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 Posso compreender o sentido das coisas? Esta é uma grande pergunta, e muito crítica também. A resposta de Husserl é que o ser humano pode compreender o sentido das coisas. Até a nossa experiência quotidiana nos diz que, para nos orientarmos, deve mos saber qual é o sentido das coisas. Porém, aqui o discurso fica um pouco mais complicado, porque Husserl mostra que em rela ção a algumas coisas nós temos a capacidade de identificar o sen tido imediatamente, enquanto em outras, temos mais dificuldade. Nós intuímos o sentido das coisas e para tratar desse tema, usa mos a palavra, de origem latina,  essência, portanto captamos a essência pelo sentido. Husserl usa também a palavra grega  eidos (de onde vem a nossa palavra  idéia,  que, neste caso, não significa tanto um produto da mente, mas sentido), aquilo que se capta, que se intui. FILOSOFIA POLÍTICA ANGELA ALES BELLO
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Angela Ales Bello - Introdução à Fenomenologia

Jul 22, 2015

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Rafael Berretta
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ANGELA ALES BELLO

Posso compreender o sentido das coisas? Esta uma grande pergunta, e muito crtica tambm. A resposta de Husserl que o ser humano pode compreender o sentido das coisas. At a nossa experincia quotidiana nos diz que, para nos orientarmos, devemos saber qual o sentido das coisas. Porm, aqui o discurso fica um pouco mais complicado, porque Husserl mostra que em relao a algumas coisas ns temos a capacidade de identificar o sentido imediatamente, enquanto em outras, temos mais dificuldade. Ns intumos o sentido das coisas e para tratar desse tema, usamos a palavra, de origem latina, essncia, portanto captamos a essncia pelo sentido. Husserl usa tambm a palavra grega eidos (de onde vem a nossa palavra idia, que, neste caso, no significa tanto um produto da mente, mas sentido), aquilo que se capta, que se intui.

FILOSOFIA

POLTICA

Coordenao Geral Ir. Elvira Milani Coordenao Editorial Ir. lcinta Turolo Garcia Coordenao Executiva Luzia Bianchi Comit Editorial Acadmico Ir. Elvira Milani - Presidente Glria Maria Palma Ir. facilita Turolo Garcia Jos Jobson de Andrade Arruda Marcos Virmond Maria Arminda do Nascimento Arruda

Introduo FenomenologiaAngela Ales Bello

Traduo Ir. Jacinta Turolo Garcia Miguel Mahfoud

Texto editado a partir de Palestras da Profi Angela Ales Bello editadas por Miguel Mahfoud Silvio Motta Maximino

FILOSOFIA

POLTICA

EDUSC

EDUSCRua Irm Arminda, 10-50 CEP 17011 160 - Bauru-SP Fone (14) 2107-7111 - Fax (14) 2107-7219 e-mail: [email protected]

SUN/iRIO

A37U

Mes Belk), Angela. Introduo fenomenologia / Angela Ales Kello ; traduo Ir. Jatinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru, SP : Eduse, 200b. 108 p.; 21 cm. -- (Coleo Filosofia e Poltica)

APRESENTAO

9Inclui bibliografia. ISBN 85-7460-329-5 13 I. Fenomenologia I. Titulo. II. Srie. CDD 142.7

Experincia vivida e reflexo sistemtica

INTRODUO

CAPTULO 1

17Copyright - EDUSC, 200o

O que fenmeno e Fenomenologia?

CAPTULO 2

21 22

A Fenomenologia como mtodo Primeira etapa A busca do sentido dos fenmenos: a reduo eidtica Segunda etapa Como o sujeito que busca sentido: a reduo transcendental

Texto editado por Miguel Mahfoud e Silvio Motta Maxiniiuo, a partir do curso ministrado pela Professora Angela Ales Bello na Universidade do Sagrado Corao, Bauru tSl') em 2001.

26

Sumrio

Sumrio

CAPITULO 3

CAPTULO 8

45

A conscincia e as estruturas universaisCAPITULO 4

93

O mtodo fenomenolgico husserliano e o existencialismoCAPTULO 9

57

A sntese passiva: tase anterior percepo 97CAPTULO 5 103

Os atos especficos da busca religiosaREFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

61

O Eu, o outro e o ns: a entropatiaCAPITULO 6

69 70 73 75 76

A intersubjetividade: as modalidades de associao e a pessoa Massa: predominncia corpreo-psquica impulsos utilizados por projetos alheios Comunidade: vnculos corporais, psquicos e espirituais Comunidade e sociedade Povo, nao, estado e comunidadeCAPTULO 7

85 88

A anlise das vivncias para u m fundamento das cincias A criao evolui: a histria da natureza indica uma teleologia

'

APRESENTAO

EXPERINCIA VVIDA E REFLEXO SISTEMTICA

Temos mo uma verdadeira Introduo Fenomenologia. Fiel ao rigor metodolgico, tpico da fenomenologia, a Prol! Angela Ales Bello nos convida a percorrer o inteiro percurso husserliano. Magistralmente, somos provocados, na contemporaneidade, a atentar ao que nos est volta e prpria experincia interna. E, com surpresa, advertimos que, aqui, experincia vvida e reflexo sistemtica podem efetivamente no estarem cindidas. A novidade que no se apresenta apenas discursivamente uma tal possibilidade de unidade, mas somos conduzidos a reconhecer a vivncia - atravs do mtodo interrogativo husserliano - com surpreendente simplicidade de forma que a introduo ao campo fenomenolgico, to sofisticado, comea a nos parecer familiar, comeamos a nos sentir em casa, porque comeamos a atentar ao mundo mais conscientes dos prprios recursos e do prprio eu.

Apresentao

Experincia vivida e reflexo sistemtica

operativa, para que a sua presena no Brasil continue a frutificar em cultura real. Um especial agradecimento aos pesquisadores do Programa de Iniciao Cientfica do LAPS - Laboratrio de Anlise de Processos em Subjetividade, da Faculdade de Psicologia da UFMG, que trabalharam com cuidado evidente na transcrio e textualizao das gravaes do curso original, possibilitando que o presente volume seja uma realidade icunda para muitos. Destacamos os seguintes nomes: Alyne Rachid Ali Scofield, Ana Paula Martins Lara, Amanda Carvalho Padilha, Camila Freitas Canielo, Cludia Coscarelli Salum, Liz Hellen Vitor, Paulo Roberto da Silva Jnior, Roberta Vasconcelos Leite e Yuri Elias Gaspar.

O percurso introdutrio, aqui, apresentado fruto do curso que a professora da Pontifcia Universidade Lateranense de Roma ministrou no Brasil, na Universidade do Sagrado Corao, em Bauru (SP), em 2004. A linguagem foi propositalmente mantida em tom coloquial para que se possa ter contato com a vitalidade da mestra e com suas elaboraes que emergem da relao pedagogia cheia de ideal. Essa postura de Ales Bello faz com que suas obras tenham grande receptividade em nosso pas, havendo j vrias publicaes brasileiras que se tornaram referncia. Talvez a fora criativa e geradora de sua posio intelectual se documente, mais intensamente, na articulao entre os diversos grupos de pesquisa e as diversas universidades brasileiras que vm frutificando a partir de suas visitas acadmicas ao Brasil. Este livro foi gerado nesse ambiente de tecitura de relaes, na convivncia preciosa entre professores e alunos. A Universidade do Sagrado Corao com a Profi Ir. Jacinta Turolo Garcia, a Universidade Federal de Minas Gerais com o Prof. Miguel Mahfoud, a Universidade de So Paulo com a Prof; Marina Massimi, a Universidade Catlica de Salvador com o Prof. Joo Carlos Petrini se descobrem assumindo desafios da pesquisa e do ensino da Fenomenologia, e se surpreendem com horizontes cada vez mais abertos a partir de uma clara e vitalizada rede de relaes intelectuais. Por tudo isso, agradecemos Prof; Angela Ales Bello, e a todos os que tm se dedicado, com deciso

Miguel Mahfoud Belo Horizonte, 15 de agosto de 2006.

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11

INTRODUO

Uma dificuldade para estudar a Fenomenologia de Edmundo Husserl que ele nunca chegou a escrever uma obra apresentando todo o seu percurso investigativo. A cada obra sublinha certo aspecto do percurso integral, num caminho analtico, partindo de um esquema geral. Passo a passo, ele vai chegando a uma conscincia completa das diversas vivncias, e continuamente se pergunta: "Qual o significado do ato que estou operando?" e ao mesmo tempo: "Qual a formao que permite tais atos?". Seus livros so resultado de compilaes de esboos de aulas ou de suas anotaes pessoais. Muito de sua vasta obra, at hoje, no chegou publicao. Como sua anlise muito detalhada, atentando com rigor para cada aspecto, ele nunca chegou a formular uma sntese geral e isso dificulta conhecer o pensamento husserliano. O presente volume quer contribuir com a apresentao do processo investigativo, em todo o arco do pro-

introduo

Introduo

cesso metodolgico, empreendido pelo fundador da Fenomenologia, de tal modo que as anlises tpicas de cada passo sejam examinadas com rigor, sem se perder o horizonte de totalidade. Husserl escreve livros de temas especficos. Os primeiros so de Antropologia Filosfica, comeando a discutir o que entropatia, para chegar a discutir o que o ser humano. Esse um caminho mais didtico, mais organizado. Edith Stein que transcrevia os manuscritos de Husserl fez o trabalho de transcrio e edio da segunda parte da obra "Idias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenolgico', que um livro muito importante cio ponto de vista metodolgico. O percurso que o leitor encontra aqui est baseado principalmente no primeiro 1 e segundo2 volumes de Idias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenolgica, e busca-se indicar a conexo com outras obras fundamentais de Husserl e de sua discpula Edith Stein. Edith Stein, ao escrever Psicologia e cincias do esprito', foi elaborando a distino husserliana entre psi1 HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenologia pura y unafilosofiafenomenolgico, 2. ed. Traduccin de ). Gaos. Mxico: Eondo de Cultura Econmica, 1992. Libro I. 2 HUSSERL, E. Idee per una fenomenologia pura e una filosofia fenomenolgico. Organizzazione di V. Costa, traduzione di E. Eilippini. Torino: Einaudi, 1965. v. II (libri II e 111). 3 STEIN, E. Psicologia e scienze ello spirito: contribut i per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

que e esprito e dedicou-se a explicitar a direo de todo O percurso da pesquisa fenomenologia. De bom grado propomos, nesta Introduo Fenomenologia, as referncias indispensveis de Stein. Faz-se, aqui, o percurso das anlises das vivncias, identificando a dimenso do esprito, continuamente se interrogando "o que significa?", para chegar a identificar as conseqncias importantes que os resultados alcanados indicam no campo de toda experincia humana e no campo cientfico em particular. A Sociologia, a Histria, o Direito so cincias do esprito, mas em geral no se sabe o que a sociedade, o que significa "direito", o que o aspecto intersubjetivo e o tico, o que so as relaes humanas. As cincias humanas no podem se constituir efetivamente sem a apreenso adequada do que vem a ser a dimenso espiritual em sua relao com a psique e com a corporeidade. Assim, tambm a Psicologia no poder, adequadamente, se constituir como psicologia humana sem considerar a dimenso psicolgica em suas conexes com a dimenso espiritual.

Capitulo I

O QUE FENMENO E FENOMENOLOGIA

Q u a n d o e como a Fenomenologia comeou? A Fenomenologia u m a escola filosfica cujo pai e mestre E d m u n d Husserl. Comeou na Alemanha em fins do sculo 19 e na primeira metade d o sculo 20'. Por que se chama Fenomenologia7. Esta palavra formada de duas partes, ambas originadas de palavras gregas, c o m o sabemos. " F e n m e n o " significa aquilo que se mostra; no somente aquilo que aparece ou parece. Na

1 E. Husserl (1859-1938) publicou sua obra fundante da fenomenologia, intitulada Investigaes lgicas, em 1901. Em portugus pode ser consultado em HUSSERL, TE. Investigaes lgicas: sexta investigao: elementos de uma elucidao fenomenolgica do conhecimento. Traduo de Z. Loparic e A. M. A. C. Eoparic. So Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleo Os Pensadores). Traduo da obra na ntegra pode ser encontrada em espanhol: HUSSERL, E. Investigationes lgicas. Trduccin de I. Gaos. Madrid: Alianza, 1985. 2 v.

Capitulo 1

O que fenmeno e fenomenologia

linguagem religiosa, utilizamos tambm o termo epifania para falar de algo que se manifesta, que se mostra. "Logia" deriva da palavra logos, que para os gregos tinha muitos significados: palavra, pensamento. Vamos tomar logos como pensamento, como capacidade de refletir. Tomemos, ento, fenomenologia como reflexo sobre um fenmeno ou sobre aquilo que se mostra.O nosso problema : o que que se mostra e como se mostra. Quando dizemos que alguma coisa se mostra, dizemos que ela se mostra a ns, ao ser humano, pessoa humana. Isso tem grande importncia. Em toda a histria da filosofia sempre se deu muita importncia ao ser humano, quele a quem o fenmeno se mostra. As coisas se mostram a ns. Ns que buscamos o significado, o sentido daquilo que se mostra. Num primeiro momento, podemos pensar que aquilo que se mostra esteja ligado ao mundo fsico diante de ns, mas do que dizer "as coisas se mostram" precisamos dizer que "percebemos, estamos voltados para elas", principalmente para aquilo que aparece no mundo fsico. Quando dizemos "coisas", normalmente indicamos coisas fsicas, por exemplo, a mesa, a cadeira. Sabemos, porm, que no tratamos apenas do significado de coisas fsicas, mas tambm das abstratas. Por exemplo, a

palavra latina repblica, que usamos para dizer coisa pblica no se refere coisa fsica, mas a um conjunto de situaes. Significado das coisas culturais, eventos, fatos, que no so de ordem estritamente fsica. Todas as coisas que se mostram a ns, tratamos como fenmenos, que conseguimos compreender o sentido. Entretanto o fato de se mostrarem no nos interessa tanto, mas, sim, compreender o que so, isto , o seu sentido. O grande problema da filosofia buscar o sentido das coisas, tanto de ordem fsica quanto de carter cultural, religioso etc, que se mostram a ns. Ento, para compreender o sentido, ns devemos fazer uma srie de operaes, pois nem sempre compreendemos tudo imediatamente, que consiste em identificar o sentido, os fenmenos, de tudo aquilo que se manifesta a ns.

2 Essa utilizao do termo serve para qualquer palavra que tem o sufixo "logia": psicologia se refere reflexo sobre o psquico, sociologia se refere reflexo sobre o social, e assim por diante.

Captulo 2

A FENOMENOLOGIA COMO MTODO

Husserl diz que para compreendermos esses fenmenos, devemos fazer um caminho. A palavra grega para designar caminho mthodo, Essa palavra tambm formada de duas partes: "odos\ que significa estrada e "meta", que significa por meio de, atravs. Temos, portanto, necessidade de percorrer um caminho e essa uma caracterstica da histria da filosofia ocidental, que sempre fez esse caminho para se chegar compreenso do sentido das coisas'. Segundo Husserl, o caminho formado de duas etapas:'

1 Sobre os pressupostos histrico-filosficos da fenomenologia, cf. ALES BELLO, A. Fenomenologia c cincias humanas: psicologia, histria e religio. Organizaro e traduo de M. Mahfoud e M. Massimi. Bauru: Edusp, 2004. 2 Uma discusso sobre as etapas do mtodo fenomenolgico pode sei encontrada HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenologia pura y una filosofia fenomenolgico. 2. ed.

2!

Captulo 2

Fenomenologia como mtodo

PRIMEIRA ETAPA A BUSO\ DO SENTIDO DOS FENMENOS: A REDUO EIDTIGAPosso compreender o sentido das coisas? Essa uma grande pergunta, e muito crtica tambm. A resposta de Husserl que o ser humano pode compreender o sentido das coisas. At a nossa experincia quotidiana nos diz que, para nos orientarmos, devemos saber qual o sentido das coisas. Porm, aqui o discurso fica um pouco mais complicado, porque Husserl mostra que em relao a algumas coisas ns temos a capacidade de identificar o sentido imediatamente, quanto a outras, temos mais dificuldade. Ns intumos o sentido das coisas, e para tratar desse tema, usamos a palavra, de origem latina, essncia, portanto captamos a essncia pelo sentido. Husserl usa tambm a palavra grega ciclos (de onde vem a nossa palavra idia, qile neste caso no significa tanto um produto da mente, mas sentido), aquilo que se capta, que se intui. Faamos unia experincia semelhante s que Husserl prope: algum bate a mo sobre a mesa, identifi-

Traduccin de ). Gaos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1992. Libro I. Cf. tambm em ALES BELLO, A. Culturas e religies: uma leitura fenomenolgica. Traduo de A. Angonese. Bauru: Edusc, 1998 e a introduo de AI.ES BELLO, A. A fenomenologia cio ser humano: traos de uma filosofia no feminino. Traduo de A. Angonese. Bauru: Edusc, 2000.

co logo que um som. Todos ns identificamos esse som. Como o fazemos? Imediatamente, intuitivamente. Escutamos qualquer coisa e dizemos " um som". Sempre o fazemos assim, se no pudermos fazer, por algum problema, mas no havendo problema, somos capazes de intuir, isto , colocar em perspectiva a essncia, o sentido da coisa. Esse um exemplo de uma coisa fsica, porm algum poderia dizer "sinto dio" ou "sinto dor" e ns sabemos do que se trata, podemos at fazer uma anlise para explicar qual o sentido pois sabemos, imediatamente, qual a experincia de dio ou de dor e at poderamos nos dedicar a fazer uma anlise para compreend-las melhor, justamente por j conseguirmos partir de um ponto essencial. Husserl afirma que para o ser humano muito importante compreender o sentido das coisas, mas nem todas as coisas so imediatamente compreensveis. De qualquer modo, compreender o sentido das coisas uma possibilidade humana. Como o que nos interessa o sentido das coisas, deixamos cie lado tudo aquilo que no o sentido do que queremos compreender e buscamos, principalmente, o sentido. Husserl diz, por exemplo, que no interessa o fato de existir, mas o sentido desse fato. Este um ponto muito importante: existem os fatos? Certamente, existem. Mas no nos interessa os fatos enquanto fatos, interessamo-nos pelo sentido deles. Por isso posso tambm "colocar entre parnteses" a existncia dos fatos para compreender sua essncia. Esse um argumento para quem diz que importantes so os fatos. Certo, importantes so os fatos, mas o que so fatos? este o

Captulo 2

Fenomenologia como mtodo

ponto. E aqui est toda uma polmica com outra corrente filosfica contempornea a Husserl, o Positivismo'. O Positivismo considera muito importante os fatos, sobretudo assumidos como tais pelas cincias fsicas. No entanto, Husserl diz que os fatos existem e so fatos. Mas o que so? Por exemplo, a cincia fsica olha a natureza, d-se conta dos fatos da natureza, mas o que so esses fatos? Ou ainda, as cincias sociais olham a sociedade, mas o que a sociedade? Qual seu sentido? Fazemos tantas anlises da sociedade sem saber do qu se trata. No basta dizer que existem, e esta uma das polmicas de Husserl no confronto com o Positivismo, mas tambm com todas as cincias da natureza e as cincias humanas. A mentalidade positivista est ainda muito presente em nossos dias, ainda que no a chamemos de positivista. Assim, compreende-se, cientificamente, um fato, mas se compreende tudo? s vezes, no, mas nem todos podem ser filsofos, porm importante saber que existem outras dimenses de pesquisa. O que as cincias podem responder diante da pergunta "o que verdade?". Faz-se tentativas para se aproximar dela, mas a verdade, do ponto de vista humano, reside no sentido, no no fato.

At agora somente as cincias fsicas responderam o que a natureza. No entanto, basta a cincia fsica para resolver essa questo? Bastam as cincias humanas para dizer o que o ser humano? No bastam. Elas descrevem alguns aspectos do ser humano, assim como as cincias da natureza descrevem alguns outros. Mas a questo do sentido um problema de fundo de toda a histria da filosofia ocidental, pois a filosofia a busca do sentido, e no dos aspectos do objeto. Estes devem ser examinados, ningum diria que no, mas necessrio ir mais fundo, escavar mais, em diferentes nveis, pois os nveis mais superficiais so tratados na Idade Moderna e Contempornea, na Antigidade a elaborao foi muito mais complexa. Por essas razes, Husserl, no seu tempo, polemiza contra o Positivismo. A intuio do sentido o primeiro passo do caminho e revela ser possvel captar o sentido.

3 Para um aprofundamento da questo da fenomenologia contra o positivismo, cf. o ltimo livro de Husserl enquanto vivo: Crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental: HUSSF.RL, E. La crisi delle scienze europee e Ia fenomenologia trasccndentalc: per un sapere umanistico. Prefazione di E. Paci, introduzione di W. fSiemel, traduzione di E. Filippini. Milano: Net, 2002.

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Captulo 2

Fenomenologia como mtodo

Figura AFENMENO (se mostra)

C3

Sujeito

Coisas (res: coisa fsica ou no fsica) Mtodo filosfico deve excluir tudo que no seja o sentido da coisa

SEGUNDA ETAPA COMO O SUJEITO QUE BUSCA O SENTIDO' A REDUO TRANSCENDENTALA caracterstica da pesquisa de Husserl a pergunta "Por que o ser humano procura sentido?" e tambm, "Quem este ser humano?" "Como feito este ser humano que busca sentido?" Aqui comea uma anlise do ser humano ou, utilizando a linguagem filosfica, do sujeito.

Na segunda etapa do mtodo fenomenolgico, , justamente, sobre o sujeito que se faz uma reflexo. Refletimos dizendo quem somos ns. A novidade de Husserl 'x.i lamente essa anlise do sujeito humano, ponto de partida de sua investigao. Para realizar a anlise do sujeito faremos um exerccio, comecemos por dizer que estamos diante de um copo d'gua. Vemos, sobre a mesa, o copo que antes j estava l, podamos v-lo, mas no tnhamos prestado ateno nele. Esta uma coisa interessante que apresenta dois nveis. Antes vamos os copos mas no fazamos uma reflexo, talvez porque no estivssemos com sede. Agora, tenho sede e comeo a prestar ateno. Estamos refletindo um pouco sobre o tema do "ver o copo". Antes estvamos cnscios, sabamos ter visto o copo sem ter feito uma reflexo a respeito. Todos ns tnhamos j uma experincia perceptiva do copo, que estava em ns, dentro de ns, mas o copo, fora. Porm, no momento em que tivemos uma experincia perceptiva do copo, ele estava tambm dentro de ns. De que modo estava dentro? Ns sabamos que o copo existia, portanto estar dentro significa saber que o copo existe. Enquanto estvamos vivendo o ato perceptiva (o ato de ver o copo), poderamos perguntar do que esse ato era formado. Sabemos que esse ato perceptivo era formado pelo ver o copo e tambm pelo copo, ali, diante dos olhos. Enquanto coisa fsica, enquanto existente, onde estava o copo? Estava fora. Porm, enquanto visto, onde estava? Dentro. Temos a, o ato de ver, e enquanto vivemos o ato, estamos vivendo o copo-visto dentro de ns.

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Fenomenologia como mitodoCapitulo 2

O u t r o experimento, desta vez com a mo. Toco a caneta, a mesa etc. Enquanto toco, h o ato de tocar, estou tocando, estou vivendo a experincia de tocar. H u m a coisa que tocada. E n q u a n t o existente, onde est? Fora. Mas e n q u a n t o coisa tocada o n d e est? Dentro. Enquanto tocada, ela se torna minha. Existe u m a distino entre a coisa-tocada e ns que a estamos tocando. Agora, estamos entrando no territrio do ser h u m a n o , n o territrio do conhecimento, da conscincia que u m ser h u m a n o p o d e ter das coisas - freqentemente estudado pela Filosofia, e continuando temos caminhos que tambm so estudados pela Psicologia.

responder a essas perguntas, sem nunca ter freqentado estudos de filosofia, partindo de u m a reflexo interior, filosfica, ainda c o m o matemtico. Husserl procurou u m a resposta para suas perguntas, antes de chegar a lecionar nas universidades de duas importantes cidades de lngua alem: Halle e Gttingen, na Morvia. Na primeira parte de sua vida, permaneceu por muito tempo em Viena, capital da ustria, onde ha.via u m professor universitrio muito importante (alemo de origem italiana) chamado Franz Bientano, especialista em filosofia de Aristteles, que interessava muito por u m a nova cincia, a Psicologia e j havia feito muitos estudos sobre os atos psquicos. As aulas de Brentano eram freqentadas por Husserl, que no era u m estudante qualquer, mas

O Ato perceptivo como acesso ao sujeitoComo Husserl chegou a se interessar pelo ato perceptivo? Husserl, cuja formao pessoal era matemtico, se perguntava: Mas o que a Matemtica? O que isso que estou estudando? Do p o n t o de vista da Aritmtica, o que significa dizer que aqui existem seis copos? C o m o posso chegar a esse seis? Ele comeou com reflexo sobre a n u m e r a o - operao fundamental da Matemtica fazendo u m a tese 4 e posteriormente vrios estudos' para

formado e com tese em Matemtica. Freqentava essas aulas tambm u m mdico chamado Sigmund Freud. Esse contexto importante para compreender o experimento do copo que fazamos h pouco, participando das aulas de Brentano, Husserl comea a ouvir falar de atos psquicos". Em u m primeiro m o m e n t o , ele pensa que a numerao u m a operao psquica, u m a operao de formar conjuntos, segundo a teoria dos conjuntos. Era u m trabalho de Matemtica, porm, utilizava u m a perspecti-

4 Husserl doutorou-se com uma tese sobre clculo das variaes pela Universidade de Viena, em 1882. 5 HUSSERL, E. Philosophie de Varithmetique: recherches, psychologiques et logiques. Trad., notes, remarques et index |. English. Paris: Presses Universitaires de France, 1972.

6 Franz Brentano havia publicado em 1874 sua importante obra Psicologia do ponto de vista emprico e Husserl se liga a ele em 1884. Cf. BRENTANO, F. Psicologia dal punto di vista emprico, Traduzione e edizione di L. Albertazzi. Bari: Laterza, 1997. 3 v.

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Fenomenologia como mtodoCapitulo 2

va psicolgica, um estudo dos atos psquicos. Posteriormente, Husserl conclui que a numerao no pode estar baseada nos atos psquicos, pois a operao indica um pensar, e no, exatamente, um ato psquico7. Dissemos que Husserl foi s aulas de Brentano, onde ouviu falar dos atos psquicos, e que, inicialmente, pensara em utilizar a interpretao psicolgica para fundamentar a Aritmtica. No entanto, percebe que a Aritmtica no pode se fundamentar na psique. Uma atividade intelectual necessria tambm, mas Husserl vai alm, abandonando o projeto sobre a Aritmtica, sobre a Matemtica, ele se volta para o conhecimento humano e recomea pe\a percepo, destacando que estamos em contato, atravs das sensaes, com o mundo fsico o que percebido por ns. A percepo uma porta, uma forma de ingresso, uma passagem para entrar no sujeito, ou seja, para compreender como que o ser humano feito.

Na anlise que estvamos fazendo do copo, falamos da percepo como um ato que estamos vivendo, porm, nem todo ato que estamos vivendo, que podemos identificar, so de carter psicolgico, por isso a anlise se torna muito refinada e requer uma ateno especial.

Dos atos perceptivos conscinciaAnalisando cuidadosamente, percebemos que as duas sensaes, a da viso e a do tato, so parte de uma estrutura especfica". Seja a sensao visvel, seja a sensao ttil, ambas, so vividas por ns, mas o que quer dizer "vividas por ns"? Quer dizer que ns registramos, atravs da nossa capacidade de dar-nos conta. A percepo vai ser resultado do dar-nos conta. Esse "dar-se conta" a conscincia cie algo, por exemplo, a conscincia de tocar alguma coisa. Ns conseguimos registrar os atos de ver e tocar, mas onde ns registramos esses atos e como os registramos? Aqui est a novidade, pois Husserl diz que o ser humano tem a capacidade de ter conscincia de ter realizado esses atos, enquanto ele est vivendo esses atos, sabe que os est realizando. Sabe que est realizando esses atos na relao com algo que est vendo ou tocando.

7 Husserl tematiza suas ligaes e diferenas com Brentano j na primeira obra propriamente fenomenolgica: Cf. HUSSERL, E. Investigaes lgicas: sexta investigao: elementos de uma elucidao fenomenolgica do conhecimento. Traduo de Z. Loparic e A. M. A. C. Loparic. So Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleo Os Pensadores) Sobre Pranz Brentano e Husserl em relao Psicologia e a fundamentao do conhecimento, cf. tambm GREUEL, M. V. O problema da fundamentao do conhecimento: uma alwrdagem fenomenolgica. 1996. Disponvel em: . Acesso em: 29 jun. 2006.

8 Comenta-se essas duas por serem sensaes fundamentais. H outras ligadas a outros sentidos, sensaes olfativas, por exemplo. Entretanto, a viso e o tato so aquelas com as quais mais nos colocamos em contato com o mundo fsico e conosco mesmos. t? -

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Captulo 2

Estamos considerando, aqui, a experincia de indivduos adultos que tm as capacidades fsicas, espirituais e psquicas desenvolvidas normalmente. A partir da, conseguimos delinear uma estrutura. No se trata de demonstrar, forosamente, que existe uma alma, pois a anlise comea pelas coisas mais simples que fazemos a cada momento: ver um copo, toc-lo, decidir se vou beber ou no. As experincias que registramos, de que temos conscincia em um nvel mnimo, nos dizem que existem atos diversos, isto , vivncias qualitativamente diversas. As vivncias ligadas s sensaes no so da mesma qualidade das psquicas, e estas no so da mesma qualidade daquelas que chamamos espirituais. Em outros termos pode-se dizer que tocar, ter impulso de beber, refletir e decidir no so vivncia do mesmo tipo e isso indica a estrutura constitutiva do sujeito.

Captulo 3

A CONSCINCIA EESTRUTURAS UNIVERSAIS

Vimos que a novidade da abordagem fenomenolgica de Husserl o terreno da conscincia e essa a sua contribuio mais importante, embora a mais difcil'. A conscincia est no esprito? Est no psquico? No possvel, porque as trs dimenses - corpo, psique e esprito - s so conhecidas por ns porque temos conscincia. Portanto, a conscincia no um lugar fsico, nem um lugar especfico, nem de carter espiritual ou psquico. como um ponto de convergncia das operaes humanas, que nos permite dizer o que estamos dizendo ou fazer o que fazemos como seres humanos. Somos conscientes de que temos a realidade corprea, a atividade ps-

1 Para um aprofundamento da centralidade e radicalidade do conceito de conscincia na fenomenologia de Husserl e discpulos, cf. ALES BELLO, A. Uuniverso nella coscienza; introduzione alia fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: ETS, 2003.

Captulo 3

Consacnaa e estruturas lirmsrsats

quica e uma atividade espiritual e temos conscincia de que registramos os atos. Ou, dito de outro modo, se um ato psquico, corpreo ou espiritual, de qualquer modo, ns o registramos em nossa conscincia. possvel examinai" os atos e aquilo que eles significam, ou seja, na sua pureza? O que quer dizer ato da percepo? O que quer dizer o ato relativo ao impulso psquico? O que significa dizer ato da avaliao? Atravs da vivncia e da reflexo podemos fazer anlises que nos revelem a estrutura geral desses atos. E o que quer dizer que existem atos universais? Qual o sentido desses atos? Como eles se apresentam? Tomemos um exemplo simples, ativando, neste momento, o ato de ver. A sensao a viso, o ato a percepo. Estamos atuando o ato perceptivo, estamos tendo conscincia de ver, por exemplo, um livro. Enquanto visto, o livro se encontra dentro e enquanto existente ele se encontra fora. Se o livro retirado do nosso campo de viso, onde ele est? Se ainda falamos do livro, porque estamos ativando a recordao, um ato que permite tornar presente uma coisa que no est mais presente. O livro no est mais presente perceptivamente, neste momento o ato da percepo no nos d o livro, porm podemos falar no livro, esse um ato universal. Percebo o livro e me recordo dele e, imediatamente, sei a diferena, intuo de sbito o sentido do perceber e o do recordar. Imaginar ainda diverso de recordar e de perceber, basta que se diga imaginar e logo todos compreendem que um ato diferente de perceber e de recor-

dar. Analisar ainda outro ato que vivenciamos, no perceber, nem recordar ou imaginar. Distinguimos todos esses imediatamente, intuitivamente. O que significa perceber? O que significa perceber em relao a recordar e imaginar? Quais so as condies para perceber? A percepo aquele ato que se dirige a um objeto fsico, concreto, que est diante de mim. Em geral, essa a estrutura universal da percepo. Se analisarmos e observarmos a percepo na sua pureza, cada vez que temos uma percepo acontece assim. Portanto, pureza quer dizer captar a percepo e dizer o que ela sempre, no somente num caso especfico, mas em todos os casos, dizer o que, em geral, a percepo ; dizer qual o sentido do ato perceptivo. claro que pode-se compreender melhor esse sentido se foi colocado em relao a outros atos. Quais atos ns estamos ativando agora? Atos perceptivos, pois olhamos aqui e l, ouvimos, temos uma srie de percepes complexas atravs das quais podemos compreender o sentido das palavras e eventualmente escrever a respeito delas. Aprendemos, e isso quer dizer que nos lembramos pois, sem recordar no poderamos continuar compreendendo ou escrevendo. Se chegasse aqui uma pessoa de cultura completamente diversa, estranharia muito porque fazemos algo que desconhece. Para ela no existe um ato para a recordao daquela instruo especfica que ns tivemos, mas ela tem lembranas de outros atos, ligados a seus costumes e aprendizados.

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Conscincia c estruturas universais

Ns estamos ativando tambm a ateno. E o que ateno? O que significa ateno em geral? Estamos concentrados sobre alguma coisa, e claro que essa concentrao pode ser de dois tipos. Quando entra algum pela porta, a nossa ateno se volta para ele, para esse acontecimento, mesmo sem que tivssemos vontade, ele atraiu nossa ateno. Esse um tipo de ato psquico; uma reao a uma percepo e a seguimos sem deciso e autonomia. Se no quisermos seguir essa percepo, teremos de ativar um ato de outro tipo, voluntrio, no nvel do no querer ver. Dessa forma, a nossa ateno no alterada retirada chega a se tornar uma afronta, pois eqivaleria afirmar que no temos interesse por esse algum que entra. Isso acontece no nvel psquico que pode ser uma atrao ou repulso. A aceitao ou rejeio da presena de algum se d no nvel espiritual. Mas qualquer um pode se distrair. O que significa distrair-se? Quer dizer que eu dirijo os atos psquicos em uma outra direo. Estudantes se distraem, isto , so atrados por algo externo ou interno como sentimentos, uma preocupao ou uma fantasia que afetariam a ateno. Mas durante a aula poderiam dizer: "no, no quero seguir essa fantasia, quero escutar". No entanto, para decidir escutar necessria uma motivao, enquanto que no caso da fantasia j existe o motivo pelo qual houve a distrao'.

Os atos psquicos tm sempre motivos, mas o que compe os atos psquicos o universo da motivao e a motivao implica numa atividade espiritual1.Ateno como ato involuntrio Ateno como ato voluntrio (dirigido pelo sujeito, no provocado por fatores externos)

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ato psquico ato espiritual

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Se retornarmos questo do beber, quando a pessoa no pega o copo ainda que tivesse sede, ativa uma capacidade espiritual, de inteno e avaliao. Qual a motivao? Por exemplo, do ponto de vista social no oportuno, mas se fosse uma criana muito pequenina, veria a gua e beberia. Por qu? Porque ainda no ativou os controles inculcados pela me ao dizer que "no se pode fazer isso" em determinadas situaes. Atravs do "no pode" ativa-se a motivao. A motivao humana diz que existe uma razo pela qual ho conveniente, naquela situao, pegar o copo cfgua e beber. Existe um motivo que impele para beber, mas a motivao diz "no neste momento". Pode-se compreender que essa a base do controle individual e tambm social e acontece em todas as culturas, ainda que de formas bem diferentes. As diferenas so secundrias, pois as estruturas no mudam. Ainda que o objeto percebido seja diverso ou que tenhamos percepes diferentes, todos ativamos a percepo.

2 Sobre causalidade psquica, motivo e motivao, cf. STE1N,E. Psicologia e scienze delia spirito: contributi per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales liello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, L999. 3 Cf. STEIN, E. La estruetura de Ia persona humana. Madrid: BAC, 2003.

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Cs.i: liiJa e estruturas universais

Todos tm e operam com a percepo, a recordao, a imaginao, a fantasia e capacidade de refletir... Nem todos ativam esses atos em um dado momento, porm, potencialmente, todos eles esto em cada um dos seres humanos. Sabemos que isso acontece aos poucos, pois alguns deles desenvolvem-se na infncia, como a ateno e a viso, e outros, especialmente os atos de carter espiritual, requerem um desenvolvimento j estabelecido previamente, alm de apresentar caractersticas diversas a cada idade. Interessa ressaltar que a compreenso desses atos podem ser examinados na sua estrutura universal, pois todos os seres humanos tm a mesma estrutura, embora no ativem da mesma maneira e no tenham os mesmos contedos, potencialmente, todos tm a mesma estrutura, seja do ponto de vista psquico ou do ponto de vista espiritual. Assumida essa hiptese, podemos pensar nas dificuldades que ocorrem, porque existem os que podem ouvir e os que no, existem aqueles que podem ver e os que no. Existem tambm casos extremos de pessoas que no tm possibilidade de sensao (como o apresentado no filme "O Milagre de Anne Sullivan". Anne era professora de uma menina que no tinha capacidade de sensao alguma. A terapeuta conseguiu, atravs da gua, ativar a sua estrutura. Comeou com algumas sensaes, um pouco por vez, porque sabia que essa menina tinha uma vida psquica e espiritual. No entanto, ela no podia ativ-las, uma vez que lhe faltavam os elementos corp-

reos, a primeira base corprea da sensao. Isso nos mostra que podemos examinar o ser humano atravs dos atos, considerando uma estrutura geral, universal. Figura E

A mesma dimenso muito importante tambm na relao intercultural, em que geralmente s vemos diferenas. Identificamos os diferentes modos de viver, no entanto, no fundo, o ser humano tem sempre a mesma

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Conscincia e estruturas universais

estrutura. A situao interessante para que observemos as tendncias especficas de cada cultura, seguindo um ponto de vista antropolgico. Sabemos como o ser humano constitudo, quais so as suas estruturas e as suas caractersticas. A questo estudada primeiramente por Husserl e desenvolvida tambm por Edith Stein, sua discpula. Ela continuou a investigar sobre o assunto e se envolveu muito nos atos que se referem psique. Ela continuou a desenvolver aquilo que Husserl havia evidenciado, fez o estudo dos instintos, dos impulsos, das energias e das reaes espontneas que existem no ser humano e que independem de ns'. Este o ponto de vista antropolgico das estruturas gerais, posteriormente se pode dedicar compreenso de cada pessoa individualmente. A elucidao importante para a Psicologia, pois poder ter uma aplicao clnica para cada pessoa, tomada singularmente, ou tambm se poder formular uma descrio tipolgica, por exemplo, do introvertido e do extrovertido. Isso significa que todos ns registramos atos psquicos, por exemplo, impulsos que nos levam para fora ou para dentro e os psiclogos, sabendo disso, podem compreender algo que uma pessoa especfica est vivendo. Iniciando com Brentano o seu interesse pela vida psquica, Husserl chega a explicitar, diferentemente de

Freud, que a caracterstica da vida humana ser uma vida espiritual; reconhece uma dimenso espiritual, mbito das avaliaes e decises, que se diferencia da dimenso psquica. Tratando-se de atos diversos, no podemos considerar como Jung, que incluiu a dimenso espiritual na dimenso psquica. Se so atos diferentes, no podem ser de uma s dimenso. No se quer dizer que ns sempre decidimos e avaliamos pois, muitas vezes, nos deixamos levar pela emoo, por exemplo. nesse campo de problema que se insere o trabalho de Psicologia Clnica: essa pessoa capaz de decidir ou se deixa levar? Vimos que Husserl havia assistido s aulas de Brentano, juntamente com Freud, e conhecia todo o desenvolvimento da Psicanlise freudiana. Stein tambm conhecia, e se interessava muito pela psicologia profunda de Jung. Husserl e Stein no negam que exista uma dimenso psquica inconsciente, no sentido de atos psquicos que registramos, que podem ser precedidos de percepes das quais ns no temos conscincia. O tema apenas indicado em alguns pontos da sua obra, mas no desenvolvido. Stein toma o tema e o coloca num relacionamento com Jung, sobretudo na obra intitulada A estrutura th pessoa humana'. A diferena radical entre a abordagem psicanaltica e a abordagem fenomenolgica a descrio da dimenso psquica pr-consciente e depois inconsciente. A distino entre as dimenses psquica e a espiritual

4 STEIN, F.. Psicologia e scicnze dello spirito: contributi per una fondazione filosfica. 2. ed. Presentazione di A. Ales Bello, traduzione di A. M. Pezella. Roma: Citt Nuova, 1999.

5 STEIN, E. La estruetura e ia persona humana. Madrid: BAC, 2003.

Capitulo 3

Conscincia c estruturas universais

importante para compreender o comportamento do ser humano. Mas h uma diferena entre Freud e Jung, porque na concepo freudiana a dimenso inconsciente a que comanda, e tudo o que acontece no nvel consciente , na verdade, um produto daquilo que acontece no nvel inconsciente. Freud, verdadeiramente, deseja compreender o que o inconsciente. Mas se ele consegue compreender o que o inconsciente - at onde consegue compreender - porque opera com o consciente. Ento, Husserl observa que a vivncia psquica, considerada como dimenso propriamente psquica, dimenso do inconsciente importante, mas o ser humano tem tambm uma dimenso espiritual. Ele no totalmente comandado pela dimenso psquica, por isso pode e deve ativar tambm a dimenso espiritual. E este tambm um fundamento da vida moral, que implica em responsabilidade e liberdade. Ns sabemos que na concepo freudiana esses elementos no so considerados autnomos, mas comandados pela dimenso inconsciente. Para Husserl, ainda que nem sempre e nem todos ativem a dimenso espiritual, todos tm condio de ativ-la. uma viso de homem na qual h uma dimenso espiritual que pode intervir com controle e sentido. Edith Stein aponta algo semelhante e diz que Jung se ocupa de uma dimenso que como um subsolo (seguindo a tradio russa com Dostoievski"). necessrio con-

siderar que sobre a dimenso do subsolo, tambm se exerce uma atividade de controle e direcionamento, assim, se d um grande espao para a dimenso espiritual. A dimenso espiritual tambm est contemplada na anlise de fung, ainda que no a tenha chamado de esprito, pois para ele a dimenso religiosa est sempre ligada dimenso psquica. como se Jung atribusse psique aquilo que psquica e espiritual ao mesmo tempo, no distinguisse os dois nveis, no reconhecesse a autonomia do nvel espiritual. Leibniz afirma que cada ser humano uma mnada, ou seja, um elemento individual. Porm, Husserl demonstra que o ser uma mnada aberta e a entropatia so as janelas. A atividade do esprito aquela que ns podemos chamar de atividade da alma, ainda que no haja uma dimenso intra-instancial da alma. Emerge, ento, outra questo, isto , saber em que consiste a substncia autnoma da alma.

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DOSTOIEVSKI, F. Memrias do subsolo. Traduo de B. Schnaiderman. So Paulo: Editora 34, 2003.

7 Cf. HUSSERL, E. Meditaes eariesianas: introduo fenomenologia. Traduo de E. Oliveira. So Paulo: Madras, 2001.

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A SNTESE PASSIVA: FASE ANTERIOR PERCEPO

Tomamos o sentido dos atos, falamos da percepo, de atos que j temos conscincia. So atos dos quais ns somos cnscios ainda que no tenhamos feito uma reflexo sobre eles. Entretanto, Husserl diz que existe um caminho anterior percepo, que ele chama de sntese passiva. Ou seja, ns reunimos elementos sem nos darmos conta de que o estamos fazendo. Podemos dizer, por exemplo, que tnhamos a percepo do copo, mas para isso tivemos de exercitar algumas operaes anteriormente (a distino entre um objeto e outro, entre o copo e a toalha...). Trata-se de operaes que estabelecem continuidade e descontnuidade, homogeneidade e heterogeneidade. Para apreender o objeto em sua unidade devemos estabelecer relaes de continuidade e de descontnuidade, de homogeneidade consigo mesmo e de heterogeneidade para com outros objetos. No nos damos conta

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Sntese passiva: jasc anterior a percepo

de operar tudo isso precedentemente percepo, pois so operaes que c u m p r i m o s n u m nvel passivo, somos afetados por elas antes que faamos qualquer coisa. H um artigo significativo de Husserl sobre a sntese passiva' em que ele fala sobre a existncia de nveis mais profundos, e que conscincia aparece somente a percepo do j constitudo, ela registra os nveis mais altos desses processos. Q u a n d o Husserl trata dos nveis passivos, no est dizendo que os vivemos passivamente. Analiticamente compreendemos que j demos aqueles passos, tornaram-se nossos, no pudemos deixar de faz-los, e a essa passividade a que Husserl se refere. Q u a n d o conseguimos descrever o processo, sabemos o que operamos no nvel passivo. Esse u m ponto sutil n o trabalho de anlise de Husserl. Considerando todo o arco d o processo reflexivo husserliano, podemos dizer que entramos no nvel da conscincia atravs da percepo, mas existe tambm um nvel passivo, que pode ser objeto de u m a "escavao" 2 . Vamos descendo, aprofundando a escavao para com-

preender o que existe n o nvel passivo. No alto esto todas as operaes n o nvel reflexivo (o da lgica, por exemplo). Comeando pela lgica, com o problema da Matemtica, Husserl lidar com a Aritmtica como operaes psquicas, e depois perguntar "O que significa dizer que se somos capazes de realizar essas operaes lgicas? Quais so os atos que nos possibilitam exercer a atividade lgica?" Busca, portanto, examinar os atos da conscincia nos ltimos aspectos. Por u m lado, vai em direo lgica, por outro, vai em direo aos aspectos constitutivos das operaes. E, assim, chega ao aspecto passivo.

1 Cf. HUSSERL, E. Lezioni sulla sintesi passi\,a. Traduzione di V. Costa. Milano: Guerini, 1993. (Originais de 1918-1926 publicados em 1966). Cf. tambm GHIG1, N. A hiltica na fenomenologia: a propsito de alguns escritos de Angela Ales Iello. Memorandum, 4, p. 48-60, 2003. Disponvel em: