros pela mesma razo pela qual
no os oferecemos a ns mesmos, ou seja, porque vossos deuses no so,
de modo algum, referenciais para nossa adorao. Por isso, somos
acusados de sacrilgio e de traio. Esse o principal fundamento de
vossa perseguio contra ns. Sim, toda a razo de nossa ofensa. digna,
ento, de exame a respeito, se no forem nossos juizes a preveno e a
injustia, pois a preveno no leva a srio descobrir a verdade, e a
injustia a rejeita simples e totalmente.
No adoramos vossos deuses porque sabemos que no existem tais
divindades. Eis o que, portanto, devereis fazer: devereis nos
intimar a demonstrar a inexistncia delas, e, ento, provar que elas
no merecem adorao, pois somente se vossas divindades fossem
comprovadamente verdadeiros deuses, haveria toda obrigao de lhes
serem rendidas homenagens divinas.
Punio, igualmente, mereceriam os cristos, se ficasse evidente
que aqueles aos quais recusam adorao so verdadeiramente divinos.
Vos dizeis: so deuses. Ns negamos e apelamos para vosso prprio
entendimento a respeito. Que ele nos julgue, que ele nos condene,
se incapaz de negar que todas essas vossas divindades no passam de
pessoas humanas.
Se vosso entendimento se atreve a negar isso, ser refutado por
vossos prprios livros de histrias primitivas, pelos quais tomou
cincia delas, pois esses livros se constituem incontestveis
testemunhas at nossos dias, seja das cidades onde elas nasceram,
seja das regies nas quais elas deixaram marcas de suas andanas, bem
como, comprovadamente elas foram enterradas.
Examinarei agora, um por um, a esses vossos deuses to numerosos
e to diferentes, novos e antigos, gregos, romanos, estrangeiros, de
escravos e de adotados, privados e pblicos, machos e fmeas, rurais
e urbanos, martimos e militares? No. intil at pesquisar todos os
seus nomes, de modo que me contento com um resumo, e isso no para
vossa informao, mas para que tenhais em mente o que colocastes em
vossa coleo, porque indubitavelmente agis como se tivsseis
esquecido tudo sobre eles.
Nenhum de vossos deuses mais antigo do que Saturno. Dele
fizestes provir todas as vossas divindades, mesmo aquelas de maior
dignidade e mais conhecidas. O que, ento, puder ser provado sobre o
primeiro, poder ser aplicado queles que dele provieram.
De tempos to primitivos quanto nos informam os livros, nem o
grego Diodoro ou Thallos, nem Cssio Severo nem Cornlio Nepos, bem
como nenhum outro escritor que escreveu sobre as coisas sagradas
primitivas, se aventurou a dizer que Saturno era algum mais seno um
homem. Tanto quanto esse assunto depende dos fatos, nada mais
encontro digno de f do que isso: sabemos o local no qual Saturno se
estabeleceu na prpria Itlia, aps muitas expedies e aps compartilhar
da hospitalidade da tica, obtendo cordiais boas vindas de Jano ou
Janis como os Slicos o chamavam. A montanha na qual ele morou foi
chamada Satrnio. A cidade que ele fundou foi denominada Satrnia at
aos nossos dias. Por fim, toda a Itlia, aps ter surgido com o nome
de Entria, foi chamada Satrnia por causa dele. Foi ele que por
primeiro vos ensinou a arte de escrever e de cunhar moedas. Da,
aconteceu que ele passou a governar o Tesouro Pblico.
Mas, se Saturno foi um homem, teve, sem dvida, uma origem humana
e tendo uma origem humana no foi rebento nascido do cu e da terra.
Como seus pais eram desconhecidos, no era incomum que tenha se
chamado filho desses elementos dos quais ns todos parecemos nos
originar.
Quem no fala do cu e da terra como de um pai e de uma me numa
forma de venerao e homenagem? No h at o costume, ainda existente
entre ns, de dizer que algum que nos estranho ou que surgiu
inesperadamente em nosso meio caiu dos cus? Do mesmo modo,
aconteceu com Saturno, onde apareceu como um hspede repentino e
inesperado - porque o hspede recebe em todo o lugar a designao de
nascido do cu. Mesmo a tradio popular chama de filhos da terra as
pessoas de parentesco desconhecido.
Eu no sei quantos homens naqueles tempos primitivos eram levados
a assim procederem quando admirados pela viso de algum estranho que
surgia em seu meio, considerando-o divino, j que naquelas eras
distantes at homens de cultura transformavam em deuses pessoas que
eles sabiam terem morrido como homens, um dia ou dois antes,
movidos pela tristeza geral que lhes acometia.
Que essas observaes de Saturno, to concisas como so, sejam
suficientes. Assim, tambm, pode-se provar que Jpiter era certamente
homem, j que nascido de homem, e que uma aps outra, todas essas
divindades eram mortais como o primitivo rebento.
CAPTULO XI
J que no ousais negar que essas vossas divindades foram homens e
deveis aceitar que foram elevadas divindade aps sua morte,
examinemos no que isso implica.
Antes de tudo deveis confirmar a existncia de um Deus Altssimo -
algum possuidor da divindade - que concedeu a tais homens a
divindade. Pois que eles no poderiam assumir uma divindade que no
lhes pertencesse e somente um Deus que a possusse poderia
conferi-la a algum. Se no houvesse Algum para criar divindades,
seria intil, tambm, sonhar em divindades criadas pois no existiria
o seu Criador.
Certamente, se elas pudessem se tornar divindades por si mesmas,
com uma divindade superior governando-as, elas nunca teriam se
tornado homens.
Se, ento, h Algum que capaz de criar divindades, eu volto a
examinar qual razo que a levaria a cri-las. No encontro outra razo
seno de que o Deus Supremo precisava de administradores e ajudantes
para exercer os ofcios de Deus. Mas, primeiramente, uma idia
indigna pensar que Ele precisasse de ajuda de um homem, e, ainda,
de um homem morto. Se Ele tivesse necessidade de assistncia,
poderia mais apropriadamente ter criado uma divindade desde seu
nascimento. Depois, nem sequer vejo algum motivo para tal.
Pois todo esse universo, se existente por si mesmo e incriado,
como afirma Pitgoras, ou criado por foras de um Criador, como
afirmou Plato, foi, incontestavelmente, j, em sua organizao
original, programado, dotado, ordenado e governado com uma
sabedoria perfeita. No poderia ser imperfeito Algum que tudo fez
perfeito.
Ningum estaria esperando por Saturno e sua raa para assim
faz-lo. Os homens ficam loucos quando se recusam a acreditar que o
primeirssimo impulso nasceu do cu, e, ento, as estrelas piscaram, a
luz brilhou, os troves rugiram, e o prprio Jpiter temeu os
relmpagos que pondes em suas mos. O mesmo aconteceu com Baco, Ceres
e Minerva, e no somente com o primeiro homem, quem quer que tenha
sido, ante os quais toda espcie de frutos brotaram abundantemente
do interior da terra, providenciados to somente para prover e
sustentar o homem que depois disso pde existir.
Em consonncia, dizem que essas necessidades da vida foram
descobertas, no criadas. As coisas que algum descobre, j antes
existem, e o que tem uma preexistncia no deve ser visto como
pertencente quele que o descobriu mas quele que o criou, porque
certamente esse Ser existia antes daquilo que poderia ser
descoberto.
Se Baco foi elevado divindade porque foi o descobridor do vinho,
entretanto Lculo que primeiro introduziu a cerejeira do Ponto na
Itlia no o foi porque, como descobridor de uma nova fruta, no se
arrogou o mrito de ter sido seu criador nem de se galardoar com
honras divinas.
Portanto, se o universo existiu desde o incio provido de seu
sistema, agindo sob determinadas leis para a execuo de suas funes,
no h nenhuma razo para constituir a humanidade em divindade, porque
as situaes e poderes que atribus a vossas divindades existiram
desde o comeo, exatamente como deveriam ser, embora no as tenhais
nunca deificado.
Mas apontais outra razo, dizendo-nos que a atribuio de divindade
foi um meio dignific-las. E da sois concordes, concluo, de que o
Deus que Deus de transcendente retido - Algum que no quer nem
insensata, nem inadequada, nem desnecessariamente outorgar uma
recompensa to grande.
Pediria que, ento, considersseis se as atitudes de vossas
divindades so de tal qualidade que as elevassem aos cus e no antes
as submergissem no mais profundo do Trtaro - o lugar que
considerais, como a maioria, como um crcere de punies eternas. Ora,
pois que nesse lugar temvel so dignos de ser lanados todos aqueles
que pecam contra a piedade filial, assim como os culpados de
incesto com irms e sedutores de viuvas, os raptores de virgens e
corruptores de menores, os homens de temperamentos furiosos, os
assassinos, os ladres, os enganadores, todos, em resumo, que seguem
os exemplos de vossas divindades.
No, porm, algum que pode provar estar inocente de crimes e
vcios, a no ser o de afirmar que essas divindades foram sempre
humanas. Alm de no poderdes negar isso, tendes, tambm, em seus
desalmados crimes mais uma razo para no acreditardes que tenham
sido elevados divindade aps sua morte. Porque se legislais com
verdadeiro propsito de punir tais crimes, se cada homem virtuoso
dentre vs se nega a ter qualquer correspondncia, conversa,
intimidade com os culpados e vis, como, diferentemente, o Deus
Altssimo os tomaria seus pares para compartilhar de sua Majestade?
Em que posio ficaria se fosse companheiro daqueles aos quais
adorais?
Vossas deificaes uma afronta aos cus. Deificais vossos mais vis
criminosos quando quereis agradar vossos deuses. Vs os honrais
concedendo honras divinas a seus companheiros.
Mas para no mais falar de uma maneira de agir to indigna, h
homens virtuosos, puros e bons. Contudo, quantos desses homens
nobres no relegastes s regies da condenao? Como fizestes a Scrates,
to renomado por sua sabedoria; Aristides, por sua justia;
Temstocles, por sua boa sorte; Creso por sua riqueza; Demstemes por
sua eloquncia. Qual dos vossos deuses mais notvel por sua seriedade
e sabedoria do que Cato; mais justo e combatente do que Cipio? Qual
deles mais magnnimo do que Pompeu; mais prspero do que Silas; de
maior riqueza do que Creso, mais eloqente do que Tlio?
Quo mais digno seria para o Deus Supremo esperar que Ele pudesse
tomar tais homens para serem seus pares celestes, sabedor como Ele
deve ser de suas mais dignas qualidades! Ele est em vexame,
suponho, e fechou os portes celestes. Agora, certamente sente
vergonha por cauda dessas sumidades que estariam a murmurar, nas
regies infernais, contra sua escolha.
CAPTULO XII
Mas, deixo de lado essas observaes, porque sei e vou mostrar o
que vossas divindades no so, mostrando o que realmente so. Com
referncia, ento, a eles, examinarei somente nomes de homens
falecidos dos tempos antigos. Ouvi histrias fabulosas. Reconheci
ritos sagrados cercando simples mitos. Relacionando-os s imagens
atuais, vejo-os como simples peas materiais assemelhadas aos vasos
e utenslios de uso comum entre vs, ou mesmo consagrados por uma
malfadada troca com aqueles teis objetos nas mos de descuidada
arte, que no processo de transformao os tratou com absoluto
desprezo, se no, com verdadeiro ato de sacrilgio.
Dessa forma no poderamos ter o menor conforto em todos os nossos
castigos, padecendo como padecemos por causa desses mesmos deuses,
porque em sua formao sofreram como ns sofremos. Pondes os cristos
em cruzes e estacas: Que esttua no primeiro formada de barro e
depois plasmada numa cruz ou numa estaca? O corpo de vosso deus
primeiro consagrado num estrado. Dilacerais os corpos dos cristos
com vossas garras, mas no caso de vossos prprios deuses, machados,
plainas e limas so utilizadas mais vigorosamente em cada membro de
seus corpos. Colocamos nossas cabeas sobre o cepo. No entanto, o
prumo, a cola e os pregos so utilizados em vossas divindades que de
incio no tm cabea. Somos lanados s feras selvagens, enquanto as
pondes juntas a Baco, Cibele e Celeste. Somos queimados no fogo;
assim tambm eles, em seu original material. Somos condenados s
minas; delas provieram vossos deuses. Somos banidos para as ilhas;
comum a vossos deuses nelas nascerem ou morrerem.
Se este o meio pelo qual se faz uma divindade, segue-se que so
punidas enquanto so deificadas e sero torturadas para serem
declaradas divindades. Mas evidente que esses objetos de vossa
adorao no sentem as injrias e as desgraas antes de sua consagrao,
como tambm no tomam conscincia das honras que lhes so
prestadas.
palavras mpias! acusaes blasfemas! de ranger os dentes contra ns
- espumem com louca raiva contra ns - somos as pessoas, sem dvida,
que censuraram um certo Sneca que falou de vossas supersties
longamente e muito mais agudamente! Numa palavra: se recusamos
nossa homenagem a esttuas e imagens frgidas, de fato uma reproduo
de seus originais falecidos, com os quais convivem falces, ratos e
aranhas, no merece isso louvor em vez de castigo? Que rejeitemos
isso que acabamos de examinar erro? No fazemos certamente injrias
queles que estamos certos de serem nulidades. O que no existe est
em sua inexistncia livre do sofrimento.
CAPTULO XIII
"Mas eles so nossos deuses", dizeis. Como pode ser isso, pois
com absoluta inconsistncia, estais cientes de vossa mpia, sacrlega
e irreligiosa conduta para com eles; menosprezais aqueles que
imaginais que existam, destruindo aqueles que so objetos de vosso
medo, fazendo pouco caso daqueles cuja honra quereis vingar?
Vede se agora estou mentindo. Em primeiro lugar, certamente,
constatando que apenas adorais um ou outro deus, certamente
ofendeis queles que no adorais. No podeis dar preferncia a um sem
desprezar o outro, pois a seleo de um implica na rejeio do outro.
Desprezais, portanto, aqueles que rejeitais, porque na vossa rejeio
a eles se evidencia que no temeis em ofend-los.
Como j demonstramos, toda divindade vossa depende da deciso do
Senado quanto sua deificao. Ningum seria deus a no ser que o homem
em seu prprio arbtrio no o tivesse desejado; assim, igualmente,
rejeitado. s divindades da famlia que chamais "Lares" concedeis uma
autoridade domstica, orando a elas, vendendo-as, trocando-as,
fazendo s vezes fogo com Saturno, alimentando um braseiro com
Minerva, se acontece que um ou outro esteja estragado ou quebrado
por seu longo uso sagrado, ou se o chefe da famlia est premido por
alguma necessidade familiar mais sagrada.
Assim, tambm, por lei pblica, levais desgraa vossos deuses
oficializados, colocando-os no catlogo de leilo, tornando-os fontes
de renda. Os homens sobem ao Capitlio, como vo ao mercado popular
levados pela voz do pregoeiro, fazendo o lance do leilo, com o
registro do questor. A divindade leiloada e arrematada pela mais
alta oferta. Mas, certamente, s terras oneradas com impostos so de
menor valor, s homens sujeitos avaliao de impostos so menos nobres,
porque bens assim indicam estado de servido.
No caso das divindades, por outro lado, a santidade grande em
proporo aos tributos que sobre elas so cobrados. Quanto mais
sagrada a divindade, maior a taxa que paga. A majestade se torna
uma fonte de ganho. A Religio procede como os pedintes de tavernas.
Cobrais preo pelo privilgio de ficar num templo, por acesso aos
cultos sagrados, no se recebe conselhos gratuitos de vossas
divindades - necessitais comprar seus favores.
Que honras lhes concedeis que no concedais aos mortos? Possus
templos tanto para uns como para outros, construs altares tanto
para uns como para outros. Suas esttuas so vestidas da mesma
maneira, com as mesmas insgnias. Assim como os falecidos tinham sua
idade, sua arte, suas ocupaes, assim as tinham vossas divindades.
Em que a festa de funeral difere da festa de Jpiter? O smbolo das
divindades daquele dos manes? Ou o empreiteiro do funeral do
vaticinador, se, realmente, o ltimo tambm trata de mortos?
Com perfeita propriedade dais honras divinas a vossos
imperadores quando morrem, j que os adorais em vida. Os deuses
ficam em dvida convosco, pois causa de grande regozijo entre eles
que seus mestres sejam constitudos em seus pares.
CAPTULO XIV
Desejaria rever agora vossos ritos sagrados. Deixo passar sem
censuras o fato de em vossos sacrifcios ofertardes coisas
estragadas, imprestveis, podres, quando separais a gordura, as
partes sem uso, tais como a cabea e os cascos, que em vossas casas
destinais aos escravos ou aos ces; quando do dzimo de Hrcules no
colocais sequer um tero sobre o altar.
Sou levado mais a louvar vossa sabedoria em aproveit-las para no
as jogar fora. Mas, voltando a vossos livros dos quais tirais
vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que
coisas ridculas ali encontro: que os deuses troianos e gregos
brigaram entre eles como gladiadores, que Vnus foi ferida por um
homem porque ela queria resgatar seu filho neas, quando estava
ameaado de perigo de vida pelo prprio Diomedes; que Marte definhou
preso por treze meses; que Jpiter foi salvo pela ajuda de um
monstro de padecer a mesma violncia nas mos de outros deuses; que
ele agora lamenta o destino de Sarpdon, ora cortejando loucamente
sua prpria irm, lhe falando sobre antigas amantes, no to amadas
como ela.
Depois disso, que poeta no imita o exemplo de seu Mestre? Um
entrega Apolo ao rei Admeto para cuidar de suas ovelhas; um outro
aluga o trabalho de construtor de Netuno a Laomedonte. Um conhecido
poeta lrico, tambm, Pndaro, alis, canta sobre Esculpio
merecidamente ferido com um raio por pratica incorreta de sua arte,
por ambio. Uma m ao foi essa de Jpiter: se arremessou um raio
desnaturado contra seu av, demonstrando sentimento de inveja contra
o mdico. Coisas semelhantes no deveriam ser tornadas pblicas, se
verdadeiras; e, se falsas, no deviam ser levadas ao povo, que
professa um grande respeito pela religio. Nem tambm, certamente, os
escritores, trgicos ou cmicos, deveriam denunciar os deuses como
origem de todas as calamidades e pecados das famlias.
No examinarei os filsofos, contentando-me com uma referncia a
Scrates que, por desprezo aos deuses, tinha o hbito de jurar por um
carvalho, por uma cabra ou por um co. De fato, exatamente por isso,
Scrates foi condenado morte, pois subestimava a adorao aos deuses.
Num tempo ou noutro, ou seja, sempre, a verdade no amada. Contudo,
quando sentiram remorso pelo julgamento de Scrates, os atenienses
aplicaram punio a seus acusadores, e ergueram uma imagem de ouro
dele num templo; a condenao foi nessa ocasio reconsiderada, e a
inocncia dele restaurada em seus anteriores mritos.
Digenes, igualmente, zombou de Hrcules; e o cnico romano Varro
se fez proceder de trezentas imagens de Jpiter, que foram
conhecidas todas como sem cabeas.
CAPTULO XV
De vossos escritores, outros, em seus desregramentos sempre vos
proporcionam prazeres vilipendiando os deuses. Vede aquelas
encantadoras farsas de Lntulo e Hostlio se nas brincadeiras e
faccias no so os bufes e as divindades que vos causam
divertimentos. Farsas assim, penso, levam-nos ao ridculo, como a de
Anbio, o adltero, Luna, do sexo masculino, Diana debaixo do
chicote, as interpretaes dos desejos de Jpiter falecido e os trs
famigerados Hrcules.
Vossa literatura dramtica, igualmente, retrata as vilezas de
vossos deuses. O Sol lamenta seus filhos expulsos do cu e vs ficais
cheios de jbilo. Cibele procura seu insolente namorado e vs no
corais. Levais cena o recital dos delitos de Jpiter, e do pastor
que julga Juno, Vnus e Minerva.
Novamente, quando a mscara de um deus posta na cabea de um
ignominioso e infame miservel, quando algum impuro e experimentado
na arte de toda efeminao que seja representa Minerva ou Hrcules, no
a majestade de vossos deuses insultada e sua divindade desonrada?
Contudo vs no somente assistis a isso, como aplaudis.
Sois, suponho, mais devotos na arena quando sob a mesma forma
vossas divindades danam sobre o sangue humano, sobre os ferimentos
causados pelas punies infligidas, como se interpretassem suas
histrias e aventuras, cedendo sua vez aos pobres condenados, com a
diferena de que esses muitas vezes se colocam como a divindade e no
momento representam os prprios deuses.
Temos visto presentemente uma representao da mutilao de tide, o
famoso deus de Pessino, e de um homem queimado vivo como Hrcules.
Faz-se gozao em meio a burlescas crueldades na exibio do meio-dia,
com Mercrio examinando os corpos dos mortos com sua lana ardente.
Temos testemunhado o irmo de Jpiter, com malho na mo, rebocando os
cadveres dos gladiadores.
Mas quem pode assistir a tudo isso? Se por tais coisas a honra
da divindade atacada, se esto a macular qualquer trao de sua
majestade, temos de entender isso como desprezo com os quais os
deuses tratados por aqueles que ora fazem tais coisas e,
igualmente, por aqueles para cujo divertimento so feitas. Isto,
todavia, dizem, tudo brincadeira.
Mas, acrescento - todos sabeis e admitis prontamente como fatos
que nos templos so arranjados adultrios, que nos altares so
praticadas alcovitices, que muitas vezes nas casas dos guardas dos
templos e dos sacerdotes, sob os ornamentos de sacrifcios, sob
sagradas tiaras e sob as vestimentas prpuras, em meio das ondas de
incenso, so praticados crimes de licenciosidade.
Ento, no estou seguro, mas vossos deuses tm mais razo de se
queixarem de vs do que dos cristos. certamente entre os devotos de
vossa religio que sempre se encontram os perpetradores de
sacrilgios; porque os cristos no entram em vossos templos nem mesmo
durante o dia.
Talvez queirais, tambm, ser exploradores dos deuses, j que os
adorais. O que , ento, vos levam a adorar, uma vez que os objetos
de adorao so diferentes de vs? Fica, de fato, logo evidenciado como
corolrio de vossa rejeio hipocrisia, que rendeis homenagem verdade.
No perseverais no erro que criastes pelo simples fato de
reconhecerdes que isso um erro.
Aceitai isso, antes de mais nada, e aps termos apresentado uma
refutao preliminar de alguns conceitos falsos, continuaremos
apresentando todo nosso sistema religioso.
CAPTULO XVI
Juntamente como outros, estais na iluso de que nosso Deus uma
cabea de asno. Cornlio Tcito foi o primeiro a divulgar tal noo
entre o povo. No 5o livro de sua Histria, comea a narrativa da
guerra judaica com um relato da origem da nao, teorizando a seu bel
prazer sobre essa origem, tanto quanto sobre o nome e sobre a
religio dos judeus. Declara que tendo sido libertados ou ainda, em
sua opinio, expulsos do Egito, cruzando as vastas plancies da
Arbia, onde a gua era escassa, os judeus enfrentaram a sede
extrema, mas, tomando por guia asnos selvagens que, imaginavam,
podiam estar procurando gua depois de se alimentarem, descobriram
uma fonte. Desde ento, em sua gratido, passaram a sacralizar a
cabea de um animal dessa espcie.
Como a cristandade est aliada ao judasmo, por isto, suponho,
aceitastes gratuitamente que ns tambm ramos devotos adoradores da
mesma imagem. Mas o citado Cornlio Tcito (em completa oposio ao
significado de seu nome - ficar calado e no contar mentiras),
informa, na obra j mencionada, que quando Cneio Pompeu capturou
Jerusalm, penetrou no templo para ver os segredos da religio dos
judeus, mas no encontrou nenhuma imagem ali. Contudo, certamente,
se adorao era rendida a algum objeto visvel, o lugar exato de sua
exibio deveria ser no santurio. Tudo o mais alm da adorao, embora
irracional, no se fazia necessrio ali para causar medo a crentes do
exterior, pois que s aos sacerdotes era permitido entrar no lugar
sagrado, enquanto toda viso era impedida aos demais por um
cortinado cerrado.
No podeis negar, contudo, que todas as bestas de carga e no
partes delas, mas animais inteiros, so com sua deusa Epona objetos
de vossa adorao. isso, talvez, que vos desagrada em ns, porque
enquanto vossa adorao aqui a todos, ns prestamos homenagem somente
ao asno.
Se alguns de vs pensais que rendemos adorao supersticiosa cruz,
nessa adorao estais compartilhando conosco. Se dais homenagem a uma
pea de madeira, importa pouco qual ela seja, porque a substncia a
mesma: a forma diferente, se nela tendes, de fato, o corpo de Deus.
Entretanto, quo diferente do madeiro da cruz Palas Atenas ou Ceres,
quando levantadas para venda numa simples estaca bruta, pea de
madeira sem forma!? Cada estaca fixada em posio vertical um pedao
da cruz. Ns rendemos nossa adorao, se quereis assim, a um Deus
inteiro e completo.
Mostramos antes que vossas divindades so feitas de formas
modeladas na cruz. Mas vs tambm cultuais as vitrias, porque em
vossos trofus a cruz o sustentculo do trofu. A religio dos
acampamentos romanos toda dirigida ao culto de estandartes, uma
coleo de estandartes acima de todos os deuses. Bem, aquelas imagens
mostradas nos estandartes so ornamentos de cruzes que as sustentam.
Todas aquelas coisas penduradas em vossos estandartes e bandeiras
so vestes das cruzes. Eu louvo vosso zelo: vs no prestais culto a
cruzes desvestidas e desornadas.
Outros, de novo, certamente com mais informao e maior
veracidade, acreditam que o sol nosso deus. Somos confundidos com
os persas, talvez, embora no adoremos o astro do dia pintado numa
pea de linho, tendo-o sempre em sua prpria rbita. A idia , no h
dvidas, originou-se de nosso conhecido costume de nos virarmos para
o nascente em nossas preces. Mas, vs, muitos de vs, no propsito s
vezes de adorar os corpos celestes moveis vossos lbios em direo ao
oriente.
Da mesma maneira, se dedicamos o dia do sol (Domingo) para
nossas celebraes, por uma razo muito diferente da dos adoradores do
sol. Temos alguma semelhana convosco que dedicais o dia de Saturno
(Sbado) para repouso e prazer, embora tambm estejais muito
distantes dos costumes judeus, os quais certamente ignorais.
Mas, ultimamente a nova verso de nosso Deus foi dada a conhecer
ao mundo nessa grande cidade: originou-se com um certo homem
desprezvel que tinha costume de se dedicar a trapacear com feras
selvagens, e que exibiu uma pintura com esta inscrio: O Deus dos
Cristos nasceu de um asno. Ele tem orelhas de asno, tem casco num
p, segura um livro e usa uma toga. Tanto o nome como a figura nos
provoca risos.
Mas nossos inimigos devem ter sido levados a logo prestar
homenagem a essa divindade biforme, porque eles conhecem deuses com
cabea de cachorro e de lees, com chifres de bode e carneiro - como
um corpo com pernas de drago, com asas nas costas ou patas. Tais
coisas temos esclarecido exaustivamente, porque no podemos de boa
vontade deixar passar nenhum boato contra ns sem refutao.
Tendo explicado exaustivamente sobre ns mesmos, voltamos agora a
uma demonstrao de como realmente nossa religio.
CAPTULO XVII
O objeto de nossa adorao um nico Deus que, por sua palavra de
ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso, tirou do
nada toda a matria de nosso mundo, com sua lista de todos os
elementos, corpos e espritos, para glria de Sua majestade. A essa
criao, por tal razo, tambm os gregos lhe deram o nome de
Cosmos.
Os olhos no podem v-Lo, embora seja (espiritualmente) visvel.
Ele incompreensvel, embora tenha se manifestado pela graa. Est alm
de nosso mais elevado entendimento, embora nossas faculdades
humanas o concebam. Ele , portanto, igualmente real e magnfico. Mas
o que, pelo senso comum, pode ser visto, percebido e concebido,
inferior ao que Ele , ao que d'Ele se percebe, ao que d'Ele as
faculdades vislumbram.
Mas o que infinito conhecido somente por Ele mesmo. Assim, damos
alguma noo de Deus, enquanto, contudo, ele permanece alm de todas
as nossas concepes - nossa real incapacidade de completamente
compreend-Lo permite-nos ter a idia do que Ele realmente seja. Ele
se apresentou ao nosso conhecimento em sua transcendental grandeza,
sendo conhecido e sendo desconhecido.
E tal coisa a suma culpa dos homens, porque eles no querem
reconhecer o nico a quem no podem ignorar. Podereis ter a prova
pelas obras de Suas mos, to numerosas e to grandes, que igualmente
vos contm e vos sustentam, que proporciona tanto vosso prazer
quanto vos comove com temor. Ou podereis melhor senti-lo pelo
testemunho de vossa prpria alma?
Embora sob o opressivo cativeiro do corpo, embora transviada por
costumes depravados, embora enfraquecida pela concupiscncia e
paixes, embora na servido de deuses falsos, contudo, quando a alma
O procura, libertando-se do tdio e do torpor, movida por uma doena,
e consegue um pouco de sua pureza natural, ela fala de Deus, no
usando nenhum outro nome, porque este o nome prprio do verdadeiro
Deus. "Deus imenso e bom", "Que possa Deus dar", so as palavras que
brotam de cada boca. Do testemunho d'Ele, tambm, quando exclamam:
"Deus v", "Eu me recomendo a Deus" e "Deus me recompensar".
nobre testemunho da alma, por natureza crist! Ento, igualmente,
usando palavras semelhantes a essas, a pessoa olha no para o
Capitlio mas para os cus. Ela sabe que ali est o trono do Deus
vivo, como se d'Ele e dali tudo proviesse.
CAPTULO XVIII
Mas, porque podemos alcanar um maior e mais autorizado
conhecimento tanto d'Ele mesmo quanto de Seus apelos e desejos,
Deus acrescentou uma revelao escrita para o proveito de todos
aqueles cujos coraes se colocam sua procura, que procurando podem
encontr-lO e encontrando acreditar e acreditando obedecer-Lhe.
Porque primeiro Ele mandou mensageiros ao mundo - homens cuja
pura retido os tornaram dignos de conhecer o Altssimo e de revel-Lo
- homens abundamtemente iluminados pelo Santo Esprito, que alto
proclamaram que h um s Deus que fez todas as coisas, que formou o
homem do p da terra. Ele o verdadeiro Prometeu que ordenou o mundo,
estabelecendo as estaes em seu curso.
Aqueles homens mais provas ainda nos deram. Deus mostrou Sua
majestade em seus juzos, por inundaes e fogo, nos mandamentos
indicados por Ele para se obter seu favor, assim como a retribuio
guardada para quem os ignora, os renega ou os guarda, pois que
quando chegar o fim de todas as coisas, julgar seus adoradores para
a vida eterna e os culpados para a manso do fogo eterno e
inextinguvel, ressuscitando todos os mortos desde o incio dos
tempos, reformando-os e renovando-os com o objetivo de premi-los ou
castig-los.
Um dia, tais coisas foram para ns, tambm, tema de ridculo. Ns
somos de vossa gerao e natureza: os homens se tornam, no nascem
cristos! Os pregadores dos quais temos vos falado so chamados
profetas, por causa do ofcio que lhes pertence de predizer o que
vir. Por sua palavras, tanto quanto pelos milagres que fizeram,
esses homens podem merecer f em sua autoridade divina.
Conservamos, ainda, em tesouros literrios que permanecem
disponveis a todos, o que eles transmitiram. Ptolomeu, dito
Filadelfo, o mais letrado de sua raa, uma homem de vasto
conhecimento em toda a literatura, que se iguala, acho, pelo seu
amor aos livros, com Pisstrato, entre outros, sobreviveu aos
tempos, e, seja por sua antigidade, seja por seu peculiar
interesse, se tornou famoso. Esse Ptolomeu, por sugesto de Demtrio
de Falero, que foi reconhecido superior a todos os gramticos de seu
tempo, lhe entregou a tarefa de tratar do assunto relacionado aos
escritos dos judeus. Isto , aos caractersticos escritos dos judeus
e de sua lngua, que somente eles falavam, como povo querido de
Deus, demonstrado isso na salvao de seus antepassados, povo do qual
os profetas sempre se provieram e ao qual sempre pregavam.
Nos tempos antigos, o povo que chamamos judeus usavam o nome de
hebreus e falavam o hebraico, lngua em que foram redigidos seus
escritos. Mas como para o entendimento de seus livros assim se
fizesse necessrio, os judeus pediram a Ptolomeu que lhe deixassem
indicar setenta e dois tradutores, homens que o filsofo Menedemos,
reconhecido como indicado por uma Providncia, aceitou com respeito,
j que compartilhava de seus pontos de vista.
A mesma histria contada por Aristos. Assim, o rei desvendou
aquelas obras a todos, na lngua grega. At nossos dias a biblioteca
de Ptolomeu se encontra disposio de todos, no templo de Serpis, na
qual esto tambm os originais idnticos hebreus.
Os judeus, por sua vez, lem esses livros publicamente. Pagando
uma taxa de liberao, tm o hbito de ir ouvi-los todos os sbados.
Quem quer que tenha ouvidos neles encontrar Deus, quem quer que se
aplica em entend-los, ser levado a crer.
CAPTULO XIX
A grande antigidade, antes de tudo, d autoridade queles
escritos. Vossa religio, tambm, pede f baseada no mesmo fundamento.
Sim, todas as substncias, todos os materiais, as origens, classes,
contedos de vossos mais antigos escritos, alm da maioria das naes e
cidades ilustres que recordam o passado e so notveis por sua
antigidade nos livros de anais, as prprias formas de vossas cartas,
tudo que revela e conserva os acontecimentos, e - penso que falo
coerentemente - vossos prprios deuses, vossos prprios tempos,
orculos e ritos sagrados so menos antigos do que a palavra de um
nico profeta, no qual encontrareis o tesouro da integral religio
judia e, consequentemente, da nossa.
Caso tenhais ouvido falar de um certo Moiss, digo-vos que ele
muitssimo mais antigo do que o argeu naco, em aproximadamente
quatrocentos anos. Ele anterior a Dnaos, vosso mais antigo nome.
Antecedeu por um milnio a morte de Pramo. Posso afirmar, tambm, que
viveu quatrocentos anos antes de Homero, existindo fundamentos para
essa afirmao. Os outros profetas, tambm, embora de datas
posteriores, so, mesmo os mais recentes, to antigos quanto o
primeiro de vossos filsofos, legisladores e historiadores.
Aqui fao apenas uma afirmao, no apresentando as provas, no tanto
porque isso difcil, mas devido amplitude da apresentao de toda a
fundamentao. O trabalho no seria somente rduo, mas sobretudo
tedioso. Requereria o apressado estudo de muitos livros, os dedos
ocupados em folhe-los.
As histrias das mais antigas naes, tais como dos Egpcios, dos
Caldeus, dos Fencios teriam de ser exploradas. Igualmente teriam de
ser consultados para apresentarem seus testemunhos homens dessas
vrias naes, com suas informaes. Mneto, o Egpcio, Beroso, o Caldeu,
e Hiero, o Fencio, rei de Tiro, assim como seus sucessores,
Ptolemeu o Mendesiano, Demtrio de Falero, O Rei Juba, Apio, Thallo,
e o crtico de todos eles, Josefo, da prpria nao judia, o
pesquisador da histria antiga de seu povo, que os confirma ou os
refuta.
Igualmente, deveriam ser postas lado a lado as listas dos
censores gregos, e esclarecidas as datas dos acontecimentos, para
que as conexes cronolgicas pudessem ser feitas, bem como usadas as
narrativas dos vrios anais para lanar mais luz sobre o assunto.
Deveramos seguir aprofundando as histrias e literaturas de todas as
naes. Mas, de fato, j vos trouxemos a prova parcial, fornecendo-vos
as sugestes de como o estudo poderia ser realizado.
Parece-nos melhor deixarmos para outra ocasio a discusso disso
tudo, com receio de que em nossa pressa no possamos aprofund-lo
suficientemente, ou de que no manuseio disso tudo faamos uma
digresso demasiadamente extensa.
CAPTULO XX
Para concluir nossa digresso, transmitimo-vos isto de maior
importncia. Apontamo-vos o poder de nossas Escrituras, se no por
sua antigidade, no caso de duvidardes que sejam to antigas como
dizemos, pela prova que damos de que so divinas. Assim, podereis
vos convencer disso de uma vez por todas, sem que nos estendamos
mais.
Vossos mestres, o mundo, a antigidade e os acontecimentos esto
todos vossa vista. Tudo aquilo que vos cerca, estou na vossa
dianteira anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi
previamente anunciado. Tudo o que agora vedes j foi anteriormente
predito aos ouvintes humanos. A destruio de cidades da terra, a
submerso de ilhas pelos mares, guerras que trouxeram convulses
internas e externas, o embate de reinos contra reinos, as epidemias
de fome e de pestes, os massacres em certos lugares, as desolaes
disseminadas das mortalidades, a exaltao dos pobres e humildes
sobre os orgulhosos, a decadncia da honestidade, a disseminao do
pecado, os instrumentos da ambio deslavrada dos bens, as prprias
estaes e atividades elementares naturais escapando a seus normais
cursos, monstros e prodgios tomando o lugar de formas naturais -
isso tudo foi previsto e predito antes que acontecesse. Enquanto
sofremos as calamidades, estamos lendo sobre elas nas Escrituras.
Se verificarmos, elas esto sendo confirmadas.
Sim, a verdade de uma profecia, julgo, a demonstrao de seu
acontecimento posterior. Da termos entre ns uma f confirmada a
respeito do eventos que vm como coisas j confirmadas, porque foram
preditas e igualmente cumpridas em nosso dia a dia. Elas foram
proferidas pelas mesmas vozes, escritas nos mesmos livros - o mesmo
Esprito as inspirou.
Constantemente h algum predizendo os acontecimentos futuros. O
tempo um s para a profecia que prediz o futuro. Entre os homens,
talvez, h uma distino dos tempos, j que o seu cumprimento vem
depois. Sendo eventos do futuro, ns os consideramos como presentes
e, ento, quando se fazem presentes, ns os consideramos como
pertencendo ao passado. Como podemos ser censurados, dizei-nos,
porque acreditamos nas coisas que viro como se j tivessem
acontecido, com essas provas para nossa f nesses dois
instantes.
CAPTULO XXI
Agora, tendo confirmado que nossa religio est fundamentada nas
escrituras dos hebreus, as mais antigas que existem, embora seja
corrente e ns admitimos inteiramente que nossa religio date de um
perodo comparativamente recente - no anterior ao reino de Tibrio,
talvez, devamos levantar a questo de suas bases, para no parecer
que ocultamos sua origem sob a sombra de uma ilustre religio, a
qual possui, sob todos os aspectos, indubitavelmente, a aceitao da
lei.
Igualmente, alm da questo da idade, no concordamos com os judeus
em suas particularidades com respeito alimentao, aos dias sagrados,
nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circunciso, nem no uso de
um nome comum, o que, certamente, seria o caso, j que prestamos
homenagem ao mesmo Deus.
Igualmente, o povo comum tem algum conhecimento sobre Cristo,
mas no o considera seno um homem, algum que, de fato, os judeus
condenaram, de modo que muitos naturalmente imaginaram que somos
adoradores de um simples ser humano.
Mas no estamos nem envergonhados de Cristo - porque nos
alegramos de sermos contados entre seus discpulos e de sofrermos
por seu nome - nem divergimos dos judeus com relao a Deus.
Faremos, portanto, uma observao ou duas quanto divindade de
Cristo. Nos tempos antigos os judeus muito gozaram do favor de
Deus, quando os predecessores de sua raa se notabilizaram por sua
honestidade e f. Assim foi que floresceram muitssimo como um povo e
seu reino atingiu uma eminncia sublime. To abenoados eram que para
sua instruo Deus lhes falou atravs de especiais revelaes,
indicando-lhes antes de tudo como deviam se fazer merecedores de
Seu favor e de como evitar Seu desagrado.
Mas, caram profundamente no pecado, se ensoberbeceram na sua f
com a falsa confiana em seus nobres ancestrais, desviando-se do
caminho de Deus para um caminho de transviada impiedade, e embora
eles se neguem a reconhecer isso, sua runa nacional atual poderia
ser prova suficiente do ocorrido.
Dispersos mundo afora, como uma raa de errantes, exilados de sua
prpria terra e clima, vagam por todo o mundo sem um rei humano ou
divino, no possuindo nem mesmo o direito que tm os estrangeiros de
andarem em seu pas nativo.
Os escritores sagrados, contudo, lhes tinham advertido
previamente dessas coisas, todos com igual clareza, e at declararam
que, nos ltimos dias do mundo, Deus, de todas as naes, povos e
pases, escolheria Seus prprios e mais fiis adoradores, aos quais
conferiria Sua graa. Faria isso mais amplamente, preservando-os com
o poder de uma concesso mais sublime.
Fielmente, Ele apareceu entre ns, conforme fora previamente
anunciado, para renovar e iluminar a natureza humana. Refiro-me a
Cristo, o Filho de Deus. E assim o Senhor supremo, o Ministrador
dessa graa e modo de vida, o Iluminador e Mestre da raa humana,
Filho do prprio Deus, se fez anunciar como tendo nascido entre ns.
Nascido, porm, de forma a no se envergonhar do nome de Filho ou de
Sua origem paterna.
No foi seu destino provir de Seu pai atravs de incesto com uma
irm, ou de violao de uma filha ou da esposa de outro, um deus na
forma de serpente, ou de boi, ou de pssaro, ou de um amante, de
modo que sua baixeza o transformasse no ouro de Dnaos. Assim so
vossas divindades sobre as quais recaram tais crimes de Jpiter.
Mas o Filho de Deus no teve me que, em nenhum sentido, fosse
envolvida em impureza. Aquela que os homens tm por Sua me, pelo
contrrio, nunca teve relacionamento nupcial. Mas, primeiro, falarei
sobre Sua natureza essencial e, ento, a natureza de Seu nascimento
poder ser compreendida.
J afirmamos que Deus fez o mundo e tudo o que ele contem, por
Sua Palavra, Razo e Poder. plenamente aceito que vossos filsofos
tambm tm em vista o Logos - isto , a Palavra e a Razo - como o
Criador do universo. Zeno explicou que ele o criador, tendo feito
todas as coisas de acordo com determinado plano, que seu nome o
Destino, e Deus, e a alma de Jpiter, e a necessidade de todas as
coisas. Cleanto atribui tudo isso ao esprito que, segundo afirma,
pervade o universo.
E ns, de maneira semelhante, afirmamos que a Palavra, a Razo e o
Poder, com as quais denominamos Deus tudo criou, esprito com sua
substncia prpria e essencial, da qual a Palavra provem como
expresso, e a razo habita para dispor e arranjar, e o poder se
sobressai para executar.
Aprendemos que a Palavra procede de Deus, e nessa processo Ela
gerada, de modo que Ela o Filho de Deus, e Deus, em unidade e em
mesma substncia com Deus. Em Deus, igualmente, h um Esprito.
Mesmo quando o raio lanado do sol, ainda parte da massa que o
gerou. O sol ainda est no raio, porque um raio do sol. No h diviso
de substncia mas simplesmente uma extenso. Assim Cristo Esprito do
Esprito, Deus de Deus, Luz da Luz. O material matriz permanece
inteiro e no diminudo, embora dele derive qualquer nmero de raios,
possuindo suas qualidades.
Assim, tambm, Aquele que provem de Deus por sua vez Deus e Filho
de Deus, e os dois so um s. Dessa maneira, como Ele Esprito do
Esprito, Deus de Deus, Ele gerado como segundo no modo de existncia
- na posio, no na natureza. Ele no criado pela fonte original, mas
dela foi gerado.
Este raio de Deus, ento, como foi sempre previsto nos tempos
antigos, desceu sobre uma virgem, e se fez carne em seu ventre; em
Seu nascimento juntamente Deus e homem. A carne informada pelo
Esprito alimentada, cresce at tornar-se adulto, fala,