DANNIEL MADSON VIEIRA OLIVEIRA São Luís 2011 “ADMIRÁVEL” SERTÃO NOVO: o processo de territorialização da soja no município de Balsas, Sul do Maranhão UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS CURSO DE GEOGRAFIA
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“ADMIRÁVEL” SERTÃO NOVO: o processo de territorialização da soja no município de Balsas, Sul do Maranhão
Dentre os estudos coetâneos em voga nas Ciências Humanas/Sociais são de peculiar sobrepujança para Geografia aqueles sobre as diversas territorialidades. O processo de modernização concomitante às resistências no campo passou a ser analisado de várias formas, inclusive através da discussão sobre outro processo indissociável: o avanço/encontro e consequente imbricamento-sobreposição/conflito-antagonismo entre diferentes identidades, territórios e fronteiras tecnológicas – a des-re-territorialização. A territorialização da soja na fronteira sul do Maranhão, especificamente no município de Balsas, entre 1990 a 2010, foi elencada como objeto deste estudo monográfico com o objetivo de analisar esta amálgama de processos numa área bastante dinâmica para o agronegócio vinculado à soja no Brasil. As mudanças culturais e o processo de territorialização do capital recentes em Balsas, decorrentes da introdução dos novos padrões sócio-econômico-culturais e espaciais, foram inseridos a partir da “instalação” da agricultura moderna da soja e do migrante sulista neste município. Para entender este processo buscou-se: inicialmente fazer uma revisão bibliográfica a partir das categorias “Migração”, “Territorialização”, “Espaço”, “Tempo”, “Globalização”, “Identidade”, “Modernidades”, “Modernização”, “Eurocentrismo” e “Racionalidades”; em seguida, interrelacionar a teoria e o contexto de modernização das áreas propícias ao cultivo de soja no Cerrado e Amazônia brasileiros, cujas ponderações foram embasadas nas categorias “Papel do Estado”, “Fronteira”, “Rede Política Agroindustrial”, “Território”, “Des-re-territorialização” e “Multiterritorialidade”; e por fim, refletir sobre as temáticas “Fronteira” e “Des-re-territorialização” a partir da sua inserção no contexto histórico contemporâneo do município de Balsas para: constatar as consequências culturais e econômicas do processo de expansão da sojicultura nas últimas duas décadas (1990 – 2010); identificar as possíveis tensões geradas a partir de diferenciações sócio-culturais ocorrentes entre a população local e a população migrante no município supracitado; conhecer os principais motivos que geram situações aparentemente identificadas como de separação entre os dois segmentos da população. Utilizou-se o método dialético apoiado em abordagens quanti-qualitativa e etnográfica, para observar (com realização da pesquisa de campo), pensar (apoiado em pesquisa bibliográfica) e interpretar os processos de territorialização na fronteira de expansão agrária no sul maranhense, sob a égide da sojicultura, e seus desdobramentos.
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DANNIEL MADSON VIEIRA OLIVEIRA
São Luís
2011
“ADMIRÁVEL” SERTÃO NOVO: o processo de territorialização da soja no município
de Balsas, Sul do Maranhão
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIAS
CURSO DE GEOGRAFIA
DANNIEL MADSON VIEIRA OLIVEIRA
“ADMIRÁVEL” SERTÃO NOVO: o processo de territorialização da soja no município de
Balsas, Sul do Maranhão
Monografia apresentada ao Curso de
Geografia da Universidade Federal do
Maranhão, para obtenção do grau de
Licenciatura Plena e Bacharelado em
Geografia.
Orientadora: Profª. Drª. Roberta Maria
Batista de Figueiredo Lima.
Co-orientadora: Profª. Drª. Maria da Glória
Rocha Ferreira.
São Luís
2011
Oliveira, Danniel Madson Vieira.
“Admirável” Sertão novo: o processo de territorialização da soja
no município de Balsas, sul do Maranhão/ Danniel Madson Vieira
Oliveira. – São Luís, 2011.
166 f.
Impresso por computador (fotocópia).
Orientadora: Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima.
Co-orientadora: Maria da Glória Rocha Ferreira.
Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Maranhão,
Curso de Geografia, 2011.
1. Geografia econômica – Maranhão 2. Territorialização 3.
Fronteira agrária 4. Sojicultura – Balsas – MA I. Título.
CDU 911.3:33 (812.1)
DANNIEL MADSON VIEIRA OLIVEIRA
“ADMIRÁVEL” SERTÃO NOVO: o processo de territorialização da soja no município de
ANEXO A – Reportagem da Revista Exame.................................................................... 148
ANEXO B – Reportagem da Revista Veja (a).................................................................. 151
ANEXO C – Reportagem da Revista Veja (b).................................................................. 152
ANEXO D – Reportagem da Revista Veja (c).................................................................. 158
ANEXO E – Considerações da banca de monografia....................................................... 161
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1 APRESENTAÇÃO
O processo de modernização das atividades agrícolas no Cerrado sul-maranhense
trouxe diversas transformações nos âmbitos espaciais, sociais, políticos e culturais nesta área.
Sob o signo da sojicultura a “região que ficou adormecida tempo demais, hoje, cresce em
progressão geométrica. [...] A estimativa conservadora é que a economia [...] esteja crescendo
à taxa de 10% ao ano. É assim o novo Sertão brasileiro” (STEFANO, 2009, ANEXO A).
Porém, que “crescimento” é esse e quem se beneficia com ele? Que “admirável” Sertão novo
é este? Quais foram as mudanças culturais que ocorreram com a expansão da soja? Como se
comportam os diversos grupos humanos sob o processo de des-re-territorialização constante
no sul do Maranhão? Quais são as estratégias de resistência diante do conflito de
racionalidades ambientais e econômicas contraditórias? Por que e quem resiste aos atores
representantes da racionalidade hegemônica? Que racionalidades são essas?
Pensando sobre o caso particular do município de Balsas, cuja produção de soja é
a maior do Estado e segundo maior pólo agrícola da Macrorregião Nordeste, surgiram-me os
seguintes pressupostos quando da elaboração do projeto desta monografia, ainda em 2008:
A inserção do município de Balsas na lógica da capitalização do campo gerou
uma série de alterações sócio-espaciais e culturais, no local de estudo, nas últimas duas
décadas, decorrentes da introdução de novos padrões sócio-culturais e econômicos do
migrante sulista;
O migrante sulista foi atraído para Balsas pelos incentivos fiscais
governamentais, como a terceira etapa do Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o
Desenvolvimento do Cerrado – PRODECER III – pela disponibilidade de infra-estrutura para
o escoamento da produção agrícola, vastas quantidades de terras baratas e férteis, além das
características naturais do local (clima, relevo, vegetação, hidrografia e solo) propícias ao
cultivo da soja;
As múltiplas tensões entre os estabelecidos (os da terra) e os novos habitantes
(os de fora) em Balsas decorre da valorização da identidade cultural do local de origem, sendo
a principal causa de separação entre os dois segmentos da população (maranhenses X
gaúchos1);
A valorização de padrões dos de fora gera assimilação de hábitos culturais do
1 Denominação dada ao migrante do Centro-Sul do país (sulista), pelos maranhenses do sul e leste do Estado
(MA). Para melhor entendimento ler o terceiro capítulo, “Os Gaúchos” (p. 71-102), da dissertação de mestrado
de Rafael Bezerra Gaspar, intitulada “O eldorado dos gaúchos” (vide referências).
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migrante sulista, como o sotaque e regionalismo gaúcho.
Instigado em refletir sobre essas questões e hipóteses escrevi esta monografia,
com o objetivo de investigar as mudanças culturais e o processo de territorialização do capital
em Balsas, entre 1990 a 2010, decorrentes da introdução dos novos padrões sócio-econômico-
culturais e espaciais, inseridos a partir da instalação da agricultura moderna da soja e do
migrante sulista neste município. Logo, este estudo possui como área de abrangência o
município de Balsas (especificamente as áreas urbana e peri-urbana), localizado na
Mesorregião Sul do Estado Maranhão, a 830 quilômetros2 da capital – São Luís. Para isso
tenta-se:
Compreender as temáticas fronteira e des-re-territorialização a partir da sua
inserção no contexto histórico contemporâneo do município de Balsas;
Constatar as consequências culturais e econômicas do processo de expansão da
sojicultura em Balsas nas últimas duas décadas (1990 – 2010);
Identificar as possíveis tensões geradas a partir de diferenciações sócio-
culturais ocorrentes entre a população local e a população migrante no município de Balsas
(consequência do diferencial de poder entre o grupo que se considera superior e o grupo
inferiorizado);
Conhecer os principais motivos que geram situações aparentemente
identificadas como de separação entre os dois segmentos da população.
Sendo assim, esta pesquisa mostra sua relevância ao ponderar criticamente sobre a
problemática contemporânea concernente à expansão-consolidação da fronteira agrícola
brasileira, em especial das transformações culturais e às novas territorializações decorrentes
das migrações e sojicultura no município de Balsas, sul do Maranhão.
A seguir relato alguns fatos importantes para construção deste estudo
monográfico.
2 Distância rodoviária.
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1.1 A “gestação” da monografia: das paixões intelectuais passageiras ao “casamento” com
linhas de pesquisa
“A humanidade não se divide em heróis e tiranos. Suas paixões, boas ou más,
foram-lhes dadas pela sociedade, não pela natureza” (Charles Chaplin).
Uma monografia não se faz em seis meses e, contraditoriamente, nunca é o escrito
de um só. Entre os anos 2006 a 2011 lapidei com várias pessoas este trabalho “monográfico”.
A princípio, entendo como apresentação, a biografia de um trabalho, logo, quebrarei as
normas estanques dos manuais de normalização e contarei um pouco da história deste aqui,
em primeira pessoa, já que represento oficialmente seus “criadores”, ou em terceira pessoa,
quando me refiro à equipe de campo e outros grupos.
Durante os três primeiros anos da graduação (de 2006 a 2008) vivi sobre a dúvida
de qual objeto de estudo escolheria para o trabalho monográfico, que consequentemente
“esboçaria” o futuro acadêmico que seguiria. Diante de várias influências e “paixões”
intelectuais passageiras convivi com o dualismo (insistentemente persistente no curso de
Geografia da UFMA) entre Geografia Física X Geografia Humana, assim como o relativo
desconforto de ter que me posicionar categoricamente como geógrafo físico ou humano, já
que colocavam para mim que esta relação era como água e óleo: imiscível. Concernente a este
embate paradigmático e o fato de ter que escolher um lado, passei meio alheio a tudo isso, não
por indecisão, mas por gostar, ler, discutir e tentar entender ambos os “lados”, afinal a
Geografia sem a relação intrínseca entre o homem e a natureza é uma Geografia non sense,
incompleta, fragmenta-se nas ciências afins e torna-se uma “Ageografia”.
Essa perspectiva de separação da Geografia em Geografias parte da eterna
tentativa de racionalizar os pensamentos transformando-os em um, o científico, e depois
fragmentá-lo em áreas (cada uma na sua devida “caixa” catalogada), até criar oposições e
tensões desnecessárias entre ciências, nas quais o rigor científico é o “termômetro” de
hierarquização (algo bem evidente na sociedade ocidental moderna) em detrimento de um
pensamento holístico.
[...] Na longa história que tem origem na mecânica newtoniana, desenvolveram-se
admiração e compromisso mútuos entre a ciência-como-física e a filosofia-como-
positivismo/filosofia analítica. Tal filosofia, para qual todos os simples títulos
parecem, inapelavelmente, inadequados, mas que foi imensamente poderosa na
repercussão de seus efeitos, principalmente em seus primórdios [...], sustentava que
a “ciência” era o único caminho para o conhecimento e que havia apenas um método
científico verdadeiro. Ela estava comprometida com (seus entendimentos de)
objetividade, do método empírico e do monismo epistemológico (que,
essencialmente, incorporava um reducionismo com a física) [...].
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E conduziu ambas para uma imaginada hierarquia entre as ciências (com a física em
um extremo e, digamos, os estudos culturais e humanidades no outro) e para um
fenômeno de inveja da física entre uma série de práticas científicas que visavam,
mas que viram que não podiam, imitar os protocolos da “física”. Os geógrafos
físicos (algumas vezes) pensam que são mais científicos do que geógrafos humanos.
[...] Os geólogos sofrem de inveja da física: “o sentimento de inferioridade em
relação ao status da geologia comparada com outras ciências mais ‘duras’...” [...].
(MASSEY, 2009, p. 61).
Algo também afirmado por alguns amigos e professores do curso e que gerou
inquietações, dúvidas no meu cotidiano como estudante de Geografia, como diria Ruy
Moreira: do “pensar e ser em Geografia3”. Quem serei eu daqui há dez anos? Que Geografia
seguir? Quando pensava em retorno financeiro rápido vinha em minha mente cursar um
mestrado na área de Geoprocessamento, Sensoriamento Remoto ou Geologia e depois
trabalhar em grandes empresas. Porém, seis anos de graduação tiveram seu lado positivo
quando posso afirmar que li muito de muitas “áreas das ciências”, integrei, participei ou
estagiei em laboratórios, institutos, centro acadêmico, núcleos e grupos de estudos, empresa
júnior, projetos de extensão e pesquisa, monitoria, eventos os mais diversos, lecionei em
curso voluntário, escola pública e particular, etc. nos quais pude conhecer várias lógicas
vivenciando diferentes “realidades”, muitas vezes opostas, a ponto de amadurecer minhas
escolhas, quebrar estereótipos/“desvendar máscaras sociais” o suficiente para descobrir o que
realmente queria para mim.
Foram muito relevantes também as leituras, debates, eventos e convivência com
amigos-professores durante o curso de História da UEMA, que infelizmente escolhi
abandonar em 2008, no quinto período, e me dedicar melhor e exclusivamente à Geografia da
UFMA, inclusive para poder concorrer à bolsa de iniciação científica.
Foi neste contexto que, em fins do ano 2008, resolvi participar de entrevistas
seletivas para concorrer à bolsa de pesquisa pelo projeto “Mudanças sócio-culturais e
espaciais decorrentes da agricultura moderna no sul maranhense”, sob coordenação das
professoras Maria da Glória Rocha Ferreira e Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima
(DEGEO/UFMA) e com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Maranhão (FAPEMA). Fui
selecionado, juntamente com a aluna Alexsandra Maryllen Roges Costa Falcão, para
participar do projeto. No primeiro ano (2009) não conseguimos bolsa de pesquisa, mas
contamos com apoio financeiro da FAPEMA para custear as despesas decorrentes das viagens
3 MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em Geografia: ensaios de história, epistemologia e ontologia do espaço
geográfico. – 1ª ed. – 1ª reimpr. – São Paulo: Contexto, 2008.
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de campo. No segundo ano conseguimos uma Bolsa de Iniciação Científica (BIC), destinada
entre 2010/2011 para Alexsandra e 2011/2012 para Juscinaldo Goes Almeida – ambos
graduandos em Geografia (UFMA) – além de mais recursos para financiar o projeto, junto à
FAPEMA. Eu continuei como voluntário, pois era bolsista de extensão (PROEX/UFMA) pelo
projeto “Percepção e Educação Ambiental na Comunidade Sá Viana: a formação dos filhos de
pescadores por meio de uma visão multidisciplinar”.
O projeto de pesquisa sobre Balsas objetiva averiguar mudanças na organização
sócio-espacial da área, decorrentes da introdução de novos padrões sócio-culturais, advindos
da instalação da agricultura em bases empresariais. A escolha pelo enfoque analítico sobre o
município de Balsas deu-se por entender que este representa o marco inicial do processo de
produção da soja no Maranhão, assim como aquele que apresenta maiores singularidades em
termos de transformações sócio-espaciais e culturais, dada a sua função dentro do processo
produtivo regional. A “gestação” desta monografia iniciou-se deste projeto de pesquisa.
Neste ínterim entrei em contato com leituras e trabalhos de campo em grupos e
núcleos de estudos relacionados aos movimentos sociais, especificamente em pesquisas sobre
questões agrárias: o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias – NERA
(DEGEO/UFMA) e o Grupo de Estudos Rurais e Urbanos – GERUR (DESOC/UFMA), que
foram e continuam sendo imprescindíveis para minhas experiências e construção paulatina de
uma racionalidade voltada para essas questões, através das seguintes linhas de pesquisa:
“Dinâmica do Espaço Agrário”;
“Industrialização da Agricultura e Transformações na Agricultura Familiar”;
“Migrações e Transformações Territoriais”;
“Território, Identidade e Conflitos Sócio-Ambientais”.
O geógrafo – enquanto pesquisador das Ciências Humanas/Sociais – necessita e
deve proporcionar estudos que contribuam concretamente para melhoria da sociedade
precariamente incluída, tanto quanto uma população afetada por grandes projetos de
“desenvolvimento” econômico anseia pelo apoio da academia em prol da sua causa de luta4.
[...] a teoria crítica moderna tem de assumir uma postura contra-hegemônica, que os
intelectuais deveriam tornar-se contra-especialistas, mais altamente treinados do que
seus inimigos, e com um maior comprometimento para com os ideais mais nobres.
Assim, [...] economia, desenvolvimento, relações rurais-urbanas devem ser
repensadas sob um imaginário econômico diferente se quisermos ter um mundo com
justiça social. Podemos receber nossas deixas dos movimentos sociais. Mas há ainda
um repensar sofisticado acerca do desenvolvimento que também precisa ser feito por
intelectuais engajados. Precisamos batalhar por poder, ao invés de dispensá-lo.
4 Assim como alertou Burawoy (2006) para a Sociologia, ao defender uma Sociologia pública, o papel do
geógrafo deve ser baseado em uma Geografia pública.
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Precisamos fazer um novo imaginário de desenvolvimento, no qual usemos nossos
momentos mais criativos para pensar diferentemente. Precisamos de uma evolução
nas idéias tanto quanto na prática. Critiquem tudo, mas convertam crítica em
proposta positiva... Esse é o credo crítico moderno. (PEET, 2009, p. 36).
Logo, as implicações futuras, ou seja, a contribuição e/ou os benefícios desse tipo
de estudo geográfico nessa região são imprescindíveis para o alcance recíproco das
necessidades dos grupos atingidos pela soja, assim como do geógrafo comprometido
socialmente, incluindo o proponente desta pesquisa.
Para conhecer um pouco da vivência e opinião dos grupos atingidos (positiva ou
negativamente) pela sojicultura em Balsas, participei de três trabalhos de campo no
município, entre 2009 a 2011, juntamente com a equipe que compunha o projeto de pesquisa5.
Tais trabalhos ocorreram anualmente, no segundo semestre, entre os meses de agosto a
dezembro, por maior disponibilidade de tempo da equipe nesse período. A seguir apresento
sucintamente como ocorreram tais campos.
1º Trabalho de campo: 05 a 08 de dezembro de 2009
Neste primeiro campo tudo era totalmente novo para a maior parte da equipe (o
estranhamento era mais fácil), com exceção da professora Glória, que desenvolvera sua tese
de doutorado6 sobre Balsas, apresentada no ano de 2008. Enquanto as coordenadoras
chegavam primeiro, no dia 5, eu e Alexsandra vínhamos de “carona” em outro trabalho de
campo, pela disciplina e com a turma de Geografia Física do Maranhão (semestre 2009.2),
ministrada pelo professor Antonio Cordeiro Feitosa (DEGEO/UFMA) que ensinava-nos sobre
a fisiografia do centro-sul maranhense. Como o ponto sul extremo desse campo era a cidade
de Balsas acompanhamo-los até lá.
No dia 06 chegamos, domingo à tarde. Minha maior expectativa, como torcedor
do Flamengo, era assistir à última rodada do Campeonato Brasileiro, já que concorria
diretamente ao título, assim como Alexsandra, são-paulina e também na disputa pelo título de
2009. Quando encontrei as coordenadoras saindo do hotel fiquei extremamente feliz, por vê-
las vestidas a caráter como flamenguistas, com camisa e mascote do time, e ao dizerem que
5 Coordenadoras: Maria da Glória Rocha Ferreira; Roberta Maria Batista de Figueiredo Lima. Bolsistas:
Alexsandra Maryllen Roges Costa Falcão; Juscinaldo Goes Almeida. Voluntários(as): Ana Karolina Pinheiro
Carvalho; Danniel Madson Vieira Oliveira; Elizeu Silva do Nascimento. 6 FERREIRA, Maria da Glória Rocha. Dinâmica da Expansão da Soja e as Novas Formas de Organização do
Espaço na Região de Balsas – MA. 2008. 272 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
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“iriam ver os processos relacionados ao comportamento dos torcedores em um bar, próximo à
Avenida Litorânea” (apesar da cidade estar a mais de 800 quilômetros do mar), fiquei ainda
mais satisfeito.
Ao encontrá-las de novo, alguns minutos depois, com meu caderno de campo em
mãos, elas relataram os ocorridos quando do gol do Grêmio (sobre o Flamengo) e do
Internacional em outra partida (times do Rio Grande do Sul), momentos nos quais houve
diversas provocações dos chamados gaúchos de Balsas, que saíam em suas caminhonetes,
vibrando ao som de foguetes e do hino do Inter (que concorria ao título do campeonato
brasileiro também).
Porém, o Flamengo mostrou sua superioridade em campo, ao empatar, em seguida
virar e se consagrar como campeão brasileiro de 2009. Os flamenguistas, em sua maior parte
maranhenses, vibravam exacerbadamente, chamando os gaúchos apenas de “gaúchos”, de
forma depreciativa, e demonstrando a rivalidade entre suas torcidas. Aos gaúchos que torciam
para o Inter restou a opção de não aparecer mais na Avenida Litorânea, enquanto os gaúchos
gremistas se exibiam tomando chimarrão com as camisas do seu time como forma de
rivalidade, já que o Internacional não ganhara o título. Outros gaúchos não ligavam tanto para
este fato, a cidade inteira estava em festa, e eles se exibiam de outra forma, ao som
automotivo ensurdecedor de músicas sertanejas e sulistas, com suas roupas típicas
“mescladas” às dos sertanejos (jaqueta e calça jeans, chapéu e bota de couro, apesar de quase
30°C), dançando e tomando chimarrão sobre a carroceria de suas pick-ups.
Voltamos ao hotel para descansar enquanto a cidade não dormia. Tirando o fato
do jogo, eu vinha refletindo uma série de idealizações que poderia relatar mais tarde em
artigos, relatórios e na monografia ao confirmá-las no campo. Uma das leituras indicadas para
o seminário interno sobre a categoria “identidade”, pelo projeto de pesquisa sobre Balsas, me
inculcava muito: “Os estabelecidos e os outsiders”, de Norbert Elias & John L. Scotson
(2000), pois achava que encontraria um embate entre gaúchos e maranhenses de forma
parecida com a descrita nesse livro, o que não se concretizou e provou que não deveria
idealizar resultados no campo com pré-noções e anacronismos, “o que convém evitar” no
campo, como diriam Beaud; Weber (2007).
Ao chegarmos ao hotel, as coordenadoras relataram a conversa que tiveram, no
dia anterior, no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Balsas (STTR Balsas),
sobre a expansão e impacto da sojicultura em Balsas e as principais mudanças decorrentes
deste processo. Importante a presença do diário de campo nesses momentos, pois é como um
25
álbum de fotos que guarda momentos que a memória às vezes descarta. “Nossa memória é
uma ilha de edição” e o gravador também tem suas limitações.
Apesar de termos feito um roteiro (APÊNDICE A) dos órgãos a serem visitados
para entrevistarmos seus representantes, fomos refazendo-o paulatinamente em campo, de
acordo com indicações que surgiam nas entrevistas. Trabalhamos com roteiro e não com um
questionário fechado, muitas vezes dizíamos que se tratava de uma conversa em vez de
entrevista, o que tornava a abordagem mais fácil. O grupo foi dividido em duas equipes,
devido ao tempo reduzido e aos vários órgãos a serem visitados. Já que eu e Alexsandra
conhecíamos pouco sobre técnicas de abordagem, entrevista e observação, cada um ia
acompanhado com uma coordenadora. Dessa forma, fomos aos seguintes locais:
SEBRAE Balsas;
Secretaria Municipal de Agricultura de Balsas;
Banco do Nordeste;
Banco do Brasil;
Associação Camponesa (ACA) de Balsas;
Povoado Angelim;
Hortas urbanas.
Destes, destaco a visita ao povoado Angelim, localizado na área peri-urbana de
Balsas. Passamos uma manhã conversando com alguns moradores sobre o modo como viviam
e como viam as principais mudanças ocorrentes no município. Um fato interessante é que ao
me apropriar da categoria gaúcho para identificar um dos moradores do povoado fui
repreendido por uma moradora, maranhense, que disse: “Gaúcho? Aqui não tem nenhum
gaúcho, ele é catarinense.” Constrangido, eu ri no momento. Em um campo futuro ocorreu
uma situação parecida (a categoria que abrange várias naturalidades em uma só, não é aceita e
utilizada da mesma forma). As mudanças relacionadas à melhoria da infra-estrutura de acesso
foram consideradas como positivas, assim como a questão da alimentação. Com a introdução
da cultura de fora vieram também seus hábitos alimentares: o churrasco, frutas e verduras
diversas. O êxodo rural com a grilagem de terras foi um aspecto negativo.
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2º Trabalho de campo: 25 a 30 de agosto de 2010
Já no segundo campo estava mais acostumado com os métodos de abordagem,
entrevista e observação. A equipe foi a mesma do primeiro campo e dividida da mesma
forma. Seguimos um roteiro (APÊNDICE B) para visitar locais do setor terciário e centros de
cultura:
Mercado Municipal de Balsas;
Secretaria da Fazenda de Balsas;
Boutiques;
Empresas de implementos agrícolas;
Imobiliárias;
Mercearias e comércios mais antigos;
Hotéis antigos e novos;
Restaurantes antigos e novos;
Centro de Tradições Gaúchas (C.T.G.).
“Antigo” e “novo” nesse caso, geralmente, estava relacionado aos da região e aos
de fora, respectivamente, para tentarmos entender, através dos relatos, as diversas mudanças
com a sojicultura e vinda dos migrantes. Dessa vez foi recorrente nos depoimentos a questão
do aumento demasiado da violência e precarização de serviços públicos, como saúde,
saneamento básico, etc.
Um dia bem interessante foi quando fomos ao povoado Santa Luzia na área peri-
urbana da cidade. Este povoado possui um balneário, com estrutura de bar, campo de futebol
e barracas padronizadas. Descemos o rio Balsas em uma embarcação artesanal feita somente
de bambu, ao ritmo da correnteza do rio. A viagem é feita aos finais de semana. O que mais
me impressionou foi a resistência da embarcação, feita somente de varas de bambu amarradas.
Sobre ela iam várias pessoas (aproximadamente quinze), fazendo churrasco e levando um
freezer cheio de bebidas. A viagem até a área urbana de Balsas foi de aproximadamente oito
horas. Ao final a balsa vem se desfazendo, um pouco abaixo do nível superficial do leito do
rio. Quem a constrói também tem o papel de desmontá-la, voltando ao ponto de partida com
carro, geralmente com carroceria, para levar as partes da balsa que resistiram à correnteza.
Reservamos o último dia para coleta de pontos com GPS para um futuro
mapeamento de diversas mudanças na área urbana do município.
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3º Trabalho de campo: 17 a 21 de outubro de 2011
O terceiro campo teve um marco diferente para mim, já não estranhava tanto o
que antes achava tão diferente. Porém, o fato do meu pouco estranhamento foi compensado
com a renovação da equipe de trabalho. Como tinha um pouco de experiência por participar
de outros campos, somado ao fato das coordenadoras não poderem ir dessa vez, por já estarem
compromissadas com outras atividades acadêmicas, fui incumbido de acompanhar os novos
membros do grupo (para ajudá-los a se localizar e concomitantemente levantar mais dados
para monografia): o novo bolsista, Juscinaldo Goes Almeida, e dois novos voluntários, Ana
Karolina Pinheiro Carvalho e Elizeu Silva do Nascimento, todos graduandos do curso de
Geografia (UFMA). A partir do roteiro de campo (APÊNDICE C), visitamos os seguintes
locais, sempre focando os aspectos relacionados às mudanças consequentes à modernização
do campo e a vinda de sulistas ao município:
UNIBALSAS;
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA;
Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Balsas – STTR Balsas;
Fundação de Apoio à Pesquisa do Corredor de Exportação Norte – FAPCEN;
Cursos técnicos;
Secretaria de Educação Municipal;
Escolas particulares e públicas;
Câmara Municipal de Balsas.
Mais uma vez dividimo-nos em duas equipes para realizar as entrevistas. Outro
erro recorrente ocorreu quando me apropriei da categoria gaúcho sem pensar. Ao conversar
com uma senhora na Câmara Municipal de Balsas, ela revelou que era gaúcha, daí perguntei: -
“‘Gaúcha’, a senhora diz... do Rio Grande do Sul?” Ela respondeu afirmando com um murro
na mesa: - “Sim, porque gaúcho é quem nasce no Rio Grande do Sul”. Diante do mal-estar
lembrei-me do que escreveram Beaud; Weber (2007, p. 175):
Seu material de pesquisa abrange também situações, tanto em observação como em
entrevista, no decorrer das quais o mal-estar entre os pesquisados e você jamais se
dissipou. Tome esse mal-estar como objeto de reflexão partindo da hipótese que
nada se deve ao acaso, porque há sempre uma causa (sociológica); não abandone
nunca o princípio de razão suficiente. Não ceda também à tentação psicologizante
(“é um(a) grosso(a)”, um mal-dormido, ele não era simpático, etc.) que alivia você
da responsabilidade de analisar as falhas de interação [...].
O essencial da análise se dá, aqui, na descrição e na elucidação do mal-estar.
Esforce-se por reconstituir as condições sociais dessa interação particular, pergunte-
se quem (qual tipo de pessoa social) você representa para o entrevistado. [...] A
seguir estabeleça com detalhe as características sociais de seu interlocutor. Faça a
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lista de todos os mal-entendidos ligados à pesquisa. enfim, procure a ou as “falhas”,
as razões principais do mal-estar. Só a análise detalhada da relação que se dá entre
você e o pesquisado.
Como o último campo ainda é bem recente, pouco das entrevistas gravadas foram
trabalhadas nesta monografia por ainda estarem em processo de transcrição. A descrição de
alguns fatos importantes durante os três campos serviu para mostrar como ocorreu o processo
de envolvimento do pesquisador com as pessoas dos locais pesquisados e a equipe de
trabalho.
Após as considerações iniciais contidas na apresentação e metodologia, estruturei
a monografia em quatro partes:
Parte um: da teoria – faço uma relação direta e quase exclusivamente com o
pensamento de diversos autores a respeito das categorias de análise elencadas para discussão,
Modernidades, Modernização, Eurocentrismo e Racionalidades;
Parte dois: o cenário da “fronteira” no Brasil da soja – esta segunda parte
refere-se à interrelação entre a teoria e o contexto no qual se deu (e se dá) a modernização das
áreas propícias ao cultivo de soja no país, com destaque para o Cerrado e Amazônia, cujas
ponderações são embasadas nas seguintes categorias: Papel do Estado, Fronteira, Rede
Política Agroindustrial, Território, Des-re-territorialização e Multiterritorialidade;
Parte três: o “admirável” Sertão Novo em Balsas – a penúltima parte trata
especificamente sobre o município de Balsas, cujos resultados e reflexões foram obtidos a
partir das informações e observações nos campos e dados estatísticos junto ao IBGE e
IMESC;
Parte quatro: das considerações finais – finalizo, nesta monografia, as reflexões
pessoais sobre os temas aqui abordados.
Enfim, desejo uma boa leitura, compreensão e crítica das temáticas aqui
abordadas.
29
2 METODOLOGIA
Para realização deste trabalho monográfico, concernente aos objetivos elencados
para sua produção, foram utilizadas as abordagens quanti-qualitativa e etnográfica, assim
como o método dialético, para observar, pensar e interpretar os processos de territorialização
na fronteira de expansão agrária no sul maranhense, sob a égide da sojicultura, e seus
desdobramentos. A partir desta metodologia buscou-se entender a dinâmica da modernização
e territorialização recente do campo sul-maranhense, no município de Balsas, atrelada à
expansão da soja, assim como quais são as situações-problema que afligem a população local
em virtude da chegada do migrante sulista e os quadros sócio-culturais e espaciais
(re)desenhados a partir destes processos.
A partir do método dialético buscou-se entender as contradições relativas ao
processo recente de modernização do campo e expansão da soja em choque direto com os
modos de vida daqueles estabelecidos há mais tempo na área de estudo, conseguintemente
refletiu-se sobre a configuração de uma nova territorialização em Balsas por conta de tais
contradições.
Fala-se aqui em abordagem etnográfica e não em método, já que a familiarização
com os grupos estudados precisaria de muito mais tempo em campo, como nos explicam
Beaud; Weber (2007, p. 191-192 e 194):
[...] A pesquisa etnográfica constrói-se como uma sequência de interações pessoais
que tornam possível a presença prolongada do pesquisador no campo. [...].
[...]
[...] ela deve ser “de longa duração”. [...] Por quê? Porque o tempo passado no local
abre possibilidade de verdadeiros “encontros”, de verdadeiros “intercâmbios
diferenciados”, de um envolvimento com o tempo de seus pesquisados. Uma breve
passagem fornece informações ao entrevistador, completamente ligado a seus
contatos locais, em geral os “notáveis” ou as “personagens oficiais” dos cargos
públicos e, pelo menos informalmente, as relações com o público ou os estrangeiros,
os “informantes” ou os “correspondentes” das pesquisas de antigamente. Somente
uma instalação, é claro, provisória, lhe proporciona uma verdadeira identidade [...].
Terá um lugar, à parte, é verdade, mas um lugar no meio de interconhecimento, terá
uma reputação, pois saber-se-á quem ele é e o que faz ali.
Porém, como abordagem, a etnografia proporcionou as bases para formulação dos
procedimentos da pesquisa de campo, haja vista que os contatos iniciais, as observações
diretas, entrevistas (gravadas ou não) e anotações sistemáticas em diário de campo auxiliaram
imprescindivelmente na compreensão da expansão da sojicultura no município de Balsas,
cujos processos decorrentes foram entendidos no contexto em que ocorrem, de modo que os
30
trabalhos de campo possibilitaram uma melhor clarificação do tema abordado, além da devida
constatação e avaliação daquilo que foi estudado na literatura.
A abordagem quanti-qualitativa foi utilizada para interpretar os levantamentos de
materiais existentes para representação cartográfica sobre a área de estudo, dos dados
estatísticos, informações obtidas em entrevistas e junto ao IBGE e IMESC, e por fim, na fase
de seleção dos dados empíricos coletados em observações de campo. Os dados coletados
foram tabulados e representados em forma de tabelas, quadros e figuras (fotos, gráficos,
mapas e cartogramas). Algumas figuras possuem legendas comentadas, como as que abrem os
capítulos, além de alguns quadros e gráficos – para além da normalização – objetivando
interagir e refletir o texto diretamente com as ilustrações.
2.1 Procedimentos metodológicos
2.1.1 Pesquisa Bibliográfica
- Participação, sob a direção das orientadoras no levantamento do referencial
bibliográfico que subsidiou o orientando, na área de Ciências Humanas/Sociais, através do
Núcleo de Documentação Pesquisa e Extensão Geográfica (NDPEG), das bibliotecas centrais
e de programas de pós-graduação da UFMA e UEMA;
- Leitura, com fichamento, do referencial teórico voltado para o aprofundamento
das categorias de análise: fronteira tecnológica, territorialidade/identidade, papel do Estado e
racionalidades;
- Seminários internos para discussão sobre a bibliografia estudada;
- Levantamento de material existente com a representação cartográfica sobre a
área de estudo;
- Levantamento de dados secundários do IBGE e IMESC;
- Participação na revisão de todo o material bibliográfico trabalhado e utilizado,
bem como o cartográfico;
- Realização do levantamento de dados estatísticos, abrangendo o período de 1990
a 2010, em multiescalas (nacional, estadual, mesorregional, microrregional e municipal),
sobre a “evolução” da lavoura de soja, migrações internas, infraestrutura, programas de
“desenvolvimento” regionais, dados demográficos, socioeconômicos, ambientais, etc.;
31
- Redação e apresentação de artigos científicos paralelos em eventos que
abrangiam discussões temáticas sobre as categorias de análise e áreas afins (Território,
Identidade, Poder, Geografia Agrária, Política, Econômica, Urbana, Ambiental, Regional e
Ciências Sociais).
2.1.2 Organização e Realização da Pesquisa de Campo
- Participação na análise e discussão sobre a forma definitiva dos
instrumentos/procedimentos utilizados, junto aos sujeitos estudados;
- Participação nas discussões sobre a montagem dos instrumentos aplicados junto
à população formada por imigrantes, bem como às representações do sindicato patronal e
instituições públicas ligadas à oferta de serviços urbanos;
- Participação em três viagens de campo ao município de Balsas (uma por ano,
durante o triênio 2009-2011), aplicando-se os instrumentos/procedimentos selecionados, com
as técnicas de entrevistas, observações, anotações sistemáticas em diário de campo e
gravações;
- Transcrição das entrevistas.
2.1.3 Elaboração dos Dados
- Participação na fase de seleção dos dados empíricos coletados em campo;
- Participação na fase de tabulação dos dados coletados;
- Participação na fase de representação qualitativa dos dados quantitativos em
forma de tabelas, quadros e gráficos;
- Participação na fase de classificação e interpretação das transcrições.
2.1.4 Análise e Interpretação dos Dados/Informações
- Participação na redação do projeto de monografia;
- Participação na fase de análise/interpretação dos dados/informações
levantados/coletados na área de estudo. O anonimato dos(as) entrevistados(as) foi mantido:
quando chamados(as) nesta monografia os(as) denominei por letras maiúsculas, em ordem
alfabética crescente, de acordo com a sequência em que aparecem no texto;
32
- Apresentação do texto preliminar da monografia às orientadoras que fizeram as
devidas correções e considerações;
- Apresentação dos resultados da monografia à banca examinadora;
- Redação definitiva do texto monográfico.
O quadro abaixo representa a distribuição cronológica das atividades realizadas
pelo orientando durante o projeto de pesquisa sobre Balsas até a “finalização” desta
monografia:
QUADRO 01. Cronograma de atividades do orientando.
ATIVIDADES
ANO/SEMESTRE
2009 2010 2011
1º 2º 1º 2º 1º 2º
01 Participação do orientando, no levantamento de material
bibliográfico relacionado ao assunto, junto à Biblioteca
Central e programas de pós-graduação da UFMA e UEMA. X X X X X X
02 Fichamento do material bibliográfico referente às
categorias de análises utilizadas na fundamentação do
trabalho. X X X X
03 Levantamento de material existente sobre a
representação cartográfica da área de estudo. X X
04 Realização do levantamento de dados estatísticos sobre
“evolução” da lavoura de soja, migrações internas,
infraestrutura, programas de “desenvolvimento” regionais,
dados demográficos, socioeconômicos, ambientais, etc.
X
05 Participação na montagem dos instrumentos a serem
aplicados junto à população local e “migrante”, bem como
às representações patronais, culturais e instituições públicas
e de preservação da cultura/identidade local e do migrante
sulista.
X X X
06 Participação em viagem ao município de Balsas, visando
a aplicação dos instrumentos/procedimentos selecionados. X X X
07 Participação na fase de seleção dos dados empíricos
coletados no campo. X X X
08 Participação na etapa de tabulação dos dados coletados. X X X
09 Participação na etapa de representação dos dados em
tabelas, quadros e gráficos. X X X
10 Participação na fase de análise e interpretação dos
dados/informações. X X X
11 Participação na redação do texto final da monografia. X
12 Defesa da monografia. X
Fonte: Dados da pesquisa, 2009-2011.
33
PARTE UM: da teoria
34
3 SOBRE AS CATEGORIAS DE ANÁLISE: divagações introdutórias...7
Figura 01. Mosaico 1: sátiras de Pawła Kuczyńskiego. Fonte: adaptado de Capu.pl. A concentração de renda e o
aumento contínuo da desigualdade são características inerentes ao projeto de mundo moderno globalizado da
forma como está: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não
come” (frase propalada em um congresso da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação –
FAO, por Josué Apolônio de Castro – geógrafo, cientista social, professor, escritor, político, médico, nutrólogo,
ativista brasileiro... autor da obra clássica Geografia da Fome – enquanto dirigente eventual desta instituição).
7 Num primeiro momento, o que parece uma verborragia divagante fez-se necessária. O encadeamento de
diversas categorias de análise não se deu por acaso e nem desconcatenado. Neste capítulo introdutório elencou-
se uma série de categorias (migração, territorialização, espaço, tempo, globalização, identidade, modernidades,
modernização e eurocentrismo) como um ensaio geral para os capítulos seguintes, que as tratarão mais
especificamente, principalmente aquelas que foram consideradas indispensáveis para o entendimento holístico
do trabalho.
Este capítulo possui alguns trechos do seguinte artigo: OLIVEIRA, Danniel Madson Vieira; MOREIRA, Tiago
Silva; RÊGO, Josoaldo Lima. Processo de (re)construção da identidade sócio-territorial no sujeito (pós)moderno.
In: Ciências Humanas em Revista (UFMA), v. 7, p. 20-29, 2009.
35
“[...] Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor –
mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o
que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse
sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma
unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como
disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar.’” (BERMAN, 2007, p. 24, grifo
meu).
A mobilidade8 é uma característica da espécie humana (mas não só desta) desde
nossas sociedades mais simples, formadas por grupos nômades de caçadores e coletores.
Mesmo “de caçador a criador, de coletor a agricultor” (PINSKY, 1987, p. 50) e sua
consequente “sedentarização” (estágios das sociedades humanas perpetuados pela ótica de
teorias evolucionistas) o homem continuou a se dispersar mundo afora, pelas causas mais
diversas possíveis como intempéries naturais, conflitos intergrupais ou busca por recursos
naturais.
A “diáspora” colonizadora do homem moderno9 reconfigurou (e reconfigura)
constantemente o espaço geográfico. Ao longo dos anos, as inovações técnicas nos meios de
transporte e de comunicação permitiram a dinamização dessa mobilidade e o “acesso
instantâneo” virtual aos diversos territórios do ciberespaço10
, através da rede mundial de
computadores11
, dando uma aparente e utópica noção de homogeneidade do espaço, fim das
fronteiras, dos territórios nacionais, da Geografia, da História, consolidação da aldeia global e
pós-modernidade... momento denominado e conceituado por Santos (1996, p. 147) de “Era
8 Neste capítulo utiliza-se a palavra mobilidade como sinônima às migrações humanas: “movimento espacial de
indivíduos ou grupos (ou até de populações) de um habitat para outro” (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA). 9 Quem é este homem moderno? É aquele pertencente ao Mundo e Período Moderno. O Mundo Moderno surge
na Europa expansionista ultramarina, iluminista, moldado pelos homens e mulheres que “sacralizaram” seu
pensamento como O RACIONAL, tornando-o hegemônico, substituindo “a providência divina” (que tem certeza
na lei divina) pelo “progresso providencial” (cuja certeza provém de nossos sentidos, da observação empírica,
que produzem a razão desagrilhoada). “[...] a idéia providencial da razão coincidiu com a ascensão do domínio
europeu sobre o resto do mundo. O crescimento do poder europeu forneceu o suporte material para a suposição
de que a nova perspectiva sobre o mundo era fundamentada sobre uma base sólida que tanto proporcionava
segurança como oferecia emancipação do dogma da tradição.” (GIDDENS, 1991, p. 54). O homem moderno
cria, defende e difunde o projeto de modernidade sob a égide do pensamento “racional” ocidental. 10
Termo criado pelo escritor estadunidense William Ford Gibson, popularizado em seu romance de estreia
“Neuromancer” (1984), que assim o define: “Ciberespaço. Uma alucinação consensual experimentada
diariamente por bilhões de operadores legitimados, em cada nação, por crianças atrás de conceitos matemáticos
ensinados... Uma representação gráfica de informação abstraída dos bancos de cada computador no sistema
humano. Complexidade impensável. Linhas de luz vagueando no não espaço da mente, cachos e constelações de
informação. Como luzes da cidade, recuando.” (GIBSON, 1993, p. 67, grifos meus). 11
“É a partir do computador que a noção de tempo real, um dos motores fundamentais da nossa era, torna-se
historicamente operante. Graças exatamente, à construção técnica e social desse tempo real é que vivemos uma
instantaneidade percebida, uma simultaneidade dos instantes, uma convergência dos momentos.” (SANTOS,
1996, p. 148).
36
das Telecomunicações”, na qual há “combinação entre a tecnologia digital, a política
neoliberal e os mercados globais.”
O mundo estaria se “desterritorializando”? Sob o impacto dos processos de
globalização que “comprimiram” o espaço e o tempo, erradicando as distâncias pela
comunicação instantânea e promovendo a influência de lugares os mais distantes uns
sobre os outros, a fragilização de todo tipo de fronteira e a crise da territorialidade
dominante, a do Estado nação, nossas ações sendo regidas mais pelas imagens e
representações que fazemos do que pela realidade material que nos envolve, nossa
vida imersa numa mobilização constante, concreta e simbólica, o que restaria de
nossos “territórios”, de nossa “geografia”? Segundo o urbanista-filósofo francês
Paul Virilio, até a geopolítica estaria sendo sobrepujada pela cronopolítica, pois
seria estrategicamente muito mais importante o controle do tempo do que o controle
do espaço. O mundo das divisões territoriais dos Estados nações, na forma de colcha
de retalhos, estaria condenado frente ao mundo das redes, a “sociedade em rede”
como denominou Manuel Castells. (HAESBAERT, 2006, p. 19-20).
David Harvey (2010) escreveu sobre a “compressão do tempo-espaço” (figura 02) como
um indicativo da demasiada e contínua aceleração do ritmo de vida imposto pela história do
capitalismo, vencendo cada vez mais as limitações do espaço, tornando o mundo cada vez “menor”:
[...] À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de
telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências ecológicas e
econômicas [...] e que os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só
existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar com um
avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e temporal.
(HARVEY, 2010, p. 219, grifos do autor).
Figura 02. Mosaico 2: Compressão do tempo-espaço. A – “O encolhimento do mapa do mundo graças a
inovações nos transportes que ‘aniquilam o espaço por meio do tempo’”. B – “Um anúncio da Alcatel de 1987
enfatiza uma imagem popular do globo encolhendo”. Fonte: adaptado de Harvey, 2010, p. 220 e 221.
37
“Oh, admirável mundo novo!” Que a todo instante se desconstrói-reconstrói, em
que o novo já nasce obsoleto, a rapidez e tempo tornam-se inversamente proporcionais
(aumenta-se a velocidade de tudo para que possamos fazer mais tudo e a impressão que fica é
que estamos sempre sem tempo), talvez o ápice da tentativa constante de findar o espaço pode
ser traduzido nos investimentos em pesquisas e estudos sobre a possibilidade de viagem do
homem no tempo-espaço através do teletransporte (possibilidade ainda frustrada).
No mundo moderno a intensidade dos processos e a velocidade do acontecer
marcam as relações dos homens entre si e destes com o espaço, uma vez que
transformam o tempo, aceleram o ritmo. “Nosso ritmo de vida não conhece os
tempos longos”, nos assevera Calvino [1994, p. 15]. A ideia de um tempo rápido, de
um aqui e agora, de um presente sem espessura parece despir o cidadão de um
passado, de sua história, deixando-o assolado pela febre do instantâneo. O passado,
enquanto experiência e sentido daquilo que produz o presente, se perde, ao passo
que o futuro se esfuma na velocidade do tempo da transformação das formas – o
lugar é cada vez mais aquele do não uso, logo, da não identidade.
[...]
São as mudanças no tempo e no espaço, e na sua relação, que ajudam a definir a
modernidade hoje. (CARLOS, 2010, p. 10).
Porém, apesar do “triunfo” (mais no campo teórico) da “sociedade em rede”, da
“inflação telecomunicacional” e da “convergência dos momentos”, os atores que dão vida ao
espaço virtual que “homogeniza” provêm de espaços reais os mais heterogêneos e,
preponderantemente, espaços de inclusão precária regidos por pensamentos diversos em
contraposição à consciência global interplanetária; outros milhões, marginalizados pelo
mercado e de racionalidades colonizadas, foram “deletados” desse processo oneroso pela
globalização da “desigualdade moral e política12
” (ROUSSEAU, 2006), tornando a
sustentação deste discurso, na prática, falaciosa e volátil (o termo global foi deturpado no
sentido de abrangência absoluta: a contradição surge ao classificarmos um processo como
global quando este elenca uma “minoria prioritária13
”, inclui muitos precariamente e exclui
uma parcela significativa). A aldeia global cunhada pelo filósofo canadense Herbert Marshall
McLuhan e em seguida singularizada com a globalização parece cada vez mais restrita, em
processo de implosão, causado por esta globalização nonsense estabelecida, doente, em
autofagia degenerativa.
12
“[...] A [...] desigualdade moral ou política [...] depende de uma espécie de convenção e [...] é estabelecida ou
pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens. Esta consiste nos diferentes privilégios de que gozam
alguns em prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros ou mesmo
fazer-se obedecer por eles.” (ROUSSEAU, 2006, p. 27). 13
Neste caso falo de uma minoria hegemônica, minoria apenas numericamente já que detém o poder
econômico, social, político, militar, cultural... ao contrário de minorias contra-hegemônicas (raciais, culturais
e nacionais): “grupo racial, cultural ou de nacionalidade, autoconsciente, em procura de melhor status
compartilhado do mesmo habitat, economia, ordem política e social com outro grupo (racial, cultural ou de
nacionalidade), que é dominante (ecológica, econômica, política ou socialmente) e que não aceita os membros
do primeiro em igualdade de condições” (PIERSON apud DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA).
38
Em 1998, os 20% mais ricos do planeta dispunham de 86% do produto mundial, e os
20% mais pobres de apenas 1%. Enquanto isso, a diferença de renda passou de 30
para 1, em 1960, de 60 para 1, em 1990, e de 74 para 1, em 1997. Explica esse
aumento das desigualdades a proliferação do desemprego (segundo a OIT, são 188
milhões de desempregados em 2003, ou seja, 6,2 % da força de trabalho mundial),
do subemprego, dos circuitos ilegais da economia. [...] Basta verificar que 22% da
população mundial, ou seja, 1,3 bilhão de pessoas vivem com menos de um dólar
por dia, considerado o limiar da pobreza absoluta. (HAESBAERT; PORTO-
GONÇALVES, 2006, p. 47).
[...] a sociedade global caminha a passos largos ao esfacelamento do mundo. A
pobreza e o desemprego aumentam, criam-se cada vez mais miseráveis em nome
dessa razão que matou a política e transformou o mercado na primeira, última e
única instância de vida do cidadão, transformando este em um [mero] consumidor.
Entretanto, as desigualdades crescentes nos fazem acreditar que, como disse Milton
Santos, uma outra globalização é possível; que essa razão hegemônica não é
invencível e que essa ordem social pode e deve ser questionada, pois isso é um dos
papéis dos intelectuais. Então um outro possível histórico é plausível, uma vez que,
como alertava Nietzsche, o homem é o grande criador das coisas e dos valores.
Essas coisas e valores podem parecer e aparecer transcendentais, superiores e, até
mesmo, metafísicas aos olhos do próprio homem. Todavia, no íntimo, essa razão
hegemônica é a globalização; essas coisas e valores são obras demasiadamente
humanas.” (RIBEIRO JUNIOR; OLIVEIRA; SANT’ANA JÚNIOR, 2010, p. 49).
Apesar da incontestável interação de culturas, algumas imperativas
excessivamente, e o aspecto cultural híbrido do homem moderno, as diferenças, adaptações e
resistências de sociedades moldadas pela tradição14
persistem, em oposição ao pensamento do
macho-ocidental-branco-heterossexual-civilizado que se auto classifica como sendo o racional
e consequentemente reafirma sua “superioridade” e imperatividade.
Essa modernidade, produzida e difundida pelos europeus, ao ser contestada, é
porque passa por momentos de crise, assim como todo o aporte social, cultural e econômico
intrínseco a ela. Heidemann nos fala a respeito da forma como ocorrem as migrações
coetâneas, consequência direta da crise da modernidade, desgastada e sem o poder de
regeneração de outrora:
O aspecto canibalesco do capital e seu ímpeto infatigável de integrar todas as áreas
sociais destroem e excluem, ao mesmo tempo, os seus pressupostos vivos. Não
podemos ter ainda dúvidas de que o atual processo de migração resultou num
reforçado apartheid social nos territórios do mercado mundial. Os migrantes que
hoje [...] trabalham como [ou fazem] escravos nas fazendas das periferias rurais [...]
não são fenômenos residuais de condições pré-modernas, mas produto de uma
14
Tradição: “aspectos culturais, materiais e espirituais, transmitidos oralmente de geração em geração, através
de hábitos, usos e costumes” (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA).
“Nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a
experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-
espacial da comunidade. Ela é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou
experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados
por práticas sociais recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser reinventada a cada
nova geração conforme esta assume sua herança cultural dos precedentes. A tradição não só resiste à mudança
como pertence a um contexto no qual há, separados, poucos mercadores temporais e espaciais em cujos termos a
mudança pode ter alguma forma significativa.” (GIDDENS, 1991, p. 44).
39
modernidade que não tem mais como garantir outras possibilidades de existência.
(HEIDEMANN, 2010, não publicado, grifo meu).
A mobilidade forçada é intrínseca à modernidade e modernização, principalmente
nas sociedades contemporâneas, e é ainda mais dinâmica naquelas tardiamente inseridas nesse
contexto. Os espaços centrífugos (que repelem) e centrípetos (que atraem), protagonizados e
metamorfoseados pelos diferentes agentes sociais, vão determinar a direção desses fluxos
migratórios (HEIDEMANN, 2010, não publicado, SANTOS; SILVEIRA, 2006) sob a égide
da expansão do capital.
O migrante mobilizado é atraído e expulso conforme as conjunturas do processo de
modernização. As leis da concorrência movimentaram os exércitos de reserva na
imposição da economia moderna em grandes levas de deslocamentos. Em tempos da
crise15
fundamental do sistema social, a rejeição e discriminação do imigrante,
supérfluo para o processo de valorização, torna-se mais comum. As interpretações
social-darwinista tornam-se novamente populares. (HEIDEMANN, 2010, não
publicado).
Assim como a questão da mobilidade e migrações recentes, o constante e abrupto
renovar técnico-científico-informacional16
observado no século XX e atual século XXI são
fatores demasiadamente essenciais para o desenvolvimento do período que denominamos de
Globalização. Processo que, como supracitado, apesar da inclusão precária, consegue
paulatinamente estreitar os laços geográficos e culturais entre diversos povos, porém não
promove a unidade cultural.
É bem verdade que a globalização facilitou a propagação de informações e
aproximou as mais diversas culturas. Ela “encurtou” as distâncias e promoveu a
integração econômica no mais alto patamar. Consequentemente, esse mesmo
processo superexplora a mão-de-obra desprovida de qualificação (política essa
inerente à grande parte das empresas transnacionais); faz insurgir movimentos
contrários à imposição de um pensamento único (SANTOS, 2000), como o
fundamentalismo islâmico (que são taxados de radicais e terroristas, pois não
compactuam com os preceitos desse modelo de ordem originário da razão
hegemônica). Samuel Huntington fala em “choque de civilizações”, choque que
muitas vezes provoca reações nos mais diversos países: a xenofobia (especialmente
na Europa Ocidental – Alemanha – e na América Anglo-Saxônica – EUA, para com
os latinos). Os riscos financeiros aumentam, pois o neoliberalismo é incapaz de
regulamentar os mercados por si só (o Estado torna-se importante e vital para o
capitalismo – um bom exemplo é a crise mundial pela qual atravessamos desde o
final de 2008). A inclusão precária dos habitantes é reflexo do abandono do Welfare
State. Apenas poucos possuem acesso a uma qualidade de vida honesta. A fé cega na
15
“[...] a moderna sociedade do trabalho como um todo está no fim e, com isso, também o estão suas categorias
básicas da forma-mercadoria e forma-dinheiro” (KURZ, 1999). 16
“A união entre ciência e técnica [...] revigora-se com os novos e portentosos recursos da informação, a partir
do período da globalização e sob a égide do mercado. E o mercado, graças exatamente à ciência, à técnica e à
informação, torna-se um mercado global. O território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamentos,
graças às enormes possibilidades da produção e, sobretudo, da circulação dos insumos, dos produtos, do
dinheiro, das idéias e informações, das ordens e dos homens. É a irradiação do meio técnico-científico-
informacional [...] que se instala sobre o território [...].” (SANTOS; SILVEIRA, 2006. p. 52-53).
40
técnica pragmatiza as ciências (a Geografia, notadamente, não escapa disso). Não há
como negar que isso é a globalização em sua essência. (RIBEIRO JUNIOR;
OLIVEIRA; SANT’ANA JÚNIOR, 2010, p. 47).
O processo ressaltado por alguns estudiosos ou leigos como uma característica
salutar da globalização seria a amálgama inter/multi/transcultural17
proveniente da
hibridização e ressignificação de culturas “análogas” ou até mesmo “distantes”, mas que
encontram um “elo”, um ponto de “afinidade”, ou são absorvidas por “osmose” após o
movimento massivo e incessante de culturas que são (ou querem se fazer) hegemônicas, como
afirma Featherstone (apud SILVA, 2001, p. 189): “a globalização nos torna conscientes do
próprio volume da diversidade e das muitas faces da cultura. Os sincretismos18
e os
hibridismos19
constituem mais a regra do que a exceção”.
Todo esse processo é descrito e reafirmado por Berman (2007), porém, utilizando
outra categoria que se confunde em alguns aspectos com a globalização: a modernização,
bastante referida nesta discussão, que durante as últimas décadas (do século XX e do recente
XXI) trouxe uma série de transformações homogeneizadoras intensas que foram naturalizadas
em prol do “progresso”, difusão do capitalismo e da cultura ocidental, em detrimento das
diversas identidades e modos de vida de grupos não hegemônicos:
O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes
descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do
lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma
conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os
antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas explosões demográficas, que
penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as
pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes
catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em
seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais
variados indivíduos e sociedades; estados nacionais cada vez mais poderosos,
burocraticamente estruturados e geridos, que lutam em obstinação para expandir seu
poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes
políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim,
dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista
mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No século XX, os
processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de
vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”. [...] (BERMAN, 2007, p. 25, grifo
meu).
17
Transculturação: “processo de difusão e infiltração de complexos ou traços culturais de uma para outra
sociedade ou grupo cultural; troca de elementos culturais” (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA). 18
Sincretismo: “processo de fusão de elementos ou traços culturais, dando como resultado um traço ou
elementos novos” (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA). 19
“O hibridismo cultural é um fenômeno histórico-social que existe desde os primeiros deslocamentos
humanos, quando esses deslocamentos resultam em contatos permanentes entre grupos distintos. [...] um sujeito
híbrido [...] quando deixa sua terra, torna-se diferente, pois os outros homens que encontra na terra estrangeira
têm outros costumes e outras crenças; ouve outro tipo de música e dança em outro ritmo. O ritmo que trouxe une
ao que encontra e inicia o processo de hibridismo cultural. A palavra sujeito aqui [...] tem o significado de grupo
ou comunidade.” (CARDOSO, 2008, p. 79).
41
Acerca das “modernidades” as reflexões são também complexas: retratam
categorias de análise que diferem (entre si) por aspectos conceitualmente tênues, já que estão
demasiadamente interrelacionadas. De forma bem simplista, modernidade, hipermodernidade
e pós-modernidade, são três etapas do Período Moderno20
que representam respectivamente:
(1) início/consolidação, (2) apogeu e (3) superação do homo modernus, ou seja, aquele sujeito
inserido nas características da sociedade moderna ocidental, como explica melhor Giddens:
[...] O que é modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos
simplesmente o seguinte: “modernidade” refere-se a estilo, costume de vida ou
organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que se
tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. [...]
Hoje, no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de uma
nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para
além da própria modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem sido
sugerida para esta transição, alguns dos quais se referem positivamente à emergência
de um novo tipo de sistema social (tal como a “sociedade de informação” ou a
“sociedade de consumo”), mas cuja maioria sugere que, mais que um estado de
coisas precedentes, está chegando a um encerramento (“pós-modernidade”, “pós-
modernismo”, “sociedade pós-industrial”, e assim por diante) [...]. (GIDDENS,
1991, p. 11).
A Modernidade está diretamente relacionada com o Capitalismo, pois,
desenvolvem-se praticamente simultaneamente. Também está relacionada ao projeto de
mundo moderno, difundido desde o século XVII da Europa para o mundo. Baudelaire (1996,
p. 24) percebe e “traduz”, como poucos dos seus contemporâneos, as faces da modernidade na
vida e na arte do homem moderno (especificamente de Paris no século XIX), nos falando que:
“[...] A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a
outra metade o eterno e o imutável”, frase tão bem analisada por Berman (2007, p. 160)
quando afirma que:
[...] uma das qualidades mais evidentes dos muitos escritos de Baudelaire sobre vida
e arte moderna consiste em assinalar que o sentido da modernidade é
surpreendentemente vago, difícil de determinar. [...] o pintor (ou romancista ou
filósofo) da vida moderna é aquele que concentra sua visão e energia na “sua moda,
sua moral, suas emoções”, no “instante que passa e (em) todas as sugestões de
eternidade que ele contém”. Esse conceito de modernidade é concebido para romper
com as antiquadas fixações clássicas que dominam a cultura francesa. “Nós, os
artistas, somos acometidos de uma tendência geral a vestir todos os nossos assuntos
com uma roupagem do passado”. A fé estéril de que vestimentas e gestos arcaicos
produzirão verdades eternas deixa a arte francesa imobilizada em “um abismo de
beleza abstrata e indeterminada” e priva-a de “originalidade”, que só pode advir do
“selo que o Tempo imprime em todas as gerações”.
20
Não trabalho aqui com a noção clássica de subdivisão da História Ocidental em Idades (... Antiga, Média,
Moderna e Contemporânea). Neste caso, o Período Moderno não está relacionado somente à Idade Moderna,
mas a partir desta aos dias atuais, já que o projeto de mundo moderno vem desde então e ainda está a
“colonizar” novas áreas, extinguir remanescências e reminiscências.
42
As artes e arquitetura da modernidade são marcadas pela “criação destrutiva” e
“destruição criativa” (figura 03). A “imortalidade” do artista moderno torna-se um
antagonismo. “[...] Se o modernista tem de destruir para criar, a única maneira de representar
verdades eternas é um processo de destruição passível de, no final, destruir ele mesmo essas verdades.
E, no entanto, somos forçados, se buscamos o eterno e o imutável, a tentar e a deixar a nossa marca no
caótico, no efêmero e no fragmentário. [...]” (HARVEY, 2010, p. 26).
Figura 03. “A arte parisiense de boulevard atacando a destruição modernista do antigo tecido urbano: um cartum
de J. F. Batellier em ‘Sans Retour, Ni Consigne’”. Fonte: Harvey, 2010, p. 28.
Outro viés dos Tempos Modernos é a Hipermodernidade ou Modernidade
Radicalizada: a exacerbação de diversos valores criados na Modernidade, tais como o
individualismo, o narcisismo coletivo, o consumismo, o liberalismo globalizado, a ética
hedonista, a fragmentação e efemeridade do tempo e do espaço, a esquizofrenia no ritmo das
mudanças, a sociedade permissiva e do carpe diem21
. Estamos na “era do vazio”22
(?).
21
O termo latim carpe diem traduzido livremente significa “aproveitar/apreender/colher o dia/o momento” tendo
como referência primária um trecho da obra “Odes I” ou “Carminum liber primus” (datada de 23 a.C) do poeta
romano Quintus Horatius Flaccus, ou simplesmente Horácio para lusófonos, quando escreve (em Odes, I, 11, 8
“A Leuconoe”): “[...] fugerit ínvida aetas: carpe diem quam minimum credula postero. [...]” (tradução: [...]
fugido o tempo invejoso: colhe o dia, quanto menos confiada no de amanhã. [...]). Popularizado como um dos
lemas que sintetizava os ideais dos poetas do Arcadismo (movimento artístico-literário ocidental
predominantemente do século XVIII), no sentido epicurista original, de um hedonismo de ascese, uma busca de
prazer ordenado, “racional”, que deve evitar todo desprazer e toda supremacia do prazer. Era um hedonismo a
mínima, de apreciar e viver bem o momento presente, longe dos excessos. Recentemente o carpe diem foi
retomado deturpando-se o sentido original – em algumas músicas, filmes, propagandas e livros – perdendo toda
relação com o texto original e passa a ser compreendido como uma incitação ao mais forte hedonismo, talvez o
mais cego, sem perspectiva de futuro, logo, onde “tudo é destinado a desaparecer” procura-se qualquer prazer
43
Viver o presente, nada mais do que o presente, não mais em função do passado e do
futuro: é esta “perda do sentido da continuidade histórica” (C.N., p. 30), esta erosão
do sentimento de pertencer a uma “sucessão de gerações enraizadas no passado e se
prolongando para o futuro” que, segundo C. Lasch, caracteriza e engendra a
sociedade narcisista. Hoje em dia vivemos para nós mesmos, sem nos preocuparmos
com as nossas tradições e com a nossa posteridade: o sentido histórico foi
abandonado, da mesma maneira que os valores e as instituições sociais. A derrota no
Vietnã, o caso Watergate, o terrorismo internacional e também a crise econômica, a
escassez de matérias-primas, a angústia nuclear, os desastres ecológicos (C. N., p. 17
e 28) criaram uma crise de confiança nos líderes políticos, um clima de pessimismo
e de catástrofe iminente que explicam o desenvolvimento das estratégias
narcisísticas de “sobrevida” que prometem a saúde física e psicológica. Quando o
futuro parece ameaçador e incerto, resta debruçar-se sobre o presente, que não
paramos de proteger, arrumar e reciclar, permanecendo em uma juventude sem fim.
Ao mesmo tempo em que coloca o futuro entre parênteses, o sistema procede à
“desvalorização do passado”, em razão de sua avidez de soltar-se das tradições e das
limitações arcaicas, de instituir uma sociedade sem amarras e sem opacidade; com
essa indiferença pelo tempo histórico instala-se o “narcisismo coletivo”, sintoma
social da crise generalizada das sociedades burguesas, incapazes de enfrentar o
futuro de outro modo, a não ser com desespero. (LIPOVETSKY, 2005, p. 33).
O termo hipermodernidade foi cunhado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky,
na obra “Os tempos hipermodernos”, para delimitar o momento atual das sociedades
humanas outrora modernas, por considerar não estarmos na pós-modernidade, já que as
rupturas com a modernidade ainda são “insuficientes” (as estruturas do “passado moderno”
agonizam, mas ainda não morreram, sobrevivem se retroalimentando com as estruturas do
“novo moderno”), a ponto de não terem sido superadas integralmente.
A ruptura com as concepções providenciais da história, a dissolução da aceitação de
fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o
futuro e o “esvaziamento” do progresso pela mudança contínua, são tão diferentes
das perspectivas centrais do Iluminismo que chegam a justificar a concepção de que
ocorreram transições de longo alcance. Referir-se a estas, no entanto, como pós-
modernidade, é um equívoco que impede compreensão mais precisa de sua natureza
e implicações. As disjunções que tomaram lugar devem, ao contrário, ser vistas
como resultantes da auto-elucidação do pensamento moderno, conforme os
remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são descartados. Nós não
nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente
através de uma fase de sua radicalização. (GIDDENS, 1991, p. 56-57).
As dúvidas que geraram a existência teórica concomitante e dicotômica, da
modernidade e pós-modernidade, fizeram “surgir” a trifurcação dos tempos modernos, na qual
a hipermodernidade, entre as duas supracitadas, possui uma fronteira conceitual transitória,
fluida (instável), litigiosa e mal demarcada, característica de períodos de crise paradigmática.
corriqueiro a qualquer custo. (adaptado de WIKIPÉDIA: Carpe diem; Horácio/ PEREIRA, 2000/ MARTINS;
LEDO, 2001). 22
Em referência a: LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo.
Frases muito bonitas, ainda mais quando divulgadas em outdoors multicoloridos e
em um local frequentado preferencialmente por empresários do agronegócio, mas que na
prática não saem das placas. São muito mais frases de impacto manipuladas aos interesses dos
grandes produtores que adéquam o seu discurso à onda verde do momento, aquela que
transformou tudo em ambiental e sustentável por imitação à “responsabilidade” de todos pelo
“nosso futuro comum”, pura e simplesmente para obter um prestígio midiatizado, porém, essa
responsabilidade socioambiental fica somente no campo das ideias, das ideias contraditórias.
Contradições tão grandes como propagar que a sojicultura – devastadora-mor do
bioma Cerrado e que pouco emprega42
– é sustentável, leva-nos às indagações: qual conceito
de sustentabilidade é utilizado nesse caso? O antônimo daquele tão conhecido43
? Como
utilizar sem devastar quando substitui-se centenas de espécies nativas por uma exótica, porque
é mais rentável? (Só o pólo de Balsas possui uma área plantada e colhida moderna de mais de
500 mil hectares – figura 17).
Figura 17. Características do pólo de Balsas. Fonte: Dados da pesquisa, 18/10/2011.
42
“A intensa mecanização exigida pela cultura [da soja] resulta em uma pequena capacidade de gerar emprego,
agravando ainda mais a situação social. No Maranhão, segundo pesquisadores da CPATU/Embrapa a relação
atinge um trabalhador para 167 hectares, chegando a um para 200 hectares nos plantios maiores.”
(CARVALHO, 1999, p. 07). 43
O conceito de desenvolvimento sustentável foi concebido no documento “Nosso Futuro Comum” ou
“Relatório Brundtland”, em 1987, como “aquele que atende às necessidades presentes sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades” (CMMAD, 1991 apud RIBEIRO
JUNIOR, 2011, p. 32).
76
Esta contradição torna-se ainda pior quando difunde-se a noção que a sojicultura,
principal produto plantado na região, pode ser a panaceia para redução das desigualdades e da
fome regional (no momento ela cumpre esse papel saciando a fome do gado europeu ou
servindo como combustível para máquinas e automóveis movidos à biodiesel). O irrisório
Índice de Desenvolvimento Humano – IDH – do Maranhão e Piauí parece ser vitalício, apesar
dos sucessivos “grandes projetos de desenvolvimento” para estes estados ao longo das últimas
cinco décadas (1960-2010). A chance histórica de sermos um “grande produtor agrícola
mundial” pode reverter essa situação? Pode. Depende de como e para quem virão as benesses,
caso aumente em 40% a produção agrícola nesses estados. Dobrar as exportações agrícolas
não melhorará a condição de vida dos atuais 9,7 milhões de habitantes desses dois estados
(IBGE, 2010), caso não se pense primeiro em produzir e distribuir gêneros alimentícios que
abasteçam o mercado interno garantindo a segurança alimentar e nutricional44
dessa
população.
Os Cerrados nordestinos podem ser sim, uma grande opção para redução da fome
humana, caso o Estado brasileiro invista não só ou deliberadamente em monocultivos como
soja, algodão ou eucalipto, haja vista que o pequeno produtor alimenta a sua família, desde
tempos imemoriais, com sua lavoura, assim como pratica o manejo de diversas espécies
nativas para construir suas casas, confeccionar artesanato, extrair frutos, etc. sem derrubá-las
por inteiro. Práticas degradantes como a agricultura do tipo coivara45
poderão ser atenuadas
caso haja programas que disponibilizem recursos, treinamento e acompanhamento técnico
desses pequenos produtores, assim como acontece para com os grandes produtores sulistas,
que não foram sempre modernos – o ponto de inflexão foi possibilitado também por
incentivos estatais.
Lembrai-vos também que “cerca de 85% da produção mundial de alimentos é
canalizada através de circuitos curtos e descentralizados” (PLOEG, 2008, p. 21), logo, não
44
“Segurança Alimentar e Nutricional é a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente e de modo permanente, com base em práticas alimentares saudáveis e respeitando as
características culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar. Esta condição não pode comprometer
o acesso a outras necessidades essenciais, nem sequer o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em bases
sustentáveis. É responsabilidade dos estados nacionais assegurarem este direito e devem fazê-lo em obrigatória
articulação com a sociedade civil, dentro das formas possíveis para exercê-lo.” (MALUF; MENEZES;
MARQUES, 2001, p. 4). 45
“O sistema de cultivo utilizado por pequenos agricultores, chamado de pousio, roça-de-toco ou coivara,
constitui uma tradição milenar da maioria das populações indígenas, sendo assimilada pelas populações
remanescentes de processos de colonização (ADAMS, 2000; OLIVEIRA, 2002 apud SIMINSKI; FANTINI,
2007). Esse modelo é descrito por diversos autores e ocorre de modo semelhante em diferentes partes do mundo,
sendo particularmente comum na zona das florestas tropicais e subtropicais. [...] O sistema é baseado na
derrubada e queima da vegetação, seguindo-se um período de cultivo e, após o declínio da fertilidade do solo,
um período de pousio para restauração da fertilidade.” (SIMINSKI; FANTINI, 2007, p. 690-691).
77
são os grandes produtores e exportadores agrícolas que preponderantemente “alimentam” o
mundo; e da forma como pensam os empresários agrícolas, cujas metas têm por base única e
real o aumento exponencial dos lucros, não será esta agricultura “forte” e “inteligente” (a
contraditória acima discutida) que acabará com a fome no mundo. Como assinalou Pérez-
Vitoria (2005 apud Ploeg, 2008, p. 33) “personne ne voulait les entendre; on était trop ocupés
à se modernizer (ninguém queria entender os camponeses; todos estavam demasiado
ocupados em se modernizar).” E essa modernização no campo se dá nos moldes da empresa
agrícola:
[...] A empresa agrícola é completamente especializada e orientada para as
atividades mais rentáveis através de escolhas estratégicas, com outras atividades
externalizadas. Seus objetivos, tanto em longo como em curto prazo, são centrados
na procura e maximização dos lucros. O empresário (ou empresária) não só se
comporta como homo economicus, como também atua como um “adotante precoce”
de novas tecnologias, se comparado com outros que são considerados “atrasados”
(Rogers e Shoemaker, 1971). Portanto, pode-se presumir que os empresários
agrícolas têm à sua disposição uma vantagem competitiva considerável, e que a
usam para investir em expansão constante. Estes empresários agrícolas acreditam
que estão envolvidos em uma “batalha pelo futuro”, onde apenas sobreviverão as
empresas maiores e mais bem equipadas tecnologicamente. (PLOEG, 2008, p. 33).
Toda essa discussão travada sobre a expansão agrária moderna, dos meios de
integração entre diversas regiões do país e as contradições do modelo agrícola empresarial
para exportação, concomitantemente, são interessantes “para associar a força das novas
tecnologias ao processo de avanço de novas fronteiras conquistadas pelo capital46
” (Ferreira,
2008 b, p. 31), assim, no que tange a essa temática destaca-se a análise de Becker (1988)
sobre o assunto, quando afirma:
A fronteira constitui um espaço em incorporação ao espaço global/fragmentado [...]
contém assim os elementos essenciais do modo de produção dominante e da
formação econômica e social em que se situa, mas é um espaço não plenamente
estruturado, dinâmico, onde as relações e as práticas não assumem o grau de
cristalização comum em outras circunstâncias, e, portanto gerador de realidades
novas e dotado de elevado potencial político (BECKER, 1988, p. 67).
46
“As dimensões etnocêntricas, culturais e racistas acompanham a fronteira agrícola capitalista. O caráter e
projeto civilizatório e a dimensão ideológica da sociedade capitalista se projetam sobre territorialidades
marginais ou, simplesmente, ainda sem contato com a ordem hegemônica. Mas esse processo não é linear e sem
resistências. De acordo com Bourdieu (1998, p. 12), ‘o campo de produção simbólica é um microcosmo da luta
simbólica entre as classes’. Logo, fronteira é conflito, instabilidade, conquista e resistência. Diversos
movimentos sociais visam a neutralizar as representações dominantes na fronteira agrícola capitalista, tais como
o Movimento dos Sem-Terra, os Povos do Cerrado, os Povos da Floresta etc. O avanço de uma fronteira
campesina também pode implicar conflito de valores simbólicos e identitários e des-re-territorialização de
grupos sociais, tais como os embates pela posse da terra entre índios e posseiros. (SILVA, 2007, p. 287, grifo do
autor).”
78
Desta mesma forma inserem-se as diversas problemáticas entorno dos projetos de
modernização do Cerrado brasileiro. As mudanças provenientes da expansão da sojicultura na
região são intensas e induzem à consolidação deste e de outros projetos que sirvam à
modernização da malha viária com o objetivo de otimizar (termo tão propalado pelas
empresas e governos) o caminho para exportação desta commoditie – haja vista que a
implantação da sojicultura enquanto panaceia econômica, assim como a modernização da
malha viária, foram e continuam sendo patrocinadas pelo “casamento” em comum acordo e
de interesses recíprocos entre o Estado brasileiro e os empresários da soja – levando em
consideração quase que exclusivamente os fatores econômicos em detrimento dos sociais e
ambientais. Como nos explica Carlos (2010, p. 34) “[...] a reprodução no mundo moderno não
se faz ao acaso, uma vez que é o resultado do mundo da mercadoria, aparecendo, portanto,
como programa do capitalismo e do Estado que organiza a vida cotidiana porque organiza a
sociedade de consumo.”
Referidos anteriormente, os diversos planos e programas de desenvolvimento
nacionais com o objetivo de desenvolver indústrias que abastecessem essencialmente o
mercado nacional, passaram recentemente por uma inversão de valores, principalmente a
partir do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso:
[O] Programa Plurianual de Ação – PPA [...] tenta implementar uma verdadeira
mudança no padrão de organização do espaço brasileiro que dominara nossa
formação socioespacial de 1930 até os anos 80. O padrão de organização do espaço
que dominara nesses 50 anos baseou-se num processo conhecido como
“industrialização substitutiva de importações”, caracterizado fundamentalmente por
(i) uma forte capacidade de investimentos do Estado e (ii) na criação de um mercado
interno que, ainda que excluindo parcelas significativas da população pela
desigualdade na distribuição de renda acentuada, tornou-se referência para a
dinâmica da acumulação capitalista no Brasil. Assim, pela primeira vez na nossa
história, o Brasil, de 1930 a 1980, fez girar sua economia e a organização social do
seu espaço geográfico em torno de uma dinâmica interna auto-sustentada, ainda que
com desigualdades sociais agudas, sem prejuízo da presença de grandes capitais
internacionais que, sobretudo após 1956, passaram a se instalar significativamente
no Brasil com as primeiras grandes montadoras de automóveis. (PORTO-
GONÇALVES, 2000, p. 178).
Investimentos multibilionários, com o aval de órgãos nacionais e internacionais de
desenvolvimento, são direcionados aos projetos que visam “libertar” regiões inteiras do dito
“atraso” levando-as à redenção econômica (novamente a dimensão social é marginalizada) e
que, consequentemente, trará o “tão esperado progresso”, que por si só deve justificar a sua
aceitação, submissão e extinção das demais racionalidades:
[...] sempre se tem uma “única solução” como se cada situação não comportasse
múltiplas opções. Trata-se, mais uma vez, de uma estratégia discursiva de forte
componente autoritário, que tenta, a priori, desqualificar aqueles que,
79
eventualmente, levantam pontos que criticam o projeto em cada momento em
apreço.
Mais uma vez se observa uma visão sobre a região se impondo à visão dos que são
da região. [...] É o afã do “exportar é o que importa” tão propalado desde os anos 70
quando se acentuou a crise de financiamento internacional, a conhecida crise da
eterna dívida externa. (PORTO-GONÇALVES, 2000, p. 185).
O atraso no nosso Cerrado tinha seus dias contados, já que brasileiros e japoneses
confabulavam acordos bilaterais para modernizar e enfim, concretizar o progresso pela ordem,
uma nova ordem territorial.
5.1 Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cerrados –
PRODECER
Conjunturas históricas internacionais contribuíram para consolidação do
PRODECER. Em 197347
, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, decretou
como medida provisória o embargo das exportações de grãos e farelos visando garantir o
abastecimento interno, um choque para economia japonesa, em franca expansão após a II
Grande Guerra, mas altamente dependente de importações de produtos primários, inclusive de
gêneros alimentícios norte-americanos, haja vista a crescente demanda interna por alimentos
que ia de encontro à escassez de terras agricultáveis no território japonês. Foi então que um
grupo do ZENCOREN (Federação Nacional das Cooperativas de Compras do Japão), a
convite da Organização das Cooperativas de São Paulo, visitou o Brasil com o objetivo de
estudar a viabilidade de desenvolver a agricultura moderna no Brasil48
e idealizaram o
PRODECER em 1974. Após acordos e amadurecimento, em 1978 iniciaram-se concretamente
as atividades deste projeto no Cerrado, local até então considerado impróprio para a
agricultura. Neste mesmo ano é criada a Companhia de Promoção Agrícola (CAMPO),
47
Ano da crise mundial decorrente do Primeiro Choque do Petróleo: após a Guerra do Yom Kipur, em outubro
de 1973, países árabes membros da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) decretam completo
bloqueio do fornecimento de petróleo aos aliados de Israel e aumento em mais de 300% sobre o preço do barril
de petróleo, atingindo principalmente Estados Unidos, Holanda e Portugal. O barril de petróleo, de tipo Brent,
salta de US$ 8 para US$ 38, mantendo-se por bom tempo, mesmo após o fim do bloqueio, num patamar de US$
36 o barril. Como efeito dominó, a crise do petróleo gerou crise em diversos outros setores da economia global.
(SINDIPETRO/SJC). 48
“A preocupação com a questão do abastecimento alimentar em vários países asiáticos tem sido uma das
questões cruciais nesse projeto. Vários fatores indicam problemas no abastecimento mundial: aumento da
população; presença da China agora como importadora de alimentos dada a sua escassez de terras em condições
de aproveitamento imediato. Nos últimos anos vários países asiáticos mostraram interesse em aproveitar o
potencial agrícola brasileiro. Empresários da Coréia do Sul vieram ao Brasil interessados em estabelecer
parcerias para a produção de grãos no Brasil. Recentemente, o governo chinês manifestou interesse em adquirir
500 mil hectares em terras brasileiras. E empresas da Malásia têm adquirido áreas para exploração florestal.”
(YOKOTA, 1997, p. 160).
80
sediada em Brasília, que surge da associação das holdings Brasagro, brasileira e com 51% do
capital, e a Jadeco, japonesa com 49% do capital – e se tornou o principal mecanismo de
cooperação nipo-brasileira, responsável pela coordenação, planejamento e assistência técnica
em cada um dos projetos de implantação do PRODECER (SILVA, 2010). Por tratar-se de
agricultura moderna de monocultivos preferencialmente para exportação, apesar dos
investimentos bilionários e dos imensos impactos socioambientais, o saldo de empregos
gerados foi de aproximadamente 20 mil diretos e 40 mil indiretos. (OSADA, ano de
publicação não informado). A tabela 01 sintetiza algumas informações das principais etapas
do PRODECER:
TABELA 01. Síntese do PRODECER. FINANCIAMENTO
Os recursos japoneses vieram de fontes institucionais do governo e dos bancos privados, liderado pelo Long
Term Credit Bank, que são os co-financiadores. Os projetos-piloto foram financiados pela Japan International
Cooperation Agency (JICA) e o projeto de expansão pelo Overseas Economic Cooperation Foundation (OECF).
PÚBLICO BENEFICIÁRIO
Agricultores provenientes do Sul e Sudeste, selecionados por sua experiência anterior na administração de
propriedades agrícolas. São médios agricultores associados a cooperativas, com características de “capacidade
de adoção tecnológica”, tanto gerencial quanto de produção, “espírito empreendedor”, etc., que conduzam os
projetos a atingirem os objetivos do Programa. O programa tem um enfoque de “desenvolvimento regional”,
uma vez que, com sua proposta, desenvolve paralelamente à produção, a infraestrutura econômica e “social”,
num apoio logístico à competitividade dos cerrados.
OBJETIVO
Estimular e desenvolver a implantação de uma agricultura moderna, eficiente e empresarial, de médio porte, na
região dos cerrados, com vistas ao seu desenvolvimento, mediante a incorporação de áreas ao processo
produtivo, dentro de um “enfoque sustentável”.
ETAPA ANO DE
IMPLANTAÇÃO
ÁREA DE ABRANGÊNCIA
(HECTARES/ ESTADOS)
VALOR DOS
INVESTIMENTOS
PRODECER I. 1979. 70 mil hectares/ Estado de Minas Gerais. US$ 50 milhões (do
governo japonês).
PRODECER II. 1985. 200 mil hectares/ Estados de Minas Gerais,
Goiás, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul.
US$ 350 milhões
(do governo
japonês).
PRODECER III. 1996. 80 mil hectares nos Estados do Maranhão
e Tocantins (fase de implantação), com
plano de expansão do projeto (concluído
no final do mês de abril de 1997 pelo
Ministério da Agricultura) atingindo os
Estados do Piauí**, Pará e Rondônia.
US$ 850 milhões* –
60% do custeio do
programa foram
responsabilidade do
governo japonês e o
restante do governo
brasileiro.
Fonte: adaptado de Osada (ano de publicação não informado) e Marouelli, 2003.
* O investimento para a fase de implantação (nos estados do Maranhão e Tocantins) foi de aproximadamente
US$ 138 milhões.
** Há de se registrar que o Piauí não foi contemplado com o PRODECER, em virtude da falta de entendimento
político entre o Governo do Estado, o Governo Federal e a JICA. (OLIMPIO, 2004).
81
Destacam-se algumas palavras, entre aspas, na tabela 01, quanto ao público
beneficiário e objetivo do PRODECER: “capacidade de adoção tecnológica”, “espírito
empreendedor”, “desenvolvimento regional”, desenvolvimento “social” e “enfoque
sustentável”. Mais uma vez o discurso oficial reforça contradições relevantes: como trazer
“desenvolvimento regional no âmbito social” se os grupos selecionados para participar
diretamente deste programa, especialmente do PRODECER III, são os de fora, considerados
aqueles com a “capacidade de adoção tecnológica e espírito empreendedor comprovado”, das
tais áreas tradicionais da agricultura moderna (Centro-Sul do Brasil)? A promessa dos
empregos e serviços que serão gerados, muitas vezes não passam de especulações e
(super)projeções dos EIA/RIMAs49
. As compensações econômicas (já que as sociais são
quase sempre impraticáveis ou uma possível consequência), para a população já estabelecida
na área de abrangência desses projetos, ficam aquém das expectativas dos governos que
isentam empresas de impostos, como reforça Peixinho; Scopel (2009, p. 108-109) a exemplo
do que ocorre nos cerrados piauienses:
O que faz o Estado abrir mão de quase 200 milhões de reais/ano para que uma
empresa se instale em seu território? A resposta mais imediata é que isso gera
desenvolvimento e produz empregos, portanto essa isenção seria compensada. Por
exemplo, a Bungue ao instalar sua unidade de Uruçuí prometeu mais de 500
empregos diretos e 10 mil indiretos. Mas, conforme Alves (2006), ao final de cinco
anos foram gerados aproximadamente 200 empregos entre fixos e terceirizados. É
fato que outras empresas do setor instalam-se nos municípios produtores de soja,
especialmente as revendedoras de máquinas e equipamentos, insumos, peças etc.
Essas empresas, normalmente trazem o pessoal especializado de outras localidades,
ficando para os trabalhadores locais as funções de serviços gerais. A própria Bungue
nos primeiros anos empregava mais de 70% de pessoas de fora da região e,
posteriormente, aumentou o número de empregados locais.
A modernização sob o signo dos campos de soja se consolida na paisagem e
imaginário dos adeptos ao “progresso” em meio ao Cerrado. A terceira etapa do PRODECER,
por abranger diretamente o município de Balsas, será mais bem detalhada a seguir.
49
Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMA). O RIMA é uma
derivação simples do EIA, com objetivo de apresentar à população em geral, numa linguagem menos técnica, o
resumo do diagnóstico contido no EIA:
“Prever impactos em relação a um projeto de qualquer tipo (...) é (...) de grande importância para os países do
Terceiro Mundo. Primeiro, porque revela o nível de esclarecimento atingido pela sociedade do país em relação à
capacidade de antever quadros futuros da organização espacial de seu território. E, num segundo nível, porque é
também um bom indicador da força de pressão social dos grupos esclarecidos em relação ao bom uso dos
instrumentos legais para garantir previamente um razoável quadro de qualidade ambiental e ordenamento
territorial. Por último, porque é um excelente teste para avaliar a potencialidade da legislação disponível, assim
como a sua aplicabilidade a casos concretos.” (...). (AB’SABER, 2006, p. 27).
82
5.2 O PRODECER III nos Cerrados do Maranhão e Tocantins
A produção de soja nos estados do Maranhão e Tocantins foi alavancada a partir
dos investimentos milionários provenientes do PRODECER III em meados da década de 1990
e da infra-estrutura disponibilizada pela criação do Programa Corredor de Exportação Norte50
,
sendo que atividades agrícolas bastante praticadas até então, como a cultura do arroz,
deixaram de ser o foco do grande produtor, estagnando ou reduzindo em demasia a
participação da rizicultura na economia de exportação desses estados (porém, este produto
ainda consta como um dos principais na lavoura de pequenos e médios produtores do
Maranhão e Tocantins).
No município de Balsas (sul do Maranhão), tal programa foi implantado entre os
anos 1994 a 1996, tendo como órgãos responsáveis a Cooperativa Agropecuária Batavo do
Paraná (denominada, em Balsas, de Batavo Nordeste), a CAMPO; assim como agentes
financeiros a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) e o Banco do Nordeste
do Brasil. “Os investimentos giravam em torno de US$ 70 milhões, prevendo o aumento da
produção de grãos na ordem de 25% a cada ano e o assentamento de quarenta famílias
previamente selecionadas e que seriam responsáveis por mil hectares cada.” (SOUZA FILHO,
1995, apud GASPAR, 2010, p. 29).
Através do Projeto Gerais de Balsas, a Batavo Nordeste e a CAMPO articuladas
ao Estado, sob o signo do PRODECER III e incentivos fiscais para os produtores que
exportavam grãos na região, promovem a consolidação da soja na outrora paisagem de
Cerrado sul-maranhense. No final da década de 1990 a insolvência dos produtores, o fim da
Batavo Nordeste, a pouca experiência dos produtores selecionados, o repasse irregular do
Banco do Nordeste de suporte à lavoura, a dificuldade tecnológica e a fraca logística foram
fatores que contribuíram para o abandono da parceria PRODECER III e a Batavo, e para a
desistência dos produtores ligados ao projeto. De qualquer modo, a expansão da soja já era
uma realidade. (SILVA, 2010, p. 82). Sobre o PRODECER III, na época de sua implantação,
sabe-se que:
50
“É a partir de 1991 que a região de Balsas se instrumentaliza para a produção de soja em grande escala, através
da intensificação da pesquisa científica, viabilizada pelo convênio de cooperação técnica e financeira para a
pesquisa. Paralelamente foram realizados estudos conjuntos para a criação do Programa Corredor de Exportação
Norte, que tomaram por base os resultados dos estudos da EMBRAPA, do apoio financeiro do Banco do Brasil,
contando ainda com a participação de órgãos/empresas como o Banco do Nordeste do Brasil, Banco da
Amazônia S.A. (BASA), e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além da
parceria com a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) – Superintendência da Estrada de Ferro Carajás.”
(FERREIRA, 2009, p. 70).
83
[...] [O] Programa teve início em 1996, quando foi implantado nos municípios de
Pedro Afonso (TO) e Balsas (MA). O principal instrumento do programa é o crédito
supervisionado, com linhas de financiamento abrangentes, e foram previstos
empréstimos fundiários para investimentos, despesas operacionais e assistência ao
colono (RODRIGUES; VASCONCELOS; BARBIERO, 2009, p. 301).
O município de Pedro Afonso, conhecido como a Capital Tocantinense da Soja,
teve em meados da década de 1990 uma grande expansão na sua lavoura de soja,
especificamente a partir de 1996, ano em que a CAMPO investe recursos do PRODECER III
nos Cerrados do Tocantins, que consistiu na convergência de diversos interesses entorno da
sojicultura (tabela 02):
TABELA 02. Síntese do PRODECER III no Estado do Tocantins.
Município Ano de implantação Origem dos produtores
Pedro Afonso. 1996. Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.
Áre
a 40 mil hectares:
20 mil foram destinados aos produtores e 20 mil à reserva ambiental. O tamanho dos lotes correspondia a
mais ou menos 875 hectares. A área plantada era em torno de 480 hectares.
Ag
ente
s
fin
an
ceir
os
JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão) e Banco do Brasil:
A JICA cobrava juros de 2,7% ao ano aos produtores selecionados e investiu cerca de 70 milhões de
dólares no Tocantins, para fins de aquisição de terras, maquinário, galpões, insumos e oficinas. Com apoio
da CAMPO e da JICA, a COAPA (Cooperativa Agropecuária de Pedro Afonso) mobilizou recursos para
estruturação do setor de armazenagem, representado antes apenas pela BUNGE. Hoje, o repasse da JICA
para o PRODECER não existe mais, pois o programa foi extinto em 2003.
O Banco do Brasil viabilizava o repasse dos recursos financeiros.
Co
op
era
tiv
as
COOPERSAN (Cooperativa Agropecuária Mista São João Ltda) e COAPA (Cooperativa Agropecuária de
Pedro Afonso):
A cooperativa responsável pelo projeto era a COOPERSAN, que passou pela avaliação da CAMPO,
Ministério da Agricultura e Banco do Brasil. Todavia, as dificuldades financeiras da cooperativa levaram-
na à liquidação, deixando os produtores e instituições envolvidas no projeto em alerta. Diante deste
cenário, os produtores organizaram uma associação para cuidar de seus interesses. Surge, então, a COAPA,
em 1998. Em linhas gerais, a CAMPO coordenava o projeto; a COAPA garantia a sua execução e o Banco
do Brasil viabilizava o repasse de recursos financeiros. Hoje em dia, a CAMPO só realiza
acompanhamentos e se localiza na sede da COAPA.
Em 2009, A COAPA atende 87 cooperados e outros produtores da região de Pedro Afonso, Bom Jesus do
Tocantins, Tupirama, Rio Sono, Guaraí, Fortaleza do Tabocão, Santa Maria, Tocantínia, Campos Lindos,
Itacajá, Centenário e Rio dos Bois. Desse total, 1/3 dos cooperados ainda pertence ao antigo PRODECER.
Fim
do
PR
OD
EC
ER
O programa foi extinto em 2003. Grande parte dos cooperados pertencentes ao PRODECER são
inadimplentes, pois apesar dos juros cobrados pela JICA terem sido os mais baixos do país, as taxas do
Banco do Brasil eram altas, o que inviabilizou a manutenção dos pequenos produtores.
Do total de assentados do antigo PRODECER, havia apenas 29 produtores em 2009. A saída dos
assentados se deu também por conta da falta de capital cultural e da prática de apadrinhamento.
Fonte: adaptado de Silva (2010).
As figuras 18 e 19, mosaico de gráficos e quadros, são representativas ao
crescimento da lavoura de soja em detrimento à rizicultura, tanto em área colhida (hectares)
quanto em quantidade (toneladas), no Maranhão e Tocantins, entre 1990 a 2010. Escolheu-se
comentá-las nas suas respectivas legendas.
84
Figura 18. Mosaico 8: Gráfico e quadros
correspondentes a dados anuais da lavoura de arroz
e soja no Maranhão, entre 1990 a 2010. Ao lado,
gráfico da área colhida, em hectares; abaixo, à esquerda,
quadro com os respectivos dados da área colhida: o
aumento quase sempre constante da área colhida de soja
(com exceção dos anos 1996 e 2009) contrasta com a
queda acentuada da de arroz, principalmente entre 1995-
1996 (período de implantação do PRODECER III em
Balsas), desde então a rizicultura obteve acréscimos ou
decréscimos, em termos absolutos, pouco significativos
quando comparada à sojicultura. O ponto de inflexão
ocorre em 2010, quando a área de soja supera a de
arroz. Abaixo, à direita, quadro com a quantidade
produzida: a paulatina substituição da lavoura de arroz
pela de soja, no quadro de principal produto agrícola do
Maranhão (enquanto panaceia econômica), fica mais
nítida quando se compara a quantidade produzida de
ambas, com proporções inversas.
Fonte: IBGE,
2010.
85
Figura 19. Mosaico 9: Gráfico e quadros
correspondentes a dados anuais da lavoura de arroz
e soja no Tocantins, entre 1990 a 2010. Ao lado,
gráfico da área colhida, em hectares; abaixo, à esquerda,
quadro com os respectivos dados da área colhida: assim
como no Maranhão, por efeito do PRODECER III, a
diminuição da área ocupada pela rizicultura se dá pela
expansão da/incentivos à sojicultura no Tocantins, até
de forma mais intensa ainda, já que o ponto de inflexão
ocorre entre 2002-2003. O efeito montanha-russa (sobe-
e-desce) é bastante evidente na área colhida de arroz,
enquanto a de soja, entre 2000-2005, apresenta uma
elevação brusca. Abaixo, à direita, quadro com a
quantidade produzida: comparando os anos extremos
(1990 e 2010), enquanto a quantidade produzida de
arroz aumentou 171%, a de soja foi superior a 2800%.
A eficácia dos grandes programas ECONÔMICOS é
comprovada pela consolidação do objetivo econômico
do PRODECER no Cerrado tocantinense.
Fonte: IBGE,
2010.
86
5.3 Sobreposição de “novas” e “velhas” fronteiras, territórios e racionalidades do/no
Cerrado
A lógica empresarial também constrói e difunde o espaço abstrato da “última
fronteira agrícola do planeta”, abstrato porque é idealizado ao contrário do real, tido como um
local de mínima importância ambiental, ou seja, o Cerrado, quando este abriga uma das
maiores biodiversidades do planeta e as nascentes da maioria dos rios principais ou afluentes
das grandes bacias sul-americanas, tão estratégicas para diversas atividades e grupos sociais,
inclusive aos próprios empresários agrícolas e pecuaristas, responsáveis por quase 50% de
desmatamento nesse bioma51
. Discursos caídos por terra, pensava-se, retornam reconfigurados
como justificativa para o ímpeto infatigável de expansão do capital a qualquer custo (este
pleonasmo é pouco para enfatizá-lo), seja pela desconsideração de opiniões, mobilizações
forçadas de populações há séculos estabelecidas na região com a amortização de laços e
práticas socioculturais, assim como a substituição e extinção de várias espécies nativas por
apenas aquela(s) de interesse econômico.
[...] é extremamente perigoso repetir o tom ufanista que caracterizou os anos 70 e
80, quando o “integrar para não entregar” acabou ensejando, até pela falta de debate,
um verdadeiro desastre ecológico e social. É de triste memória essa mensagem, ora
repetida, “da última fronteira agrícola do planeta” que tantos dissabores nos trouxe
não só no plano internacional como, também, para as populações locais e, ainda,
para os que desavisadamente, e em boa fé, migraram para a região buscando
melhorar suas condições de vida. (PORTO-GONÇALVES, 2000, p. 184).
A figura 20 demonstra a exaltação dos dados econômicos da produção
agropecuária brasileira recente, estratégia recorrente da mídia impressa neoliberal, que sempre
destaca o que considera como benesse econômica, que possivelmente trará melhorias sociais
(a inversão da ordem desses fatores não é cogitada). O mapa central indica “os novos pólos do
agronegócio”. Alguns municípios possuem laços estreitos com a grande produção mecanizada
de soja, principalmente – dentre eles Balsas (MA), Uruçuí (PI) e Barreiras (BA) no Cerrado
nordestino –, que seriam “cidades perdidas[?] no interior do país estendendo a fronteira
agrícola e alavancando a produtividade da agropecuária.” O tom ufanista do integrar para não
entregar, ressaltado anteriormente por Porto-Gonçalves (2000), pode ser observado em um
dos dados na figura, quando (des)informa que “ainda existem 106 milhões de hectares de
terras férteis disponíveis para a agricultura não explorada”, aproximadamente 12,5% do
51
“O cerrado corresponde a uma área com 2,039 milhões de quilômetros quadrados. Hoje, 48,5% desse total está
desmatado. A retirada da mata de 2009 para 2010 foi de 6,5 mil quilômetros quadrados e mais da metade está
localizada nos estados do Maranhão, Piauí e Tocantins.” (G1, 2011).
87
território nacional (mesmo que 1/3 do país já seja ocupado pela agropecuária). Sempre fala-se
em terras agricultáveis ainda disponíveis no Brasil como se fossem vazios demográficos, a
nossa conquista do “far West” brasileiro e a possibilidade de superação (concernente à
competição do mundo capitalista) do maior celeiro agrícola mundial, os Estados Unidos da
América.
Figura 20. Dados ECONÔMICOS da produção agropecuária brasileira. Fonte: Almanaque Abril, 2006, p. 120.
88
As fatias do bolo do agronegócio por setor, informado no gráfico da figura 21,
infelizmente não tratam sobre a questão da concentração de renda através das cadeias
produtivas da agropecuária brasileira e cai novamente no simplismo de um dado puramente
econômico, superficial e generalizante. Esta produção era para ser de demasiada importância
também social, porém, as profundas disparidades em termos de concentração fundiária e de
renda dentre pequenos, médios e grandes produtores, assim como o privilégio de mercados
externos em detrimento ao abastecimento interno, variado e de boa qualidade são
características dominantes e que incluem precariamente os próprios brasileiros num mundo
em que “todos precisam de matéria-prima brasileira”:
De cada três cafezinhos servidos no planeta, um é de grãos brasileiros. Israelenses e
palestinos têm suas enormes diferenças, mas na mesa do café-da-manhã ambos
servem o suco de laranja produzido no interior de São Paulo. Ele abastece oito em
cada dez jarras da bebida servidas no mundo. Os russos, se preferirem Coca-Cola,
nos farão um favor mesmo assim: o açúcar brasileiro é quem adoça o refrigerante e
abastece um terço do planeta. As tropas americanas no Iraque e os filipinos que
gostam de McDonald’s se banqueteiam com a carne bovina do Brasil, o maior
exportador mundial do produto. Pode não parecer, mas um carro movido a álcool no
Japão, um leitão assado servido na China e um cigarro francês têm algo em comum:
todos precisam de matéria-prima brasileira para existir. (ALMANAQUE ABRIL,
2006, p. 118).
Dessa forma, percebe-se a relação direta dessa discussão sobre a agricultura
capitalizada da soja, na qual os sistemas já instalados procuram ampliar suas áreas de
abrangência, unidades produtivas e infraestrutura de escoamento em busca de lucro para
atender à dinâmica posta pelo processo de reestruturação do capital a serviço das empresas
agrícolas. Ferreira (2008 b, p. 06) nos diz que, a aplicação de capital em áreas diferenciadas
(que apresentam condições favoráveis de investimento) incluem-nas no ciclo produtivo,
sempre em busca de incorporar novas áreas, num processo de ampliação/incorporação de
novas fronteiras.
São os novos fronts, que nascem tecnificados, cientifizados, informacionalizados.
Eles encarnam uma situação: a da difusão de inovações em meio “vazio”. Se o
movimento pioneiro de São Paulo, magistralmente descrito por Pierre Monbeig
(1953, p. 27; 1952, 1984) e Ari França (1956), teve o comando dos grandes
plantadores, capazes de construir estradas de ferro, atrair imigrantes e incorporar um
maquinismo moderno, hoje as frentes pioneiras são abertas sobretudo pelas grandes
empresas, com a cooperação do poder público. Como adverte Ruy Moreira (1986,
pp. 12, 15), é o processo de modernização que explica a “fronteira agrícola”, e não o
contrário, e essa modernização significa, entre outras coisas, a introdução maciça de
maquinários e produtos químicos de firmas como Ford, Massey Fergusson, Shell,
Ciba-Geigy, Bayer, Dow-Chemical, Agroceres e Cargill (SANTOS; SILVEIRA,
2006, p. 119).
89
Chesnais (1996, p. 33) reafirma o papel desempenhado pelas multinacionais no
sistema econômico atual, enfatizando que “as multinacionais beneficiam-se simultaneamente,
da liberalização do comércio, da adoção de novas tecnologias e do recurso a novas formas de
gerenciamento da produção”.
Outro fator demasiadamente importante de se ressaltar, nesse contexto de
incorporação de novas áreas pelo capital, é o território. Afinal, o que seria o território? Diz-se
do território um espaço delimitado jurisdicionalmente onde deve haver fundamentalmente
ocupação para assegurar o direito ao espaço.
Há consenso entre os geógrafos e antropólogos de que território é espaço apropriado
em comum por um determinado grupo humano. É, assim, um espaço que é próprio
em comum. É interessante observar que toda apropriação material é, sempre e
concomitantemente, uma apropriação simbólica, posto que só se apropria daquilo
que tem sentido, do que tem significado, portanto, signos, do que as próprias
palavras são a primeira expressão. [...]. (PORTO-GONÇALVES, 2000, p. 176).
Como Raffestin (1993, p. 153-154) clarifica, o espaço só se transforma em
território após um amplo jogo de forças que se intra-articulam dando origem a um processo de
apropriação e reprodução do espaço:
Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que, mesmo não
sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com
uma porção do espaço. A ação desse grupo gera, de imediato, a delimitação. [...]
Isso nos conduz a considerar os limites não somente do ponto de vista linear, mas
também do ponto de vista zonal. [...] muitos limites são zonais na medida em que a
área delimitada não é, necessariamente, a sede de uma soberania fixada de forma
rígida, mas a sede de uma atividade econômica ou cultural que não se esgota
bruscamente no território, mas de maneira progressiva. É suficiente dizer que as
tessituras se superpõem, se cortam e se recortam sem cessar.
Conceituando território, Souza (2007, p. 78) estipula que “[...] é
fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”. Por
isso, refletir sobre as questões regionais e nacionais que envolvem a dinâmica espaço-
temporal do território é algo relativamente complexo. A territorialização diz respeito ao
imbricamento entre territorialidades/identidades, destacada por Haesbaert (1995) quando
explica que:
O território envolve sempre, ao mesmo tempo mas em diferentes graus de
correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma
identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de “controle
simbólica” sobre o espaço onde vivem (sendo também, uma forma de apropriação),
e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e
ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos
(HAESBAERT, 1995, p. 42).
Esse processo de “metamorfização” e consolidação de uma nova configuração
90
sócio-espacial do Cerrado brasileiro em contato com a Amazônia, encontra-se associado ao
preconizado por Becker (2009). A constituição de uma nova geografia regional:
[...] ocorreu no bojo de mudanças estruturais cujos impactos transformadores
instauraram novas realidades na região. Os principais vetores de transformação
dessas mudanças estruturais foram a conectividade (estruturante do novo padrão de
articulação do território regional), a industrialização (estruturante do novo padrão da
economia regional), a urbanização (estruturante do povoamento da região formando
um arco em torno da floresta), a organização da sociedade civil (estruturante de um
novo tecido social) e a malha socioambiental (estruturante de um novo padrão de
apropriação do território por diversos grupos sociais, áreas protegidas e
experimentos conservacionistas).
[...]
A implantação da agricultura capitalizada trouxe uma ruptura radical do uso da terra
numa região tradicionalmente apoiada no extrativismo mineral, vegetal e pesqueiro
[...] (BECKER, 2009, p. 30 e 76).
A economia antes baseada principalmente nas atividades dos distintos grupos
indígenas, camponeses (roça-de-toco, extrativismo e pequena criação de animais)
transfigurou-se paulatinamente na agricultura moderna capitalizada, praticada pelas grandes
empresas e fazendas instaladas no Cerrado brasileiro, que utilizam latifúndios, adquiridos dos
antigos proprietários ali sediados por processos muitas vezes fraudulentos, com grilagem de
terras. Com isso, houve um redimensionamento do desenho espacial anterior dessa região
e/ou um contínuo processo de des-re-territorialização na área, ambos concernentes à inserção
do novo ao lugar, como explanam Rocha (2006) e Haesbaert (2006):
Em linhas gerais, um processo de constituição de um território envolve,
dialeticamente, um movimento de des-territorialização e re-territorialização. A
mobilização humana é um dos fenômenos mais diretamente ligados a este
movimento dialético. Quando um indivíduo (ou grupo de indivíduos) vê-se na
situação de deixar o seu território de origem ocorre que, num primeiro momento, ele
se des-territorializa, para, concomitantemente, re-territorializar-se em outro
território. Desta forma, uma des-territorialização corresponde, analogamente, a uma
re-territorialização. São processos indissociáveis que ocorrem em escalas distintas e
que são melhor entendidos a partir do conceito de multiterritorialidade. (ROCHA,
2006, p. 108).
[...] um dos exemplos mais característicos de multiterritorialidade é aquele
construído através das grandes diásporas de migrantes, com papel cada vez mais
relevante no mundo contemporâneo. Elas representam historicamente uma das
formas pioneiras de multiterritorialidade na medida em que o deslocamento e a
dispersão espacial de pessoas pertencentes a um grupo com forte identidade cultural
através do mundo promovem múltiplos encontros “diferentes”, muito antes do
advento dos meios de transporte rápidos e da comunicação instantânea [...].
(HAESBAERT, 2006, p. 354).
Estas transformações e reconfigurações dos territórios decorrem de processos que
elencam o “desenvolvimento” na ótica capitalista, e, como preteritamente discutido, já
naturalizado e singularizado com o “progresso” inevitável e a flecha da história (que segue
91
uma linha, com uma única trajetória) em oposição ao prisma da história (que separa um feixe
de luz em suas múltiplas cores, com várias trajetórias).
O desenvolvimento não consegue se desassociar das palavras com as quais foi
criado: crescimento, evolução, maturação. Da mesma forma, os que hoje usam a
palavra não conseguem libertar-se de uma teia de significados que causam uma
cegueira específica em sua linguagem, pensamento e ação. Não importa o contexto
no qual está sendo usada, ou a conotação precisa que o usuário queira lhe dar, a
expressão, de alguma maneira, torna-se qualificada e colorida com outros
significados que provavelmente nem eram desejados. A palavra sempre tem um
sentido de mudança favorável, de um passo do simples para o complexo, do inferior
para o superior, do pior para o melhor. Indica que estamos progredindo porque
estamos avançando segundo uma lei universal necessária e inevitável, e na direção
de uma meta desejável. Até hoje a palavra retém o significado que lhe foi dado há
um século por Haeckel, o criador da ecologia: “A partir deste momento, o
desenvolvimento é a palavra mágica que irá solucionar todos os mistérios que nos
rodeiam ou, pelo menos, que irá nos guiar até essas soluções.” (ESTEVA, 2000, p.
64-65).
Este paradigma de “desenvolvimento” idealizado, obsoleto e de inclusão precária
indica que:
A equação entre o “ecologicamente (in)correto e o socialmente (in)justo”,
evidenciada, nas últimas décadas, como consequência da expansão da fronteira
agrícola e do modelo de desenvolvimento adotado nos cerrados brasileiros, surge
como o principal dilema a ser resolvido pelos gestores e formuladores das políticas
públicas locais, regionais e nacionais. [...] (DUARTE, 2002, p. 11).
Diversos processos históricos, sociais, antropológicos e geográficos mudaram
drasticamente as paisagens do Brasil central, induzidos pelo Estado e pela iniciativa privada
com capitais daqui e de fora, em um processo que estudiosos das Ciências Sociais/Humanas
denominam de expansão da fronteira capitalista agrária nacional. Como nos explica Silva
(2007, p. 282-283):
A fronteira constitui recorte analítico e espacial da problemática da mobilização do
capital e das relações de produção pelo território nacional. Além disso, é palco para
conflitos transculturais e identitários. Em termos gerais, revela interações entre o
homem, a terra e a natureza. Em função do modo de produção e das representações
simbólicas, ideológicas e culturais esses elementos se transformam e se condicionam
mutuamente, sempre de maneira singular. Todavia, singularidade não significa
ausência de diferenciações internas e conflitantes. Logo, é possível e prudente
pensar a fronteira como forma diferenciada de organização territorial no bojo da
ordem territorial capitalista.
O embate entre essas diferenciações, concernente à ação concomitante de
racionalidades opostas em territórios que se intra e inter-articulam em um (ou vários) modus
vivendi52
latentemente tenso(s) na época dos “amansadores” da terra, tornou-se imiscível
52
Modus vivendi: “Modus quer dizer modo, maneira, atitude, caráter; Vivendi quer dizer viver. É uma frase
em latim que significa um acordo entre partes cujas opiniões diferem, de tal maneira que elas concordam em
92
quando da chegada dos grileiros, traduzido pela violência no campo causada pela
concentração de terras (voluptuosamente fraudulenta) decorrente da aparelhagem viária,
técnica e produtiva em detrimento da população estabelecida desde tempos imemoriais,
herdeiros de terras que do “dia para noite” tornaram-se deserdados da terra.
A lógica empresarial gera em locais onde ocorrem conflitos (provenientes dos
impactos negativos) com grupos que discordam de tal, um discurso a favor do projeto para
a(s) empresa(s), sob a égide do maniqueísmo, que elenca dois lados: o bom e o mau. Logo, o
“desenvolvimento”/“progresso”/“civilização” é singularizado com o bem, a racionalidade
hegemônica. Antagonicamente têm-se o “subdesenvolvimento”/“atraso”/“barbárie” da
racionalidade colonizada. O maniqueísmo magistralmente presente no discurso dos agentes
sociais a favor da empresa marginaliza os grupos que pensam “numa outra perspectiva”,
invertendo a posição de proeminência racionalidade/agente social: a racionalidade dos
estabelecidos (aqueles presentes na região desde tempos imemoriais) torna-se outsider e os
outsiders (grupos recém-chegados, forasteiros, geralmente beneficiados pelos projetos de
desenvolvimento econômico) passam a propagar e deter a racionalidade estabelecida53
, o que
nos leva à indagação: quem é estabelecido e quem é outsider? “Estabelecidos” e “outsiders”,
nesse caso, não se enquadram perfeitamente nos conceitos a partir da análise de Elias; Scotson
(2000). Apesar do anacronismo categórico espaço-temporal, a comparação é válida, mas com
as devidas ponderações.
As diversas discussões pretéritas servirão para analisar conseguintemente o caso
específico da territorialização da sojicultura em Balsas (MA), agora com o cabedal teórico
necessário já exposto.
discordar. É uma espécie de arranjo temporário que possibilita a convivência entre elementos e grupos
antagônicos e a restauração do equilíbrio afetado pelo conflito. O antagonismo é temporariamente regulado e
desaparece como ação manifesta, embora possa permanecer latente.” (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA). 53
O embate, as tensões múltiplas, entre dois grupos de habitantes, os estabelecidos e os forasteiros outsiders,
considerados como estrangeiros que não partilham os valores e o modo de vida vigentes e acabam sendo
segregados nas relações sociais intergrupais, é discutido por Elias; Scotson (2000, p. 07, 19-20):
“As palavras estalishment e established são utilizadas, em inglês, para designar grupos e indivíduos que ocupam
posições de prestígio e poder. Um estalishment é um grupo que se autopercebe e que é reconhecido como uma
‘boa sociedade’, mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma combinação singular
de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu poder no fato de serem um modelo moral para
os outros.
[...]
Essa é a auto-imagem normal dos grupos que, em termos do seu diferencial de poder, são seguramente
superiores a outros grupos interdependentes. Quer se trate de quadros sociais [...], quer, [...] de uma povoação da
classe trabalhadora, estabelecida desde longa data, em relação aos membros de uma nova povoação de
trabalhadores em sua vizinhança, os grupos mais poderosos, na totalidade desses casos, vêem-se como pessoas
‘melhores’, dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos
os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos ‘superiores’ podem
fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se
humanamente inferiores.”
93
PARTE TRÊS: o “admirável” Sertão Novo em Balsas
94
6 TERRITÓRIOS DA FRONTEIRA/ FRONTEIRA DOS TERRITÓRIOS: o novo
Sertão de Balsas... os Brasis se encontram aqui
Figura 21. Mosaico 10: fotos – o “antigo” e o “novo” em Balsas. As mudanças espaciais, culturais, econômicas,
sociais, ambientais... no município de Balsas (MA) foram (e são) bastante visíveis à quem viveu tal processo ou
escuta os relatos dos habitantes mais antigos sobre o cenário pretérito, há pelo menos três décadas, quando a
sojicultura ainda não se confundia com a identidade local. Quem sai do norte do estado para visitar Balsas
conhece outro Maranhão, principalmente no que tange à cultura. A presença de migrantes do Centro-Sul
brasileiro é comum, tal a continuidade desse processo em maior escala nas duas últimas décadas. O Centro de
Tradições Gaúchas – CTG, estabelecido entre transnacionais do agronegócio, é um importante ponto de
preservação e exaltação da cultura gaúcha. A cidade que antes era um entreposto do comércio fluvial, no porto
dos Caraíbas, destacando-se pela pecuária extensiva e rizicultura, hoje é símbolo do “progresso” do agronegócio
da soja. Porém, os contrastes sociais também saltam aos olhos de quem anda pela cidade. A separação da
população que considera-se culturalmente híbrida (os chamados maraúchos) dá-se pelo esquadrinhamento dos
bairros. É comum observar bairros de classe média com presença marcante de sulistas em oposição à periferia
pobre. Esta população pobre atraída à cidade convive com a opulência de hipermercado, shopping, boutiques,
escolas particulares de grande porte, mansões, empresas, casas noturnas... sem desfrutar desse “progresso” – o
perto torna-se cada vez mais distante. Fonte: Dados da pesquisa, 17 e 21/10/2011.
95
6.1 Dos caminhos do gado à descoberta gaúcha: a ocupação territorial do sul maranhense
“[...] Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria
nacional! [...] A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando
conta dele a dentro... [...]” (João Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, 2008,
p. 294-295).
O processo de colonização territorial do Sertão de Pastos Bons54
se deu como
extensão da corrente pastoril baiana (figuras 22 e 23) nas primeiras décadas do século XVIII,
através do devassamento do Parnaíba e genocídio dos indígenas55
, já que os “[...] amplos
campos sul-maranhenses [...] representavam um convite à expansão da pecuária extensiva e
itinerante [...]” (CABRAL, 2008, p. 78). As primeiras fazendas de gado se estabeleceram nas
proximidades do Parnaíba e de Balsas, onde os pastos naturais eram “[...] realmente bons,
regados por numerosos e perenes rios [...] protegidos por florestas ciliares e entremeados por
capões de mato e palmeiras, com clima ameno e saudável [...]” (CABRAL, 2008, p. 81). O sul
maranhense era quase totalmente desvinculado da capital, São Luís, já que a forma de
ocupação econômica definiu sua ligação maior com Bahia e Pernambuco (CABRAL, 2008).
Já Velho (1981, p. 27) nos fala que “[...] A ligação econômica com o litoral maranhense [...]
mantinha-se bastante frouxa [...] dada a decadência da economia algodoeira. Era disputada
inicialmente pelo poder de polarização da Bahia, e depois do Pará [...].” Somente em meados
do século XIX a frente pastoril encontra os caminhos do mar:
Após dominar os sertões, palmilhar suas trilhas, aprofundar seus caminhos e
implantar o gado bovino em todos os recantos, os fazendeiros buscaram chegar a
São Luís, através do Grajaú. Construíram canoas e, servindo-se dos índios como
guias e remeiros, desceram as águas desse rio e as do Mearim e, por este,
alcançaram o mar, chegando à sede administrativa da Província. Estava aberta uma
nova via de comunicação que [...] teve significativa influência na vida comercial e
política do alto sertão, deslocando, em parte, a antiga rota por Caxias. Por esse novo
caminho desceram a produção e os reclamos dos sertanejos. E, por ele, subiram
produtos de consumo, funcionários do governo e decisões governamentais [...].
(CABRAL, 2008, p. 88).
54
O território sobre jurisdição da Vila de Pastos Bons, quando da sua criação em 29/11/1820, equivale a atuais
46 municípios (criados até o ano de 1994), todos no Maranhão, inclusive Riachão e Balsas. A data oficial da
fundação de Balsas é 07/10/1892, quando foi elevada à categoria de Vila (Vila de Santo Antônio de Balsas) e
desmembrada de Riachão (IMESC, 2010) (SANDRI; BAÚ, 2008). 55
“O principal meio utilizado pelos criadores, para submeter e dominar o indígena, foram as bandeiras, que
constituíam verdadeiros grupos de guerra, compostos de 100 a 200 homens aliciados entre os sertanejos e sob o
comando de um chefe local. [...] Os mantimentos eram fornecidos pelos fazendeiros que foram, na verdade, os
principais impulsionadores desses grupos armados que desempenharam um papel proeminente no devassamento
da área.
[...]
Dessa forma, a frente de vaqueiros, por meio de afugentamento, aprisionamento, inoculação de varíola e
trucidamento limpou das campinas sul-maranhenses o habitante nativo, para ceder lugar ao gado e fazer surgir a
civilização do couro.” (CABRAL, 2008, p. 89-90 e 97, grifo da autora).
96
Figura 22. Expansão da frente baiana até o Maranhão. Fonte: Cabral, 2008, p. 80. Figura 23. Rota de expansão da frente pastoril no Maranhão. Fonte: Cabral,
2008, p. 86.
97
O processo de ocupação das terras sul-maranhenses ao longo do século XX56
foi
marcado por litígios entre aqueles que conquistavam-nas de forma espontânea e novos
habitantes que passaram a ter títulos de posse da terra (grande parte fraudulento),
desencadeando uma série de conflitos fundiários. Os tipos de colonizações “camponesas”
efetuadas no Maranhão, segundo Musumeci (1988, p. 17, grifos da autora), são as seguintes:
a) Colonização tradicional: formação de um campesinato a partir da crise da
plantation maranhense no século XIX [...].
b) Colonização dirigida: assentamento de lavradores por iniciativa estatal ou para-
estatal [...].
c) Colonização espontânea: ocupação de terras devolutas sem direcionamento
oficial, levada a efeito por pequenos produtores imigrantes, na maioria de origem
nordestina.
Entre as décadas de 1910 a 1970 o Nordeste brasileiro fora abalado por grandes
secas que tiveram como consequência o surto migratório de piauienses, cearenses,
pernambucanos e baianos para o Maranhão, que ocuparam as terras devolutas do Estado
localizadas nos vales médios úmidos dos rios Mearim, Pindaré, Corda, Balsas e Tocantins
(figura 24). Essa entrada maciça de migrantes nordestinos “não apresenta um
desenvolvimento linear, desdobrando-se de maneira vária segundo diferentes atividades
econômicas e distintas áreas geográficas” (SANTOS; PAULA ANDRADE, 2009, p. 34),
“desequilibrando” a relação camponês-proprietário. Surge no campo maranhense a figura do
posseiro, o indivíduo que ocupa um lote de terra sem possuir título de propriedade
(colonização espontânea). O posseiro vai sobreviver da pequena agricultura e da pecuária