UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA A SOBERANIA E A ORDEM MUNDIAL CONTEMPORÂNEA Renan Almeida de Souza Niterói 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
A SOBERANIA E A ORDEM MUNDIAL CONTEMPORÂNEA
Renan Almeida de Souza
Niterói2008
A SOBERANIA E A ORDEM MUNDIAL CONTEMPORÂNEA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade
Federal Fluminense, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciência Política.
Orientando: Renan Almeida de Souza
Orientador: Professor Dr. Noéli Correia de Melo SobrinhoCo-orientador: Professora Dra. Dirce Eleonora Nigro Solis
Niterói
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2008
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Souza, Renan Almeida de.A Soberania e a Ordem Mundial contemporânea. / Renan Almeida de Souza. 2008
183f.
Orientador: Noéli Correa de Melo Sobrinho. Co-orientador Dirce Eleonora Nigro Solis. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política.
Bibliografia: f. -. 1. Ciência Política 2. Soberania 3. Imanência 4. Estado. I. Souza, Renan Almeida de. II. Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. III. A Soberania e a Ordem Mundial Contemporânea.
CDD xxxxxxx-x
A SOBERANIA E A ORDEM MUNDIAL CONTEMPORÂNEA
Renan Almeida de Souza
Dissertação apresentada à banca Examinadora da Universidade Federal Fluminense, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciência Política.
Data de aprovação: 16 de Outubro de 2008
Banca Examinadora:
________________________________________________Prof. Dr. – Noéli Correa de Melo Sobrinho – PPGCP - UFF
________________________________________________Titular Interno: Profa. Dra. Inês Emilia de M. S. Patrício - PPGCP - UFF
________________________________________________Suplente externo: Prof. Dr. Carlos Eduardo R. de Mendonça – IFCH -UERJ
________________________________________________Suplente interno: - Prof. Dr. Cláudio de Farias Augusto - PPGCP - UFF
NiteróiOutubro / 2008
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agradecimentos
Aos meus pais Joir Vianna de Souza e Lectícia Almeida de Souza por terem me propiciado a vida. Aos meus filhos Pedro e Letícia por me trazerem a imensa alegria de ser pai e descobrir o Amor sem trocas. E a minha mulher, Dilza Marques Sampaio, amiga, companheira e fonte de um amor que somente a maturidade pode realizar A vocês, obrigado pela compreensão, em relação aos momentos de ausência que um trabalho dessa natureza nos impõe.
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSECENTRO DE ESTUDOS GERAISINSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIAPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICAMestrado em Ciência PolíticaMestrando(a) Renan Almeida de Souza
Temática: Soberania e a Atual Ordem Contemporânea
Palavras-chave: Imanência, Estado, Nação, Capital e Soberania.
Resumo:A proposta interpelativa, exposta através do trabalho dissertativo, aponta inicialmente para as mudanças na ordem do pensamento em concomitância com a realidade material em permanente movimento de transformação, ambas verificadas no transcurso de afirmação da ordem política Moderna. Destaca, sobremaneira a revolucionária descoberta do plano da imanência como possibilidade de poder em contraposição ao arranjo de Poder religioso/temporal de caráter transcendente característico e hegemônico, quando observada a ordem política medieval. Apresenta, em seguida, - como decorrência da “crise” que emerge por força das transformações em curso na ordem política e social - e destaca as reflexões, através da releitura, produzidas por um grupo de pensadores modernos (Maquiavel; Bodin; Hobbes; Locke, Rousseau e Spinoza) que se debruçam sobre a questão do moderno conceito de soberania. Procura correlacionar suas formulações observando, a partir de seus textos básicos, o preceito formulativo da imanência ou transcendência como arranjo definidor da nova ordem política que se insinua. Descreve a emergência do Estado Moderno como aparelho político de afirmação da soberania moderna e sua relação com o conceito de Nação, enquanto mecanismos simbólicos como tentativa de superação da “crise” produzida na ordem política soberana, em mudança. Sobretudo, destaca-se sua conformação institucional a partir das perspectivas do pensamento hegeliano e sua concepção de Estado Ético. Contrapondo, a essa concepção - sem, contudo abandonar a lógica dialética, mas aplicando-a em outras bases analíticas - o pensamento marxiano; através da concepção materialista da história, na qual se aponta o caráter daquele [Estado] como instrumento constituído de afirmação da nova ordem do capital. A exposição dissertativa se consuma destacando que a soberania moderna através do Estado não representa a afirmação soberana de uma dada comunidade em seus interesses comuns (vontade coletivamente construída), mas, sobretudo se caracterizando por uma ação soberana que visa a firmação e expansão da ordem do Capital, seja na ordem interna ou em sua ação externa. Como resultado o arranjo soberano moderno [o Estado] se manifesta pela negação do plano da imanência, já que se afirma pela transcendência laicizada, reafirmando a “crise” da modernidade, na contemporaneidade. Conclui a exposição aludindo que pensar o conceito e a efetividade da soberania na atualidade é retomar as bases formulativas que
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contemplam a questão da imanência como forma de poder soberano de uma dada comunidade.
FLUMINENSE FEDERAL UNIVERSITY GENERAL STUDIES CENTER INSTITUTE OF HUMANITIES AND PHILOSOPHY POST-GRADUATE PROGRAM IN POLITICAL SCIENCE
Master's Degree in Political Science Master (a) Renan Almeida de Souza
Summary of dissertation
Focus: Contemporary Sovereignty and Current Order Keywords: Immanence, state, nation, Capital and Sovereignty
Abstract:
The proposal interpolative, exposed through this work, initially points to changes in the order of thought in conjunction with the material reality in constant movement of transformation, both recorded in the passing of the affirmation of modern political order. It stands, particularly the revolutionary discovery of the plane of immanence as a possibility of power as opposed to the arrangement of religious power / time of transcendent character; characteristic and hegemonic, when observed the medieval political order. Then - as a result of “crisis" that emerges under the transformations under way in the political and social orders - and highlights the thoughts, for rereading, produced by a group of modern thinkers (Maquiavel, Bodin, Hobbes, Locke, Rousseau and Spinoza) that focused on the question of the modern concept of sovereignty. On the way to correlate their formulations looking from its basic texts, the precept made of immanence or transcending as a defining arrangement of the new political. Describes the emergence of the modern state, as a political apparatus of the modern sovereignty assertion, and its relationship with the concept of nation as a mechanism to attempt to overcome the "crisis" produced in the sovereign political order in change. Above all, highlighting its institutional conformation from the perspective of Hegelian thinking and his conception of State Ethics. Contrasting this position - without leave the dialectic logic, but applying it to other analytical references - the Marxist concept; over the materialist conception of history, which shows the character of This [State] a instrument formed of affirmation of the new order of the capital. The exhibition is consumed emphasizing that the modern sovereignty by the government does not represent the sovereign affirmation of any community in their common interests (will collectively built), but is characterized mainly by a sovereign action aimed at reassurance and expansion of the order of capital, either in domestic or in foreign acts. As a result, the modern sovereign arrangement [the State] is manifested by the denial of the immanence plan, as it is asserted by the secularized transcendence, reaffirming the modernity "crisis" in the contemporary times. Alluding to the exhibition concludes: think the concept and effectiveness of
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sovereignty in actuality it is recuperate bases that include the issue of immanence as a sovereign power of a given community.
SUMÁRIO
Resumo Abstract Introdução
Parte I
Capítulo I
A Modernidade se Insinua
1.1. A Descoberta do Indivíduo 1.3. O Plano da Imanência.
Capítulo II
Pensamento e Soberania na Transição
2.1. Maquiavel: O Realismo na Política. Individuo e História na Ordem Política
2.2. Jean Bodin: A Soberania é Absoluta, Perpétua e Transcendente
2.3. Thomas Hobbes: O Jusnaturalismo e Transcendência Anticlerical
2.4. John Locke: Liberdade, Igualdade e Propriedade
2.5. J.J. Rousseau: Vontade Geral e Contrato Social
2.6. Baruch de Spinoza: Imanência, Potência e liberdade
Parte II
Capítulo III
A Soberania Moderna
3.1. A Ordem Soberana Medieval
3.2. O Conceito de Nação: Abstração e Pertencimento
3.3. Idealismo e o Estado Ético: A Nova Ordem Transcendente e Soberana
3.4. A Dialética como Desmistificadora da Idealização do Estado Ético
3.5 A Nova Ordem Política Interna e a Condição de Soberania Externa
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Capítulo IV
O Estado: A Soberania do Capital
Conclusão
Referências Bibliográficas
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Introdução
O trabalho dissertativo que será apresentado a seguir procura
discutir e analisar a questão da possibilidade em se constituir soberania diante da atual
ordem mundial contemporânea, conjugada ao papel do Estado, desde seu advento na
modernidade, como ordem transcendente de poder e ente representativo da soberania. Que
institui e expressa tal condição manifestando uma crise permanente, constituída por força
da negação à revolucionária idéia de imanência como fonte originária do Poder.
O conceito de Poder imanente contraposto à constituição da nova ordem de
caráter transcendente, instituída por meio do Estado moderno, torna-se, portanto, a base e o
suporte analítico do trabalho que se apresenta.
A exposição pretendida está dividida em duas partes, distribuídas em quatro
capítulos, que se estruturam através de uma lógica narrativa que procura identificar os
aspectos que influíram nas mudanças observadas na passagem do mundo medieval para o
mundo moderno. Para tanto os aspectos materiais das relações sociais em transformação e
a manifestação destas através do pensamento e da emergência histórica do Estado
moderno, realçando sua condição de agente da soberania no espaço político interno e
externo.
O eixo interpelativo se dá por meio da idéia de que a dinâmica social, aliada às
especulações de ordem filosófica através de uma síntese em permanente processo dialético,
desenvolve e manifesta as novas condições materiais de existência.
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A primeira parte do trabalho contém dois capítulos. O primeiro (A
Modernidade se Insinua) expõe de maneira a mais sucinta possível as bases
epistemológicas do pensamento medieval, tendo a filosofia escolástica como referencial
analítico. Procura-se identificar suas nuances constitutivas e as influências originárias
quanto às premissas deste pensamento e a correspondência deste com a concepção de
mundo manifesta na ordem política. Ao mesmo tempo, assinala, através do pensamento de
Nicolau de Cusa, as primeiras manifestações destoantes do até então, pensamento
hegemônico.
O destaque desta exposição recai para o fato de que dois fatores contidos no
pensamento insurgente foram definitivos para as mudanças na forma de perceber as
relações mundanas: a idéia da condição de Individuo e a revolucionária descoberta do
plano da imanência.
Em seguida, no segundo capítulo (Pensamento e Soberania na Transição), as
discussões se consumam considerando as primeiras manifestações do pensamento
moderno,empenhado em expressar por meio das idéias a conformação do novo
conceito de soberania. Os autores visitados são: Maquiavel, Jean Bodin, Thomas
Hobbes, John Locke, J. J.Rousseau e Baruch de Spinoza. Em todos eles foram
destacadas as principais linhas interpretativas de seus pensamentos, relacionando-os
com as expectativas em torno da afirmação ou negação do plano da imanência como
fonte originária e permanente do Poder.
Finda essa abordagem preliminar, com sua conformação expositiva e analítica
voltada para ordem do pensamento, mas que se insere como fundamental ao entendimento
da lógica empreendida pela dissertação, inicia-se a segunda parte do trabalho, que
contempla mais dois capítulos.
No terceiro capítulo (A Soberania Moderna) a abordagem estabelecida procura
definir a maneira pela qual a nova ordem política se engendra. Investiga-se que a
concepção de poder soberano [Estado] se institui quando observada a conjugação dos
fatores materiais oriundos das novas relações sociais, que de forma irreversível vão
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amalgamando a ordem moderna, além da própria dinâmica do pensamento que a
contempla.
A partir da exposição do conceito de Poder soberano vivenciado no mundo
medieval e sua fundamentação mágico-religiosa, em franco processo de desconstrução, se
procurou identificar através do estudo e da própria formação dos conceitos de povo, nação
e territorialidade as premissas fundadoras da idéia de Estado-nação como representação
desta realidade, que se institui soberana.
Em seguida, e a partir do pensamento filosófico de Hegel, se esmiúça a concepção do
Estado moderno [estado-ético], considerando sua relação com o idealismo filosófico do
referido autor que se consuma como pressuposto ideológico da idéia de Estado no
ordenamento liberal e constitucional dos Estados-nação. Alia-se a essa análise a
contraposição interpretativa empreendida por intermédio do pensamento de Marx quando
questiona averigua as contradições e incongruências do pensamento hegeliano entre idéia
e materialidade, como protagonistas na consecução da objetividade histórica.
Na última etapa desse capítulo se consumam as averiguações sobre a natureza
soberana desse Estado e sua dimensão funcional como motor de desenvolvimento da
ordem do capital.
Concluindo a etapa analítica, o quarto capítulo (A Soberania do Capital) busca
descrever e interpelar, a partir dos distintos momentos e feições assumidos pelo aparelho
da soberania [O Estado] para com a afirmação, expansão e acumulação da ordem do
capital em sua dinâmica orgânica de reprodução, aliando a essa a própria natureza do
Estado e sua transmutação ao longo do período moderno, e na atual contemporaneidade,
definindo seu papel funcional, e de soberania, articulado aos interesses do capital em
franco detrimento dos interesses da coletividade, a qual insinua representar de forma
soberana.
A etapa final do trabalho (Considerações e Comentários Finais) procura manifestar
e explicitar as considerações pertinentes, que emergem das análises empreendidas ao
longo da dissertação, cujo propósito visa contribuir para o debate acerca do tema proposto,
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delineando algumas questões de relevância para as discussões que ele necessariamente
suscita na atualidade.
Deseja-se, com a estrutura formal apresentada pelo corpo dissertativo do trabalho
que a leitura seja prazerosa e elucidativa. Desde já se ressalta que o olhar dado ao texto
deve ser apreendido considerando que a abordagem escolhida não esgota a totalidade
interpretativa da questão. Muitas outras maneiras de tratar analiticamente o assunto em
pauta são perfeitamente plausíveis. Fez-se, somente uma escolha; um recorte analítico, que
se define pela importância dada à questão da possibilidade transformadora e emancipadora
para com os dos homens como decorrência da revolucionária descoberta do plano da
imanência e suas conseqüências práticas de aqueles serem sujeitos ativos na construção do
seu devir.
A importância interpelativa que o conceito de imanência apresenta para as
transformações rumo à modernidade, e na própria contemporaneidade. As dificuldades
encontradas pelas forças da transformação em realizá-lo em sua plenitude, diante de uma
ordem política, econômica e social que se institui a partir de sua negação; que se apresenta
negligenciada pelas forças políticas da ordem constitucional e liberal, ao instituírem a
ordem política do Estado moderno como momento absoluto da ação soberana de uma dada
comunidade.
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Capítulo I
A Descoberta do Indivíduo.
“Todos os laços são desfeitos, todas as correntes quebradas, todas as unidades destruídas. E dos escombros de tudo isso, saído do conjunto, arrancado à tradição, sacudidas as peias, estendidas para longe as velas, surge o homem moderno” (*)
Criatura animada para a vida, que não te pertence, pelo sopro mágico do
onipotente. Está preso às teias de um destino determinado, do qual não foges, por
contingência de uma ordem cósmica que a tudo contém. Incapaz de te conhecer, e
tampouco conhecer o que te cerca, por si só. O parco conhecimento que possuis não te
pertence, pois não foi por ti elaborado, mas por graça de revelações transcritas de um livro
sagrado, o qual conheces por sortilégios que a todos domina; Tu és o homem medieval.
Quando se observa o percurso experimentado pelo pensamento ocidental - a
partir de uma arbitrada periodicidade, afeita ao historicismo - há uma tendência em admitir
o limiar do século XV e início do século XVI como sendo o momento no qual o domínio
dos saberes, marcado pela dogmática da fé cristã a partir das interpretações do pensamento
plasmado da tradição grega (Escolástica) 1, passa a ser objeto de constantes e irreversíveis
(*) - Henry Bonaventure Monnier (1799-1877), França, Paris. Dramaturgo, caricaturista e ator francês. Fragmento de texto retirado de um panfleto literário produzido pelo referido autor. Reproduzido no livro de Ernest Cassirrer : Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Individum und Kosmos In der Philosophie der Renaissance. Trad. do alemão, João Azenha Jr.; Trad. do grego e do latim, Mario Eduardo Viário; São Paulo: Ed Martins Fontes, 2001. 1 - O termo escolástico, relativo à Escolástica, definiu-se como: o pensamento filosófico mais marcante do mundo medieval. Parte integrante do conjunto filosófico que constitui o núcleo doutrinário da fé cristã. Sua maior expressão intelectual é Santo Agostinho pensador católico, cuja estrutura lógica interpretativa se constitui a partir da interpretação
questionamentos intelectuais. Precipitando o que alguns Historiadores 2 definem como o
marco inicial do chamado Renascimento3. Marco da temporalidade histórica por onde se
insinua a modernidade.
As interpelações iniciais para com o pensamento Escolástico não ocorrem no
campo da refutação radical de suas bases filosóficas. As primeiras fendas impostas ao
conjunto lógico do pensamento Escolástico se dão nos marcos interpretativos consumados
pela observância da inadequação de seus fundamentos. Como bem destaca e registra
Ernest Cassirer, em seu clássico texto sobre a filosofia do Renascimento, “Indivíduo e
Cosmos na Filosofia do Renascimento”, em que alude à obra de Petrarca 4, “De sui ipsius
et multorum ignorantia”:
“O ataque que Petrarca ousa empreender contra a Escolástica em sua obra De
sui ipsius et multorum ignorantia nada mais é que o testemunho do poder ainda
intacto com que essa mesma filosofia domina o tempo. De fato, o princípio que
Petrarca opõe á Escolástica e à Doutrina de Aristóteles não possui ele próprio
nem uma origem nem um conteúdo filosófico. O que contrapõe aqui à Escolástica
não é um novo método de pensamento, mas sim o novo ideal de eloqüência.
(CASSIRER: pg 86. 2001)
Ou ainda nas palavras do próprio Petrarca:
“Desse momento em diante, Aristóteles não deve e não pode mais ser visto pura e
simplesmente como o mestre do saber, como representante da cultura, pois seus
escritos, ao menos na forma como nos têm chegado, não mostram” o menor traço
do bem falar”
cristã do pensamento filosófico de Aristóteles, em uma tentativa de coincidir a tradição do pensamento grego com as escrituras sagradas. 2 - Dentre eles, de forma destacada, Jacob Burckhardt em seu clássico trabalho sobre o Renascimento intitulado ‘A Civilização do Renascimento Italiano”, que indica o limiar do século XV como momento inaugural do Renascimento. 3 – É o termo que define a retomada da tradição clássica grega como modelo as interpretações de ordem filosóficas artística e literária, cujas manifestações iniciais se constituíram a partir das cidades-estados da Península Itálica, destacadamente Florença e Veneza.4 - Francesco Petrarca (Poeta e Pensador - Arezzo – 1304 – 1374), tradicionalmente chamado: o pai do Humanismo. Ele inspirou a filosofia humanista que levou à Renascença. Acreditava no imenso valor prático e na imensa moral do estudo da História Antiga e da Literatura Antiga - isto é, o estudo do pensamento e da ação humanas. Embora o Humanismo tenha mais tarde sido associado ao secularismo, Petrarca era um devoto cristão e não via conflitos entre a realização do potencial humano e a fé religiosa.
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Em complemento a estas considerações convèm ressaltar que o questionamento
inicial ao pensamento escolástico empreendido através da filosofia do quattrocento não se
resume a uma releitura interpretativa de sua lógica constituinte. Há em sua dinâmica um
efeito conseqüente que acaba por contribuir decisivamente para a paulatina e irreversível
desconstrução teórica da metafísica da escolástica: a descoberta da condição do Individuo.
A mais significativa das conseqüências produzidas por meio da especulação filosófica em
curso.
A relação entre esta nova dimensão ontológica do ser e as relações que tal
descoberta mantém com a perda de estabilidade do arranjo social e político do mundo
medieval torna-se o eixo privilegiado para a análise que se deseja empreender acerca da
mudança do paradigma conceitual da Soberania do poder, quando se debruça sobre a
análise das mudanças verificadas no transcurso entre os mundos medieval e moderno.
As dificuldades em datar historicamente o movimento Renascentista sempre
foram objeto de extenso e infindável debate entre os estudiosos. Situação que não
manifesta surpresa alguma, caso se atente para o fato de que não existe processo de
transformação que insurja pela ruptura abrupta. O momento anterior e o devir podem se
conjugar, tornando as diferenças sutilezas a serem precisadas. O amanhecer do novo se
mescla à névoa do anterior, que insiste em permanecer, ora com traços mais acentuados,
ora mais abrandados, através da condição difusa que é própria à dinâmica das
transformações.
Se a datação histórica é fator de desacordo entre as partes que se dedicam aos
estudos do Renascimento, o pensamento filosófico pode servir de guia interpretativo para a
observação do processo de transformação do mundo medieval rumo à “modernidade”. Ao
se constituir por critérios distintos da pura datação histórica, vista como de difícil precisão.
A história da filosofia, ao contrário, procura identificar e definir as mudanças pela marca
indelével da diferenciação produzida a partir do pensamento de uma época.
Não se desconsidere com isso a apreensão histórica como elemento pertinente à
análise das transformações. Reconheça-se, sobretudo, reconhecendo a relação dialética
existente entre o pensar, a idéia, a reflexão, em conjunto com a realidade social e política
que se manifesta historicamente.
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Antes de procurar as marcas filosóficas do período em questão convém, fazendo
justiça ao que foi formulado anteriormente, abrir a exposição pretendida neste capítulo
com alguns aspectos históricos, cuja singularidade os torna paradigmáticos para o
entendimento do momento de passagem entre os dois mundos distintos, mas ao mesmo
tempo tão próximos.
As Cidades-Estados de Veneza e Florença, cujas dinâmicas culturais assumiram,
em proporções diferentes, o espaço de vanguarda do pensamento não “fossilizado” pelas
interpretações produzidas pela Escolástica - sobretudo quanto às especulações advindas
da produção cultural em sua abrangência; artística, literária e científica, marcando e
difundindo o novo momento espiritual por que passava a construção do conhecimento
sobre as relações do ser com o cosmos, tornam-se, desta forma paradigmáticas das
mudanças vindouras.
Florença e Veneza se singularizam por destoarem dos modos vigentes em um
quadrante territorial (Península Itálica) eminentemente marcado pela constância de duas
formas de governo: estados papais e estados tirânicos ou despóticos. Com estruturas
administrativas eminentemente voltadas para os negócios, aquelas cidades tornam-se
referência natural ao fluxo de homens do comercio e das letras, apoiados economicamente
por mecenas e, incentivados ao exercício da reflexão sobre os problemas do conhecimento.
Além disso possuíam um ordenamento político que tornava distintas as áreas de
competência entre o “Estado”, na figura do Doge 5, e o Clero, produzindo os contornos
iniciais de uma precoce “laicidade”, cuja modernidade afirmaria posteriormente. Daí a
importância de citá-las diante de um contexto histórico-filosófico marcado pela
transformação.
Os “Estados Papais”, sob a égide e o extremo controle da Santa Igreja, são
formas características de Poder, que se assentam menos no poder temporal e muito mais
nos poderes emanados por força de preceitos de caráter espiritual. Em termos constitutivos
sua concepção deriva de uma lógica de pensamento que reafirma os preceitos hierárquicos
de uma ordem cósmica que define e imprime significação à própria ordem temporal.
5 - O termo se refere ao chefe político da república de Veneza.
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Contribuindo como elemento de resistência, em uma conjuntura política que tende ao
desenvolvimento de outros arranjos de Poder insinuantes da condição de imanência.6
A existência de “Estados Tirânicos” – ocorre em um momento histórico no qual a
“legitimação” do exercício do poder soberano se manifesta através de uma ordem
conceitual baseada na transcendência, que se constitui a partir da interpretação escolástica
do Cosmo. Ela o define como totalidade fechada possuidora de uma ordem natural que lhe
imprime formas fixas e imutáveis, manifestas não somente nesta esfera, mas,
conseqüentemente presente na ordem temporal; deve ser apreendida como componente
significativo no conjunto das transformações em curso.
O padrão de poder soberano e a maneira pela qual este vai se exercer, pelo uso
indiscriminado da violência, alcançando em determinados episódios a dimensão de uma
saga assassina, pela qual se utiliza o déspota para a tomada do poder ou por sua
permanência, não deve ser desprezado como experiência de exercício de um poder que se
legitima pela ação imanente de quem o detém e não por artifícios mágicos e/ou simbólicos
de uma ordem metafísica7. Há, portanto, nestas formas de Poder elementos de imanência
que contribuirão para o resultado das mudanças do pensamento quando refletidas na ordem
política engendrada pelo provir moderno que se procura identificar.
A menção à Cidade-Estado de Veneza e Florença, certamente, requere o
detalhamento do que se considera como diferenciador, no que tange aos aspectos políticos
e sociais destacados acima. Contudo, não seria apropriado à extensão de um ensaio
inaugural deter-se em demasia. Entretanto, importante se mostra acrescer a estas
abreviadas referências alguns comentários que se manifestam como imprescindíveis ao
conjunto da reflexão inicial.
6 - O termo “imanência” e seu emprego no texto destacado - refere-se à condição de existência de um Poder privativo a um sujeito, que existe, reside e exerce ação em si mesmo: o Déspota.
7 – Metafísica – Na tradição clássica e escolástica, a metafísica é a parte mais central da filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A metafísica se definiu assim como filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser geral, e não de suas determinações particulares; inclui ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser Supremo (JAPIASSÚ: 2006)
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Para tal, convém contar com a ajuda do trabalho de Jacob Burckhardt 8, “A
civilização do Renascimento Italiano”, o qual descreve as singularidades da organização
administrativa e política das cidades de Veneza e Florença, destacando a importância que a
estrutura governamental dessas cidades-estado davam a algumas rotinas de natureza
administrativa, em particular à compilação de números indicativos dos quantitativos
sociais.
Não sendo exagero apontá-las como “protoberço” do que se pode definir como a
moderna prática administrativa, ao contar com dados estatísticos como forma de controle
eficaz sobre a realidade econômica e social, inserindo, portanto uma prática governamental
permeada pelo raciocínio lógico e instrumental, que as coloca em condições distintas
perante as observadas como regras nos principados medievais. Assim, elas conferem
feição inovadora no que tange à organização, por assim dizer, do “Estado”. Antecipa, em
termos, práticas vindouras, caso se considere como traço da modernidade o surgimento e
desenvolvimento de aparelhos burocráticos9.
“Veneza poderia reivindicar com justiça a honra de ser o berço da estatística,
honra provavelmente partilhada com Florença, vindo em segundo lugar os
principados italianos organizados e regulares... Foi nos estados italianos que as
conseqüências de uma organização política lógica, as recordações da
administração maometana, uma grande capacidade de produção e uma poderosa
atividade comercial se reuniram para fundar uma estatística importante. A mais
perfeita consciência política, o desenvolvimento mais completo e variado,
encontram-se reunidos na história de Florença, a cidade que, neste sentido,
merece ser considerada o primeiro estado moderno do mundo. Aqui se vê um
povo inteiro a ocupar-se daquilo que, nos estados governados por príncipes,
interessa apenas as famílias. O maravilhoso espírito florentino, esse espírito ao
mesmo tempo justo, enamorado pelo belo, ávido de criar transformar
incessantemente o estatuto político e social, incessantemente o descreve e o
8 - Jacob Burckhardt - Historiador e filósofo da história e da cultura, natural da Basiléia, Suíça (1818- 1897). Produziu a monumental obra sobre o Renascimento italiano intitulada: A Civilização do Renascimento Italiano “, referência clássica para os estudos e compreensão do processo de afirmação do Renascimento”.
9 – Max Weber (Alemanha, 1864 – 1920). Quando se refere à modernidade, acentua, como traço marcante e característico deste momento histórico, o desenvolvimento de estruturas burocráticas. O Estado moderno se distinguiu do Estado medieval por superar as formas patrimoniais, substituídas por uma burocracia racional-legal.
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julga. Deste modo, Florença tornou-se a pátria das doutrinas e das teorias
políticas, das experiências e das bruscas transformações, mas ao mesmo tempo
tornou-se com Veneza o berço da estatística e, antes de todos os estados do
mundo, o berço dos estudos históricos no sentido moderno do termo”
(BURCKHARDT: pg .98. 1994)
Por serem pontos de convergência de um crescente e efervescente comércio,
acabaram por assumir o papel de pólos aglutinadores de pensadores, artistas e intelectuais
dos mais diversos matizes do pensamento, cuja convergência e unidade se manifestam pela
retomada da tradição filosófica greco–latina. O empenho de alguns intelectuais em traduzir
para o latim alguns dos clássicos do pensamento grego proporcionara a releitura de
Aristóteles e a redescoberta dos escritos platônicos (neoplatonismo), incorporando novas
reflexões de ordem filosófica, criando desta maneira o ambiente propício ao novo espírito
intelectual, irrequieto e inconformado, para com as interpretações da escolástica.
Apontar as particularidades da vida administrativa, política e social das cidades
de Veneza e Florença não esgota, por si só, as referências históricas que reconhecidamente
produziram as condições objetivas, que a par com os esforços de alguns homens da cultura,
muitos dos quais integrantes do corpo institucional da igreja, proporcionaram a
conformação e emergência dos passos iniciais na consecução do chamado movimento
Renascentista.
Obviamente, uma plêiade de fatores poderia ser destacada como contributivos à
questão. Entretanto, a percepção de que há uma relação direta entre momento histórico e o
pensamento de uma dada época, implica observar de forma mais atenta o movimento
empreendido pela mudança do pensamento, pois, por mrio deste, torna-se possível a
apreensão contida nas nem sempre claras diferenças entre dois instantes distintos que se
procura demarcar.
Alguns homens e suas doutrinas poderiam ser apontados como inaugurais no
chamado pensamento renascentista, quando observado o Quattrocento. Contudo, diante da
20
linha argumentativa escolhida para a reflexão – a construção do conceito de Indivíduo –
carece de ser citado e comentado o pensamento filosófico de Nicolau de Cusa 10.
Obviamente, em não se tratando de um trabalho eminentemente filosófico, mas,
sim, constituir-se de uma discussão política em bases filosóficas que visa essencialmente
pautar a trajetória histórica de afirmação do conceito de Indivíduo e, sobretudo, sua relação
com a mudança observada na constituição do conceito de Soberania, este não será marcado
pelo aprofundamento conceitual do pensamento de Nicolau de Cusa. Contudo, serão os
aspectos pelos quais a percepção do distanciamento do pensamento escolástico
proporciona a emergência do conceito de Indivíduo como potência do conhecimento,
visivelmente presente e constituinte da lógica discursiva de Nicolau de Cusa.
O pensamento medieval acompanha em sua essência constituinte a idéia de
totalidade como forma de interpretação do mundo (cosmos) espiritual e físico. A partir
dessa noção metodológica, Nicolau de Cusa e sua doutrina tornam-se o ponto de
convergência e base na qual os diversos processos de pensamento em curso encontraram a
correspondência que conformaria inicialmente as mudanças significativas pelas quais viria
passar o pensamento filosófico característico deste momento de transição. Como bem
observa E. Cassirer em seu texto sobre a filosofia do Renascimento:
“Todo estudo que tenha por objetivo conceber a filosofia do Renascimento como
unidade sistemática tem de necessariamente tomar como ponto de partida a
doutrina de Nicolau de Cusa....Nicolau de Cusa é o único pensador que concebe
a totalidade dos problemas fundamentais da época a partir de um só princípio
metodológico e que graças a este princípio consegue se assenhorear deles. Sua
reflexão abrange ainda, de acordo com o ideal medieval da totalidade, o conjunto
formado pelo cosmo espiritual e físico”( CASSIRER: pg.... 2001)
Antes de prosseguir comentando o pensamento de Nicolau de Cusa, convém voltar
um pouco ao pensamento eminentemente medieval, citando outras fontes as indicadas nos
10 - Nicolau Krebs ou Henneskrebs, nascido em Cues (Cusa), sul da Alemanha em 1401 e falecido em 1464. Formado em Direito e Teologia. Sua principal obra é “Docta Ignorantia”, ponto inicial de sua doutrina acerca da “coincidência dos opostos”. Idéia esta que pode ser considerada precursora da dialética hegeliana, dada a semelhança com o que Hegel mais tarde definiria como “unidade dos contrários” ao desenvolver sua lógica do conhecimento.
21
escritos anteriores acerca das bases do pensamento escolástico, em particular a
contribuição posta pelo pensamento filosófico de Aristóteles, quando este configura a sua
lógica a ela e incorpora os conceito de hierarquia e classificação (universo fechado
característico da mística medieval). Além de destacar as influências advindas da doutrina
de Dionísio, o pseudo-Areopagita11, marcantes nos escritos de Johanes Scotus Erigena
(815 – 877); Thomas de Aquino (1225 –1274) e Alberto Magno (1193 ou 1206-1280), este
último mestre do segundo, enquanto expoentes que foram do pensamento Escolástico.
O pensamento Areopagita define a relação entre Deus e o mundo dos homens
como distinta, fruto de um processo hierárquico, ou em outras palavras, dois mundos que
não se tocam, proporcionando, a partir desta idéia, a fundamentação metafísica da
hierarquia celeste e sua decorrente relação com a própria hierarquia eclesiástica.
Conformando, nos seus termos a base de toda a concepção medieval acerca da fé. Ou como
expressa E. Cassirer: “Passam a desenvolver conjuntamente as duas forças, os dois temas
espirituais básicos, sobre os quais repousa a fé e a ciência da idade média” (CASSIRER:
pg.106, 2001).
A relação entre dois mundos que não se tocam, a não ser por mediação (ordem
eclesiástica), produz um sistema explicativo que não se encerra na cosmologia da fé.
Alcança as formas concretas do mundo material como modelos de ordem moral e religiosa,
em cujas bases se assenta a hierarquia eclesiástica que não difere, mas reafirma a idéia
chave do pensamento medieval, baseados em uma visão de cosmo escalonada e
solidamente hierarquizada.
Tal formulação corresponde à apropriação pela doutrina cristã do pensamento
Platônico dos dois mundos, traduzidos pela concepção do universo escalonado; o mundo
superior e o mundo inferior ou o mundo inteligível do mundo sensível. O contato entre
estes mundos só se torna possível através de uma via de mediação (intermediário) que
proporciona a ligação do finito com o infinito, e vice versa, por conta do processo de
redenção conduzido por uma seqüência constituída por leis rigorosas (morais e religiosas).
11 - O termo Areopagita refere-se aos textos provavelmente escritos por um monge sírio em fins do século V, que se apresenta como Dionísio. Tais escritos serviram como argumento construtivo da tentativa de assimilação da filosofia e Paidéia grega pelo cristianismo medieval
22
“Entre Deus e os Homens encontra-se o mundo das inteligências puras e das
forças celestiais puras; tal mundo divide-se em três círculos que, por sua vez,
novamente se subdividem em outros três: o primeiro círculo pertence aos
serafins, os querubins e os tronos; ao segundo, as dominações , as virtudes e as
potestades; ao terceiro, o principado, os arcanjos e os anjos ( CASSIRER:
pg.126.2001)
O pensamento medieval incorpora uma outra característica a transição filosófica
que define o quattrocento: o acesso a outros escritos da tradição clássica grega,
especialmente de Platão, cuja tradução direta a partir de seus originais em grego para o
latim vulgar contribuíram para uma nova reorientação intelectual. O neoplatonismo 12 e as
tentativas de aproximação entre as concepções aristotélicas e platônicas passa a ser objeto
dos estudiosos e teólogos.
As influencias de tais concepções encontram-se presentes no pensamento inicial de
Nicolau de Cusa quando este elabora sua doutrina inaugural: Docta Ignoraria, através da
qual formula a idéia da coincidência dos opostos 13, que aparentemente não se põe em
conflito com a doutrina medieval, mas lhe impõe outros contornos interpretativos.
O que vai calibrar as diferenças entre o pensamento formulado por Nicolau de Cusa
e a tradição medieval não é a sua base constituinte, mas a maneira pela qual se definem as
relações entre o infinito (Deus) e o finito (o mundo e os homens). Se na afirmação
originária a explicação era produzida pela condição dogmática (fé), na doutrina de
Nicolau, tal condição deve ser produto do conhecimento humano.
O pensamento de Nicolau de Cusa e sua formulação através da doutrina da
“docta ignorantia” consiste em perceber que as respostas dadas até então pela filosofia e
12 - O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, o qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar a filosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando o racionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo.
13 - É a idéia que constitui o núcleo da doutrina de Nicolau de Cusa. Observa “a impossibilidade de determinação positiva de Deus, o ser absoluto, sendo possível somente designá-lo por predicados negativos e só pudesse ser concebido nesse ato de passagem, de transcendência de todas as medidas, proporções e comparações finitas” ( Cassirer)
23
pela teologia especulativa não eram satisfatórias se observadas as premissas constituintes
da idéia de conhecimento. Para o pensador do quattrocento, conhecimento implica em um
processo de comparação e medição, impossível de ser estabelecido a partir de um
pensamento que não constrói homogeneidade entre as partes que se deseja conhecer
(infinito/finito). Como descreve Ernest Cassirer quando comenta a referida doutrina.
“Se todo conhecimento e mediação empíricos se caracterizam pelo fato de uma
grandeza ser relacionada a outra, de um elemento ser relacionado a outro
através de uma determinada série de operações, de uma seqüência finita de
passos intelectuais, o infinito justamente escapa a uma tal redução. “ finit et
infinit nulla proportio”: a distância entre o finito e o infinito permanece a mesma,
independente do número de elos que queiramos interpor entre eles. Não existe
uma metodologia racional do pensamento, não existe um processo discursivo que
encadeie um elemento ao outro, ou que passe de um elemento a outro, capaz de
vencer o abismo entre os dois extremos e levar de um a outro” (CASSIRER:
pg138,2001).
É o prenunciar da ruptura com a lógica da escolástica que começa a ganhar
corpo por força da própria contradição que carrega em sua lógica. No sistema escolástico
os conceitos são produzidos por comparação, estabelecida pela idéia de que os iguais e
semelhantes se aproximam, enquanto os desiguais e dessemelhantes se distanciam.
Estabelecendo desta forma as relações de intermediação entre os elementos permite-se a
transposição de um sistema para o outro. Tal construção não é adequada à compreensão
quando se tenta estabelecer as relações entre o finito e o infinito, pois, como distintos e
dessemelhantes, não são passíveis de comparação. Haja vista a lógica aristotélica – base à
construção teórica – quando teoriza sobre os distintos sem semelhanças. Portanto, verifica-
se que a lógica aristotélica só permite o transitar entre os elementos finitos, por se
assemelharem, tornando impossível ao conhecimento humano (finito) alcançar o
entendimento do elemento infinito (Deus), caso se opte pela permanência desta lógica.
“Se é que existe a possibilidade de se pensar o absoluto, o infinito, então este
pensamento não pode e não deve usar as muletas da” lógica “tradicional,
através do qual só podemos passar de um elemento finito e limitado para outro,
24
mas não podemos transcender todo o domínio da finitude e da limitação”
(Nicolau de Cusa)
Segundo as concepções de Nicolau de Cusa: “o verdadeiro amor (percepção de) de
Deus é amor dei intellectualis”, pois o amor só é capaz de algo representar ou reconhecer
se precedido de conhecimento sobre o que se ama. O amar por sentimento, ou como nos
fala o autor, “por mero afeto ou contemplação, o amor se circunscreve à idéia do bem”
não produz unidade entre o amado e o amante por força da compreensão, mas pela
condição de vontade (fé), permanecendo, portanto a impossibilidade de acessar o conceito
(conhecimento). Desta forma somente através de mecanismos lógicos eficazes (o
intelecto), é que se alcança o conhecimento que induz a percepção da unidade entre a
criatura que ama e o criador que é amado (filiatio Dei)”.
O conceito de filiação divina, característica da mística medieval, Nicolau de
Cusa o desloca da tradição Areopagita de “divinização”, cuja lógica decorre de uma visão
hierarquizada, em que alcançar o divino, pelo homem, se faz através de movimentos de
iluminação que produz a unidade com Deus. A possibilidade de comunhão, para Nicolau,
não é produzida pela contemplação, enlevação e êxtase, mas pelo conhecer do visio
intelecto (visão intelectual).
“Neste tipo de visão, e apenas nele, é que se chega à verdadeira filiatio Dei, que
a filosofia escolástica acreditava em vão poder alcançar e, de certa forma, dela
usurpar pelas vias do conceito discursivo” (CASSIRER:Pg. 146, 2001).
O intelecto, ou melhor, o visio Intelectos é a condição primeira para o
estabelecimento de um método seguro e confiável para a especulação na busca pelo
conhecimento. Somente quando considerada a necessidade de um trabalho mental preciso -
que o pensador define através de uma linguagem adequada: a matemática: “a única
ferramenta capaz de proporcionar ao homem a visão especulativa do conhecimento” –
distinto, portanto, da mera especulação produzida pelo pensamento escolástico. Só desta
forma se torna possível aos homens a cognição entre sua condição de criatura e m relação
ao criador.
25
Para Nicolau de Cusa somente a matemática e sua lógica permitem a coincidência
dos opostos: Maximo absoluto (infinito) e mínimo absoluto (finito), através de um
principio constante, conformador da possibilidade de um efetivo conhecimento.
Conseqüência da capacidade intelectual dos homens e, portanto, para além do produzido
exclusivamente pelos sentidos.
Ao formular a partir desta linha argumentativa, Nicolau de Cusa insurge-se pela
negação da escolástica e prenuncia o pensamento para além da cosmovisão medieval.
Rompe com seu paradigma, ao apontar para a imprescindível instrumentalização,
proporcionada pelos conceitos matemáticos. Idealização esta absorvida pela leitura de
Platão diretamente do grego. Desprovida das ingerências causadas pelas interpretações
feitas pela cultura árabe, em especial às referentes a Dionísio: o areopagita, cuja essência
do pensamento havia influenciado decisivamente a cosmogonia do pensamento
escolástico.
“Em outubro de 1417, quando passa a freqüentar a Universidade de Pádua,
Nicolau de Cusa vê-se cercado pelos ideais da nova cultura universal da época.
Ele conseguira escapar da surdina e da solidão do sentimento místico, e da
estreiteza da vida dos estudiosos alemães da idade média; abria-se-lhe agora um
mundo imenso, uma vida livre. Ali ele mergulha na corrente da cultura
humanista; ali adquire o conhecimento do grego, que lhe possibilitou, mais tarde
dedicar-se a um estudo mais aprofundado de Platão e ao estudo de Arquimedes e
dos problemas fundamentais da matemática grega (CASSIRER: pg.154, 2001)”.
Ao render tributo ao intelecto, concebendo-o como capacidade imanente aos
homens, Nicolau de Cusa insinua e redimensiona a condição ontológica do Ser
distinguindo-a da visão medieval. O homem deixa de ser mera criação cuja dimensão
existencial repousa em uma vontade externa (Deus), afeiçoando-a á própria condição de
formulador do conhecimento, por conseguinte capaz de criar. O homem deixa de ser parte
indistinta de uma natureza que se faz por obra e vontade do absoluto e infinito (Deus) para
conceber-se como uma individualidade singular e particularizada: é o conformar da
condição de Indivíduo que emerge com todo seu potencial de transformação.
26
O “espírito” do Renascimento pode ser descrito a partir de vários prismas.
Certamente não é possível esgotar todas as possibilidades com as quais os pensadores do
Quattrocento se insurgiram contra o pensamento único e padronizado da escolástica, em
um ensaio que tem como escopo não a discussão da filosofia do período referenciado em
toda a sua plenitude conceitual, mas sim a identificação das particularidades de um dado
pensamento como significativo das mudanças que se consumariam no pensamento humano
e na própria condição material a partir destas novas formulações.
Outras interpretações foram produzidas e certamente merecedoras de citação, já
que, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, também contribuíram de modo
efetivo para a apreensão do conceito de Indivíduo.
A novidade especulativa produzida por Michel de Montaigne 14, por meio da
inovadora e singular maneira literária de expressar as indagações humanas acerca da
existência, servindo-se de um texto repleto de impressões pessoais; um gênero de até então
incomum ao campo literário. Sem dúvida alguma o coloca na condição de contributo para
com as transformações em curso. Les Essais de Montaigne são exemplos inaugurais da
capacidade de produzir conhecimento através da experiência subjetiva. Uma singularidade
que marca a essencialidade do novo espírito renascentista. Há algo de novo na relação
entre o conhecimento e os homens. Seus relatos cobertos de ceticismo confrontam com os
escritos de sua época, marcados pela superstição e fanatismo como fontes de verdades.
Certo é que, como conseqüência para com esse momento seminal, presente na
doutrina de Nicolau de Cusa, questões de mais contundência foram alçadas às formulações
do pensamento. Não obstante as demais contribuições significativas de outros autores o
pensamento de Nicolau de Cusa ganha destaque por se mostrar paradigmático e indicador
quando se procura observar os elementos fundamentais que asseguram a mudança de
compreensão na relação entre o homem e o cosmos, questão chave neste contexto de
mudanças.
14 - Michel Eyquem de Montaigne – Pensador francês (1533 –1592) por meio de sua literatura (Os Ensaios) enriqueceu e atualizou os conceitos relativos a “Ceticismo”. Constrói um pensamento filosófico que, partindo do Estoicismo, passando pelo ceticismo e aproximando-se do Epicurismo, desacredita a Razão como onipotência da verdade. Demonstra como fatores de ordem pessoal, social e cultural acabam por forma as idéias dos indivíduos.
27
Ao contrapor a lógica do pensamento medieval, completamente externa ao
homem, apontando para a centralidade da construção do conhecimento pela própria
condição humana, os pensadores seminais do prelúdio do Renascimento abriam caminho
para que as demais relações em torno da existência sofressem as conseqüências advindas
desta nova concepção. Inaugurando, ou pelo menos inserindo, a idéia de individuo capaz
de agir não somente pela necessidade, mas, sobretudo, como portador de condição de
liberdade sobre seu destino.
O imperativo de um determinismo atávico e imutável para a existência humana,
observável na interpretação escolástica, definido a partir da visão de um cosmos fechado,
escalonado e, sobretudo, hierarquizado, cuja dinâmica não reconhece a ação humana como
possibilidade de definir caminhos de liberdade para o seu destino, fora posto em questão e,
irremediavelmente, descartado pelo imperativo do intelecto. Descortinavam-se, asssim
possibilidades nunca dantes imaginadas como pertinentes à condição dos homens..
Podem persistir - e persistirão - intermináveis discussões acerca da datação histórica
do Renascimento. Contudo, se as buscas pela compreensão do momento Renascentistas,
enquanto “espírito” de uma época, se debruçar sobre as formulações do pensamento, não
há por que negar a Nicolau de Cusa e a sua doutrina, destacadamente quando escreveu a
Docta ignoratia, a contribuição fundadora do processo inicial de ruptura, como bem aponta
Ernest Cassirer em seus estudos do referido período
Não seria preciso para a história da filosofia circunscrever as mudanças
experimentadas na ordem do pensamento, tributando-as como exclusivas ao campo
intelectual próximo a um tênue laicismo. Pensadores da envergadura e importância de
Duns Scotus, Guilherme de Occam, Marsílio de Pádua, Francis Bacon 15 e outros tantos, 15 - Duns Scotus – Filosofo escocês (1265 – 1308) Frade franciscano lecionou, teologia nas universidades de Cambridge e Colônia. A marca de suas formulações filosóficas aponta para a divergência para com as doutrinas platônica e aristotélica, no que se refere à valorização do indivíduo, tanto do ponto de vista metafísico, ao estabelecer a inteligibilidade como uma propriedade do singular, quanto do ponto de vista ético, ao defender o livre-arbítrio. Em relação à querela dos universais, sua posição é a de que o indivíduo é inteligível em virtude do caráter formal do princípio de individuação, a "ecceidade" (aquilo que faz de um indivíduo o que ele é, como indivíduo).Guilherme de Occam – Filósofo e teólogo inglês (1285 – 1349). Estudou e lecionou na gloriosa universidade de Oxford. Destacou-se pela obstinação com que defendeu a separação entre a Igreja e o Estado e contestou a infabilidade papal, o que lhe valeu a excomunhão. Marsílio de Pádua - Medico, filosofo (Averroista) e teólogo, nascido em Pádua (1275 – 1342). Um dos principais teóricos do poder secular lançou-se numa radical crítica à ambição da Igreja Cristã em querer ser também um poder temporal. Essa sua obra, Defensor da paz, apresentou a mais bem elaborada doutrina do poder estatal,
28
com mais ou menos contundência, constituíram e formaram o expoente reflexivo
precusora da nova concepção que se desenhava, cujos fundamentos epistemológicos
contribuiriam para o alargamento e aprofundamento do distanciar progressivo da
hegemonia escolástica sobre o conhecimento.
O conceito de Poder e a decorrente relação deste com a questão da Soberania,
baseado em uma ordem Cósmica que se manifesta como totalidade, seja temporal e
espiritual, fora sacudido e abalado em profundidade, abrindo os espaços constituintes de
uma nova visão acerca da forma pela qual o Poder se estabelece e se exerce. É justamente
através desta interface entre o pensamento filosófico e a materialidade é que se imbricam
as questões de fundo que se deseja esmiuçar ao longo da reflexão proposta.
A descoberta da condição de Individuo não rompe somente com o esquematismo
dualista do mundo medieval. Transforma e desestabiliza as concepções de uma
hierarquizada ordem espiritual, que se pretende universal, como tal, referência para o
mundo temporal. Irrompe e inaugura a possibilidade de concepções distintas de uma ordem
política fundamentadas em um e conjunto filosófico, eminentemente externo à condição
humana. Desvela o novo e inusitado, ao apontar a condição de liberdade para os homens na
construção do devir.
Nicolau de Cusa, ao apontar as capacidades do intelecto e a conseqüente
possibilidade de os homens produzirem conhecimento sobre si e sobre o cosmo,
relacionando-os de maneira distinta da verificada na tradição da escolástica, permite uma
alteração muito mais significativa do que as possíveis imperfeições que posam estar
contidas em sua lógica metafísica. O homem como produtor do seu devir, em detrimento
de um conceito que o colocava em uma camisa de força determinista, abarca através da
que, segundo alguns, foi a fonte inspiradora de todas as concepções do estado secular que surgiram, bem mais tarde, nos tempos modernos. Francis Bacon - Filósofo inglês (1561 – 1626). O iniciador do empirismo, enalteceu a experiência e o método dedutivo de tal modo, que o transcendente e a razão acabam por desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciência crítica do empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e discípulos até D. Hume. Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos logicamente - o mundo transcendente e cristão; antes, continua a considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das formas, sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição filosófica que apela para a metafísica tradicional, grega e escolástica, aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu a muitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros pensadores do empirismo e do racionalismo: isto é, a metafísica tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da nova filosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e consciente de si mesma.
29
potência simbólica que enseja o preâmbulo de um pensamento filosófico definitivamente
importante para a ruptura do paradigma político no medievo. As implicações para com o
arranjo político de corte transcendente se vêem abaladas em sua pretensa certeza e verdade.
Sem ser explicitado textualmente, por detrás das formulações filosóficas de
Nicolau de Cusa, principalmente quando introduz o intelecto como a maneira mais
adequada e apropriada à produção do conhecimento, em resposta a uma cosmogonia
conformada pela metafísica da escolástica, enseja-se a tempestade transformadora que não
conhecerá mais obstáculos a sua dinâmica, que não somente os naturalmente postos pelos
limites da capacidade cognoscível dos homens e sua época. A ordem social e política do
mundo medieval encontra-se pela primeira vez cindida pela desconcertante construção da
idéia do Indivíduo, em detrimento da condição de criatura. Abrem-se os caminhos para a
“parteira da história”, dada a inevitável relação que se estabelece entre esta apreensão e a
descoberta revolucionária do plano da imanência.
30
O Plano da Imanência
“O que há de revolucionário nesta série de desenvolvimentos filosóficos que vai do Século XIII ao séc. XVI é o fato de que os poderes de criação que anteriormente tinham sido consignados exclusivamente aos céus são agora trazidos para a terra. É a descoberta da plenitude do plano da imanência” ( 1).
A partir das especulações filosóficas que engendraram a descoberta da
subjetividade, através da emergência do conceito de Indivíduo - marca das transformações
pela quais o pensamento moderno se insinuou - alterações de toda a ordem passaram a ser
uma possibilidade concreta nos horizonte existencial dos homens. Não somente no que
tange às novas formas do pensamento, mas, sobretudo, quanto aos efeitos que tais
mudanças acarretam na percepção e na própria dinâmica das relações humanas.
A percepção proporcionada pelas novas reflexões da ordem filosófica
implicou mudanças na própria condição pela qual o conceito e a própria legitimação do
Poder soberano se afirmava Se no Medievo a soberania se manifesta por um arranjo
transcendente, cuja vontade dos homens não interferia na elaboração e consumação desta
(pois era decorrência natural de uma ordem fixa e transcendente), na nova era que se
insinuava o papel de coadjuvantes daqueles tendeu a submergir diante da possibilidade de
tratá-la a partir do plano da imanência. Conseqüência direta do protagonismo recém
descoberto de os homens virem a definir suas existências sem o determinismo atávico
observado no passado recente. O devir não mais depende de forças ou circunstancias dadas
a partir de uma externalidade que os transcende: insinua-se como produto da vontade e da
liberdade.
1 - Fragmento de texto Texto extarido da obra Império, de Antonio Negri e Michel Hardt.
31
A ordem social e política, até então definida por meio dos poderes eclesiásticos,
em concomitância com formas imperiais de governo16, passa a conviver com os primeiros
indícios de insustentabilidade, diante da nova lógica do pensamento. A condição
heterônoma dos homens, implícita ao pensamento escolástico, tende a perder espaços para
a perspectiva de uma efetiva autonomia intelectual e política. É a possibilidade de
liberdade, superando no imaginário dos homens a condição anterior - dada,
exclusivamente, pela ordem da necessidade.
“Essa modernidade destrói suas relações com o passado e declara a imanência
do novo paradigma do mundo e da vida. Desenvolve conhecimento e ação como
experiência científica e define uma tendência à política democrática, colocando
humanidade e desejo no centro da história. Do artesão ao astrônomo, do
mercador ao político, na arte como na religião, o material da existência é
reformado para uma nova vida” (HARDT & NEGRI: pg.92, 2000).
As mudanças na ordem social, política e econômica observadas no transcurso de
afirmação da modernidade têm em comum a presença seminal deste elemento constituinte,
como eixo e norte às transformações. Não haveria condições objetivas para a emergência
de novas formas de composições das relações sociais modernas, tais como O Estado
moderno; o conceito de Nação; a redefinição do conceito de Soberania; o burguês e o
trabalhador como sujeitos econômicos; o conceito de cidadão; a ordem democrática, a
representação política, as utopias revolucionárias, sem a condição apreendida a partir da
percepção das subjetividades como potência da ação e da liberdade, decorrentes deste novo
ethos. As formas modernas de organização social e política, concebida ou imaginada pelo
denominado “espírito” da modernidade, deitam profundas raízes nessa nova ontológica do
ser.
16 – Os poderes temporais no mundo medieval eram definidos, como já foi observado anteriormente, por uma ordem hierárquica eclesiástica que derivava da própria apreensão da ordem cósmica. Tanto os governos eclesiásticos quanto os governos imperiais justificavam sua soberania a partir da idéia de que representavam na terra os poderes delegados pela ordem transcendente cujos desígnios derivavam da força motriz e criadora do universo: Deus. Eram a encarnação e manifestação temporal do poder espiritual
32
Antonio Negri e Micheal Hardt 17, cujos trabalhos destacam as mudanças de ordem
política decorrentes das transformações produzidas pela insinuante condição do plano da
imanência, tendem a afirmar que a mudança do paradigma constituinte da soberania
observada na passagem do mundo medieval para o mundo moderno instaura um momento
de “crise”.
É forçoso o reconhecimento e a precisão analítica contida na condição apontada
pelos autores. Ao dar conta de uma falta de correspondência entre as formas de
pensamento que se insinuavam e a maneira pela qual se constituía a ordem do poder
temporal, apontam com nitidez irretocável os contornos de uma crise. As transformações;
seja no campo das idéias (filosóficos) ou na própria vida política (constituição e
organização do poder), observada ao longo dos séculos que sucederam o momento
destacado, foram produzidos ou pelo aprofundamento ou pela negação da nova condição
de imanência.
O raciocínio esboçado por Antonio Negri e Michel Hardt na obra intitulada Império
incorpora através de sua lógica analítica esta condição de crise, ao inserir em sua trajetória
discursiva a precisa e irretocável idéia de que o processo de afirmação da modernidade se
deu em dois sentidos.
Se por um lado foi produção de ruptura, de certa forma radical, com as concepções
metafísicas que emolduravam o conhecimento e a própria dimensão do Ser. ela também
surgiu como parturiente de um movimento que procurou e, efetivamente operou no sentido
de conservar aspectos da ordem política, cuja concepção não descartou por completo o
plano da transcendência. Procurou, sim, incorporar a descoberta do plano da imanência,
negando-a em sua essência conceitual, mantendo, para tal, novas formas de poder
circunscritas a uma modelagem que não proporcionasse a autonomia e expansão de seus
preceitos. O Absolutismo como ordenamento político é exemplo e expressão acabada, na
ordem material das relações de Poder, ao corporificar e institucionalizar, através do
17 - Antonio Negri (Itália, 1933 -) Filósofo e ativista político e Michel Hardt (Born, 1960 -) Literato e filósofo político. Os dois autores do destacado texto intitulado “Império”, cuja centralidade argumentativa transita pela chamada “crise da modernidade”, constituída a partir da mudança de paradigma de soberania observada a passagem do mundo medieval para o mundo moderno.
33
soberano, a efetividade política da reação, em seu intuito de amainar o furacão
revolucionário posto pela descoberta do plano da imanência.
A reação conservadora se instaura procurando circunscrever o caráter transformador,
limitando-o aos marcos de uma nova ordem transcendente. Para as forças da reação ao
plano da imanência, reconhecido era que, o ordenamento político constituído a partir do
pensamento medieval não mais se sustentava. Contudo, tão pouco, se admitia a plenitude
da imanência como condição imperativa à nova ordem política. Como destacam Negri e
Hardt em seu texto: Império.
“Houve, de fato, uma contra-revolução no sentido próprio da palavra; uma
iniciativa cultural, filosófica, social e política que, por não poder voltar ao passado
nem destruir as novas forças, procurou dominar e expropriar a força dos
movimentos e dinâmicas emergentes” (HARDT & NEGRI, Pg. 92, 2005).
O Séc XVII marca a recomposição e a própria instauração hegemônica das
forças da reação ao plano da imanência. A contra-reforma encaminhada pela Igreja
Católica, e mesmo os movimentos protestantes, que em um momento anterior haviam sido,
por assim dizer, em parte conseqüência da própria dinâmica transformadora que procurava
se afirmar, tornaram-se partícipes dos esforços de refreamento das forças produzidas pela
revolucionária apreensão produzida nos homens, a partir da descoberta do plano da
imanência.
A luta pela afirmação do plano da imanência, e a resposta a esta, dada pelas
forças conservadoras, terá na reflexão filosófica o palco privilegiado para o confronto. A
aparente derrota das forças transformadoras com a emergência de formas de poder que
procuravam manter a perspectiva de transcendência em seu ordenamento político, longe de
anunciar a consolidação de uma nova prospectiva para as relações de poder, abrevia, mas
não resolve a “crise” posta pela descoberta do plano da imanência. Inaugura, sim, sua
permanência histórica enquanto momento de crise insolúvel e indissociável do
ordenamento político engendrado pelas forças políticas hegemônicas no percurso da
modernidade.
34
Capítulo II
Pensamento e Soberania na Transição
Nas páginas antecedentes tratou-se basicamente das mudanças
paradigmáticas verificadas na percepção do pensamento filosófico medieval, sua
conseqüência acerca da descoberta do plano da imanência e sua íntima relação com as
formas pelas quais as bases do novo paradigma de poder soberano viriam posteriormente
se estabelecer.
As especulações filosóficas foram responsáveis pela produção de obras
significativas que contribuíram enormemente para o pensamento constituinte da afirmação
da modernidade. Não foram poucos os pensadores que se debruçaram sobre os estudos da
política, visando sobremaneira novas construções legitimadoras da ordem política.
Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes, J. J. Rousseau, J. Locke e Baruch
Spinoza são autores que marcaram profundamente a modernidade política através da
riqueza de seus pensamentos. Seus enunciados de ordem filosófica enriqueceram
substancialmente os debates acerca do ordenamento político emergido das transformações
observadas no mundo político medieval.
35
Em suma, a escolha dos autores que comporão as exposições descritivas a seguir é
fruto da imperiosa necessidade, posta pelo trabalho, de identificação e analise conceitual
dos princípios epistemológicos que procuram imprimir através da ordem política uma nova
condição de soberania, quando observada a manifestação externa de um poder que se
constitui internamente. Ou, ao contrário, discorrer sobre os autores que através de suas
formulações de ordem filosóficas, insistiram no aspecto transcendente do poder soberano,
apesar de alocá-lo em consonância com uma metafísica distinta da elaboração escolástica.
Em aparente desacordo com a ordem medieval, porém insistindo em afirmá-lo como
transcendente.
36
Maquiavel - O Realismo na Política: Indivíduo e História na Ordem
Política.
A partir do terceiro quadrante do Século XV e, até o limiar do século XVIII, uma
plêiade de notáveis pensadores, muitos dos quais assumiriam no futuro destacada
significância e importância como formuladores de novos arranjos de ordem política,
iniciaram seus exercícios reflexivos, os quais, sem dúvida alguma, alcançariam a condição
de contributos definitivos, e por que não fundadores, do que contemporaneamente se
define como sendo as bases teóricas da moderna “Ciência Política”.
Nicolau Maquiavel1, homem das hostes governamentais de Florença, para quem a
fortuna 2 era tão cara conceitualmente ao seu conjunto formulativo, acabaria por lhe impor,
terrível provação ao lhe relegar ao infeliz destino de destituído de suas funções políticas.
O chanceler da república florentina, entre os anos de 1498 a 1512, ano em que os
Médici 3 retornam a Florença, pondo fim à experiência Republicana, se vê lançado ao
ostracismo e á reclusão do convívio contumaz das questões políticas, tornando-se um
exilado político: a República Florentina se desfaz pelas botas de César Borgia e o
chanceler Maquiavel perde suas funções. Entretanto, a política como arte conceitual dos
poderes ganha um dos mais primorosos documentos acerca de sua natureza prática.
1 – Niccolò Machiavelli, (Florença, 1469 – 1527) Chanceler da República de Florença, considerado o primeiro teórico da Ciência política moderna. Sua obra de destaque é “ O Príncipe”, escrito sob medida para Lourenço II, membro da família dos Médici, responsável pelo ostracismo imposto ao político, quando da queda da República. 2 – O termo fortuna deve ser interpretado a partir do sentido que Maquiavel lhe imprime; destino. O autor considera a Fortuna como um dos elementos fundamentais ao sucesso ou ao fracasso dos pretendentes ao Poder, seja quando de seus esforços para a conquista, ou acerca da própria permanência no Poder. 3 - Após um breve período sob a ordem Republicana, a cidade-estado de Florença se vê sucumbir diante dos Médici que retomam o Poder na referida cidade, através de Lourenço II, por força do enforcamento e decapitação do monge Savanarola.
37
Disposto a reabilitar-se diante dos novos senhores do poder em Florença,
Maquiavel parte para a reflexão política e, efetivamente a concebe por meio dos escritos
intitulados “O príncipe”. 4
A referência a Maquiavel e sua famosa obra devem ser consideradas, para o
conjunto do trabalho que se constrói, por seu aspecto fundador de uma nova visão de
Poder. Ao formular suas reflexões acerca do Poder; observando as condições pelas quais
os principados se erguem, sejam os de natureza hereditária, mistos ou conquistados por
força das armas, da virtude ou pelo crime, como formas constituintes da ordem política, e
principalmente, quanto aos mecanismos que devem ser adotados pelos soberanos, visando
a sua manutenção, o pensador Florentino inova, consideravelmente, quando referencia seus
estudos a aspectos distintos dos ordinariamente observados.
Maquiavel descarta de suas reflexões qualquer pretensão discursiva que seja
pautada por questões de ordem moral ou religiosa. Para Maquiavel, a estabilidade e
legitimação das ordens políticas não repousam nestes aspectos, mas devem ser procuradas
na forma pela qual ocorreram na história. Ao tomar como linha reflexiva os exemplos
dados pelo transcurso históricos, alçando-os à condição de “guia” seguro aos pretendentes
ao Poder, Maquiavel reintroduz, mesmo que transversalmente, a questão da imanência
como conceito de ordem política.
Ao eleger a História como método, o pensador se afasta por completo de duas
das matrizes formulativas do pensamento político em sua época: a escolástica e o
idealismo social, este último formulado pelas obras de Thomas Morus, Tommaso
Campanela e Erasmo de Rotterdam5, produtores de textos que preconizam através de suas
proposições o estabelecimento de ordens sociais e políticas para além da realidade material
e histórica, perfilando-os ao que se definiu como pensadores das utopias, sejam de caráter
humanista ou cristão.
4 - Titulo da obra de Nicolau Maquiavel, elaborada quando de seu exílio, após ter sido destituído de suas funções políticas por Lourenço II. É o seu tratado político. Descreve em que condições se afirma a conquista do Poder e sob que práticas se torna efetiva sua permanência..
5 – Os três autores citado - Thomas Morus (Inglês, 1478 – 1535) autor de “Utopia”; Tommaso Campanela (Itália, 1568-1639) autor da obra intitulada “A Cidade do Sol” e Erasmo de Rotterdam (Roterdam, 1466 – 1536), autor da obra “O Príncipe Cristão” - são exemplos de pensadores que buscaram no idealismo as respostas para a ordem política e social.
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Maquiavel reverencia a história e seus exemplos(*,) destinando-lhes à condição de
fonte fiadora para as ações dos conquistadores do Poder e governantes. Talvez nesta
questão seja possível alguma forma de inferência, posto que,Maquiavel colabora, mesmo
que desprovido de intencionalidade, para com o primado epistemológico das ciências
modernas (causa-efeito), ou seja, a idéia de regularidade nos fenômenos, o que torna
passível de previsibilidade qualquer situação, desde que dadas e mantidas determinadas
condições. Isso lhe assegura a condição de precoce pensador da ciência política moderna e
contemporânea.
“Quem observa com diligência os fatos do passado pode prever o futuro em
qualquer república e usar os remédios aplicados desde a antiguidade ou, na
ausência deles, imaginar novos, de acordo com a semelhança de circunstancias
entre passado e presente” (MAQUIAVEL: pg .17, 1999)
A visão de história de Maquiavel constitui-se a partir da idéia de que o processo
histórico é ciclotímico e recorrente, repetindo-se infinitamente, o que pode ser facilmente
refutável nos dias atuais, haja vista a perspectiva evolutiva e de linearidade herdada do
positivismo, ou, até mesmo, a partir dos conceitos de descontinuidade e emergência
histórica, contidos no pensamento de Michel Foucault 6, Na leitura que o filósofo francês
faz de Nietzsche 7, sua concepção aponta para o ineditismo, por conter a idéia de que o
poder político se constituiu por força da ação humana.
Não foi somente por meio do exemplo histórico que Maquiavel procurou
estabelecer as bases concretas para os fundamentos de sua teoria política. Outros fatores
importantes para a consecução do Poder foram objeto de destaque em suas reflexões. Para
Maquiavel os homens são portadores de determinados sentimentos que são parte integrante
(*) Seja em seu clássico texto “O Príncipe”, como em seu outro texto, não menos importante, “ República de Titio Livio”, fica clara a importância que o autor reporta ao exemplo histórico como fonte privilegiada, aos desejosos e detentores do Poder, cujo intuito seja a obtenção ou a manutenção de suas posições enquanto detentores do poder político. 6 – Michel Foucault – Filósofo francês (1926 – 1984) em seu livro intitulado “Microfisica do Poder”, Cap. II, Nietzche, a genealogia e a história. Dentre varias questões relacionadas a manifestação do Poder em sua dimensão microsocial, aborda como inapropriada a condição de se pensar a história como linearidade no tempo. Os eventos históricos podem emergir sem que se estabeleça, necessariamente, relação causal entre o que se apresenta, quando contraposto ao que o antecede.
7 – Friedrich Wilhelm Nietzsche, Filosofo lemão (1844 – 1900)
39
de sua própria condição ontológica. A avareza e a ambição são elementos pertencentes à
natureza humana e, por isso, móbiles da ação humana.
O imponderável também habita as especulações políticas de Maquiavel, quando
descreve a condição de Fortuna 8 como fator importante para a condução e manutenção do
Poder pelos homens. A relação que se estabelece é interessante, pois alia condições
objetivamente dadas pela realidade (história), à capacidade dos homens em aproveitar os
acasos ditados pelo destino sempre incerto e inconstante da trajetória existencial dos
homens, potencializando-os de maneira positiva para com seus interesses. Tornando o
imprevisível um aliado a mais para a conquista e/ou permanência no Poder. A esta
capacidade de assessorar-se da fortuna, contigenciando-a aos desejos de Poder o ensaísta
político denomina de Virtù 9.
Sem dúvida, ao abstrair da ação dos homens em suas relações de Poder, a
moralidade como norma, o publicista florentino inscreve em suas reflexões mais um
componente de determinação; não no sentido escolástico e evocativo da vontade divina,
mas sobretudo por meios disponíveis á própria condição humana.
São fatores importantes relacionados à questão do Poder, e como tal, contributivos
à elevação dos homens à condição de construtores do devir, compondo juntamente com a
observação atenta da experiência histórica o universo reflexivo de Maquiavel.
Ambas as condições apresentadas - a observação do fato histórico do passado,
como elemento de previsibilidade possível, em harmonia com o desenvolvimento das
qualidades dos homens em apreender, do momento objetivo e presente, o que contribui
para a conquista e manutenção do Poder – ensejam a Maquiavel se insurgir contra as bases
de uma teoria política ordinária (eminentemente de corte transcendente) que preconiza para
os homens a subalternidade aos desígnios de um poder que não lhes pertence. O que em
termos conceituais coloca o pensamento de Maquiavel frontalmente contrário às
8 – O termo Fortuna, quando empregado por Maquiavel distingue-se do entendimento usual condizente ao senso comum, que lhe atribui relação com dinheiro. Para o pensador Florentino, fortuna está relacionada a destino, favorável ou não aos homens.
9 – Virtù significa a capacidade dos homens em apreender e entender o momento, aproveitando as condições que este pode vir a proporcionar, considerado seus objetivos imediatos ou futuros. É condição imprescindível para transformar o inusitado apresentado pela Fortuna, como fator positivo a seus desejos de conquista e permanência no Poder.
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concepções escolásticas. Dando-lhe a distinção de insurgente, ao se afirmar teoricamente a
partir de um conjunto de concepções de ordem política, cuja dimensão corrobora a
condição de imanência do Poder como produto da dimensão ativa dos homens.
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Jean Bodin - A Soberania é Absoluta, Perpétua e Transcendente
Jean Bodin 10 é considerado por muitos historiadores e cientistas políticos o
teórico do Absolutismo.
Inegavelmente, o arranjo Absolutista contém, em sua forma constitutiva,
princípios que podem ser interpretados, como se fundamentados fossem, a partir das
proposições de Bodin. O que não implica necessariamente estabelecimento de relações
redutíveis quanto à possível conectividade entre a teórica do poder absolutista, quando
contraposta à teoria de soberania do referido autor.
Quando se observam os pressupostos do pensamento político de Bodin11, tomando
como premissa analítica de sua essencialidade constitutiva a questão das relações -
pertinentes ou não - entre a teoria da soberania do autor e a ordem absolutista, deve-se
atentar para o fato de que a condição indicativa de governo, pela ação do monarca
absolutista, não fique subsumida pela real dimensão de coadjuvante que o autor lhe
confere, considere-se a lógica que estabelece para a consecução de uma ordem política que
deseja, sobretudo fundada na transcendência, esta, sim, a verdadeira fonte da Soberania
para o pensador Francês.
O que está em jogo na construção teórica de Bodin não é forma de governo mas
sobretudo a maneira pela qual se afirmam os fundamentos do conceito de soberania. Bodin
é bem elucidativo quanto a isso, quando formula a distinção entre Soberano e Governo. O
10 – Jean Bodin (Angers, França 1529 – 1596) Jurista, filosofo e teórico da política. Sua obra intelectual esta inscrita em seu texto Seis Livros da República. Suas reflexões políticas e jurídicas procuravam dar conta da idéia de Soberania encarnada na figura do Rei: “ O soberano é aquele que sem ser déspota ou autoritário concentra em sua pessoa os poderes do Estado”. Tal condição emana da vontade divina. 11 – Os pressupostos dos fundamentos da Soberania Moderna concebidos por Jean Bodin são apontados pelo autor em sua clássica obra intitulada Les six livres de la République (1576).
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primeiro como fonte do poder público e o segundo como meio ao exercício material
daquele.
Ao atentar para esta precisa diferença, o estudo e a análise do pensamento de Bodin
assume uma relevância maior do que a singelidade posta pela discussão acerca das
possíveis relações siamesas entre o Absolutismo e Teoria Bodiana da soberania.
Absolutismo é forma de governo e não essência conceitual de soberania.
A experiência Absolutista, como saída à crise gerada pelo processo de descoberta
do plano da imanência, serve aos propósitos deste trabalho, por contribuir para a distinção
e entendimento dos conceitos que se encontram imputados ao pensamento de Bodin,
quando este formula sua concepção de arranjo soberano. Ao conceber a distinção
conceitual entre o que é soberano, e o que é governo, o autor facilita imensamente a
compreensão - por parte daqueles que se dedicam ao estudo de sua doutrina - da
dimensionalidade de sua visão de soberania. Desta maneira xcontribui para que se criem
as condições necessárias à análise acerca da existência ou não de relações entre estas
formulações e a emergência do plano da imanência, na constituição das ordens políticas
nos primórdios da modernidade.
Ao observar a estrutura conceitual do Poder na ordem Absolutista, percebe-se que
esta tende a concentrar as duas essencialidades (Soberano e Poder), contendo-as na figura
do governante. Na ordem absolutista, o Soberano e o governo se contêm em si mesmo, se
fundem no ente governante. Para Bodin, a condição de Soberano se define pela
inexistência de um poder acima daquele que a manifesta. Ou seja, a Soberania é a fonte do
poder público, que se realiza pelo governo - e não se funda neste –, definido, portanto,
pelo autor, como exercício material de uma soberania que lhe é externa.
Bodin afirma que à ordem política, segundo sua concepção, o Estado deva pautar
suas ações por mrio da busca pela justiça. E mais: a concepção de justiça não deriva da
maneira pela qual o detentor do poder temporal a concebe, mas sim pela observância dos
preceitos expressos pelas leis divinas e da natureza. Ora, claro está que não há definição de
autonomia de vontade na ação do governante; este deve basear suas deliberações
executivas, para com os governados, a partir da estrita conformação de seus atos aos
pressupostos de uma ordem que lhe é superior e, substancialmente, externa. Em suma, a
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essencialidade da soberania não é interna ao governante, a soberania é delegada por uma
ordem que lhe é transcendente.
Após estas considerações acerca das relações de inferência entre o pensamento de
Bodin e a ordem Absolutista, pode-se concluir que o a única maneira de afirmá-la reside na
questão de que ambas as construções lógicas se fundamentam em aspectos constitutivos de
uma ordem transcendente. Entretanto, não se mostra preciso concluir que para Bodin a
forma de governo que manifesta a efetividade material de suas abstrações prepositivas,
acerca do conceito de soberania, se realize na exclusividade de uma ordem Absolutista.
Os estudiosos e comentadores da obra de Bodin, com particular referência aos
escritos de Simone Goyard-fabre12, apontam a ambigüidade com a qual o autor convive ao
formular suas proposições teóricas. Se por um lado, pode-se considerá-lo um moderno, já
que a partir de sua teoria da Soberania – definindo-a como sendo o poder absoluto e
perpétuo da república - ergue os alicerces conceituais do Estado Moderno, por outro
prisma, ao apontar a centralidade dos preceitos condicionantes de justiça divina à
soberania, Bodin as constrói recorrendo ao velho e deslocado paradigma metafísico
escolástico, implicando a Deus e a natureza a posse das leis que orientaram os homens na
construção de formas justas de governo. Aproximando a sua concepção de poder da
mesma dimensão dada pelos metafísicos escolásticos: uma totalidade cósmica, que como
tal, se edifica pela vontade divina.
Ao comentar o trabalho sobre a Teoria Moderna do Direito Político de Simone
Goyard-Fabre13, a pesquisadora Sandra Aparecida Riscal14 descreve com precisão a
ambigüidade apontada.
“Se estes seriam pontos que enquadrariam Bodin no campo dos modernos, outros
aspectos de seu pensamento o aproximariam dos antigos tais como a crença no
fato de que a ordem da república estaria ligada a ordem cósmica presidida pela
12 – Simone Goyard-Fabre, francesa professora de Filosofia e jurista produziu e produz trabalhos filosóficos que tratam da questão do direito político moderno, em especial por meio da análise da obra de Jean Bodin.13 - O trabalho da jurista francesa, em que a Prof. Sandra Riscal se referencia é: GOYARD-FABRE, Simone. Jean Bodin et le droit de la Répulique.Paris: P.U.F, 1989. 14 - Doutora e pesquisadora dos temas relacionados ao Direito político Moderno. Sua tese de Doutoramento em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, defendida e aprovada no ano de 2001, versa sobre o Conceito de Soberania no Pensamento de Jean Bodin.
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vontade de Deus ou de que o equilíbrio, a medida e a harmonia do mundo
fundamentariam a república perfeita. Se a autora encontra um Bodin moderno,
que vê no conceito de Soberania, “a marca da inteligência e da vontade
humana” e que afirma “o potencial da energia humana, o poder político com a
vocação para organizar e administrar o reino deste mundo”, a este contrapõe
um Bodin antigo, que afirma que o homem só encontra a verdadeira obediência
da natureza e das coisas desejadas pelo Deus criador” (RISCAL: 2001)
A essa ambigüidade, marcada pela mescla do novo com o velho, talvez seja
possível compreender os motivos pelos quais estudiosos de Bodin identificam laços entre
sua teoria e as práticas do Absolutismo. Haja vista a condição dada ao monarca absolutista
de representante dos desígnios de Deus entre os homens.
Procurando redimensionar a questão posta, convém, antes de quaisquer comentários,
analisar os dois conceitos paradigmáticos para o entendimento da teoria de Jean Bodin
acerca do conceito de Soberania: absoluta e perpétua.
A qualificação da Soberania como poder absoluto, introduzida por Bodin, deve
ser apreendida como um conceito que se manifesta na essencialidade da idéia e não a partir
da dimensão do “corpo” que a exerce. O termo absoluto (adjetivo,) se reporta a idéia de
que não deve ser obstado por nenhuma forma de restrição imposta externamente; está
apartado de qualquer limite, que não os definidos pelas leis que o constitui (divinas e
naturais). Não deve, portanto, ser desconsiderado, que, para o pensador francês, a
Soberania que se corporifica no Estado, seja República ou Principado, não é da essência
destes, mas, deriva de uma ordem que o transcende.
J. Bodin deixa transparecer esta condição em uma significativa passagem de seu
livro intitulado Les Six Livres de La République, destacadas a seguir:
“A soberania dada a um príncipe sob comissão ou condição não constitui
propriamente soberania, nem poder absoluto, salvo se as condições impostas na
instituição do príncipe derivem das leis divina ou natural” (BODIN: pg
123,1986).
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Talvez, a questão da soberania (essencialidade) se confundir com o soberano
(exercício), quando verificadas as tentativas de inferências entre a teoria de Bodin e a
manifestação histórica do Absolutismo, decorra da condição posta ao soberano, no caso os
monarcas absolutistas, em não observar obediência ou limitação de ordem política ou
legislativa, no exercício do governo. O soberano não conta com limitações às suas ações,
através da observância das leis que institui aos governados; da mesma forma, não possui
isenção total, pois não tem a prerrogativa, investida pelo exercício da função, de instituir
leis que não estejam em conformidade com as leis da essencialidade da soberania, que
derivam não de sua autonomia no exercício da soberania, mas, condicionadas pela ordem
divina e natural.
“Se dizemos que tem poder absoluto quem não está sujeito a lei, não se
encontrara no mundo príncipe soberano, posto que todos os príncipes da terra
estão sujeitos às leis de Deus e da natureza e ás leis humanas comuns a todos os
povos. E, ao contrário, pode ocorrer que um dos súditos esteja dispensado e
isento da autoridade das leis, ordenanças e costumes de sua República e, nem
por isto, será príncipe soberano” (BODIN: pg.157, 1986)
O conceito de poder absoluto, portanto, deve ser apreendido, a partir da teoria de
Bodin, como ausência de condicionalidade a outrem; esta é a condição do Soberano. Caso
sua ação e vontade sejam prescindidas ou obstadas por algo que esteja acima, não haverá
condição de soberania. A condição de absoluto não deve ser entendida como um atributo
do governante, mas sim um conceito pertencente ao corpo institucional que a manifesta.
Não há imanência em tal construção conceitual.
Quanto à adjetivação de poder perpétuo, dada ao conceito de soberania formulado
por Bodin, a lógica da essencialidade se mantém, da mesma forma que foi apreendida para
classificá-lo como absoluto. O termo Perpétuo está relacionado à essencialidade da
condição de soberania e não ao período de permanência do soberano no exercício de suas
atribuições soberanas. Se assim o fosse, a soberania não seria perpétua. Quando se refere à
condição de perpétuo, Bodin alude ao poder público, por meio do monarca, e não a fonte
de seu exercício; o governante, este é temporário. O monarca morre ou é substituído, e nem
por isto a soberania se esvai junto a sua vida. O poder público não se constitui a partir do
governante, e nem tampouco se limita à temporalidade deste, é a essência da manifestação
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da soberania e por isto transcende a temporalidade de quem circunstancialmente o
corporifica: Le roi est mort, vive le roi14
O caráter de perpétuo, intrínseco ao conceito de soberania de Jean Bodin, assume
desta forma a totalidade da idéia de que perpétuo é o Estado (República), como
manifestação e locus da ordem soberana.
O absoluto e o perpétuo são essencialidades constitutivas da soberania. A existência
do atributo de absoluto sem o acompanhamento da condição de ser perpétuo não assegura
o preceito de soberania. Para ser efetivamente soberano, o Poder tem de ser,
concomitantemente, absoluto e perpétuo. Ao formular seu conceito de soberania, Bodin
trata a questão conceitualmente, e não em sua manifestação temporal. Ao observar que as
adjetivações empregadas ao conceito de soberania são distintas de quem a exerce na
temporalidade, condiciona a soberania a algo para além da investidura de sua ação. A
soberania se manifesta por meio do poder público e não por quem o exerce.
Tal construção conceitual pode ser observada no texto relativo ao trabalho de Sandra
Riscal15 em sua tese de doutorado sobre o conceito de Soberania no pensamento de Jean
Bodin, na qual descreve:
“A soberania é poder público e, enquanto tal, é comando perpétuo. Isto significa
que não há poder soberano quando este é limitado no tempo. Um poder que é
exercido por um tempo limitado não é soberano, por que está submetido a uma
vontade exterior.... Neste sentido, todo aquele que exerce o poder por comissão
ou mandato não detém o poder soberano, porque o caráter de temporalidade
implica na delegação deste poder por outrem. Mesmo que o povo confie o poder
a alguém pelo tempo de sua vida, este poder também não será soberano, porque
será exercido a título precário, uma vez que a própria origem deste poder é
exterior. Neste caso aquele que atribui o poder por tempo determinado e que tem
14 – Esta expressão é parte do comentário produzido pela Dr. Sandra Riscal em sua tese de doutoramento que diz: .... Conta o folclore político francês que quando da morte de Henrique IV, em França, Marie de Médicis fala ao chanceler o ocorrido, este retruca com a seguinte expressão: “Madame, les rois ne meurent pas em France”. (GOYARD-FABRE, Simone. Op. cit. P.93).15 - Tese de Doutorado de Sandra Aparecida Riscal, apresentada na Faculdade de Educação - Unicamp – 2001 - O conceito de Soberania em Jean Bodin: Um Estudo do Desenvolvimento das Idéias de Adm. Pública Gov. e Estado no Séc. XVI.
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seu poder restituído ao final do prazo estabelecido é, de fato, o soberano”
(RISCAL: 2001).
A partir desta concepção Bodin manifesta a totalidade da idéia que implica o
termo Perpétuo, ao mesmo tempo em que desqualifica qualquer tentativa de relacionar seu
conceito de soberania com a forma absolutista de poder. Torna-se clara a condição
atemporal que implica o conceito de soberania: só é soberano o que se manifesta para além
de um prazo definido; não há soberania datada. A temporalidade definida no exercício da
soberania, de corte absolutista, induz a condição de ausência de pertencimento,
experimentada entre o portador temporário do poder e a soberania, quando posta
conceitualmente.
O termo Absolutismo (substantivo) não é portador da qualidade e da essencialidade
intrínseca, que define e conforma o conceito de soberania enquanto absoluto (adjetivo). Na
descrição posta a partir das formulações de Bodin, o Absolutismo é uma forma histórica
pela qual a soberania, esta sim absoluta, se manifesta, mas não é a soberania em si. Haja
vista que o conceito de soberania de Bodin se fundamenta a partir de uma concepção
baseada em leis imutáveis, decorrência da dinâmica cósmica que envolve as relações entre
Deus, natureza e a ação dos homens (história).
Para entender o conceito de Soberania no pensamento de Bodin, deve–se estar
atento ao caráter metafísico - entendido como filosofia primeira, ponto de partida do
sistema como um todo; ou seja, é o pressuposto que define a formulação que se deseja
estabelecer - que este aplica a lógica de seu pensamento. Bodin constrói o conceito de
soberania dando-lhe caráter transcendente, haja vista que sua condição é externa a quem a
detém historicamente. Sua conformidade é produto de um arranjo abstrato que vai buscar
seus pressupostos na divindade e na própria ordem da natureza que dela deriva. Não há
imanência nesta construção lógica, já que a condição de imanência implica internalidade
(Próprio do Ser). O Estado ou a República de Bodin é ente que manifesta uma condição de
soberania que lhe é externo.
Em suma, no pensamento de Bodin o arranjo conceitual da soberania mantém as
mesmas características constitutivas da ordem medieval. Não pode ser considerado como
uma mudança paradigmática no que diz respeito aos termos definidores de uma ordem
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soberana. Na lógica conceitual do autor a soberania se afirma a partir de uma condição de
transcendência. Bodin não contempla o plano da imanência como momento definidor de
uma ordem política soberana.
Ao findar estes breves comentários sobre o conceito de soberania de Jean Bodin, fica
destacado que o autor não ultrapassa a condição anterior dada pelo conceito de soberania
em sua essência transcendente. O movimento iniciado pelas especulações acerca da
descoberta do Individuo, com toda a carga de imanência que tal condição implica, não se
manifesta na teoria política de autor. Esta reafirma, sim, a totalidade das formas
conceituais que buscam na transcendência as justificativas à própria afirmação da
soberania.
Contudo, deve ser considerado como efetividade e contribuição, quando posto o
pensamento de Bodin para o mundo moderno, o fato de que suas formulações definem a
centralidade necessária, e indissociável, para o exercício da soberania, através da idéia de
que o poder se expressa como absoluto e perpétuo; adjetivos imprescindíveis à própria
conformação histórica do conceito de Estado, em sua afirmação política no curso da
modernidade.
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Thomas Hobbes - Jusnaturalismo e Transcendência Anticlerical.
A reflexão, político-filosófica de Hobbes é produto intelectual de sua época16.
Seu discurso, traduz com clara pregação anticlerical que se fundamenta por força da
premissa lógica constituinte de seu pensamento, quando destaca como argumento a
condição e existência de um direito natural aos homens (jusnaturalismo). Condição esta
que permeará a totalidade do conjunto reflexivo que produz. Hobbes parte da idéia de
serem os homens portadores de uma condição natural e legítima: a existência de um direito
cuja origem se contrapõe diretamente à idéia do direito divino.
A leitura do texto Hobbessiano e sua contundência discursiva de caráter
eminentemente anticlerical, deve ser apreendida como conseqüência da estrutura lógica do
pensamento de ser pensamento. Ao inserir a idéia de existência de um e um direito natural
(jusnaturalismo), o autor se põe em choque direto com a idéia de justiça amparado nos
preceitos clericais. As bases constitutivas do ordenamento legal derivam de uma condição
divina e, portanto não há natureza humana na apreensão da justiça. Existe tão, somente a
reafirmação de uma determinação insuperável em aliar as ações humanas aos preceitos de
uma revelação divina. Só é justo o que comunga com as regras definidas pela onisciência
divina, obviamente. Mediadas e interpretadas pela ordem eclesiástica.
16 - A referencia ao contexto histórico inglês do Séc XVII, relaciona-se à guerra civil inglesa desencadeada a partir da revolução (1642). Momento em que o Poder monárquico havia sido solapado por força da Revolução Liberal-Burguesa, capitaneada por Oliver Cromwell (1599-1658), encerrada com a restauração pela casa dos Stuart; Príncipe de Gales, Rei Carlos II, cujo pai Carlos I fora decapitado, e de quem Hobbes havia sido preceptor, assume a Coroa, prometendo compartilhar poderes com o parlamento e tolerância religiosa. Com sua morte (1685) assume seu irmão Jaime III, reaproximando seu reinado do catolicismo. Enfraquecido politicamente, perde o trono para o genro Guilherme de Orange, proclamado Guilherme III, que articula no parlamento a aliança que lhe dará sustentação, através do compromisso entre os proprietários rurais e a emergente burguesia inglesa. Este momento é conhecido como a “Revolução Gloriosa”. A primeira revolução burguesa moderna singularizada na história por ter permitido a passagem do Absolutismo para a monarquia parlamentarista, forma de governo que se mantém na atualidade política inglesa.
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A Inglaterra, em meados do Séc. XVII estava vivendo um período impactado por
grandes turbulências políticas; o parlamento e o monarca disputavam a supremacia
decisória. O desfecho desta situação foi o mergulho em uma guerra civil (1642/1648) que
culminou com um contexto revolucionário (1649), cujo “clímax” se traduziu na
decapitação do Rei Carlos I, com a implantação da República (Commonwealth) e a
ascensão de Oliver Cromwell, ao Poder. (Revolução Puritana)
A condição de pensador do Jusnaturalismo17, imputada a Hobbes, está
conformada pelo conceito de que a fonte do poder soberano não é decorrência direta do
poder divino na terra, manifesto pela figura do monarca. Justificativa política, até então
usada para a legitimação do poder real (Absolutismo). Para Hobbes, e os Jusnaturalista, o
direito não deve ser procurado, nem tampouco, legitimado pela vontade de Deus, mas sim
na própria natureza, em que pese ser esta criação divina, sobretudo através da possibilidade
de apreendê-lo pela Razão.
Ao reconhecer esta relação com a natureza, e os conseqüentes direitos que dela
advêm, Hobbes considera os homens iguais, mas dotados de uma igualdade que deriva da
condição de permanentes inimigos entre si. A prerrogativa em se autopreservar implica aos
homens a necessidade de conduzir ações voluntárias e inclinações que os levam ao
continuado conflito; a luta permanente de uns contra os outros. Ou, como o próprio autor
define, “o Homem é o lobo do homem”
Para Hobbes a motivação e a conseqüente ação dos homens em procurar assegurar
seu direito à vida, é ilimitada, pois decorre e se legitima através de um direito natural aos
homens (direito à vida). Concebe, até mesmo, a idéia de que é prerrogativa dos homens, se
necessário for, a eliminação do outrem, para conquistá-lo e posteriormente assegurá-lo.
“O direito de natureza, a que autores geralmente chamam de jus naturale, é a
liberdade que cada homem possui de usar seu poder, de maneira que quiser, para a
preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente
17 – O Jusnaturalismo é uma doutrina segunda a qual existe e pode ser conhecido um direito natural, ou seja um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado ( Direito positivo). Este direito natural tem validade em si, e é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. (BOBBIO: 2006)
51
fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indicar como meio
adequado a esse fim” (HOBBES: pg 78, 1988).
Esta constatação inaugural à própria condição humana torna-se, portanto,
responsável por conseqüências que não somente afirmam o homem como portador de
direitos naturais, mas que, para assegurá-las e mantê-las, os coloca no que o autor define
como “estado de natureza”. Ou seja, a luta permanente entre todos. O que acaba por
produzir a paradoxal situação, de abster aos homens o que lhes é mais caro: o “direito
natural” à vida e à autopreservação. O conflito, dado como algo intrínseco à condição
humana na busca da manutenção do direito, implica tornar a violência como regra,
estabelecendo como decorrência a “Guerra de todos contra todos”.
O pensamento de Hobbes se singulariza, pois contraria a corriqueira versão,
comum à época, derivada da tradição filosófica de Aristóteles - que aponta como natural à
condição humana do gregarismo. Ao paradigma aristotélico Hobbes contraporá a idéia de
que o estado que se afirma nas relações humanas não observa esta condição. O convívio
social não é condição natural dos homens – anterior ao estado social - ao contrário, o autor
define os homens como portadores de uma disposição natural para a disputa entre si, na
busca de seus desejos de uma vida de honras e bem-estar. Nesta perspectiva o homem é
portador de desejos egoístas. Tal condição é exposta pelo próprio autor quando afirma:
“O estado da natureza é o modo de ser que caracteriza o homem antes de seu
ingresso no estado social. No estado de natureza a” utilidade é a medida do
direito”, isso significa que, levado por suas paixões, o homem precisa conquistar
o bem, ou seja, as condições de vida, aquilo que resulta em prazer. O altruísmo
não seria a regra, portanto, natural. Natural seria o egoísmo, inclinação geral do
gênero humano, constituído por um “perpétuo e irrequieto desejo de poder e
mais poder que só termina com a morte” (HOBBES: XVI, 1988).
Para Hobbes, ao perceberem que a condição de portadores de direitos naturais
e a sua afirmação continuada como prerrogativa de todos traz como conseqüência a
imprevisibilidade, enquanto apreensão mútua, como uma constante. Os homens constatam
a emergência do que mais atormenta: a perspectiva de morte violenta desfechada por
outrem.
52
Hobbes é um racionalista. Pra eles a busca pelo entendimento deve ser por
meio da Razão e, sendo o homem portador de Razão, ao deparar-se com a ameaça que
acabará por privá-los de seu direito primeiro e fundamental, que é o direito à vida,
procurará mecanismos que lhes assegure a volta da previsibilidade, traduzida como a
possibilidade de paz, que pode ser alcançada pela instituição de mecanismos políticos que
limitem a ação legitima de procurar por seus próprios meios assegurar-se contra a ação dos
outros.
“É preciso procurar a paz quando se tem a esperança de obtê-la, pois a vida de
cada um estaria sempre ameaçada se cada qual tudo fizesse para exercer seu
poder sobre todas as coisas. Não sendo possível a paz, é preciso procurar em
toda parte os recursos para a guerra sendo lícitos emprega-los em toda parte. De
qualquer modo, a paz é a dimensão mais compatível com o instinto de
conservação” (HOBBES: XV. 1988).
O reconhecimento da inevitabilidade da constante condição de permanência em
estado de guerra de todos contra todos, aliada à própria racionalização da questão,
decorrente do reconhecimento da impossibilidade de assim permanecer, pois a paz é o
desejo racional estabelecido pelo instinto de conservação, leva os homens a estabelecer o
que Hobbes define como “pacto”, que, no entendimento do autor, os leva a percorrerem a
transição entre o “estado de natureza”, acomodando-se em uma nova dimensão existencial;
o “estado moral”. Condição primeira para o amalgamar da sociedade civil.
O “estado moral” é a condição na qual as relações entre os homens se dão
observando a idéia de que “não se deve fazer aos outros o que não gostaria que fizessem a
si”. Essa condição está para além do que Hobbes classifica como condição dada
naturalmente, diferindo, portanto, do estado de natureza. É produto da capacidade racional
dos homens diante da situação em que se encontram engendrados.
A conseqüência desta percepção implica um movimento que faz com que todos, de
forma generalizada, abram mão de seu natural, primeiro e legitimo direito, o de
conservação da vida, a partir da condição possível e com meios próprios, alienando-se
desta prerrogativa.
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Nesta nova condição há, necessariamente, de se definir de que forma se dará a
prerrogativa do uso da força, não mais individualizada a partir do reconhecimento do
direito natural, já que todos, mutuamente, abrem mão de tê-lo, pelos meios que acharem
mais adequado e conveniente aos seus desejos de preservar a vida e, fundamentalmente,
deixar de lado a imprevisibilidade atormentadora e insinuante da “guerra de todos contra
todos”; de ser surpreendido pela morte violenta.
Na formulação da ordem política hobbesiana a transferência ou alienação deste
direito se faz a partir do reconhecimento da necessidade de que o centro deste poder,
consentido através do movimento de alienação dos poderes individuais, esteja externo aos
indivíduos, e que concentre a prerrogativa do uso da violência, na defesa a todos, usando-a
para que se estabeleça o respeito ao pacto constituído e, concomitantemente, assegure a
paz e segurança de todos (evitar o mais intenso medo dos homens: a morte violenta).
É a consecução de um poder transcendente que seja percebido como maior do que
o de qualquer homem isoladamente. Reune, teoricamente, a força de todos, a partir da
alienação do poder individual de cada um. Evidentemente, essa condição não é encontrada
entre os homens, já que todos são iguais por natureza. Portanto, a proposição hobbesiana é
que se crie e o institua. Este organismo artificial será denominado por Hobbes, a exemplo
do monstro bíblico, de leviatã.
O leviatã, e seu poder podem estar consubstanciados em uma pessoa ou em um
grupo de pessoas, mas, sobretudo como instante de representação de uma vontade
pactuada por todos. A característica indissociável deste e de sua ação política efetiva,
assim como sua condição de sobrevida, é o caráter indivisível e absoluto de sua soberania.
Portanto para Hobbes a ordem política se constitui a partir da necessidade dos
homens em romper com o paradoxo de serem portadores de um direito natural, cujo
exercício, em sua plenitude, acaba por conflitar-se com a própria condição que o implica, o
direito a autopreservação. Ao se darem conta desta realidade, e através da capacidade de
racionalizar seus problemas, o homem compactua, de forma mútua, a alienação deste
direito, em favor de um organismo artificial instituído a partir da vontade da maioria, pois
o imperativo da Razão o demonstra. Somente nesta condição terá assegurado efetivamente
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o pleno exercício de seu direito natural. É a afirmação do estado civil em detrimento ao
originalmente concebido estado de natureza hobbessiano.
No que tange à discussão em curso, vale o registro no sentido de assegurar o
lugar da doutrina hobbesiana como definidora da condição de soberania, através de um
processo de alienação, da possibilidade de imanência desta, perdida e neutralizada, quando
transportada para a condição de um momento transcendente. Que se afirma pela instituição
de um momento jurídico-político externo aos homens.
O leviatã pode ser encarado como a primitiva manifestação do que posteriormente
se conceituaria como o Estado - Hobbes não usa o termo, até porque para o autor a forma
mais próxima de sua concepção de poder soberano se realiza através do absolutismo
monárquico - não somente pela condição, que lhe é dada pelo autor, no que diz respeito a
sua indivisibilidade, ou por sua condição de ser absoluto, mas sobretudo pelo fato de ser o
depositário, através do pacto de todos, do direito legitimo do uso da força. A mesma
proximidade conceitual também pode ser observada quando se verifica a exclusividade do
uso da violência, característica e singularidade presente ao conceito que efetiva
juridicamente o Estado moderno.
A estrutura lógica do arranjo de soberania ensejado pelo pensamento de Hobbes
possui um enfático apelo ao plano da transcendência como principio a constituição da
ordem política. O Leviatã hobbesiano se articula a partir de um processo contratualista, de
alienação progressiva e absoluta dos direitos naturais dos indivíduos, cujo movimento visa,
sobretudo, assegurar, paradoxalmente e por força da consciência (Razão), a manutenção do
direito natural. Desta forma, Hobbes não pode ser percebido como um pensador que
subscreve o ideário transformador engendrado pela dinâmica da reflexão filosófica que da
conta da descoberta do plano da imanência como fonte de poder e soberania. Hobbes está
inscrito historicamente no panteon dos pensadores da ordem. Pensadores dos ensaios da
modernidade, cuja dinâmica reflexiva aponta muito mais para uma ordem conservadora,
moldada a partir da idéia de que o poder se funda por um aspecto eminentemente
transcendente: alienar as possibilidades de os homens construirem sua própria ordem
política, a partir de sua imanente condição de soberania, não contribui e nem tampouco
aproxima efetivamente seu ideário de qualquer ruptura com as condições dadas pela
55
experiencia medieval do conceito de soberania. Ao contrário reafirma o principio
epistemológico em bases distintas, mas que contudo o conservam.
56
John Locke - Liberdade, Igualdade e Propriedade.
Os acontecimentos políticos experimentados pela sociedade inglesa no
transcurso do Séc. XVII, os quais inspirarão Hobbes municiando-o com os elementos
objetivos para a formulação de seu pensamento acerca do conceito e da prática da
soberania. Da mesma maneira, serão determinantes para a emergência intelectual e a
própria consecução de um conjunto formulativo cuja essencialidade constitutiva opunha-se
categoricamente ao arranjo hobbesiano, enquanto alternativa à resolução dos impasses
experimentados pelo conflito entre: o conservadorismos dos que defendiam a soberania do
monarca absolutista (tories)18 e aqueles que viam no fortalecimento do parlamento a
necessária medida a superação do estado de beligerância civil (whigs)19, pela qual passava
o mundo político inglês.
John Locke (1632-1704), médico por formação e político na prática, foi aquele que
em oposição ao pensamento absolutista - quanto à imprescindibilidade de um poder
absoluto e indiscutivelmente soberano - formula através de suas reflexões os argumentos
que endossam os anseios dos segmentos transformadores da sociedade inglesa, que viam
no fortalecimento do parlamento, o desejável equilíbrio e limitação do poder monárquico.
Transpondo os princípios da soberania, outrora considerados como prerrogativas divinas
dadas ao Rei, em favor de sua consumação política através do parlamento.
A partir de suas obras (Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaio Sobre o
entendimento humano), Locke irá refutar o poder soberano do monarca absolutista. São
textos que se encontram em oposição direta à perspectiva hobbesiana de soberania
18 - Tories – refere-se aos grupos políticos conservadores. Que julgavam indiscutível a soberania do Rei. 19 - Whigs – em oposição aos Tories, preconizavam mudanças políticas nas relações de soberania. Insistiam na necessidade de se apartar a totalidade do Poder do Rei, instituindo a divisão do poder deste com o parlamento.
57
absoluta, e principalmente como resposta as formulações feitas por Robert Filmer, na obra
intitulada Patriarca, ou o Poder natural dos Reis.
Filmer evoca a nada original idéia de que o poder emana de Deus, e que este o
delegou a Adão, tornando-o “dono” do mundo. Adão por sua vez o passa ao seu
primogênito, cuja linhagem hereditária forja os Reis do mundo, dando-lhes os poderes
divinos por força da relação direta destes com Deus por intermédio de Adão. Ou seja, para
Filmer o poder dos Reis é uma condição, e decorrência natural de seu parentesco dinástico
com Adão: o primeiro dono do mundo, condição esta dada por Deus.
Locke, através de argumentos simples, refuta essa idéia ao apontar a impossibilidade
de atestar a primogenia decorrente da linhagem de Adão, além do que, no mundo existem
vários Reis, portanto não há um, somente, que incorpore a totalidade absoluta e singular da
condição herdada de Adão. Tais questões acabam por implicar ao abandono, por parte do
autor, da idéia monárquica e absolutista, a qual vê na ordem política a expressão da ordem
familiar: o Rei é a própria afirmação da autoridade paterna, transposta para o espaço
público.
A ordem política e o poder que dela advém, deve ser buscada, e instituída, não por
arranjos que derivem de uma revelação ou consecução da vontade divina na ordem
existencial do mundo, mas pela expressão dos iguais; que dele devem partilhar enquanto
corpo, primeiro social, e como decorrência político. Superando, através deste movimento o
estado de natureza que não condiz com a segurança desejável àqueles que por seu trabalho
adquiriram a condição de proprietários. Em outras palavras, a ordem política de John
Locke se institui por força da necessidade em se estabelecer mecanismos de proteção aos
interesses dos indivíduos sobre os seus bens e posses.
Para John Locke o Estado (ordem política e soberana) se realiza por força de um
consenso entre os homens. Consenso esse que decorre da necessidade destes em superar o
momento natural e ingressar na ordem civil e política. Como forma de assegurar a
manutenção do direito natural aos homens, que para o autor, se traduz em: vida, liberdade
e, principalmente, a propriedade.
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Locke é o primeiro autor dentre os modernos que evoca a ordem política como
contingência necessária para a manutenção da propriedade conquistada por força da ação
humana sobre as coisas, criadas por Deus e disponíveis, segundo o autor igualmente aos
homens.
Em semelhança aápremissa hobbesiana, Locke concebe uma condição natural de
igualdade entre os homens. Igualdade essa que os leva ao direito de dispor de todas as
coisas do mundo já que este foi criado por Deus e, diante da igualdade humana, deve ser
usufruto de todos. O que vai definir o direito sobre as coisas é a relação de propriedade que
se estabelece a partir do emprego do trabalho sobre as coisas alterando por força daquele a
disponibilidade geral. É proprietário quem transforma o que Deus criou a partir de sua
intervenção (Trabalho)20. Ou seja: o trabalho sobre as coisas dá aos homens o direito de
requerer propriedade sobre aquelas.
“O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos e qualquer coisa que ele então
retire do estado com que a natureza o proveu e deixou, mistura-a ele com seu
trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em propriedade. Sendo por
ele retirado do estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com
esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens” (LOCKE,
II , pg. 27. 1972)
Ao reconhecer a Razão como o império definidor das ações humanas; mesmo
quando em estado de natureza, e que através daquela os homens prescindem de uma
autoridade que lhe é externa, como forma de prover o ordenamento social e político que
lhes assegure seus naturais direitos à liberdade, à igualdade e, sobretudo, para Locke, à
propriedade. Locke posiciona o poder político e a própria instituição da ordem política
emanando da vontade dos homens em acordo comum e consensual (contrato), através da
formação de um corpo social e político instituidor das normas e regras pelas quais os
20 - O conceito de Trabalho, como gerador de riqueza e da própria condição de legitimação da posse, observado e destacado por J. Locke, se antecipa e, conseqüentemente, o aproxima conceitualmente, da perspectiva de Karl Marx, quando este evoca o trabalho como essência do homem; e da própria condição de propriedade que dele decorre. Em seu texto,Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Marx destaca a importância e a própria essencialidade dos homens, tributando-a ao trabalho. Apontando a categoria “trabalho” como a engendradora de toda a reflexão que posteriormente fará sobre os processos de alienação, elemento importante para a apreensão do processo de apropriação da “mais-valia” conjugada, como tal, à dinâmica de acumulação; essencialidade constitutiva da ordem econômica sobre a hegemonia do capital, quando contraposto ao trabalho..
59
homens construirão sua convivência e o respeito mútuo aos direitos naturais e inalienáveis
(lei natural). Ao fazê-lo, os homens superam o estado de natureza e ingressam na ordem
social e política. Como destaca o próprio autor:
“ A superação do estado de natureza implica que cada homem tenha renunciado
ao seu poder de executar por si próprio a lei natural para proteger os seus
direitos e entregue o mesmo à sociedade civil, à comunidade. Apenas existira
sociedade política.... ali onde cada qual de seus membros renunciou a esse poder
natural, colocando-o nas mãos do corpo político. Que passa a ser o
árbitro...decide todas as diferenças que porventura ocorram entre quaisquer
membros dessa sociedade.....Aqueles que estão unidos em um corpo único e têm
uma lei estabelecida comum e uma judicatura à qual apelar, com autoridade
para decidir sobre as controvérsias entre eles e punir os infratores” (LOCKE,
16...: pg 87, 1972)
Contudo, por reconhecer que nem todos os homens estariam dispostos a uma
existência e convivência racionalmente exercida, podendo atinar-se ao desrespeito aos
direitos dos demais – pois a lei natural ensina aos homens que, sendo todos iguais e
independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade e posses
- urge a necessidade de se estabelecer uma instância arbitral que decida diante dos conflitos
ocasionados por essa condição de irracionalidade. Não podem os homens usar de sua
condição natural e de direito, em procurar com seus próprios meios coibir a desarmonia
proporcionada por aqueles, os quais comportam-se de forma irracional.
O estado natural, concebido por Locke não é condizente com a perspectiva com
a qual Hobbes o define: o estado da guerra de todos contra todos. Ou seja, o
comportamento permanentemente belicoso decorrente da inobservância da condição
racional, como norma de ação. Para Locke os homens em estado de natureza são pacíficos,
pois através da razão – já presente na condição de estarem os homens em estado de
natureza, o que o diferencia da apreensão deste por Hobbes - concebem a lei natural que
lhe serve de imperativo para suas ações.
Por comungar desses princípios implicativos à Razão, e como decorrência desta, a
própria capacidade de os homens instituiram o controle social e político, é que Locke
60
concebe o poder soberano emanando – mas não imanente, como veremos adiante - do
conjunto dos homens, e não por força de uma condição natural, dada pela autoridade divina
ao monarca. O parlamento torna-se o centro do poder soberano dos homens constituído
como tal pela dinâmica da representação política.
O conjunto de leis que assegure os direitos à vida, a liberdade e a propriedade torna-
se a base à ação do parlamento. Que deve tê-las como produto da representação que lhe foi
outorgada pelo conjunto social e político que este representa (os proprietários).
Para Locke existem dois pólos de poder que consumam o poder da soberania: o
executivo e o legislativo. Sendo que o primeiro se subordina ao segundo, como decorrência
de encontrar-se neste o arcabouço legislativo pelo qual se consuma a soberania dos
indivíduos, conduzida e instrumentalizada através da representação política.
A tese de Locke procura ressaltar que se encontra nos indivíduos a soberania.
Contudo, deve ser destacado que nem todos são indivíduos. Considera-se, como tal,
somente os proprietários. Locke condiciona a, digamos assim, cidadania política àqueles
que possuem bens. Como bem destaca Tomás Várnagy21, quando ressalta os dois eixos
principais do pensamento político de Locke . Seja na questão da subordinação do Rei
(executivo) ao Parlamento (legislativo) ou na condição de individuo, enquanto membro
pleno da sociedade política.
“A Revolução Gloriosa afiançou a supremacia do parlamento sobre o Rei, e
também a das classes proprietárias sobre os despossuídos, excluídos da
participação política já que pertenciam a uma espécie de homens “ irracionais”
e portanto inferiores”( VÁRNAGY, Pg 62, 2003)
Em suma, verifica-se que as formulações constitutivas da ordem política, e da
própria condição de soberania, no pensamento de Locke, não ficam essencialmente
distintas das concepções as quais se contemplam em outros teóricos contemporâneos a ele.
Se em Hobbes o processo de alienação da soberania e dos indivíduos se faz pela instituição 21 - Tomás Várnagy – Professor de Filosofia da Universidade de Buenos Aires e Professor Adjunto de Teoria Política e Social. Autor do texto “O pensamento político de John Locke e o Surgimento do Liberalismo”. (A Filosofia Política Moderna. Clacso. 2003)
61
de um corpo único ou coletivo de poder que recebe dos membros da sociedade civil a
incumbência de assegurar-lhes os seus direitos naturais, decorrente de um movimento de
alienação da soberania, reconhecidamente originária nos indivíduos. Locke da mesma
forma admite este movimento. Diferencia-se de Hobbes, quando define como ponto de
convergência a delegação individual da soberania ao Parlamento, sobretudo não lhe dando
o poder absoluto e indivisível, o qual Hobbes atribui ao Leviatã. Há um partilhar de
Soberania entre aquele, o Monarca, presenciado sob os olhares do corpo civil (indivíduos)
que a qualquer momento pode destituir o poder parlamentar. É o que o Autor reconhece
como “direito à resistência”.
O direito à resistência é um ponto interessante na concepção de Locke. Em linhas
gerais é a prerrogativa que os indivíduos têm em não se subordinar de forma permanente e
absoluta ao Poder instituído por aqueles. A não observância dos preceitos estabelecidos
pelo contrato dos indivíduos implica perda da legitimidade por parte do poder instituído
perante a sociedade civil, tornando legitima a deposição do Poder, em troca de outra ordem
definida pelo conjunto dos indivíduos.
Em suma o poder soberano, para Locke, reside na sociedade civil, mas, não com
isso dando-lhe a permanência imanente. O Parlamento torna-se a instância transcendente,
na qual o exercício do poder soberano se consuma como decorrência do processo de
alienação do direito natural (ou lei natural) em prol da sua manutenção para além das
individualidades que o reivindicam, tornando-o uma representação política que não afirma
o caráter imanente do poder, tal qual se verificou na descoberta do indivíduo. Trata-se de
um outro arranjo que transmuta a transcendência de sua base divino-monárquica, mas que
anula por completo a possibilidade de afirmação da revolucionária condição de imanência.
J. J. Rousseau - Vontade Geral e Contrato Social.
62
Dissertar e comentar a partir do pensamento político de Jean Jacques
Rousseau22 requer, antes de quaisquer considerações que se possa emitir, situá-lo na
companhia dos pensadores modernos que procuraram refletir sobre a ordem social e
política considerando como fundamento analítico os aspectos morais que as
circunscrevem.
Diferentemente de Maquiavel, o pensador genebrino constrói seu conceito de
soberania considerando como imprescindível a necessidade de instituir bases de
convivência entre os homens que promovam uma ordem social justa e livre. Resgatando a
condição natural dos seres humanos, perdida ao longo do processo de constituição do
mundo social, por força de contingências que acabaram por instaurar e promover a
desigualdade como norma.
Rousseau concebe a idéia de que a passagem do estado de natureza para o estado
social ou civil se consuma através de aspectos constituídos pelo acaso ao longo da
experiência humana em tornar-se um grupo social, impondo-lhes à necessidade de
organizar-se por força de um pacto. Que vise à instituição de mecanismos legais,
estipuladas e compactuadas coletivamente, proporcionando a efetiva superação dos
22 - Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) – Pensador, cuja família tem origem francesa, nascido em Genebra (Suíça), sua trajetória intelectual é marcada pela incompreensão dos seus contemporâneos; Teve em Voltaire (França 1694 -1778) seu maior polemista. Critico da idéia iluminista acerca das possibilidades da razão - motivo das criticas sofridas por Voltaire – lança-se ao mundo intelectual quando em 1750 redige o texto intitulado: “Discurso sobre a Ciência e as Artes”. Entretanto, sua maior contribuição pára o pensamento moderno se dá a partir da publicação – por obra de sua participação em um concurso literário empreendido pela Academia de Djon, cujo evento, versava sobre a produção de um ensaio, no qual o tema proposto era: “Se o progresso das ciências e das artes contribui para corromper ou apurar os costumes” - em 1755, de sua obra seminal, cuja temática tornar-se-á constante ao longo de sua vida intelectual, intitulado: “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Contudo sua mais significante obra é sem dúvida o “Contrato Social” tornado público em 1762. Obra esta responsável pelos dissabores experimentados pelo autor ao longo de sua vida. Inclusive, constantemente assediado pelas autoridades, que não viam com agrado suas formulações republicanas, em um certo sentido revestidas de um caráter democrático, em uma época política sob a égide do absolutismo, obrigando-o a abandonar a França e refugiar-se, por um breve período, ao abrigo de seu amigo Frederico II, da Prússia, para em seguidas ser acolhido por seu amigo, e também filósofo, inglês David Hume (1711 – 1776). Sua magistral obra Contrato Social foi inspiração aos revolucionários franceses (1789).
63
obstáculos surgidos a partir da nova dinâmica social. Condição desejada pelo conjunto dos
homens, já que, para o autor, os homens são “naturalmente bons”, deixando de sê-lo por
força de contingências produzidas socialmente.
A passagem do estado da natureza – que para Rousseau, diferentemente de
Hobbes, não implica condição de luta permanente entre os homens, e sim momento de
harmonia e liberdade - para o estado social ocorre em concomitância com a própria
degenerescência da condição originária: Bom selvagem. Os homens abandonam o convívio
harmônico e livre, baseado em necessidades ditadas exclusivamente pela sobrevivência,
tornando-se beligerantes e desiguais, ao se voltarem pela busca desenfreada e deletéria de
se tornar proprietário. Imputando à propriedade, em especial ao que diz respeito à
propriedade territorial, condição primeira para a manutenção da vida, outrora assegurada
por obra e graça da prodigiosa e benevolente natureza que o envolvia.
Ao se tornarem proprietários, os homens passaram a concentrar suas ações e
esforços na busca pela sobrevivência, exclusivamente considerando-as sob o aspecto
individual, tornando a desigualdade entre os homens uma razão exponencialmente
proporcional à necessidade em preservar suas posses, em detrimento do bem-estar geral.
Ou seja, para Rousseau a opção privada, posta pela propriedade, determinou a
preeminência dos interesses individuais e privados sobre os de ordem coletiva e comum a
todos.
“O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um
terreno, lembrou-se de dizer isto é meu! E encontrou pessoas suficientemente
simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras e assassinatos, misérias e
horrores não pouparia ao gênero humano aquele que arrancando a estacas ou
enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: Defendei-vos de ouvir este
impostor, estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a
terra não pertence a ninguém” ( ROUSSEAU: Livro II, Pg.87, 1999)
“Assim os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de
suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente segundo
eles, ao de propriedade, segui-se à rompida igualdade a pior desordem; assim a
usurpação dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos.
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Abafando a piedade natural, e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens
avaros, ambiciosos e maus. Ergue-se entre o direito do mais forte e do primeiro
ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates e assassinatos”
(ROUSSEAU: Livro II, Pg 98, 1999).
A alternativa social para o impasse estabelecido, implica para Rousseau a
inadiável necessidade de se estabelecer mecanismo civis e legislativos, compactuados pelo
conjunto social, que assegurem a preeminência da vontade coletiva em detrimento dos
interesses imediatos e individuais de cada um. É sob esta premissa que irá se fundar o
conceito de Soberania observado no pensamento político de Rousseau, ancorando-o a
imprescindível condição de constituir a partir do que denomina como: vontade geral.
A essencialidade constitutiva do pensamento de Rousseau, a idéia de um homem
“selvagem” e, portanto, bom se perde como decorrência da insistência destes em tratar as
questões relativas à vida e à própria sobrevivência, baseando-se exclusivamente na
capacidade intelectual ou racional dos homens. Os homens ao privilegiar a Razão como
fonte e mecanismo de solução para os seus problemas e argüindo-a como definidora das
ações necessárias, acabaram por obliterar outros mecanismos importantes para a
constituição da ordem social.
A reflexão em curso no pensamento de Rousseau evoca, quando preconizam o
restabelecimento de uma ordem social, livre, justa e soberana, os préstimos indispensáveis
produzidos pelo sentimento humano, como caudatário das melhores intenções dos homens
e contributo imprescindível à constituição de um padrão de convívio social. Um resgate da
própria ontologia humana, haja vista que em sua condição pré-social a racionalidade estava
submetida ao sentimento.
Os homens agiam em comum acordo com seus “nobres sentimentos de bom
selvagem”, dimensionando suas ações a partir desta apreensão, secundando os mecanismos
produzidos exclusivamente por uma dimensão racional, que invariavelmente conduz e
limita seu movimento aos interesses individuais, desconsiderando ou minimizando a
nobreza das ações produzidas por força do sentimento. Perdia -se, irreversivelmente, a
dimensão do coletivo, e instaurava-se o império do interesse privado. Decorre, portanto,
desta apreensão o delineamento evocado inicialmente, cuja idéia consubstancia os aspectos
65
morais evocados por Rousseau como inalienáveis à constituição de uma ordem social e
política.
Sem dúvida, a construção e a própria lógica do pensamento de Rousseau acerca da
problemática advinda da constituição de uma ordem social entre os homens, e as
proposições que visem sua correção, possuem uma natureza romântica. Contudo, não pode
ser confundida ou reduzida a uma crítica superficial e inexeqüível a partir dos termos que
contempla. Circunscrevem-se suas reflexões, e as conclusões que dela decorrem, como
promotoras de um movimento idealista que prega o abandono das formas sociais de
convivência moderna e vislumbra como saída ao problema à volta pura e líquida para um
passado humano nas raias de uma permanente condição natural e selvagem. Como destaca
Marilena Chauí em seus comentários sobre a obra de Rousseau:
“O homem para Rousseau não se regenera pela destruição da sociedade e com o
retorno à vida no meio das florestas. Embora privado, no estado social, de muitas
vantagens da natureza, ele adquiriu outras: capacidade de desenvolver-se mais
rapidamente, ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos
sentimentos e elevação total da alma. Se os abusos do estado social civilizado
não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem
cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade. O propósito
visado por Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores
humanos”
(ROUSSEAU: Livro I, introdução, Pg. 13, 1999)
O que se deve reter da crítica de Rousseau ao pacto que inaugura a ordem
social é a forma pela qual este se realizoum, ao alienar sua condição de homem livre em
nome de uma ordem social baseada em um direito ilegítimo - pois pela força e não pelas
leis - de propriedade, não condizente com as necessidades estritamente relacionadas a
preservação da vida, mas servindo-lhes como instrumento ao desenvolvimento de uma
apreensão da existência baseada nos desejos de ordem individual. Os homens constituíram
uma ordem social que não somente produz de forma continuada a desigualdades entre os
pares, mas, sobretudo, torna os homens escravos: um dos outros e de si mesmos.
66
A necessidade de um novo pacto social 23 deve ser acompanhada e instituída
como premissa para a idéia de que os interesses e direitos da comunidade devem tornar-se
o eixo estrutural da ordem social e política. Contudo, não admite com isto o autor a idéia
de que os elementos da individualidade devam ser alijados em sua totalidade, dando lugar
a uma vida estritamente coletiva, abstraída de qualquer manifestação de subjetividade.
Concebe, sim, a idéia de que, ao se produzir uma ordem social que derive da vontade
geral, as questões relativas à individualidade, ou à garantia individual de cada um dos seus
membros naturalmente se contempla no todo, pois não se realiza a partir da outrora ação
solitária, mas, assim como, produto de arranjos coletivos, instituídos por indivíduos que se
defendem e procuraram garantir a conservação da sua vida, a partir da força conjunta
proporcionada pela adesão ao pacto.
“Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse
estado.......ora como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente
unir e orientar as já existentes , não tem ele outro meio de conservar-se senão
formando, por agregação, um conjunto de forças que posa sobrepujar a
resistência ....” ( ROUSSEAU: Livro II, pg 104, 1999)
Fato é que, para Rousseau, o que esta em jogo é a possibilidade de se agrupar
indivíduos em torno de um “abstrato interesse geral”. Não há, portanto, nenhuma
conotação ao estabelecimento de uma percepção coletiva que derive de interesses
apreendidos a partir de uma idéia de pertencimento coletivo, construído por interesses
comuns, dados através da percepção de um posicionamento claro e distinto, diante da
diversidade de interesses constitutivos das relações sociais.
O arranjo social que se deseja pactuado se inscreve a partir de uma perspectiva
que não se distancia, pelo menos em proporções consideráveis, do ideário iluminista e
liberal, haja vista a indistinção, por força de interesses socialmente apreendidos, que
23 - Rousseau preconiza a necessidade de se instituir um novo pacto entre os homens, a partir da percepção destes de que a ação individual de cada um isoladamente não assegura a conservação da vida, dada a complexificação das relações entre os homens, produto das desigualdades instituídas a partir da condição de propriedade individual. E da necessária ação para regrar a manutenção destas não considerando, somente os interesses individuais, mas a partir do conjunto dos indivíduos.
67
decorre da observância pelo autor da condição de indivíduo. Obviamente, encontra-se no
Séc XVIII e não no XIX24.
Rousseau constrói sua argumentação argüindo a necessidade em se estabelecer um
novo pacto, que venha resgatar à liberdade experimentada pelos homens em sua condição
de natureza. Adequada, contudo a novidade histórica de os homens viverem em um
ambiente social.
O pacto proposto pelo autor, por meio do “Contrato Social”, tem seu cerne
lógico constituído a partir de um movimento que implica alienação das vontades
individuais em nome da conformação de uma vontade geral. Portanto, a idéia de pacto nos
fundamentos do pensamento de Rousseau presume um movimento pelo qual todos,
individualmente, alienam suas vontades, buscando assegurar através do agrupamento de
forças a garantia de que, na margem, os interesses, outrora concebidos individualmente
acabem por se manifestar sem que a condição de tratá-los individualmente ponha em risco
o arranjo social que se deseja instituído (estado civil).
A imprescindibilidade da alienação da vontade individual na busca da
construção de uma vontade geral configura uma ordem social, cuja existência e
manutenção está condicionada a observância de um princípio pétreo, sem o qual o contrato
pactuado não se sustenta. Como observa Rousseau em seu texto, reproduzido a seguir:
“As clausulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato,
que a menor modificação tornaria vãs e de nenhum efeito, de modo que, embora
talvez jamais enunciadas de maneira forma, são as mesmas em todos os lugares,
até quando violando o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e
24 - O destaque dado à observação decorre da percepção de que o percurso histórico de afirmação, à condição de os homens se perceberem como capazes de desvencilhar-se dos determinismos postos pela ordem do pensamento medieval, se dá de forma paulatina. A emergência do conceito de indivíduo, produto da baixa modernidade, ou como preferem alguns no alvorecer do pensamento moderno, não implica em percebe-se para alem do em si. A condição de se perceber como parte de um todo, ou pertencimento coletivo, só se dará a partir das formulações acerca do conceito de povo, que como tal está intimamente ligado ao próprio conceito de nação (Rev. Francesa). O grande movimento de percepção do ser enquanto integrante de uma coletividade só se conforma a partir das reflexões filosóficas de Karl Marx (1818 – 1883), cuja essência do pensamento abarca a possibilidade histórica de os indivíduos transporem, historicamente, sua condição individual, através de sua apreensão enquanto parte integrante de uma coletividade que guarda entre si vínculos para alem da condição, eminentemente humana, conformando-os a partir da idéia de classe. O que o referido autor vai definir como: o movimento de consciência, do em si, para si.
68
retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual
renunciara àquela” (ROUSSEAU: Livro I, Pg . 70, 1999)
O resultado da adesão ao pacto proporciona aos homens acomodação a um novo
patamar histórico, constituindo o que o autor define como “ um corpo moral e coletivo”. A
pessoa individualizada cede lugar a pessoa coletiva “seu eu comum”. Ou seja, a passagem
de uma “ordem natural” – superada pelas contingências das relações humanas - a uma
ordem social e política (estado civil), definida pelo autor como “república ou corpo
político, o qual é chamado por seus membros de Estado, quando passivo, Soberano
quanto ativo, e potencia quando comparado a seus membros” (ROUSSEAU: Livro 1, Pg
71, 1999).
Ao definir que o Estado se conforma por força e desejo pactuado pela vontade geral,
Rousseau o elege como ponto de exercício da soberania. O que se aliena é o desejo
individual, em nome de uma vontade derivada do arranjo associativo instituído pelo pacto.
Portanto, no pensamento de Rousseau o exercício do poder, pelo estado é à base da
soberania, elemento operacional da ordem soberana que deriva da vontade coletiva.
“Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral,
jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo,
só pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitir-se; não porém
à vontade”( ROUSSEAU: Livro 1, Pg. 86, 1999)
Quanto a esta condição o autor está em oposição aos pensadores da divisibilidade
ou compartilhamento da soberania, possível por meio da instituição dos “três poderes”,
que devem se relacionar buscando o equilíbrio recíproco. Montesquieu e em parte Locke
são pensadores modernos que comungam dos fundamentos teóricos da divisibilidade do
poder. Rousseau os confronta teoricamente, afirmando que há um equivoco interpretativo
nestes autores. A imprecisão com a qual observam duas dinâmicas distintas, que,
entretanto, lhes parece a mesma: a essencialidade da soberania e a praticidade operacional
que decorre do seu exercício.
Ao instituir a distinção dos poderes de legislar, executar e julgar, os referidos
teóricos – considerados como “pais” fundadores do que se atribui contemporaneamente
69
como fundamentos do pensamento liberal - incorrem em um erro conceitual, quando
estabelecem, como se a mesma coisa fosse; soberania e exercício da soberania,
confundindo-a com as práticas gerenciais do exercício da soberania. Como bem
exemplifica o autor ao mencionar: “Esse erro provém de não disporem de noção exata
sobre a autoridade soberana e de terem tomado por partes dessa autoridade o que não
passa de emanações suas”.(ROUSSEAU: Livro 1, pg .88, 1999).
Para Rousseau a efetividade do exercício da soberania deve ser realizada pelo
conjunto das leis que vão consumar a soberania, servindo-lhes de ordenamento para a ação
dos homens na busca pelo bem comum. Dá-nos aquela, cujo caráter inicial circunscreve
somente um movimento associativo, o caráter de vontade. O corpo político que se institui
pelo pacto, em correspondência com a expressão da vontade geral, deve ser seguido pela
efetividade de leis, que o conserve em sua condição de soberania. Tais leis são produzidas
a partir da consideração do todo a que se dirige e, como tal, deve contemplar a
essencialidade das vontades agrupadas. Não podem, portanto, constituir-se de forma
discricionária ou direcionada a um dado interesse particular. Haja vista, se desta maneira
se portarem, não podem ser definidam como leis, pois visam ao atendimento de uma parte,
fora como tal, do corpo político que detém a soberania. Portanto, ilegítimas do ponto de
vista da motivação inicial que as institui: a vontade geral.
“Mas quando o povo estatui algo para todo o povo, só considera a si mesmo e,
caso se estabeleça então uma ralação sob um outro ponto de vista, será entre
todo o objeto sob um certo ponto de vista e todo o objeto, sem nenhuma divisão
do todo. Então, a matéria sobre a qual se estatui é geral como a vontade que a
estatuiu. A esse ato dou o nome de Lei” (ROUSSEAU: Livro I, Pg’s 106 e
107,1999).
O arranjo contratual, de alienação das vontades individualmente concebidas, em
nome da vontade geral, pensado por Rousseau, contém em sua fundamentação constitutiva
elementos que podem conduzir, inadvertidamente, à idéia de que, ao posicionar a vontade
geral como ponto epicentro da soberania, se esteja realizando e afirmando o plano da
imanência como elemento constituinte do poder e da própria soberania.
70
Cuidados interpretativos devem ser observados antes que a postulação de soberania
como produto do plano da imanência seja associado ao legado teórico produzido pelo
autor. O movimento de alienação, imprescindível à realização do pacto civil, implica a
abstenção dos desejos de ordem subjetiva. O que aparentemente conforma condição ao
estabelecimento de um ordenamento político pertencente ao plano de imanência, a partir
da coletividade que o constitui.
Contudo, não deve ser relegado ou mitigado o fato de que, a ação afirmativa da
soberania, concebida pelo autor, a partir da vontade geral, implica na instituição de um
corpo político (Estado), que se funda a partir da associação dos indivíduos – nada mais do
que uma metáfora para “Povo” – que se autodespoja, através de um movimento voluntário,
de sua efetividade soberana (imanência), em nome de um aparelho político que o
transcende.
O aparelho de poder que se estabelece a partir deste movimento de despojamento
das vontades e desejos é semelhante conceitualmente ao que se consolidará
posteriormente, quando consumada a forma hegemônica de afirmação moderna do aparato
transcendente de poder e soberania. Rousseau troca a legitimidade da soberania medieval
baseada na revelação e nos desígnios divinos pela imprecisão abstrata do conceito de
vontade geral (condicionada a um aparato legal).Todavia, não supera como proposição a
questão posta pelo conflito estabelecido a partir da mudança de paradigma evocada pela
descoberta do plano da imanência.
O corolário filosófico das formas transcendentes de Poder insiste em apresentar-se
como alternativa à conformação da ordem política que se deseja instituída: o pensamento
produzido por Rousseau, quando apresenta seu conceito de soberania, não condiz, nem
tampouco se aproxima das perspectivas afirmativas da “onda imanente” que surge na
tentativa de transformação observada no acidentado transcurso político do medievo para a
modernidade.
O autor mitiga a condição de imanência do poder, sem que esta se afirme em sua
totalidade. As bases do pensamento do filósofo genebrino se assentam paradigmaticamente
ao que posteriormente se definiria como a nova ordem transcendente, produzida a partir da
idéia de que o Estado contempla, em sua posição apartada dos interesses dos indivíduos
71
separadamente, os desejos gerais de uma sociedade. Talvez fosse precocidade estampada
pelo prenunciar do “espírito absoluto” dos acordes idealistas do mestre alemão.
Quanto a este prisma há de se considerar a proximidade, guardada as diferenças que
contém, quando confrontados os pensamentos de Jean Bodin e Thomas Hobbes aos de
Jean Jaques Rousseau. Todos os três, partindo de fundamentações distintas, concluem da
mesma forma: a idéia acerca da necessidade de constituir um locus da soberania situando-
o em um momento transcendente.
Se para Bodin a soberania está apartada dos indivíduos pela da instituição de um
aparelho político que comungue a totalidade, a indivisibilidade e o absoluto do poder,
alienando-a completamente dos súditos, e efetivado por leis - que não considera em sua
elaboração a manifestação daqueles que dela se tornarão fim, seja por direitos ou deveres –
decorrentes de uma constrição metafísica definida pelo divino e pela ordem da natureza,
que se comungam. O mesmo pode ser atribuído quando apreendidas as concepções
hobbesianas, cujo caráter absoluto e indivisível do poder se firma pelo movimento de
alienação dos direitos naturais dos indivíduos, em nome de uma autoridade unitária ou
plural (leviatã), que exerça e assegure por meio da plenitude da soberania, e pelo uso
incondicional da força, caso necessário, a prerrogativa de garantir a vida, despojando, da
mesma maneira que a preconizada por Bodin, a condição de constituir-se pelo plano da
imanência.
A marca definidora do momento de transição apontada desde os primeiros escritos
deste trabalho sugere que, independente do matiz do pensamento que a formula, a quase
totalidade das concepções produzidas pelo hiato filosófico produzido pela descoberta do
plano da imanência se traduza em tentativas de se produzir arranjos políticos que mitigam
ou contemporizam por completo a possibilidade de instituir-se uma ordem política que
contemple em sua efetividade as características implícitas ao conceito de imanência como
potência da ordem política.
Baruch de Spinoza : Imanência, Potência e liberdade.
72
A dinâmica histórica, que felizmente não permite a uniformidade perpétua das
formas do pensamento, manifestou-se com toda a sua intensidade no transcurso do Século
XVII, Brindando o pensamento imanente com uma das mais ricas e originais formulações
filosóficas produzidas pela modernidade.
Filho de marranos 25, - rebento em uma família de origem judaica, migrante
forçada de um quadrante do solo europeu em que as tradições do arcaísmo metafísico
escolástico persistiam em se manifestar com desenvoltura e contundência. Experimentou
ao longo de sua breve vida constantes conflitos com os poderes religiosos e temporais, na
terra para qual seus pais imigraram: a jovem República dos Países Baixos (Sete Províncias
do Norte), que se tornara independente ao se superar o jugo colonial espanhol (1648). O
acolhe como cidadão, mas nunca reconheceu sua singular riqueza filosófica distinta em
estabelecer um contraponto epistemológico capaz de insurgir-se contra o mainstream do
pensamento político. Na contramão da maré absolutista que varria e selava incontestes os
descaminhos do conservadorismo no velho continente.
Com uma construção reflexiva que o expunha permanentemente à desaprovação
das autoridades religiosas, viu-se excomungado aos vinte quatro anos de idade (1656) pela
comunidade judaica de Amsterdam. Situação que se repetiria (1674), agora por força do
clero calvinista26, que pede sua condenação moral e religiosa por todos os cristãos,
decorrência da publicação de sua obra intitulada: “Tratado Teológico-politico”(1670).
25 – O termo marrano define a condição dos judeus da Península Ibérica, em particular na Espanha do séc XVII, forçados a converter-se ao cristianismo. Muitos dos chamados marranos foram levados a imigrar por conta da eterna desconfiança doSsanto Oficio em crer na sinceridade de suas conversões. 26 – O termo Calvinismo deriva da pessoa de João Calvino (França, 1509-1564), influente propagador e reformista protestante. Após radicar-se em Genebra funda um partido político, cujas bases doutrinárias se fundem ao discurso reformador religioso. Distingue-se, em alguns aspectos do líder reformista protestante, fundador da igreja Reformada, Martin Lutero (Alemanha, 1438-1546), por ampliar suas concepções religiosas para o espaço da ordem política e social. Os principais elementos constitutivos de sua doutrina religiosa apontam para a retomada da Bíblia como referência única para a fé cristã e a crença na predestinação, este último se constituindo em elemento chave para ser apontado por Max Weber (Alemanha, 1864-1920) como influente e determinante ao estabelecimento do que o autor define como a conjugação entre a ascese protestante e o espírito da nova ordem econômica, na conformação do ethos capitalista.
73
Tal trajetória existencial e intelectual refere-se ao filósofo Baruch de Spinoza
(1632- 1677), cujo pensamento e inferências reflexivas no campo do poder e da soberania,
como alternativa viva ao establishment absolutista, marcaram e, porque não dizer, ainda
marcam, profundamente o pensamento transformador, que insistira, e insiste em retomar e
superar a denominada “crise da modernidade”, marcada pela constante tentativa de se
conciliar novos ordenamentos de poder e soberania. Estes, se por um lado, tendem ao
abandono de suas justificativas a partir do paradigma medieval, afeiçoam-se à nova
perspectiva construída pela modernidade, igualmente articulada a uma lógica
transcendente.
A importância de Spinoza para a filosofia política e para o próprio conceito de
soberania que se procura construir a partir do enfraquecimento teórico observado no
paradigma medieval concerne ao fato de que suas formulações procuram situar o campo
político como sendo, necessariamente, objeto da racionalidade. O trato da política sob a
perspectiva teológica parece ao autor como inapropriado. Sua obra intelectual decorre das
reflexões que produz a partir da sua experiência com a religiosidade natural de sua
comunidade de origem (judaica); e de contato com cristãos independente, agrupados em
torno do circulo de seus amigos “colegiantes” 27, inicialmente na cidade de Rinjsburg e
posteriormente em Haia – decorrência dos excomungo sofridos – e pela marcada, pelo
menos em seus trabalhos filosóficos iniciais, influência dos postulados cartesianos do
cogito.
“Em 1656, ao ser expulso de sua comunidade, Spinoza entra em contato com os
cristãos... o segundo grupo, que viria a ser seu circulo de amigos, é formado
pelos “cristãos sem igreja”, alguns deles são protestantes racionalistas
...místicos milenaristas e racionalistas seguidores da nova filosofia de Descartes,
com laços que os ligavam aos racionalistas ingleses da Royal Society ( CHAUÍ:
Pg. 23, 2001)
O filósofo, cuidadoso no trato com as lentes ópticas, acaba por,
metaforicamente, usá-las de forma distinta que as originalmente concebidas para esses
27 – Spinoza forma com outros livres-pensadores um circulo intelectual bastante diverso e atuante em termos de produção discursiva e reflexiva, denominado de “colégio”, daí o termo colegiantes. Grupo que desempenhou significativo papel para a conformação intelectual do autor, dadas as múltiplas matizes intelectuais que o constituem.
74
objetos de leitura e observação, permitindo-se uma rigorosa e singular reflexão filosófica,
ao introduzir por de suas formulações discussões acerca da natureza de Deus e dos
Homens, que rompem, nos termos propostos, com a paradigmática tradição judaico-cristã.
Daí sua constante incompatibilidade intelectual com os poderes religiosos e temporais.
Contudo, outros elementos de ordem objetiva devem ser considerados como
contributivos à reflexão Spinozista. As condições políticas, econômicas e sociais que se
desenvolviam na jovem República dos Paises Baixos - dificilmente perceptíveis em outro
ponto da Europa, - as quais, apontavam para a retomada do combalido, mas presente,
discurso transformador engendrado pelos ventos renovadores aportados pelo “espírito
renascentista”, que pareciam desbotar-se de suas cores mais acentuadamente novas, diante
de um ordenamento político Absolutista. Tão fortemente presente no cenário político
europeu que pareciam perpetuar rumos pouco atraentes para os desejos da plena realização
política do plano da imanência.
Após libertar-se do jugo colonial espanhol (1579) graças a “União de Utrecht”,
surgem no cenário das comunidades políticas do norte da Europa as Sete Províncias do
Norte, dentre as quais desde o inicio se destacava pela efervescência cultural e econômica
a província de Holanda. Inicialmente, sob o ordenamento político monárquico, pelo
domínio da Casa de Orange –Nassau, se vê compelida a adotar outras formas de governo.
Em curto espaço de tempo já possuía um ordenamento político expressivamente distinto
dos demais pares europeus. A monarquia inicial era substituída por um regime que se pode
identificar como civil e de corte republicano, sob a chefia de um “clero calvinista” aliado
aos emergentes burgueses comerciais e financistas.
“Essa anomalia se fundamenta no mundo em que Spinoza vive e desenvolve.
Anomalia spinozista, anomalia holandesa”.Quem pode lembrar-se”, interroga
Huizinga, “de outro povo que, mal tendo nascido, já tivesse chegado ao ápice de
seu desenvolvimento civil?Talvez nosso espanto fosse menor se a civilização
holandesa do séc XVII fosse uma perfeita e puríssima expressão da forma de
civilização então dominante na Europa” (NEGRI: pg..56. 1989)
O quadro político acabou por contribuir ao proporcionar as condições objetivas ao
desenvolvimento e expansão dos novos sujeitos econômicos. A jovem burguesia comercial
75
elege o novo território europeu como um lugar propício ao estabelecimento de suas ações
mercantis sem os entraves e as amarras experimentadas em outras circunstâncias políticas,
cuja natureza Absolutista, lhes impunha limitação a plenitude de seus negócios: Não havia
um Monarca-sócio. A criação e expansão de empreendimentos ultramarinos - Cia das
Índias Ocidentais (1602) e Cia das Índias Orientais (1621), são exemplos emblemáticos
destas condições favoráveis ao desenvolvimento econômico da burguesia comercial, em
seu processo de acumulação econômica.
Isso é assinalado por Antonio Negri, ao descrever em seu clássico ensaio “Anomalia
Selvagem”, ao referir-se não somente à singularidade do pensamento de Spinoza, mas,
sobremaneira, destacando as condições semelhantemente anômalas da realidade política
holandesa: “Aqui, a ordem capitalista do lucro e a aventura selvagem da acumulação nos
mares, a imaginação construtiva produzida pelo comercio, e o espanto que conduz a
filosofia tudo isso se conjuga”.
A própria ordem política constituída a partir de um clero calvinista, revestida por
um ethos distinto do experimentado pelo clero católico, acaba por impulsionar, ao não
antepor obstáculos ao desenvolvimento comercial, as relações econômicas, que se
tornariam, por meio do desenvolvimento histórico que as engendra, as bases do mundo
econômico moderno. “ Revolução burguesa, mas justamente sob forma anômala: ela não
é protegida pelo poder absoluta, mas se desdobra numa forma absoluta, em um vasto
projeto de dominação e reprodução selvagem” (NEGRI: Pg 79. 1989)
A conjugação dos fatores políticos e econômicos aliados a um pleno exercício
das manifestações culturais – a genialidade da pintura de Rembrandt é sua expressão mais
significativa, muito próxima do experimentado nas repúblicas italianas - mas sobre novas
condições materiais de existência que as impulsionam em uma dinâmica exponencial
grandiosa e afirmativa dos primórdios do movimento Renascentista, produziram o que os
historiadores de corte tradicionalista nas abordagens definem como o “Séc. de Ouro do
Holandês”.
Para Spinoza o irracionalismo observado nas manifestações de caráter religioso é
produto da superstição dos homens ao lidar com seus temores, inseguranças e incertezas
decorrentes da própria existência. Conseqüentemente, esta situação os impele a conceber, a
76
partir do irracionalismo da imaginação, a existência de um ser superior que a tudo governa
e que em função disso os coloca na condição de permanentes negociadores, quanto a suas
vidas, procurando aferir através da barganha com este ser a segurança e os benefícios que
esperam em suas vidas. A religião, portanto, é o subproduto da insistência em produzir
conhecimento pela imaginação, em detrimento do emprego da Razão. Como bem destaca
Marilena Chauí em seu texto sobre o pensamento de Spinoza:
“De fato Espinosa afirma que a totalidade do real é inteligível e pode ser
inteiramente conhecida por nosso intelecto, não havendo no mundo lugar para
mistérios, milagres e coisas ocultas. Por isso seu pensamento é uma crítica
radical a todas as formas de irracionalismo e superstição, seja na religião, na
política, seja na Filosofia” (CHAUÍ: Pg.34, 2001)
Antonio Negri, em seu primoroso estudo sobre o pensamento de Spinoza, define
de forma lúcida e precisa as relações existentes entre os ordenamentos de caráter religioso
e a experiência política que deles decorre nos termos das formas simbólicas que
engendram, quando salienta os aspectos relativos ao medo e à superstição e os decorrentes
efeitos que estes produzem na própria ação, ou inação humana. Ressalta em seu escopo
analítico a dimensão pela qual os aspectos destacados, como elementos constitutivos da
simbologia do poder e da soberania, se compatibilizam com o arranjo monárquico
absolutista, conferindo a este a resposta adequada para a segurança perdida diante dos
sentimentos desafiadores. Encharcados pela culpa e pelo medo com a qual a tradição
judaico-cristã alimenta a existência dos homens, quando revela as relações entre Deus e os
homens.
“Dois projetos se afrontam: de um lado, a relação “medo-superstição” se
apresenta como barbarismo e servidão ao poder é exatamente como se disse:
teologia-imaginação corrupta monárquica; do outro lado, a “cupiditas”se
desenvolvem em “libertas” e em “securitas” , o que equivale a : filosofia
O rito religioso é imprescindível de mediação e interlocução entre o ser superior
imaginado e aqueles que o temem ou idolatram. Daí a instituição dos senhores da religião
77
(mediadores), que serão os portadores, pela revelação, das vontades e determinações
divinas, visando dar conformidade às ações dos homens (política).
Como forma de superar o medo e a insegurança que os impede de agir de
maneira autônoma e segundo seus desejos definidos pelo racionalismo absoluto (intelecto),
os homens se refugiam na crença religiosa. À superação desta condição e á conquista da
plena liberdade, proporá Spinoza dois movimentos a serem empreendidos pelos homens:
interpretar e apreender as escrituras sagradas a partir de uma perspectiva Histórico-crítica;
percebendo que se constituem textos datados historicamente e, portanto, não podem ser
referência universal à organização político-social dos povos, indiscriminadamente. Quando
muito, fora referência e práxis para uma dada comunidade (judeus) em sua luta por
afirmação social diante de uma opressão produzida pela condição de cativos.
A idéia de serem as “escrituras” um texto datado, circunscrito a uma experiência
existencial de um povo, no caso os judeus, em um determinado momento de sua trajetória
histórica, implica torná-lo inadequado à conformidade de uma ordem política. Tê-lo como
modelo de excelência, quando transposto mecanicamente - e, sobretudo, dando-lhe um
caráter, o qual não possui, atemporal - , significa constituir relações de ordem política sob
uma base que não condiz com os anseios experimentados por cada comunidade dentro de
sua experiência social e histórica. Daí sua rejeição ao modelo teológico como alicerce a
ordem política.
Como passo seguinte à construção da liberdade – fim absoluto para a efetividade
da condição humana na concepção de Spinoza - os homens devem operar a correção do
intelecto, proporcionando que se estabeleça na percepção dos homens, a partir do intelecto
(Razão), a capacidade de se reconhecer a si mesmo. Trazendo como conseqüência a
capacidade intrínseca àqueles em produzir conhecimento verdadeiro e não mais a partir da
imagem que se apreende pelos sentidos (imaginação).
Quanto ao aspecto destacado acima, Spinoza contrapõe o conhecimento
verdadeiro, fruto da atividade do intelecto como potência em si mesmo, em detrimento do
conhecimento a partir da imaginação que se firma pelos sentidos. Não, se conclua com
isso, que as imagens, que se apreende das coisas, não sejam verdadeiras, as são. Mas, serão
falsas, se tomadas como idéia produzida pelo intelecto. Spinoza contrapõe ao pensamento
78
imaginativo a adoção do racionalismo absoluto – influencia clara do pressuposto filosófico
interrogativo de Descartes.
No pensamento spinosiano há uma distinção fundamental no que circunscreve os
efeitos da construção e percepção do real pelos homens. Contrapondo os resultados obtidos
por estes, quando produzidos a partir da imaginação ou quando operados e construídos
através da Razão. Daí suas preocupações em situar o que define como a necessidade de
correção do intelecto. Ao apontar a capacidade cognitiva decorrente do uso da capacidade
racional dos homens, como condição inicial à conquista do “verdadeiro”, Spinoza aponta
para a incondicional e absoluta necessidade de os homens proporcionarem ao seu aparelho
perceptivo e racional a inteligência, as condições adequadas para o seu pleno
desenvolvimento (potência) cuja eficácia afirma o “bem verdadeiro” aos homens: a
liberdade. É, por meio deste processo de correção do intelecto que se tornará possível a
articulação entre os bens verdadeiros para a condição humana: O desejo de felicidade, a
liberdade e a verdade. Marilena Chauí o destaca ao comentar a obra de Spinoza:
“Racionalismo absoluto significa, portanto, libertar-se das causas da ignorância
para com isso libertar-se das causas do medo e da esperança, e ao faze-lo,
libertar-se de seus efeitos religiosos e políticos. Racionalismo absoluto é a
confiança na capacidade libertadora da Razão. (CHAUÍ: Pg.35, 2001)”.
Este pequeno preâmbulo, no qual se procura situar a perspectiva filosófica de
Spinoza, afirmando que somente o conhecimento produzido a partir do Intelecto ou Razão
pode ser verdadeiro, deve ser acompanhado de duas outras importantes reflexões do autor,
que contribuem para o entendimento de suas formulações de ordem política.
Na lógica metafísica de Spinoza, a idéia de Deus construída pelos homens não
corresponde a sua condição. Fora resultado da imaginação que o concebe como
antropomórfico. Confundem-se as propriedades humanas como sendo a essência deste ser.
A essa equivocada interpretação, Spinoza contrapõe a idéia de substância (existência em si
e por si) e seus atributos ou efeitos da substância (existência em outro e por outro). A
primeira como sendo a essência de Deus, por reunir em si “infinitas qualidades infinitas”,
que se traduzem em identidade de existência, essência e potência. A segunda natureza é o
próprio homem como decorrência e continuidade desta essência, por assim dizer, fundante.
79
“Toda substancia é necessariamente infinita. A substancia de um atributo não
pode existir senão como única e a sua natureza pertence ao existir. Será,
portanto, pela própria natureza da substancia que ela exista como finita ou
infinita. Ora não pode ser finita, visto que deveria ser limitada por outra da
mesma natureza, a qual também deveria existir necessariamente; sendo assim,
dar-se-iam duas substancias do mesmo atributo, o que é absurdo. Por
conseguinte existe como infinita”. (SPINOZA: ÉTICA. Livro I, Proposição VIII,
Pg.89, 1973).
Os homens e os demais componentes desta natureza são modos nos quais os
atributos finitos se realizam. Em suma, Deus, natureza e os homens, como parte dela, são
resultados de uma mesma substância, que, contudo, manifesta-se por distintos atributos,
em outros tantos e diversos modos, constituindo, portanto, a essencialidade específica, que,
porém, decorre de uma natureza única (monismo), que se manifesta diversa (modos), a
partir de uma condição originária (substância). Em sua condição originária: Deus, no qual
os atributos são infinitos, e nos demais compostos ou modos da natureza quando assumem
um caráter finito e definido (atributos).
Mais adiante desta construção lógica Spinoza constrói a relação, ou melhor,
desconstrói a idéia pela qual se estabelece uma relação hierarquizada e subordinada entre
criação e criatura. Os homens e a natureza não são produtos de uma vontade de quem os
cria. A substância originária do atributo infinito, Deus, não se comporta por um padrão de
vontade ativa, mas por exercício permanente de expansão dada por sua própria natureza
enquanto substância originária que se manifesta pela dinâmica, e continuada, contingência
de expandir-se indefinidamente.
A condição acima explicitada implica outra importante reflexão produzida por
Spinoza: a idéia adequada de Deus. Para formular tal afirmativa, o pensador usará os
conceitos de Natureza Naturante e Natureza Naturada, implicando-os com os conceitos de
substância definidos acima. Deus (Natureza Naturante) não é o criador de tudo (Natureza
Naturada), que após o fazer se separa e se diferencia constitutivamente de sua criação. Ao
contrário, o seu produto é efeito da substância que o precedeu (causa) e nele se manifesta
80
como efeito. Logo Deus e natureza são manifestação da substância e de modos desta. Logo
Deus, a natureza e os homens se fundem por terem em comum a substancia que tudo cria.
Como descreve Marilena Chauí em seu texto sobre Spinoza:
“Deus, demonstra Espinosa não é causa eficiente de todas as coisas ou de todos
os seus modos, isto é, não é uma causa que se separa dos efeitos após havê-los
produzido, mas é causa eficiente imanente de seus modos, não se separa deles, e
sim, se exprime neles e eles o exprimem. A causa imanente faz com que a
totalidade constituída pela Natureza Naturante pela Natureza Naturada seja a
unidade eterna e infinita cujo nome é Deus (Deus Sive Natura)...” (CHAUÍ:
Pg.47, 2003).
O legado da reflexão política estabelecida por Espinosa destaca-se através de três
eixos importantes à conformação da ordem política: a Laicidade, Razão absoluta e Deus
está na natureza são os três fundamentos que imbricados o permitiu produzir seu texto
seminal, vinculado como tal à questão da retomada do valor do plano da imanência como
fator inalienável à constituição do poder e da soberania. Trabalho este intitulado Tratado
Teológico-Político
Ao propor que o político e o religioso são incompatíveis como forma de
organização da ordem política e social, está Spinoza preconizando a separação dos dois
estatutos, ou seja, é laica a sua visão do ordenamento político de uma sociedade. Quando
muito, foi sustentação histórica de um povo em condições especiais de afirmação enquanto
tal: os judeus. Portanto, uma contingência circunscrita historicamente a um dado povo.
Definida a impropriedade em se estabelecer o conhecimento pelos sentidos
produtores da imaginação, que é a forma mais característica da irracionalidade, e
contrapondo a esta a reforma do intelecto, concebendo-o como algo que se basta a si
mesmo, elege a Razão como a fonte do conhecimento a ser empregada pelos homens como
forma de superar os medos e a ignorância que os acorrenta na “magia” da religiosidade
como inteligibilidade possível do mundo.
Com a concepção de que Deus está na natureza – pela idéia de Substância - insere-
se Spinoza intelectualmente ao lado de uma parcela de seus contemporâneos na visão
81
Jusnaturalista. Spinoza admite em seus postulados - idéia comum ao pensamento de
Hobbes, conformada a partir de ser a condição humana portadora de um direito natural: o
direito à vida – a existência de uma condição natural à vida, a qual, vai relacioná-la a
existência do conatus 28 – potência pela qual os homens empreendem e buscam os desejos
da alma e os apetites do corpo, usando dos meios que lhes convier para exercê-lo e fazer
valer.
Pode parecer que a definição de direito natural explicitada por Spinoza se assemelhe
ao mesmo conceito que Hobbes emprega. Entretanto, há uma diferença a ser considerada
entre as duas acepções quando se observa a importância pela qual a condição da existência
e manutenção da vida pelos homens se realiza em decorrência da ampliação ou redução do
conatus.
Esse approach ou flert epistemológico, permanente em suas obras vindouras, com a
questão da imanência já se manifestava presente no pensamento de Spinoza, quando do
horrendo massacre, seguido de assassinato dos irmãos De Witt (1672), seus amigos
colegiantes, o autor se vê compelido a publicar um “panfleto” contendo sua indignação
acerca dos fatos ocorridos, o qual, manifesta sua apreensão acerca impossibilidade de os
homens alienarem suas liberdades, e da sua própria capacidade em dirigir-se.
“A vontade de alguém não pode estar sujeita à jurisdição alheia, porquanto
ninguém pode transferir para outrem. Nem a isso ser coagido, o seu direito
natural ou a sua faculdade de raciocinar livremente ajuizar sobre qualquer coisa.
Por conseguinte, todo poder exercido sobre o foro intimo deve ser tido como
violento, da mesma forma que se considera ultrajar usurpar o direito de seus
súditos um governante que pretenda prescrever a cada um o que deve admitir
como verdadeiro ou falso, e até as opiniões em que deve apoiar-se na sua
28 – A partir da interpretação de Marilena Chauí acerca do significado de conatus na obra de Spinoza, o termo refere-se a: “Todos os seres humanos possuem em decorrência da atividade dos atributos substanciais infinitos uma potência natural de autoconservação que Spinoza seguindo a terminologia do Séc XVII, denomina conatus. Os seres são indivíduos quando possuem conatus, isto é, quando possuem uma força interna para permanecer na existência conservando seu estado. Os humanos, como os demais seres, são dotados de conatus, com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de possuir o esforço de preservação na existência. Na verdade, os humanos não possuem conatus, são conatus O conatus é a essência atual do corpo e da alma.Mais do que isso. Sendo uma força interna para existir e conservar-se na existência , o conatus é uma força interna positiva e afirmativa”.(CHAUÍ: 2001).
82
devoção a Deus. Porque tudo isso pertence ao direito individual e ninguém,
mesmo que quisesse poderia a ela renunciar” (SPINOZA: Panfleto: 1672)
Hobbes, ao referir-se ao direito natural como sendo o momento do estado da
natureza, observa que, por força da Razão, os homens se vêem compelidos a alienar-se
desta prerrogativa, cedendo-o mutuamente ao que o autor define como leviatã.
Proporciona, desta forma, a garantia do direito, não mais por força da ação subjetiva, mas
pela interferência garantidora de um poder soberano, externo aos indivíduos.
Para Spinoza, o que ocorre é que, diante da ameaça mútua que o exercício do
direito implica a todos, manifesta-se, a bem da verdade, a própria incapacidade de que o
mesmo seja exercido, ocorrendo o enfraquecimento do conatus29. A alternativa para que
seja assegurada a potência do conatus é transformar as individualidades em expressão
coletiva (afinidade afetiva dos conatus), formando o que o autor define como multidão ou
massa – ponto de afirmação de uma soberania, que, sem a conformidade coletiva, não se
realizaria.
Quanto à ação do conatus, Spinoza salienta dois aspectos importantes
relacionados à indissolubilidade do que é corpo e do que é alma.
Para tratar desta condição, o elemento reflexivo recai sobre o que é desejo e o que
é paixão. No corpo o conatus se identifica aos apetites dos homens, enquanto na alma sua
presença se traduz pelos desejos. E que a essência do homem é a sua capacidade de
desejar, e conseqüentemente realizar. Todavia, que para tal deve ter a consciência
(intelecto/razão) do que se manifesta como desejo no corpo. Como interpreta Marilena
Chauí, ao descrever as relações postas por Spinoza entre corpo e alma e apetite e desejo:
“assim, dizer que somos apetite corporal e desejo psíquico”.
Há, portanto, a constituição de uma relação de caráter afetivo entre os
homens, que vai se tornar determinante para a ampliação ou enfraquecimento do conatus.
Quando esta afetividade se estabelece a partir de um agente ou motivo externo ao corpo ou
a alma (paixão), provoca as afecções. A tendência é que, em tais circunstâncias, ocorra o 29 - conatus ou conaturalis é tudo aquilo que pertence à natureza mesma de um Ser (ou de um indivíduo) enquanto uma propriedade essencial. (Ex: a liberdade é conatural aos homens. (JAPIASSÚ, 2006)).
83
enfraquecimento do conatus, levando os homens à perda da potência ou da ação. Isso
acarreta conseqüentemente a perda da liberdade.
Significa dizer também que ocorre uma relação entre passividade e atividade
quando observada a origem dos afetos. Tendem os homens a atuar passivamente quando a
origem dos desejos (causa eficiente) se dá, e é provocada, a partir de sua exterioridade.
Ocorrerá o contrário, quando a origem dos afetos se desenvolve a partir da internalidade
dos indivíduos, por força das idéias adequadas, produzidas pela razão. Ou seja, a origem da
causa eficiente, se interna ou externa às nossas ações, define a adequação ou não de nossos
afetos, pois corresponde diretamente à ampliação ou redução do conatus. É possível, então,
a partir deste resultado, serem os homens mais ou menos livres.
“Somos causa inadequada de nossos afetos quando são causados em nós pelo
poder de causas externas; somos causa adequada de nossos afetos quando são
causados em nós por nossa própria potencia interna”.(CHAUÍ: Pg.64, 2001).
A idéia spinoziana de os homens possuírem um conatus, que em última instancia
é a sua própria vida e essência – liberdade - impõe conseqüentemente relacioná-lo
diretamente com a questão da soberania e do poder. Se através do fortalecimento do
conatus individual os homens se traduzem por autonomia e liberdade e, inversamente, o
seu enfraquecimento produz e anula estas condições, há de se procurar estabelecer a
permanência afetiva entre os homens que convirjam ao atendimento recíproco de seus
desejos. Não é alienando os desejos e vontades que os homens asseguraram a manutenção
de seu direito natural, mas, sobretudo, procurando estabelecer convergências e
semelhanças entre aqueles.
Portanto, se há insinuação de convergência entre as percepções, de Hobbes e
Spinoza, quanto à existência do direito natural, estas se anulam quando se analisam os
desdobramentos contingentes propostos pelos referidos autores, quanto à incapacidade de
realizá-lo individualmente.
Em Hobbes, a saída para o impasse se dá pela alienação do direito a outrem
(leviatã), instituindo, portanto, a soberania externamente ao indivíduo (negação da
imanência). Entretanto, para Spinoza o que ocorre é a criação do poder soberano
84
(imanente), derivando da própria coletividade que o instaura soberanamente, sem emanar
sua condição de soberania ordinária (potência) possível pelo fortalecimento comum dos
conatus individuais. Em outras palavras, a diferença entre as concepções hobbesianas e as
produzidas por Spinoza recai sobre a questão de os homens governarem ou serem
governados.
Interessa sobretudo à discussão das possibilidades e contingências históricas
para a afirmação ou negação do plano da imanência, posta como força constituinte da
ordem política, ressaltar que inicialmente Spinoza tende a proferir através de seu
pensamento algo que conceitualmente se assemelhe à idéia de panteísmo. Contudo, a
aparente condição inicial observada em seu pensamento, se desfaz por força de tê-la
somente como um caminho reflexivo que conduz invariavelmente à imanência como
condição à ação dos homens. Ao ampliar o escopo reflexivo o autor acaba por conceber –
principalmente através da lógica contida na relação intrínseca entre conatus, potência e
liberdade – a necessidade - e não somente por força do livre-arbítrio - de os homens
definirem suas ações a partir da própria condição de serem partes integrantes de uma
substancia que se caracteriza pela condição de estar em permanente expansão.
Definir-se-ia por um paradoxo conceber a possibilidade de os homens absterem-se
de uma condição que se manifesta a partir de sua ontologia: abrir mão de uma dinâmica
que se afirma pela efetividade de uma potência que se traduz pela condição inalienável de
constituir-se pela imanência. É da natureza da substância que os constitui ter através da
constante ampliação da potência e base do seu agir. Não corresponde à propriedade
humana a alienação de seu conatus. Haja vista que a garantia de liberdade para os homens
se faz pela permanente ampliação da potência ou expansão permanente da substância. Não
somente quando se expande produzindo outros modos, mas sobretudo criando as condições
para a permanência dos atributos que os conformam. E no modo homens, o atributo
chama-se liberdade.
Fica patente, portanto, que a essencialidade distintiva do pensamento de Spinoza,
em relação ao seu tempo, se configura a partir da insistência em definir como condição
existencial dos homens, seja ela em quaisquer dos aspectos a que se refira, mas
principalmente no que tange à política, a robusta e contundente afirmação de que o poder e
a soberania não existem na efetividade da condição humana, se não se conformarem a
85
partir da irrestrita realização e manutenção do plano da imanência como origem e fim em
si mesmo.
A condição de imanência é da essencialidade conceitual da própria definição de
substância, que Spinoza constrói. E, sendo os homens, modos e atributos finitos desta
substancia, não existiriam se não contassem com a imanência como condição primeira de
sua própria existência.
O que inicialmente se afeiçoa ao panteísmo, assume a partir desta interpretação a
força de um materialismo inovador, singular e desconcertante.Em um período histórico em
que os conceitos de poder e soberania se instituíam por força e obra de arranjos metafísicos
que primam e se instituem, sobretudo, a partir de “aparelhos” de ordem política que
representam na temporalidade, os ditames de uma ordem eminentemente transcendente em
sua essencialidade constitutiva (Absolutismo).
Daí, a magistral e pertinente adjetivação com a qual Antonio Negri vai definir o
pensamento spinoziano; quando confrontado ao momento histórico de hegemônica
afirmação do plano da transcendência na ordem política no Séc. XVII, denominando-o de:
“Anomalia Selvagem”.
“Toda a Filosofia exprime aqui um ponto de vista, uma tomada de posição de
partido sobre a realidade. A escolha política baseia, condiciona e faz avançar o
projeto metafísico: legitimar a república mundana é fundar a cidade de Deus, a
república do espírito. Para quem conhece a tradição revolucionária do
humanismo, dos chanceleres florentinos aos republicanos protestantes, isso não é
de estranhar: é uma continuidade, a que Spinoza está renovando. A anomalia, a
desmedida do projeto de Spinoza estão em outro ponto: no fato de que essa “
spes” oposta ao “metus”, que essa “libertas” oposta à “ superstitio”, que essa
república oposta ao absolutismo monárquico, ela as coloca e renova quando o
século inteiro as combate” ( NEGRI: Pg.26,1993)
86
Parte II
Capítulo III
87
A Soberania Moderna: Estado e Nação
A Ordem Medieval
Concluída a primeira parte do trabalho, cujos objetivos analíticos prenderam-
se à imprescindível necessidade de situar e destacar as mudanças mais significativas
ocorridas na esfera do pensamento filosófico, urge complementá-lo, inserindo ao conjunto
dissertativo as conseqüências que transformações produziram quando observada a
indissociável relação destas com a ordem material. Com especial atenção ao que tange aos
aspectos relativos ao ordenamento social, político e econômico característico deste
momento histórico de transição entre dois mundos: o medieval e o moderno.
Os objetivos do capítulo que ora se inicia dizem respeito sobretudo a apontar as
condições históricas conjugadas às mudanças do pensamento, cujos resultados e efeitos na
ordem política contribuíram para a emergência do que se define como: Estado moderno.
Procurar-se-á demonstrar a idéia de que a conformação deste novo modelo de
ordenamento do poder e da soberania insurge e se constitui como conseqüência das
contradições pelas quais a materialidade histórica experimentada pela sociedade medieval
passa a conviver, como decorrência de condições objetivas verificadas em seu próprio seio.
Contradições essas que advêm da confluência do pensamento filosófico que emerge em
resposta à hegemonia da metafísica escolástica, aliado a fatores de ordem social, política e
econômica, verificados pela expressiva movimentação desarticuladora experimentada nas
esferas religiosas e temporais.
88
A formulação do conceito moderno de Soberania decorre historicamente de dois
fatores que se manifestam em concomitância: a emergência do Estado moderno e seu co-
partícipe, o conceito de Nação. Não se concebe o primeiro sem que se constitua a idéia e
presença do segundo. São como duas faces de uma mesma moeda: a face que se observa
implica necessariamente a existência de uma outra que a complementa, permitindo formar
um conjunto conceitualmente definido. Com o moderno conceito de soberania a relação se
estabelece da mesma forma, quando considerados como constituintes deste as seguintes
faces: o Estado moderno, e sua inseparável contra-face o conceito de Nação.
A organização política dos grupos humanos, ao longo da história, sempre
experimentou e contou, de alguma forma, com a existência de ordenamentos políticos,
pelos quais se definiu em suas épocas, como e de que forma se estabelecem as relações de
Poder entre quem governa e quem é governado. Se constituídos em torno da expressão
solitária de um homem ou se objetivadas a partir de um grupo, tais condições, distintas
como são, não desqualificam a afirmação. O registrável é que o poder político
historicamente sempre esteve presente em um dado espaço organizado socialmente e que,
invariavelmente, aquele mantém estrita correspondência, definida dialeticamente a partir
de um arco constitutivo que se estabelece como ajuste às condições materiais de existência.
Quando observada e analisada a pré-modernidade do mundo europeu mencionar a
existência de “Estados” soa como anacronismo ou no mínimo como imprecisão histórica.
Entretanto, a inexistência de um ente político definido institucionalmente não implica
desconsiderar a existência de forças organizadas e organizadoras que acabam por assumir o
papel que àquele caberia.
No período histórico definido como mundo pré-moderno, observa-se a presença
de uma força política ordenadora que imprime a dinâmica social: os “arreios” institucionais
que a conformavam. A referência se reporta ao indiscutível papel de poder e ordenamento
social e político com o qual a Igreja Católica Romana ou “Igreja Universal” irradia e
organiza a realidade política e social característica do quadrante histórico definido como
mundo medieval europeu.
“Centralizada no Vaticano, de Roma, com magnífica burocracia e um obediente
emissário em cada aldeia, podia pressupor que tinha completo controle sobre a
89
arte,a educação,a literatura,a filosofia e sobre a ciência da cristandade
ocidental.Durante séculos a Igreja católica deu a Europa Ocidental uma cultura
comum que todos os reis e senhores aceitaram. A civilização era católica, e o
catolicismo era civilização” (CROSSMAN: Pg 20, 1980)
Desde a derrocada e dissolução do Império Romano1, o vasto território centro-
europeu, conquistado ao antigo Império pelas tribos germânicas, se configura política e
socialmente a partir da existência de propriedades territoriais sob o comando senhorial - a
base organizadora do que os historiadores denominam como mundo feudal. A posse e o
controle político destas propriedades territoriais era exercido temporalmente pelos
senhores feudais e espiritualmente pela “Igreja Universal”. Um compartilhar de homens e
almas.
“No centro remanescente, composto por terras colonizadas pelas tribos
germânicas no que hoje é a França, Itália e a Europa Central, a população que
se amontoou professava em grande parte a fé católica romana e tinha como
governantes locais os sucessores tribais dinásticos dos invasores germânicos.
Nesse miolo, desenvolveram-se duas estruturas paralelas: a igreja universal, que
abarcava todas as culturas locais, e o fragmentado sistema feudal de pequenos
príncipes. Em termos de relacionamento jurídico as duas entidades eram em
principio separadas: o sistema da igreja de vida religiosa, educacional,
burocrática e caridosa coexistia com as prerrogativas militares e de propriedade
da nobreza, conquanto de fato a estrutura administrativa feudal dependesse dos
membros da igreja e estas mesmas fossem uma proprietária de terras de imensa
riqueza e presença política” (BOBBITT: Pg 69, 2003)
O ordenamento social e político do mundo feudal fora marcadamente
descentralizados, contudo constitui-se a partir de uma estrutura interna imóvel e
1 – A queda de Roma como centro político do vasto Império que constitui, foi assinalada historicamente no ano de 476 AD. Até a coroação do Rei Carlos Magno, os antigos potentados deste vasto império em terras européias foram objeto de invasões provindas do centro e do leste europeu, somada às conquistas muçulmanas da parte peninsular mais ocidental de seu território: Península Ibérica.
90
hierarquizada. Um encadeamento de poderes que se irradia desde seu cume, ocupado pelo
rei, e finda no servo, entremeado pela nobreza feudal.
Uma ordem social estabelecida por esta dinâmica relacional implicava direitos e
obrigações que se moldam por força de uma proporcionalidade inversamente direta à
posição, na qual cada membro se encontrava em sua estrutura social. Em seu ápice, o rei,
imperador ou monarca, repleto de direitos e algumas poucas obrigações. Uma blindada e
imóvel estrutura hierárquica em que cada qual sabia exatamente a sua posição.
Por meio de uma abordagem expositiva simplificada pode-se afirmar que o mundo
medieval europeu se caracterizada pela existência de duas instâncias de poder que definem
as esferas pelas quais se faz valer suas orientação. Por um lado, o poder temporal exercido
pelo imperador do Sacro Império Germânico2, tendo como contrapartida e, em comum
acordo, os poderes relativos à esfera ou os assuntos da ordem espiritual, orientados pela
inconteste autoridade advinda da ordem eclesiástica, por força da onipotência do Papado.
Com uma base econômica eminentemente agrícola, as posições na estrutura social
se estabelecem pela propriedade territorial. Os medievos se dividiam entre proprietários e
cessionários do uso da terra. As terras pertenciam ao Rei, que as cedia aos nobres e estes
aos servos para o trabalho. O elemento econômico articulador das relações sociais era a
produção agrícola, voltada exclusivamente para o consumo imediato. Não havia a busca
direcionada, e nem tampouco condições para a obtenção de excedentes. Quando ocorriam,
ao acaso, pelo beneplácito da natureza, eram comercializados nas cercanias imediatas.
A sociedade medieval fora forjada através de um corpo social de obediência
temporal e espiritual, cuja estabilidade política se dava por relações de poder baseadas no
imediatismo direto das relações econômicas. A inexistência de um poder central era
substituída por vínculos de natureza funcional relacionados à atividade de exploração dos
recursos da terra.
2 – Sacro Império Romano-Germânico, ou o Santo Império Romano da Nação Germânica. Em seu apogeu e maior abrangência geográfica o império se constituía territorialmente por grande parte dos territórios que são hoje: a Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein, Bélgica, Paises Baixos, Luxemburgo, República Tcheca, Eslovênia, além de toda a região leste da França, o norte da Itália e a parte oeste da Polônia.
91
“Na Idade Média foi-se construindo gradualmente uma magnífica hierarquia de
classes sociais, em que cada grau devia obediência ao grau imediatamente
superior, e só a nível secundário devia obediência aos mais altos. Esta pirâmide
social da obediência, era ao mesmo tempo baseada nos direitos de propriedade e
em outras obrigações” (CROSSMAN: Pg. 19, 1980).
O arranjo social e econômico medieval era desprovido de centralidade política. As
relações segmentadas que o engendram manifestam uma ordem política moldada a sua
semelhança. O Rei possuía uma soberania - de certa forma inócua, haja vista a relação de
mediação entre este e os súditos, através da nobreza - formalmente estabelecida por um
estatuto que não decorre diretamente da condição de mandatário, mas por força de uma
cadeia de direitos e deveres, constituindo um universo social imóvel e fechado, cuja
legitimação se dava temporalmente por força de uma ordem originalmente espiritual aos
moldes da metafísica escolástica.
Pode-se afirmar que o homem medieval era menos um súdito e muito mais um fiel.
A força e hegemonia do pensamento cristão constroem a visão de mundo e se manifesta
em todos os momentos da existência temporal. O controle sobre corações e mentes
exercido pela presença atuante de elementos da ordem eclesiástica, comungando de um
estatuto social, semelhante à posição da nobreza senhorial - que em algumas circunstancias
se confundia com a própria condição nobiliárquica, pois também possuidora de terras - faz
da igreja a legitimadora da ordem política medieval.
A ordem política medieval se constitui, portanto, a partir de uma composição de
poderes espiritual e o temporal - que a bem da verdade se irradia de um ponto único: o
Deus onipotente e onipresente. A lei universal, derivada da cosmologia escolástica,
definindo as relações sociais e políticas; a universalidade da Igreja católica, que revela
aquela e o poder do Imperador, que se institui pela materialidade histórica do Sacro
Império Germânico.
92
“A estrutura do sistema feudal era constituída pela Igreja Universal, pela lei
universal e pelo imperador universal, ou seja, uma perfeita trindade que reinava
sobre a Europa Ocidental. O papa e o imperador dividiam entre si a autoridade,
que esteve unida antes, na época dos imperadores romanos. O papa atuava como
o supremo senhor espiritual, e o imperador tinha a mesma autoridade no plano
temporal” (CROSSSMAN: Pg 21, 1980)
A estabilidade possível a um arranjo desta natureza não se sustenta, caso a
presença do elemento que o consolida; a filosofia que o conforma, ou melhor, o
pensamento que o articula internamente produzindo a ordem hegemônica se rompa ou se
confronte a outra dimensão teórica e material.
Antonio Gramsci3 descreve e analisa os meandros da construção e manutenção dos
arranjos hegemônicos de Poder. O papel que a cultura; a ideologia - definida por ele como
sendo a visão de mundo que os homens possuem - assume na constituição dos processos de
hegemonia, revestindo-a de uma particularidade decisiva para a manutenção e permanência
do poder político. Descrito por Milliband a partir do conceito de hegemonia formulado por
Gramsci.
“Uma ordem na qual um certo modo de vida e de pensamento é dominante, na
qual um conceito de realidade é difundido por toda a sociedade, em todas as suas
manifestações institucionais e privadas, estendendo sua influência a todos os
gostos, comportamentos morais e costumes, princípios políticos e religiosos, e
todas as relações sociais, particularmente em suas conotações morais e
intelectuais” (MILLIBAND: Pg 162, 1973).
3 – Antonio Gramsci - Filosofo italiano nasceu na Sardenha em 1891 e faleceu em 1937, após amargar anos de cárcere impostos pelo ditador fascista Benito Mussolini. Expoente da intelectualidade italiana Marxista em sua época e fundador do PCI - Partido Comunista Italiano. Colabora para a teoria marxista, ao descrever os sistemas de dominação de classe a partir da idéia de Hegemonia, como sendo a visão de mundo que prevalece na sociedade, mas que no entanto corresponde à visão de mundo da classe que exerce a dominação nas relações sociais de produção, imputando--a ao conjunto social por força dos instrumentos ideológicos. Através desta construção a dominação de classe se dá pela força coercitiva do estado que engendra seus interesses e pelo consentimento das classes dominadas, produzido por força da assimilação ideológica ( visão de mundo) dos dominadores como se sua fosse.
93
O início do desmoronamento do arranjo social e político do mundo medieval se dá
por força da alteração progressivamente experimentada por dois elementos estruturais a
qualquer ordem social e política: as relações sociais de produção e as formas ideológicas
que as justificam, ou pelo menos tentam legitimá-a no nível superestrutural.
O aflorar do “cisma” no ordenamento católico - até então hegemônico – através de
um movimento contestatório empreendido inicialmente pelo monge alemão Martin Lutero
(1483-1546), ao afixar às portas da Igreja de Wittenberg (Alemanha) noventa e cinco teses,
as quais criticavam vários pontos da doutrina católica, ditará em parte os contornos das
mudanças vindouras.
O movimento conhecido como “A Reforma Protestante” fora paulatinamente se
ampliando. Outras interpretações surgiram a partir deste surgiram, aprofundando a
abordagem inaugural eminentemente religiosa posta por Lutero.
Os Calvinistas4, os Hugenotes5, os Quakers 6, os Puritanos ingleses7; a própria
cisão com os poderes eclesiásticos da Igreja Católica, instituída pela fundação da Igreja
Anglicana8, sob o comando do Rei Henrique VIII, são vertentes protestantes imbuídas por
um discurso provido de forte questionamento à moralidade econômica, até então definida e
legitimada pela doutrina cristã. Contribuíram para o “amalgamar espiritual” da nova ordem
social que se erguia a partir dos escombros produzidos pelas fissuras irreversíveis, com as
quais o desbotamento do ordenamento hegemônico passará a conviver.
Observa-se uma convergência entre os questionamentos a ordem religiosa
enunciados pela reforma protestante e suas relações com as expectativas existenciais, e,
sobretudo com aspectos da ordem econômica manifestos pelos cada vez mais influentes
sujeitos das relações econômicas em franca afirmação social: os financistas e a burguesia 4 – O termo se refere a João Calvino (1509-1564) reformador protestante francês. Os principais pontos que sua orientação religiosa preconiza são: retorno à Bíblia como fonte primeira e única da fé cristã e crença na predestinação – este dogma tornar-se-á elemento constitutivo de suma importância na conformação do Ethos que aproxima as práticas religiosas protestantes da ética do capitalismo, amplamente estudada por Max Weber. 5 – Protestantes franceses brutalmente assassinados, na tristemente celebre “noite de São Bartolomeu” em 24 de Agosto de 1572. Protagonizaram, com a invasão da baia de Guanabara, a tentativa de estabelecer uma França Antártica no Brasil (1555 a 1567). 6 – Protestantes Ingleses que desempenharam papel importante na colonização norte-americana.7 – Movimento protestante de origem inglesa (Séc. XVI), inspirado no Calvinismo.8 – Igreja reformada inglesa. Surge por determinação de Henrique VIII, por força de seus desentendimentos com o Papa Clemente VII.
94
comercial. Estes insinuavam como a nova força em decorrência do desenvolvimento e
ampliação das relações de trocas comerciais, que cada vez mais tendiam a transpor os
limites do local – ordinário ao mundo medieval. Tais fatos contribuíram para a formação
de uma nova apreensão de caráter econômico, ético e moral em franca contradição com os
poderes sociais e políticos engendrados pela ordem medieval.
“A rápida expansão do comercio não podia ajustar-se ao sistema econômico
localista do feudalismo, e um novo sistema bancário internacional começou a
desenvolver-se para satisfazer as crescentes necessidades do comércio. Com o
aparecimento dos banqueiros e dos comerciantes, em cada país surgiu uma nova
classe, os burgueses, que não eram nem reis, nem aristocratas, nem camponeses”
(CROSSMAN: Pg 29 1980).
Max Weber (1864–1920) ao especular acerca dos elementos contributivos (tipos
ideais) à emergência da ordem capitalista – o que caracteriza a singularidade de sua análise
sociológica, distinguindo-o de outros analistas - implica, como fator de extrema
importância, a emergência e conformação da nova concepção da religiosidade constituída
pelos amplos discursos produzido à aquisição e acumulação de riquezas, distinta da
experimentada pela doutrina católica, cuja essencialidade discursiva contribui para a
consolidação de um novo ethos. Superando impedimentos morais no que tange ao lucro e
à acumulação financeira, interposta pela doutrina religiosa outrora hegemônica da Igreja
católica.
“Esse ascetismo secular do protestantismo opunha-se assim, poderosamente, ao
espontâneo usufruir das riquezas, e restringia o consumo especialmente o
consumo de luxo. Em compensação, libertava psicologicamente a aquisição de
bens das inibições da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia de lucro,
com o que não apenas a legalizou, como também a considerou como diretamente
desejada por Deus” (WEBER: Pg 122, 1999)
As indisposições de caráter religioso e econômico assumiram proporções de
confronto aberto. O mundo europeu conheceu seu primeiro conflito civil: A Guerra dos
95
Trinta Anos9, cujo desfecho, possível pela Paz de Vestefalia10 reformularia por completo o
mundo europeu. Não somente ao que tange a redefinição territorial baseada na orientação
religiosa assumida pelo governante, mas, sobretudo pela a expansão progressiva de uma
atividade econômica que não mais se moldava aos limites impostos por uma ordem social e
política que impunham entraves a sua expansão.
O caráter de fundo religioso do conflito, por si só não manifesta a dimensão e a
intensidade do processo de transformação pela qual o mundo europeu passava. A
ampliação de relações econômicas baseadas em uma inevitável necessidade de se expandir
permanentemente através de processos continuados de acumulação requeria a definição
dos espaços de afirmação e da própria hegemonia política sobre um dado território. A
descentralização, essência do arranjo político medieval, não se conformava a estas
condições necessárias.
Inevitável é reconhecer a inegável relação existente entre formas de organização
econômica (estrutura, ou relações sociais de produção) e instituições políticas que
conformam e justificam tais condições (superestrutura). As forças econômicas emergentes:
burguesia comercial e financeira requerem, a partir de sua ação e comando na esfera
econômica, uma nova modelagem de soberania e poder, tendo como fim corroborar a
ampliação de seu processo de afirmação como protagonista das novas relações
econômicas, cuja dimensão de dominação deve guardar correspondência com o arranjo
político que a engendra.
Um processo dialético de afirmação em que as condições superestruturais se
relacionam, afirmando, consolidando e legitimando as relações econômicas dadas através
de seu momento estrutural. Assim enunciado pela teoria marxiana. “A soma total destas
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade; o fundamento real
sobre o qual se ergue uma superestrutura política e jurídica e ao qual correspondem
formas definidas de consciência social”.
9 – Conflito político religioso de proporções continentais (1618-1648) que envolveu católicos e protestantes. Por um lado o Sacro Império Germânico em confronto com os demais reinados europeus à exceção de Inglaterra e a Rússia. Seu término engendrou a “paz de Vestefália”. 10 – Tratado de paz europeu, conseqüência da “Guerra dos Trinta Anos”. Redefiniu o mapa político da Europa. Para muitos historiadores é de grande significância para a conformação dos Estados nacionais europeus.
96
É por força destas condições engendradas pelos novos sujeitos das relações
econômicas e sociais, em concomitância com os aspectos filosóficos e religiosos apontados
anteriormente, que se apreende a emergência histórica da ordem Absolutista. O monarca
Absolutista proporciona as condições ideais para o pleno desenvolvimento das forças
sociais e econômicas, voltadas para o processo de expansão e acumulação de riquezas.
O Absolutismo enquanto poder se define politicamente por meio da concomitância
dos conceitos territorialidade e soberania, proporcionando as condições objetivas, para o
exercício subjetivo dos novos sujeitos sociais, em sua dinâmica permanente de expansão e
acumulação de riquezas. Essencialidade indispensável para a construção da nova ordem
econômica, cuja correspondência na esfera política se manifesta, no devir, pela emergência
do Estado Moderno.
Se por um lado o Poder Absolutista manifesta uma nova ordem política, distinta do
arranjo medieval, o mesmo não se pode afirmar acerca de sua justificativa filosófica. O
conceito de soberania experimentado pela ordem absolutista não se insurge contra a
metafísica da escolástica. Pelo contrário, reafirma o atávico determinismo divino,
apostando na definição do conceito de soberania como decorrente de uma ordem divina
que se manifesta na esfera temporal: “O direito divino dos reis”.
Se abordada a questão pela lógica do processo de emergência do plano da imanência,
o Absolutismo retumba em uma flagrante derrota das forças filosóficas que apostavam na
afirmação do poder pela imanência.
O aparente paradoxo contido na postura dos novos sujeitos da ordem econômica, cuja
característica marcante foi romper com os preceitos da ordem moral medieval (ascese
secular), para em seguida se apropriar de parte do pensamento escolástico para afirmar sua
condição partilhada de poder político, se desvanece quando se observa que a emergência
histórica de novas formas de organização social, política e econômica não se produz pelo
imediatismo, e nem tampouco pela manifestação imediata da totalidade da potência
transformadora que está contida nos novos sujeitos sociais.
A nova ordem política não conta com seu correspondente sócio-estrutural
plenamente desenvolvido: as burguesias comercial e financeira. A desconcertante opção
97
pela monarquia absolutista e a inevitável presença do monarca como “sócio” nas
transações econômicas, lhes assegura objetivamente as condições favoráveis ao
desenvolvimento da nova ordem econômica que se que se anuncia. Não havia, contudo,
condições objetivas para a conformação política de um momento estrutural que
manifestasse na ordem política a hegemonia que se consolidava, paulatinamente, na esfera
econômica.
O “Estado” territorial absolutista não guarda correspondência com as formas
políticas que o definiriam na modernidade política. O conceito que o molda e o decorrente
arranjo político que o manifesta através de sua formalidade constituinte, não se ampara em
um ordenamento filosófico, cuja ontologia metafísica considere a emergência das “forças
espirituais” liberadas pela descoberta do ser enquanto sujeito histórico. Na verdade em
parte nega sua possibilidade histórica, ao apor um arranjo transcendente aos clamores
renascentistas do plano da imanência. Quando, em parte posterior do trabalho, for tratado o
arranjo filosófico produzido por Hegel, ficará explícita esta transmudada dimensão
transcendente que do Estado Moderno aprende em sua constituição política..
Se por um lado o Absolutismo incorpora elementos presentes ao conceito de Estado
moderno, tais como centralização administrativa, corpo burocrático e monopólio da
violência sobre uma dada territorialidade, falta-lhe o outro componente indissociável a sua
essencialidade: o conceito de Nação.
Nação : Lealdade e Pertencimento para Além da Comunidade Mágica
98
“O Problema diante de nós deriva do fato de que a nação moderna; seja um Estado ou um corpo de pessoas que aspiram formar um Estado, diferem em tamanho, escala e natureza das reais comunidades com as quais os seres humanos se identificaram através da história, e colocam demandas muito diferentes para estes. A nação Moderna é uma ”comunidade imaginada” na útil frase de Benedict Anderson” Eric Hobsbawm
Quando no capítulo anterior foram desenvolvidas algumas das
características mais significativas acerca do ordenamento político do mundo medieval,
faltou-lhe ressaltar um aspecto de extrema relevância para qualquer ordem política.
Aspecto este que Norberto Bobbio 11 destaca sobremaneira quando procurar definir o
significado e o próprio conceito do termo Nação, cujo sentido e dimensão emprega
legitimidade. Tal aspecto se define a partir da idéia de lealdade.
A idéia de lealdade, na forma pela qual o referido autor a emprega e lhe dá sentido,
pode ser complementada, também, a partir do que Antonio Gramsci considera como
imprescindível à construção e manutenção do ordenamento ideológico que conforma o
processo de hegemonia no interior de um dado bloco histórico: Consentimento 12.
Ampliando um pouco mais o sentido do termo lealdade, empregado por Bobbio,
percebe-se a proximidade deste com a idéia de pertencimento. Justamente a partir desta
totalidade ideal é que se procurará desenvolver a análise sobre a emergência e
consolidação moderna do conceito de Nação, e sua íntima relação com a estrutura
simbólica do Estado Moderno.
11 – Norberto Bobbio, (Turim, 1909 - 2004) Filósofo, político, historiador do pensamento político e senador vitalício Italiano.
12 - O uso conceitual de consentimento contido na lógica analítica de Antonio Gramsci se reporta à idéia de que a construção da hegemonia ideológica que consolida o bloco histórico, e a própria assunção observada através da dominação, vivenciadas partir das relações sociais de produção - que no entanto, se manifesta no momento superestrutural ( estado ) – entre as classe hegemônicas e classes subalternas, se constitui a partir de duas dinâmicas de poder a coerção, ou uso da força (Estado), e o próprio consentimento( Sociedade Civil). Este último, conseqüência dos instrumentos ideológicos que asseguram a manutenção da visão de mundo hegemônica.
99
O termo Nação possui significados distintos quando observado seu transcurso
histórico. A vinculação que se dá modernamente, deste com a condição de territorialidade
não é, necessariamente observada, quando apreciado a partir de sua dimensão originária.
Seu significado e simbologia remetem muito mais à ordem cultural, do que a qualquer
outro elemento inerente à vida social.
Benedict Anderson13, a partir de seus estudos sobre a origem e difusão do
nacionalismo como fenômeno político característico de fins do século XVIII 14, abraça esta
premissa analítica quando tributa aos aspectos culturais a força simbólica imprescindível à
constituição da idéia de pertencimento, forjada pela ordem moderna do Estado nacional.
Ao observar que a sensação de pertencimento presente no mundo dinástico
europeu se constitui a partir de concepções produzidas pelas formas religiosas, o autor
destaca este aspecto da vida cultural como elemento chave à idéia de comunidade.
Benedict vai mais além, e remete sua lógica analítica a uma propensão universal. Destaca o
autor que tal condição não é exclusiva ou restrita à pré-modernidade européia O
componente religioso como definidor da sensação de pertencimento nos homens é visto
para alem de qualquer limitação de ordem física (territorialidade) e, sobretudo, observado
em variadas outras comunidades humanas.
Se na visão do autor o Cristianismo desempenha esse papel no mundo europeu pré-
moderno, o mesmo se observa entre outros agrupamentos humanos, etnicamente distintos,
do homem europeu. Os grandes complexos religiosos – ou como define o autor: culturas
13 - Bendict Anderson, (Kunming, China, 1936 - ) Autor de textos que produzem uma análise do desenvolvimento do conceito de nação, a partir das mudanças observadas nos paradigma que engendram as comunidades humanas.. Se em um primeiro momento os contingentes humanos assimilaram a condição de pertencimento, exercitado através de uma comunidade mágica e religiosa, que não obedece a critérios outros, que não a própria dimensão sagrada que se manifesta por força de escrituras e de uma língua (Latim), muito mais que um instrumento de comunicação, mas veículo de revelação sagrada. Na Modernidade, a efetividade necessária ao pertencimento como forma de agrupar os homens sob um ordenamento não mais religioso, mas sobretudo político, acaba por basear-se em fatores, que se distintos do religioso, guardam em relação e este aspectos simbólicos, a possibilidade de constituição do que o autor vai definir como “comunidades imaginadas”. Principais obras do autor: (1972) Java in a Time of Revolution: Occupation and Resistance, 1944-1946. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press. (1991) Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, rev. ed., London: Verso. (1985) In the Mirror: Literature and Politics in Siam in the American Era. Bangkok: Editions Duang Kamol. (1990) Language and Power: Exploring Political Cultures in Indonesia. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press.(1998) The Spectre of Comparisons: Nationalism, Southeast Asia, and the World. London: Verso. (2005) Under Three Flags: Anarchism and the Anti-colonial Imagination. London: Verso..
1 14 – Referencia ao texto do autor intitulado: “Comunidades Imaginadas: Reflexões a origem e difusão do Nacionalismo”.
100
sagradas – O islã, o budismo, o confucionismo, o hinduísmo e o judaísmo, este último com
sua particular e singular situação de total ausência de territorialidade, somente suprimida
pela constituição do estado judeu no pós-guerra (1945) – são manifestações concretas da
força de adesão e pertencimento produzida pela religiosidade. Basta observar a completa
falta de relação entre a abrangência do credo, quando contraposta aos limites arbitrados
através de territórios politicamente definidos e sua total falta de correspondência entre os
termos; tanto outrora como contemporaneamente.
A sensação de pertencimento produzida em vasto contingente humano, indiferente a
qualquer unicidade ética, ou mesmo para além de qualquer condição de soberania definida
e arbitrada politicamente, só se torna possível, segundo Benedict, por força de uma
estrutura cultural que possui e, se constitui a partir de dois elementos: uma língua e uma
escritura sagrada.
“Poucas coisas são mais impressionantes que o vasto território do Islã que se
estende desde o Marrocos até o arquipélago Sulú. E da Cristandade que vai
desde o Paraguai até o Japão, e do mundo Budista desde Sri Lanka até a
península coreana.. As grandes culturas sagradas( e para nossos fins atuais
poderíamos incluir aqui o confucionismo) incorporam concepções de
comunidades imensas . Mas, o cristianismo, o Islã e também o “reino médio –
que nós consideramos agora chinês, mas que não se imaginava como chinês, e
sim como central –eram imagináveis em grande medida por meio de uma língua
sagrada e uma escritura”( ANDERSON: Pg. 30, 1993)
Se no mundo pré-moderno europeu a construção de pertencimento a uma dada
comunidade se dá a partir da noção de cristão, pela acepção religiosa, e súdito pela ordem
política régia, possibilitando desta forma manter coesa e estável a estrutura orgânica da
sociedade. Por força das novas condições objetivas, postas pela dinâmica social que se
transformava historicamente, urgiu-se a necessidade em estabelecer outros paradigmas de
pertencimento, distintos daqueles; insuficientes como tais, em assegurar as condições
sociais e políticas favoráveis ao pleno desenvolvimento e expansão das novas forças
econômicas.
101
A ordem absolutista havia instituído a centralização do poder assegurando a unidade
política; lealdade e vínculo na condição de súdito de um rei e não mais diretamente ligada
e mediada pela autoridade do “senhor da terra”, em concomitância a um ordenamento
administrativo cuja ação procurará dar uniformidade e regularidade a outrora anárquica
variedade de procedimentos que regulavam a circulação de homens e mercadorias, em um
mundo social repleto de uma multiplicidade de senhores. Cada qual instituindo normas e
regras de acordo com seus interesses dispersos.
A condição imperiosa ao desenvolvimento das forças econômicas em ter o
controle e predomínio nas relações de trocas, em um espaço definido, que lhes assegure o
contínuo processo de acumulação a partir dos excedentes da comercialização. Controle que
não se realiza somente como decorrência de sua força econômica, mas sobretudo por sua
capacidade de intervir e influir nas formulações de ordem política. Acaba por definir a
necessidade de superação de uma ordem política na qual a sua capacidade se torna
limitada pelo poder absolutista que não representa a integralidade de interesses dos novos
“senhores da economia”. Dada esta condição política e histórica, emerge a contingência de
se estabelecer novos elementos simbólicos que assegurem a condição de pertencimento e
lealdade dos indivíduos. Sem a qual não se mantém a imprescindível unidade física sobre o
território.
As reformas protestantes e seu caráter descentralizado e imediático no trato
entre os postulados da fé e os que neles crêem, corresponde em grande parte pela
aceleração das transformações, que já se verificava, apontando para a derrocada do latim
como língua sagrada, e, portanto, expressão inequívoca das escrituras sagradas. O uso das
línguas vernáculas, em detrimento da exclusividade anterior tributada à língua oficial da
cristandade, colabora indiscutivelmente para a superação da simbologia de pertencimento
antes engendrada pela cristandade universal e sem fronteiras.
Ao observar e principalmente, ter acesso aos dogmas em uma língua que lhe é
familiar e contumaz no trato de suas relações interpessoais, o homem europeu, que já havia
sido apartado de sua identilate Christianitate, até então única, desmembrada por força do
“cisma” verificada na emergência do movimento protestante e seus variados matizes
interpretativos, perde de vez o seu referencial simbólico que lhe imprimia a sensação de
pertencimento a uma unidade espiritual e desterritorializada.
102
Benedict Anderson destaca em seus estudos sobre os conceitos de nação e
nacionalismo a importância que a revolução produzida pela ampliação contínua do uso de
línguas vernáculas na impressão e circulação de livros empresta ao momento de superação
da hegemonia lingüística com a qual o latim costurava a unidade cristã. A possibilidade de
se produzir textos em línguas vernáculas, em escala ampliada e direcionada a um dado
contingente lingüístico, rompe com a hegemonia da língua religiosa das publicações. Elas
se tornam um elemento importante na construção do que Eric Hobsbawm 15 define como
possíveis elementos inidentificáveis a um discutível “protonacionalismo”.
A importância, pela qual a imprensa escrita se impõe como elemento modernizador
e, por conseguinte, condutor de uma nova ordem política, de caráter nacional, é destacado
por Benedict Anderson, quando por meio de seu texto “Comunidades Imaginadas” 16
aponta a dimensão exponencial com a qual a imprensa se reproduziu a partir de fins do séc.
XVI, cuja dinâmica de expansão comercial acabou por ajustar-se à mesma ordem
econômica que se insurgia.
A partir dos dados quantitativos destacados pelo autor, percebe-se a forte expansão
experimentada pela indústria do livro. Em 1500 em solo europeu havia sido impresso a
cifra de 20.000.000 de livros. Com a introdução da impressão mecânica em escala
comercial acompanhada, da variabilidade lingüística para além da língua clássica (o latim)
os números de impressos produzidos saltam espantosamente para 200.000.000 em 1600.
O livro como mercadoria produzido em diversidade lingüística, ultrapassando os
limites mercadológicos impostos pela exclusividade do leitor em latim, torna-se fator
importante de expansão e afirmação da nova ordem econômica, em concomitância com o
próprio desenvolvimento histórico dos Estados nacionais, por valorizar em sua estratégia
comercial as línguas vernáculas, criando novos segmentos de leitores que não somente os
“escolados” na latinidade escrita. Inaugurando por força de um pertencimento simbólico
15 - Eric J. Hobsbawm (1927 -) historiador inglês. A referência feita no texto remete a obra do autor intitulada Nações e Nacionalismos, a qual, Hobsbawm aponta e refuta, como elemento constitutivo a construção do conceito moderno de nação, a idéia de uma língua nacional, cuja origem se define como fator de uma incerta protonacionalidade, artificializada e contingente ao processo de afirmação do conceito moderno de nação. 16 - Comunidades Imaginadas: é a própria expressão, e título da obra, na qual Benedict Anderson enfoca, analisa e define a construção moderna do conceito de nação.
103
instituído por uma língua comum; mesmo que reduzida inicialmente a um universo
essencialmente definido por leitores, a dimensão de pertencimento como elemento chave à
difusão, da posterior condição de “consciência nacional”, deveras importante para o
estabelecimento do próprio conceito de nação.
Em concomitância a esta afirmação de línguas vernáculas, em substituição à
exclusividade do latim - até então elo de pertencimento de uma comunidade mágica e
religiosa, cujo manto acondicionava os homens em sua idéia de unidade existencial – que
paulatinamente era substituído por força de uma dinâmica econômica, a qual se afirmava a
industria dos impressos, Benedict Anderson destaca outros três fatores que contribuíram de
forma categórica para as bases materiais da idéia de nação aliada à apreensão de uma dada
língua.
O primeiro aspecto destacado diz respeito à própria língua latina, que se vê,
ao ser secundada nos meios letrados europeus pela insurgência de línguas vernáculas que
passavam a abundar os textos impressos, a condição de uma língua cada vez mais distante
do cotidiano. Perdendo, desta maneira, a condição de elemento de unidade entre os
homens. Uma unidade existencial que deriva da condição de pertencimento produzida
através de uma comunidade religiosa imaginada. Criando, como conseqüência o espaço
necessário para que se construa outras formas de pertencimento para os homens. Cuja
apreensão vai se afirmando paulatinamente pela própria língua vernácula que o substitui.
“Graças aos esforços dos humanistas por reviver a abundante literatura da
antiguidade pré-cristã por difundi-la por meio do mercado da impressão, uma
nova apreciação dos logros estilísticos refinados dos antigos era evidente entre a
intelligentsia transeuropeia. O Latim que até então aspiravam a escrever se torna
cada vez mais alijado da vida eclesiástica e cotidiana. Desta forma, o Latim
adquiriu um caráter esotérico muito diferente do que possuía na época
medieval”.(ANDERSON: Pg. 65, 1993).
A reforma protestante, e a forma pela qual Lutero se esforça em difundir suas críticas
à “Ordem Papal”, usando a língua vernácula alemã como veículo de expressão e momento
de batalha pela “consciência religiosa dos homens, em sua guerra com o establishment
católico. E até mesmo as seguidas impressões da Bíblia em alemão, traduzidas por Lutero,
104
cujo espantoso volume corresponde, entre os anos 1518 e 1525, a um terço das publicações
alemãs”.
As lutas entre protestantes e católicos tiveram como ingrediente, amplamente
favoráveis àqueles, a possibilidade de difusão de suas idéias através da impressão de textos
doutrinários nas mais diversas línguas em compasso direto com a expansão da dinâmica
capitalista de tornar o livro uma mercadoria. Em flagrante vantagem em relação aos
católicos cujas publicações, insistiam no uso do latim. Criou um numero expressivo de
leitores que se referenciavam e se percebiam como assemelhados por meio de uma língua
comum. Como pode ser observado no texto de Benedict Anderson.
“ A coalizão criada entre protestantes e capitalismo impresso, que exportava as
edições populares e baratas,criou rapidamente grandes grupos de leitores novos
– sobretudo entre comerciantes e mulheres, que tipicamente sabiam nada ou
muito pouco de Latim – e ao mesmo tempo os mobilizou para fins políticos-
religiosos. Inevitavelmente não era somente a Igreja sacudida em suas raízes”
(ANDERSON: Pg. 67, 1993)
Por fim Anderson destaca a instituição de línguas administrativas que se em
um primeiro momento destinavam-se somente para uso interno dos elementos internos do
corpo governante, acaba, por uma certa fatalidade involuntária de seus usuários, assumindo
a dimensão de língua oficial. Haja vista a relação imposta pela dinâmica histórica entre a
língua administrativa e a própria condição dos que a falavam quando contraposto à posição
de dominante no processo político em curso.
A partir dessas apreensões torna-se possível compreender a importância a qual
alguns autores atribuem ao elemento lingüístico quanto à constituição do novo
ordenamento político de caráter espacial que começa a se delinear. A língua que servira de
elemento para a consolidação da idéia de pertencimento de uma comunidade, outrora
espiritual, será também o elo causal da idéia de pertencimento que se tenta instituir ao novo
ordenamento.
Não se deve, contudo, considerar como se fosse a língua um elemento explicativo e
conducente natural de pertencimento a um dado grupo humano. Da mesma forma que a
105
língua latina emprestou a sensação e implicou a idéia de uma comunidade espiritual, na
qual as pessoas se imaginavam pertencentes, a língua vernácula terá o mesmo papel.
Entretanto, deve-se atentar para o fato de que muitas das línguas hoje reconhecidas como
símbolos de unidades nacionais eram, a bem da verdade, formas de comunicação de grupos
restritos e minoritários no interior de uma dada comunidade. Estes por serem efetivamente
aqueles que exerciam o controle e a dominação nas relações sociais, acabaram por impor
sua unidade lingüística, restrita e minoritária à totalidade do contingente humano que se
desejava ter como unidade territorial.
Anderson ressalta o aspecto fortuito de tais condições. Atribui menos importância
a estes possíveis condicionantes: o desenvolvimento da indústria do livro com a expansão
das impressões em línguas vernáculas; o caráter esotérico com o qual o Latim passa
paulatinamente a ser percebido; a reforma protestante e as práticas que instituíram línguas
administrativas, em que pese considerá-las explosivas para a conformação do novo
paradigma de pertencimento. Destaca como muito mais pertinente para a emergência do
conceito de nação - ou como define o próprio autor “comunidades imaginadas”, a
observação das profundas mudanças políticas e institucionais logradas entre fins do século
XVIII e meados do século XIX. Como se pode observar a partir da reprodução do seguinte
fragmento de seu texto:
“Embora seja essencial ter em mente a idéia de fatalidade, em um sentido de
condição geral de diversidade lingüística irremediável, seria um erro equiparar
esta fatalidade com esse elemento comum das ideologias nacionalistas que
destaca a fatalidade primordial de linguagens particulares e sua associação com
unidades territoriais particulares. O essencial é a interação entre a fatalidade, a
tecnologia e o capitalismo” (ANDERSON: 1993, Pg. 71)
Ou ainda em outro ponto do mesmo texto em que o autor afirma de forma
categórica que: “Para explicar a descontinuidade na conexão entre as línguas impressas
e, a consciência nacional, faz-se necessário examinar o grande conjunto de novas
entidades políticas que surgiu no hemisfério ocidental entre 1776 a 1838” (ANDERSON:
Pg. 76, 1993).
106
Eric Hobsbawm destaca esta mesma condição, formulada por Anderson, ao afirmar
a partir de seus estudos sobre nação e nacionalismo, o quão está prática tornara-se regra na
constituição das modernas nações. Isso ocorre de forma generalizada entre as elites que
não mais tributavam ao Latim a importância que este teve como língua culta – decorrência
do pensamento escolástico -, substituindo-o em suas relações de ordem social e intragrupo
– principalmente como fonte de comunicação administrativa e literária - por línguas
vernáculas. Que por força de sua posição hegemônica, no processo de transformações
sociais e econômicas em curso, acabam por a impor como língua oficial à unidade
territorial que não dispunha de um idioma empregado como língua contumaz.
O Vernáculo é o elemento necessário à substituição da simbologia constituinte
da idéia de pertencimento, dado pela língua sagrada, própria das escrituras, também
sagradas; a língua que vincula o transcendente que se deseja modelo para o temporal,
perde espaço, mas nem por isso se dissipa enquanto idéia de pertencimento. A língua
vernácula mantém, da mesma forma que o arranjo anterior, a dimensão da língua como
elemento aglutinador das coletividades.
“A nação moderna é uma “comunidade imaginada”, na útil frase de Benedict
Anderson, e não há dúvida de que pode preencher o vazio emocional causado
pelo declínio ou desintegração, ou a inexistência de redes de relação ou
comunidades humanas reais, mas o problema permanece na questão de por que
as pessoas, tendo perdido suas comunidades reais, desejam imaginar esse tipo
particular de substituição. Uma das possíveis razões pode ser a de que, em
muitas partes do mundo , os estados e os movimentos nacionais podem mobilizar
certas variantes do sentimento de vinculo coletivo já existente e podem operar
parcialmente, dessa forma, na escala macropolítica que se ajustaria às nações e
aos estados modernos” (HOBSBAWM: pg. 63, 2004)
Como pode ser observado, torna-se discutível e de difícil assimilação analítica a
idéia de que as línguas vernáculas cultas tenham em um determinado momento se
constituído como elementos naturais para a definição e formação da condição de
pertencimento nacional. Além do que não deve ser desprezada a presença e multiplicidade
de línguas vernáculas não cultas, usadas exclusivamente na comunicação oral intragrupo.
107
Muitas das vezes fragmentadas em diversos grupos, cuja heterogeneidade lingüística não
lhes assegura uma unidade territorial definida lingüisticamente.
Portanto, da mesma forma que não há indícios históricos de um “língua nacional”
escrita - salvo as referencias feitas anteriormente que dão conta da existência de línguas
administrativas e literárias, restritas ás elites locais – o mesmo não se pode afirmar de uma
tradição lingüística de base eminentemente oral. Havia, sim uma tentativa de adaptar a
língua “oficial” e administrativa das elites dirigentes à oralidade lingüística usual dos
homens e mulheres analfabetos, que como tal se constituíam em maioria esmagadora dos
contingentes humanos. Não há registros de línguas de caráter oral que possam ser
apresentadas como elementos constitutivos de uma certa “protonacionalidade”. O texto de
Hobsbawm: “Nações e Nacionalismos”, é elucidativo quando aponta essa condição:
“É difícil conceber uma “língua nacional” genuinamente falada que envolva uma
base puramente oral e que não seja híbrida nem uma gíria ( que certamente pode
ser eventualmente uma língua prática) existente em uma região de qualquer
tamanho geográfico substancial. Em outras palavras a “língua materna” real ou
literal, isto é, idioma aprendido pelos filhos de mães analfabetas e falado para
uso cotidiano, não era em qualquer lugar, uma língua nacional.(HOBSBAWM:
Pg. 69, 2004)
Inúmeros exemplos poderiam ser citados como manifestações da improcedência
sociológica ou antropológica em vincular língua a condições de protonacionalismo. Ao se
observar os variados processos de afirmação política dos atuais Estados-Nacionais,
dificilmente se encontrariam exemplos de conjugação entre língua, território e povo que
amparassem, pela singularidade dos termos, a base social que constitui as modernas
nações. Veja-se o exemplo mais emblemático da constituição do conceito de nação, cuja
importância histórica fora influente e de certa forma paradigma para a constituição do
estado moderno: o processo revolucionário francês (1789...). Quando eclodem os primeiros
conflitos entre a população (terceiro estado) e os monarcas soberanos do estado absolutista,
a língua que se tornaria à “língua nacional” e oficial do Estado francês republicano, o
francês, símbolo da condição de cidadania francesa, era a língua falada em Paris por
108
apenas 50% de seus futuros citoyens17. Inclusive em partes do atual território francês, ao
norte e ao sul de Paris o francês simplesmente não era falado.
Um exemplo mais recente e extremamente paradigmático acerca da falsa
essencialidade atribuída a língua como elemento imprescindível à construção do conceito
moderno de nação e de sua decorrente conseqüência política para com a afirmação do
estado nacional, pode-se argüir o processo de unificação italiana (1860). Quando se
constitui o estado italiano, somente 2,5% dos habitantes, do atual território nacional
falavam de forma cotidiana a língua italiana. O que não se tornou um impedimento à
formação da soberania do estado sob uma dada base territorial, e nem tampouco, foi o
aspecto definidor para sua efetiva realização como entidade nacional politicamente
definida.
Não somente a questão lingüística tem servido de suporte teórico para aqueles que
tendem a identificar a existência de elementos protonacionais, os quais possivelmente ter-
se-iam tornados responsáveis pela condução do processo histórico de afirmação do
conceito moderno de nação. Aspectos amplamente difundidos entre algumas correntes
filosóficas 18 que se dedicam à genealogia do conceito moderno de nação buscam relações
causais que dê conta da existência de vínculos entre etnicidade e sentimento nacional.
Contudo, se observado com rigor analítico, percebe-se sem muita dificuldade
tratar-se de construções teóricas que não se sustentam diante da análise dos processos
históricos que definiram na modernidade o conceito de nação, e seu decorrente político os
Estados-Nacionais. Da mesma forma que as justificativas amparadas em unidades
lingüísticas naturalmente forjadas mostram-se no mínimo discutíveis, quando evocam a
17 - Eric Hobsbawm destaca estes dados em seu texto sobre nações e nacionalismos, citando o seguinte: neste sentido o francês foi essencial para o conceito de França, mesmo que, em 1789, 50% dos franceses não falassem nada de francês; apenas 12 a 13% falavam-no corretamente e, fora da região central, não era habitualmente falado mesmo nas áreas do Lague d’oui, com exceção das cidades e mesmo assim nem sempre nos subúrbios. No Norte e no Sul da França virtualmente ninguém falava o francês” (HOBSBAWM, 2004: Pg 76) 18 - Johan Gottfried Herder (1744 – 1803); Johan Gottlieb Fichte (1762 – 1814) e Ernest Renan (1823 – 1892) são importantes pensadores oitocentistas que tributam aos aspectos lingüísticos e culturais as bases de construção da nacionalidade. O primeiro a partir de uma construção étnico-lingüística, cunhando o termo “Kulturnation” como condição natural a constituição de nações. Na mesma linha interpretativa o filosofo alemão Fichte lança seu texto-manifesto “Discurso a Nação Alemã”(1807), no qual aponta as características e singularidades do povo alemão, dando-lhes a condição de um povo. E por último Renan, que desenvolve a idéia de Comunidades eletivas, das quais as pessoas se identificam eletivamente com determinadas características culturais e lingüísticas que lhes permitem desenvolver a idéia de pertencimento.
109
existência de grupos homogêneos, os quais, a partir de singularidades culturais se tornam
unidades nacionais definidas.
Quando muito tais paradigmas condutores de arranjos nacionais operaram menos
pela identidade positiva do “nós” e muito mais pela negação do “outro”. Ou seja, a questão
de uma possível unidade étnica foi muito mais posta a discussão quando se tentou definir o
“outro”, como momento dialético de afirmação do que seria o “nós”.
Edward Said 1,9 quando descreve a construção dos conceitos de Ocidente e Oriente,
em seu texto “Orientalismo”, identifica claramente o movimento que a partir de uma
negação construída por rebatimento de contrários, acaba por produzir a afirmação
(positiva) de algo que se deseja distinto. O conceito de Oriente se ergue a partir da
identificação, neste, de aspectos e valores que se contrapõem aos valores que teoricamente
definem o que é o Ocidente.
Eric Hobsbawm partilha desta mesma concepção quando procura apontar e
desconstruir a idéia de que a etnicidade possa ser um fator que, em algum momento,
induziu, ou até mesmo estabeleceu naturalmente arranjos de ordem política claramente
artificializados por outras injunções, quando se reivindicam como comunidades nacionais.
Afirma categoricamente e destaca a presença de um “maniqueísmo étnico” que envolve a
caracterização do “outro” como forma de afirmar o “nós”. Este, de difícil identificação, se
não contraposto ao que lhe afirma pela negação.
Entretanto, para o historiador Inglês a questão da etnicidade não pode ser
desprezível ou irrelevante ao fenômeno de emergência do conceito moderno de nação. É
sim, fator de afirmação, não por aspectos que lhe assegurem uma condição natural à
formação de uma possível “consciência protonacional”, mas sobretudo por prestar-se a
semelhança a mesma dimensão de artificialidade política que tange a questão lingüística no
processo de formação da desejada consciência para um dado grupo humano, menos pela
atuação deste e mais por ação de forças políticas que conduzem o processo histórico de
afirmação de sua hegemonia e controle das formas de poder, necessariamente distintas das
até então experimentadas.19 - A referência teórica a Edward Wadie Said (Jerusalém, 1935 – 2003) remete a seu livro intitulado “Orientalismo”, em cujas páginas o autor aponta a construção dos conceitos de Ocidente e Oriente através de uma dinâmica dialética, na qual a negação de um acaba por afirmar a própria condição do outro.
110
“No entanto, esta etnicidade não tem relação histórica com aquilo que é crucial
nas nações modernas, ou seja, a formação do Estado-Nação ou, para o que
importa aqui, qualquer Estado, como demonstra o caso dos gregos antigos.
Poder-se ia argumentar até mesmo que os povos que tem um sentido étnico agudo
e poderoso do que pode ser chamado de etnicidade” tribal” resistiram não
apenas a imposição do estado moderno, nacional ou não como a qualquer
Estado” (HOBSBAWM: Pg. 80, 2004)
Se por um lado Benedict Anderson e Eric Hobsbawm são categóricos em afirmar
por meio de suas linhas argumentativas a desnaturalização da língua e da etnicidade como
elementos constitutivos dos arranjos nacionais europeus a partir do séc XVIII - ao
postularem através de seus estudos a impropriedade em se relacionar uma língua comum
que, por si só, através de sua presença, define arranjos de ordenamentos políticos de caráter
nacional, apontando para um artificialismo engendrado pelas forças transformadoras que
emergiam no cenário histórico e social –, há quem interprete tais acontecimentos históricos
buscando relações de casualidades explícitas para a emergência do fenômeno nacional, a
partir da identificação de aspectos que, segundo suas elucubrações definem e determinam a
própria condição de homogeneidade constituinte do conceito moderno de nação.
Herder20, juntamente com Fichte21 (1762 – 1814), são exemplos de homens de fins
do séc. XVIII e início do séc. XIX que procuram construir o conceito de nação a partir da
idéia de que um idioma, e a própria cultura comum a um dado grupo de homens, pode
constituir-se em um principio fundador de uma determinada nacionalidade. Assegurada
pela singularidade que a concebe como homogenia.
Para que se possa apreender a influência que o fator lingüístico implica em tais
concepções deve-se de atentar para os aspectos históricos de suas origens naturais.
20 – Johan Gottfried Herder (1744 – 1803) lingüista alemão. Expressa suas idéias, quanto a importância e determinação da língua como fator de conformação do conceito de nação em sua obra intitulada “Tratado sobre a origem da Linguagem” (1772).21 – Johann Gottlieb Fichte (1762 – 1814) filósofo alemão. Destacado defensor da consecução do Estado-Nacional Alemão, diante da ocupação napoleônica. Sua principal obra é: “Discursos à nação Alemã” (1807)
111
A Alemanha que hoje definimos como um Estado Nação não existia enquanto
corpo unificado de poder. A bem da verdade tratava-se de uma região ponteada por
inúmeros principados remanescentes do Sacro Império Germânico e outras territorialidades
dispersas, cuja orientação se distingue daquelas por força da aceitação dos dogmas
protestantes.
Alemanha e, também, a Itália, cujas unificações nacionais deram-se de forma
tardia – respectivamente em 1871 e 1870 - em relação aos seus vizinhos, eram de certa
forma exceção em um mundo europeu que já possui alguma forma de centralidade de
poder, como decorrência de ordens Absolutistas que antecedem os estados nacionais
modernos.
A ausência de um Estado centralizado implica a necessidade de que se imagine a
possibilidade de se instituir uma unidade nacional a partir de outros paradigmas que não a
unidade territorial inexistente, por decorrência de um antecedente absolutista permissivo à
centralidade política. Desta forma os citados pensadores procuram através da busca por
uma possível unidade que se conforme um “sentimento” ou “consciência nacional”,
antevendo nos aspectos lingüísticos e culturais a soldadura desejada à forja do nacional.
Ambos os casos diferem do processo francês - seja na concepção jacobina, com
seu caráter universalista; seja a partir das concepções constitucionalista de Sieyès22 , para
que a existência de um estado com poder territorial definido, no qual os esforços de
superação do Ancien Regime são empreendidos pela consecução de um aparto de leis que
institua a pretensa igualdade entre os homens, cujo caráter se pretende com universal, haja
vista a marcha napoleônica sobre as cortes absolutistas européias. As bases para a
conformação da nação alemã partem do pressuposto de que a ordem social define o caráter
nacional, invertendo desta maneira os preceitos de que a nação deriva de uma unidade
estatal que a configura Nesta concepção é a sociedade-nação que define o Estado nacional.
A língua e a cultura, comum ao grupo humano que o reivindica, assumem a condição de
imaginado “protonacionalismo” que carrega como conseqüência a desejada unidade
nacional.
22 - Emmanuel Joseph Sieyès (1748 - 1836).Político e constitucionalista francês à época da Revolução. Suas formulações teóricas são as bases da idéia constitucionalista do Estado moderno. Em que pese seus pendores constitucionalistas, foi ativo e destacado elemento nas articulações para o desfecho do Golpe de Estado de Luis Bonaparte (1851)
112
“Herder e depois Fichte tornar-se-ão os interpretes deste novo conceito de nação
formada por seres vivos e já não vivendo debaixo de leis, como queria Sieyés.
Desde logo, ela vai juntar-se a versão nacional-liberal do padre legislador, assim
como a visão escatológica dos jacobinos preocupados em substituir à
humanidade demasiado banal o homem novo arrancado aos seus laços sociais
para que não se posa confundir senão com o Estado. Alem disso, difere dele
profundamente. Par Helder e Fichte, já não é o Estado que encarna ou deve
refazer a sociedade. É, pelo contrário, esta última a única que possui que a
legitimidade final e que pode, ou não munir-se de Estado à sua vontade. A
urgência, para eles, consiste em afirmar a majestade soberana da nação-
sociedade e de forma alguma em definir o regime de governo do Estado-Nação,
pré-fabricado pelos franceses ( HERMET: Pg 114, 1996)
As concepções de Herder e Fichte são contraposições ao ideário das luzes,
pois não afirmam o primado da Razão como mecanismo para a consecução, e a própria
concepção do Estado como forma superior de ordenamento político. Ao contrário, são
formas reflexivas que definem a pretensa unidade nacional, que possibilita a emergência da
nação a partir de seu conjunto social. O arranjo social, por meio de sua unidade
etnolingistica, é a base ao conceito e à própria constituição do espaço nacional definido
politicamente. Coloca-se, portanto, em oposição ao paradigmático exemplo francês de
consecução da ordem política moderna. Ao mesmo tempo em que se distingue da reflexão
filosófica Kantiana23, cuja concepção evoca a Razão como principio que universaliza a
emergência do próprio Estado Moderno.
É o que se define como “kulturnation”24. A pretensa unidade necessária à
consecução do projeto nacional decorre da percepção de traços de homogeneidade
(lingüística e étnica) que conduzem “naturalmente” os homens à idéia de pertencimento a
um dado universo social. Este sim, a base e essencialidade da idéia de nação, pois lhe
confere um caráter de legitimidade que supera e prescinde de formalidade jurídica
23 - Immanuel Kant (Alemanha, 1724-1804) elege a Razão e sua condição universal como base à consecução do Estado. Ou seja, para Immanuel Kant o Estado decorre da própria capacidade racional de apreender através de seus mecanismos lógicos a idéia de conformação política que se realiza na existência material por força e concepção de uma condição universal aos homens. 24 – Termo que significa cultura, definindo-a como elemento constituinte e base ao estabelecimento do conceito de nação.
113
(Estado). É a ascendência “natural” do social sobre o político. Como aponta Guy Hermet,
a partir do texto de Herder: “Idéias sobre a Filosofia da História da Humanidade”
(HERDER: Pg’s.165 e 173, 1991), quando se refere à construção do conceito de nação.
“Tudo se encontra dito nesta última frase que define a Kulturnation ou nação
etnocultural. Esta apenas “natural” detém por este fato uma legitimidade
superior a qualquer outra.Identifica-se com a língua que reflete o seu gênio e
regula os seus costumes. Está, acima do Estado e igualmente dos modelos de
governo artificiosos que um pensamento abstrato quisesse impor-lhe.”
(HERDER, 1991: Pg. 165 e 173).
Não se trata de analisar ou valorar tais concepções, mas apontá-las como
entendimentos distintos dos experimentados por outros matizes interpretativos da
emergência dos fenômenos nacionais, particularmente em contraste com o observado a
partir do processo revolucionário francês25, cuja natureza se distancia daquelas por
incorporar uma dinâmica contrária, na qual o Estado conduz a formação da nação.
Contudo, cabe registrar que muitas são as inferências históricas acerca das
possíveis influências que tais concepções produziram para a conformação de quadros
nacionais eivados por preceitos xenófobos, cujas bases ideológicas contribuíram
significativamente para a emergência de regimes políticos baseados em superioridades
raciais e culturais. As experiências alemã e italiana, verificadas no transcurso da primeira
metade do século XX com os respectivos regimes nazista e fascista, buscaram incorporar
em seus ideários aspectos que guardam semelhança com a linha argumentativa esboçadas
por força destas visões etnoculturais, pretensamente justificadoras de ações beligerantes e
de dominação sobre outras comunidades políticas.
25 - A eclosão revolucionária francesa desencadeia em seu curso transformações políticas e sociais que visam sobretudo ao aniquilamento institucional do Ancien Regime. O Estado francês já se desenhava por força de uma ordem Absolutista que lhe assegurava feições cuja natureza condiz com um centralismo político e administrativo típico do Estado moderno. Ou seja, na realidade francesa já estavam dada,s de forma anterior à insurgência revolucionária, as características constituintes de uma unidade política e administrativa. O que se passa nos anos decorrentes a 1789 é a incorporação de segmentos sociais (terceiro Estado), antes marginalizados e distantes da ordem político-administrativa. O Estado absolutista já conformava aspectos característicos do Estado moderno.
114
Um aspecto conjuntural, entretanto, deve ser considerado quando se observam
preceitos desta ordem como tentativa de constituição de comunidades humanas providas de
sentimento de unidade nacional. A Alemanha, berço de Herder e Fichte, enquanto
expoente dessas linhagens interpretativas, se configura historicamente pela singularidade
de não ter tido em sua experiência ulterior ao Estado-Nacional ordenamento político que
de forma seminal criara em outras comunidades territoriais do continente europeu as
condições históricas para um ordenamento político modelado pela centralidade
administrativa e política, típicas de um Estado Absolutista. A pretensa “germanidade”
evocada pela língua torna-se peça chave à construção da unidade espacial e social que
concebe a idéia de nação. Como destaca Guy Hermet ao referir-se à particularidade Alemã:
“Observa que o atraso da unificação política da Alemanha a privou da
experiência da lenta edificação das grandes monarquias centralizadas que
delimitaram antecipadamente o espaço da soberania territorial dos Estados-
Nação do ocidente da Europa. Em vez disso, os Alemães apenas contemplaram
por muito tempo o espetáculo da soberania universal e não nacional do Santo
Império Romano-Germânico, que só desapareceu oficialmente em 1806, pela
vontade de Napoleão (HERMET: Pg. 124, 1996)
Não devendo, contudo, apontar opções unívocas quanto ao pensamento moderno
alemão, e quanto a sua filiação filosófica em acordo absoluto para com tais princípios.
Inicialmente Kant e, em seguida Hegel são expressões do idealismo alemão que se
aproxima enormemente das perspectivas dadas pelo processo revolucionário francês.
Quando aqueles concebem que o Estado moderno deriva de um arranjo racional -
seja pelo próprio preceito instrumental e categórico da Razão, evocado por Kant, ou na
desconcertante divinização da Razão por força do “espírito absoluto” que decanta no curso
Histórico - , os dois autores alemães dão conta da materialidade histórica do Estado
moderno como produto da razão. Tampouco os distingue da idéia de Herder e Fitche
quanto à preeminência do social sobre o político.
Entretanto o que se observa historicamente é o fato de que o Estado-Nacional,
produto da tardia unificação alemã (1871), afeiçoa-se ao paradigma racionalista quando se
concebe como um estado institucionalizado (institutioneler Flächenstaat) e portador do
115
direito territorial (Genossenschaft), em claro descompasso com o paradigma do
Kulturnation.
Não se pode, contudo, afirmar que as construções etnoculturais sejam
prerrogativa do mundo germânico. Ernest Renan26 da mesma forma que os citados autores
alemães, desenvolve seu conceito de consciência nacional, baseando-o em aspectos
constitutivos que comungam das mesmas fontes culturais: Língua, Cultura e Etnia.
Ernest Renan, um conservador com expressiva influência no segundo Império
(Luis Bonaparte), cuja crítica ao processo revolucionário francês recai para o fato de que
as nações se fundam pela tradição dinástica e não pela idéia, cara a revolução francesa
calcada na soberania popular.
Ele se posiciona inicialmente a favor dos prussianos quando da anexação da
Alsácia e Lorena, por reconhecer a anexação como legitima dada a “germanidade”
decorrente da língua falada pelos habitantes daquela região, fato que manifesta seu anti-
semitismo e a própria idéia de superioridade ariana. Isso lhe outorga a condição de racista,
nada de excepcional ou extraordinário em um ambiente cultural marcado por forte
influência de matizes sociológicas fundadas em preceitos de diferenciação e hierarquização
racial. Apreensões que decorrem da “certeza científica” para a “desigualdade natural” entre
os homens. Lombroso27 e Gobineau28 são expressões influentes de uma época na qual a
superioridade racial era tida como comprovadamente verdadeira.
26 Ernest Renan (França, 1823-1892), pensador francês do século XIX, formula o conceito moderno de nação concebendo-o como sendo produto de uma comunidade electiva. A força da idéia de nação deriva de um “passado comum” no qual os homens desenvolvem a idéia de pertencimento.27 - Cesare Lombroso (Italia, 1835 – 1909), médico e criminalista Italiano. Torna-se conhecido por defender a idéia de que por força de características físicas alguns homens são “naturalmente” propensos ao crime. São teorias com forte conotação racista.28 - Joseph Arthur de Gobineau (Italia, 1816 - 1882) foi um diplomata, escritor e filósofo francês. Torna-se conhecido quando da publicação de seu texto ”antropológico” "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas"(1835) , no qual afirma categoricamente que existem raças “superiores” e “inferiores”, que ao se miscigenar produzem degenerescência. Afirma que a tendência inexorável à mistura das raças compromete as qualidades da raça humana: “A mistura de raças era inevitável e levaria a raça humana a graus sempre maiores de degenerescência física e intelectual” Inclusive cunha a seguinte frase: "Não creio que viemos dos macacos, mas creio que vamos nessa direção". Esteve em missão diplomática no segundo Império Brasileiro tornando-se freqüentador da corte de Pedro II, que, segundo alguns historiadores, influenciou-lhe profundamente com a idéia do necessário “branqueamento” da população brasileira ( políticas de imigração, cujo contingente eletivo privilegiava as populações de origem européia).
116
Compartilha destas apreensões até 1870, quando em carta ao amigo David F.
Strauss admite a impossibilidade histórica em assegurar a questão da territorialidade, por
direito dinástico, como preceito de soberania de uma nação. Reconhece, portanto a
inviabilidade histórica em se perpetuar a questão dinástica como arremedo para as
formações nacionais em um mundo moderno.
Esse vai-e-vem de Renan - em admitir em um primeiro momento o direito dinástico
como base à idéia de nação, para em seguida refugiar-se na idéia de um “passado comum”:
cultural, lingüístico e ético - faz com que o autor só defina, em sua maturidade intelectual,
os contornos definitivos de suas reflexões acerca do conceito de nação.
Para Renan o conceito de nação deriva da idéia de comunidades, nas quais os
homens se sentem pertencentes a uma “alma coletiva” por força de um passado comum,
cuja reafirmação constante, por força do consentimento que implica as escolhas daqueles,
deve ser reavivado em permanente expressão. Como se a todo momentoos homens
celebrassem a idéia de pertencimento a uma linhagem cultural, lingüística e de costumes
comuns. É o que o autor define como “comunidades eletivas”. Como fica exposto através
da idéia expressa em seu livro: Qu’est-ce qu’une nation?
« Uma Nação é, pois uma grande solidariedade, constituida pelo sentimento dos
sacrifícios feitos e dos que ainda se está disposto a fazer. Supõe-se um passado ;
resume-se, todavia, no presente, por um fato tangível : o consentimento, o desejo
claramente expresso de prosseguir a vida comum. A existencia de uma nação é
( perdoe-me a metáfora) um plebiscito de todos os dias » (RENAN : Pg. 120,
1992).
As questões relacionadas aos aspectos étnico e cultural servirão de anteparo
ideológico e alicerce à condução do projeto de afirmação nacional para muitas nações
européias a partir de fins do século XVIII e ao longo dos séculos XIX e XX,
particularmente em outros quadrantes do globo, cujos ecos se manifestam
contemporaneamente, de forma surpreendente, por força de um aflorar tardio e insistente:
os Bálcãs, as comunidades irlandesas, os Chiapas no México, os Bascos e outros tantos
exemplos de menor visibilidade internacional, mesmo quando contrapostos a uma
117
indiscutível e até inexorável ordem econômica mundial, cuja dinâmica de expansão
continuada tende a amainar os particularismos nacionais.
Não se pode negar que, de forma mais intensa, a conformação do “espírito nacional”
ou “consciência nacional” teve seu prelúdio condutor efetivamente afirmado a partir de
aspectos políticos e econômicos, em claro detrimento de quaisquer formas de conexão
natural com elementos étnicos, lingüísticos ou culturais. Contudo, estes reconhecidamente
se tornaram elementos presentes em um discurso político que procurava afirmar um caráter
nacional, mas que, de maneira subsumida, implica necessidades e interesses de outros
segmentos sociais, que não aqueles relacionados diretamente ao exercício efetivo do poder
político experimentado no ancien regime: uma força social emergente, que se encontrava
em descompasso, quando observado o protagonismo econômico que possuía efetivamente,
em contraposição à subalternidade política com a qual conviviam diante das formas
absolutistas e monárquicas de Poder.
Não se minimize e, ou mesmo abstraia a importância verificada ao papel histórico
das Revoluções: Inglesa (1685 e 1689) e Americana (1776) - cujas ocorrências históricas
guardam seguramente estrita relação com o processo de afirmação de uma nova ordem
política, alicerçada em bases de pertencimento distintas das experimentadas anteriormente
– no bojo das revoluções que varreram a Europa entre os Séculos XVII e XIX, Elas
contribuiram para a equação moderna dos novos paradigmas internos relacionados a
ordem política, além de sua decorrente relação com a afirmação da soberania externa. O
caso francês é manifestadamente o exemplo mais bem acabado e pronunciado das
circunstâncias históricas que definiram a conformidade histórica do conceito moderno de
nação. Ele é um marco da derrocada histórica das formas absolutistas que se
decompunham por força de arranjos internos à própria comunidade que reivindicava
mudanças (terceiro estado)e, em seguida, por força das ações militares empreendidas por
Napoleão Bonaparte em seu prelúdio beligerante e “libertador” em solo europeu.
Evidente é que fatores relativos a questões etnolingüísticas, estiveram presentes no
desenrolar do processo revolucionário francês. A francofonia era, sem dúvidas alguma,
elemento importante para a afirmação da condição de pertencimento à nação francesa.
Contudo, não evitou em confundir um arranjo arbitrado como se natural fosse,
caracterizando-os a priori como elemento seminal à idéia de um protonacionalismo ou um
118
conceito de nação histórica.Tal impossibilidade analítica já fora indicada em passagens
anteriores deste texto, quando se referencia nas reflexões sobre o fenômeno nacional,
analisado por Eric Hobsbawm e Benedict Anderson.
A relação entre condição de cidadão, e não mais de súdito, como elemento novo
para com a idéia de pertencimento ao corpo comunal, que se deseja produzido no
imaginário dos habitantes da territorialidade abrangida pelo Estado Francês, se traduz
incondicionalmente pela capacidade daqueles em expressar-se através da língua vernácula,
instituída e outorgada como oficial pelo Estado Francês. Se observarmos o discurso
“universalista” preconizado pelo ideário revolucionário francês, sobretudo entre os
jacobinos e posteriormente consumado na ação militar de Napoleão, em sua luta por
demolir as “cidadelas” do Absolutismo europeu, verifica-se o peso que a idéia de uma
nação francofônica assume como elemento condutor da construção do pretenso
pertencimento idealizado.
Hobsbawm em seu texto sobre nações e nacionalismo29 aponta a improcedência
analítica ao se insistir na idéia de que a imaginada comunidade lingüística se traduza em
condicionante protonacional. Ou seja, a idéia de que a língua funcione como indutor
natural ao processo de afirmação da possível Nação-Histórica.
“Torna-se então claro que, exceto para os dominantes e para os instruídos, a
língua dificilmente poderia ser um critério para a existência de uma nação, e que
mesmo para aqueles foi necessário escolher um vernáculo nacional (em uma
forma literária padronizada) de preferência a línguas mais prestigiosas, sagradas
ou clássicas que eram, para as elites minoritárias, um meio perfeitamente prático
de comunicação administrativa e intelectual” (HOBSBAWM: Pg. 73,1990)
A língua vernácula como expressão de pertencimento à nação, a partir de
uma artificialidade condicionante decorrente de aspectos administrativos e políticos
imposta pelas minorias letradas, no transcurso de consolidação do centralismo político
produzido pela ordem absolutista - este sim, fator destacável ao entendimento da
consecução histórica da ordem Estatal moderna - não pode ser apontada com o caráter
29 – Hobsbawm, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1870.: Programa, mito e realidade. São Paulo: Ed Paz e Terra, 1990.
119
exclusivista que seus postulantes defendem. Para que se apreendam os possíveis fatores
condicionantes da emergência histórica do conceito moderno de nação, requer-se acuidade
analítica que identifique outros matizes ordinários ao próprio desenvolvimento das
contradições verificadas no processo social e político, com as quais as comunidades
européias se defrontam no referido período em questão..
Ao firmar que as bases do conceito de pertencimento - distinto do experimentado
pela magia e simbologia religiosa -, por força de um língua que se quer ungida
naturalmente como causalidade para a idéia moderna de nação, não condiz com a
observação mais apurada acerca dos fatores históricos que encadearam a emergência do
conceito moderno de nação, e seu resultado decorrente, alinhado a idéia do “Estado-
Nacional”. Sobretudo se observado o transcurso revolucionário experimentado em França.
A partir da observação do processo revolucionário francês, elaborado por seus
distintos, mas atentos interpretes históricos: Karl Marx (1818 - 1883)30 e Alexis
Tocqueville (1805 – 1859) 31, constat-se que os fatores que contribuíram para a eclosão, e a
própria dinâmica revolucionária que culmina com a afirmação do que se pode definir como
a moderna nação francesa, são apontados por força de outras narrativas analíticas. O que os
dois autores observam, em que pese não estabelecerem construções analíticas forjadas sob
as mesmas perspectivas reflexivas, é que o que está em jogo é a ruptura entre dois
momentos por força de condicionantes históricas que implicam a emergência de formas de
poder que se distanciam essencialmente das formas anteriores.
30 – Karl Marx - (Alemanha, 1818-1883), filósofo e militante político alemão. Em seus textos intitulados 18 Brumário de Luis Bonaparte (1848/1851) e Guerra Civil em França (1871), analisa o processo revolucionário francês e sua importância para o estabelecimento de uma nova ordem política, cuja característica remetem a construção do Estado moderno Francês, relacionando-o as lutas entre as novas forças sociais (burguesia e proletariado), em contraposição as remanescentes do ancien regime, em seu processo histórico de afirmação política. Ao observar o processo revolucionário francês por meio de ferramental analítico derivado do materialismo histórico e dialético, e da própria idéia de ser a luta de classes a força motriz das transformações históricas, privilegia sua reflexão sobre os fatos, por força de argumentos fundados no desenvolvimento das relações sociais de produção. 31 – Alexis Tocqueville (França, 1805 – 1859) – Pensador e Comentador da cena política francesa.Membro da Assembléia Nacional em França (1848). Aborda os aspectos da Revolução francesa a partir da relação deste evento com a própria dinâmica imposta pelo Absolutismo Francês, em seu continuado processo de centralização política e administrativa, cuja conseqüência produziu as bases do desmoronamento social que leva a eclosão da Revolução. Destaca a impossibilidade em se instituir uma ordem política que se constitua a partir do preceito da igualdade. Reconhece o esgotamento político da velha ordem, mas não concebe a nova pelo primado da igualdade, que para o autor é uma idéia inexeqüível.Sua obra referenciada ao assunto é: Lembranças de 1848.
120
Em momento algum se manifesta em seus argumentos reflexivos o evocar de
possíveis elementos protonacionais que, conjugados, induzem e definem o processo de
transformação pelo qual passa a sociedade francesa, em particular e a européia como um
todo. Eles estabelecem as referências analíticas sobre o processo político que descrevem e
observam qualquer relação causal entre idéia de pertencimento comum, seja ele de caráter
étnico ou lingüístico, como determinantes para as novas formas de ordenamento político,
que emergem do evento revolucionário. Ao contrário procuram construir a lógica
processual a partir de elementos intimamente relacionados aos conjuntos de forças sociais
que se enfrentam nos vários momentos do transcurso revolucionário francês.
Ao observar e analisar os acontecimentos revolucionários em França, Marx descreve
os episódios relacionados ao período com os olhos voltados para uma análise política e
sociológica, que visa ressaltar o quanto a dinâmica política das sociedades não se conforma
somente de acordo com os desejos daqueles que a vivem, mas, sim por força de
conjunturas, objetivamente experimentadas, que acabam por impor determinados padrões
de institucionalidade ao social e ao político. As transformações em curso são pensadas a
partir de um conjunto analítico, e não na factualidade do momento, mas ancorados em uma
lógica que deriva de uma apreensão histórica e da dinâmica social e transformadora que
advém do processo; conformado pelo antagonismo social entre sujeitos coletivos que em
determinados momentos são hegemônicos como força constituinte da ordem social e
política.
Conclui Marx em sua obra que a incapacidade política, fruto da correlação de
forças desfavorável,, e a própria ausência de fatores objetivos, que entrelaçados aos de
ordem subjetiva, relacionada aos sujeitos históricos protagonistas do momento
revolucionário a quem caberia assumir hegemonicamente a ordem política, foram motivo
determinante para que o “golpe de estado” de Luis Bonaparte fosse impetrado à sociedade
francesa. Não como decorrência do devir histórico, mas como alternativa á falta de
capacidade das forças revolucionárias, nesse momento a burguesia ascendente, de assumir
e conformar o Estado francês segundo seus interesses. Coube a Luis Bonaparte fazê-lo, de
forma falseada, pois, sua – no caso usando uma categoria marxista de análise – sua
conformidade política e superestrutural, não guarda relação com nenhuma das forças
sociais estruturais, que emergiram no curso do processo revolucionário.
121
Convém destacar que na lógica do pensamento de Marx a realidade social se
constituiu em patamares de representação; a base ou infra-estrutura, que conjuga as forças
produtivas; os recursos humanos e as técnicas de produção, e as relações sociais de
produção, que se desenvolvem a partir das relações de produção entre as classes sociais,
que são os sujeitos da produção, no caso das sociedades capitalistas: a burguesia e o
proletariado.
A conjugação das forças produtiva com as relações sociais de produção manifesta
uma ordem ideológica, política e jurídica, uma representação da maneira pela qual o
Estado se afeiçoa, toma forma, em um dado momento histórico, a que Marx denomina
como sendo superestrutura: a existência destes patamares de realidade ocorre de forma
integrada e eles são inseparáveis. A existência de um está diretamente relacionada à
existência do outro, não se constituem de forma isolada.
Aléxis Tocqueville, aristocrata francês, tem uma leitura muito singular e, até certo
ponto e por que não coerente com sua posição social. Reconhece que o mundo emoldurado
pela ordem do ancien regime não mais subsistiria ao contexto político e social, no qual o
processo revolucionário francês havia explodido, rompendo irreversivelmente as
comportas que tentavam postergar a emergência das novas forças sociais que se
insinuavam. Ou seja, há nos escritos de Tocqueville a exata noção de que sua classe de
origem não mais teria a hegemonia do processo político e social.
Apesar de perceber tal dinâmica política, o autor apreende a conjuntura como
sendo produto de um processo que se desenha a partir de certos procedimentos que já se
encontravam postos à época do próprio regime superado. A centralização do poder e as
transformações sociais que vinham tendo curso em França, com o alijamento progressivo
de setores da nobreza diante do processo decisório administrativo e político,
proporcionarão o que o autor descreve como: a desconstrução da ordem social, tornando o
mundo social francês, pré-1789, um amontoado de organismos que não mais se
relacionavam organicamente entre si. Conforma-se, portanto uma ordem social, em seu
ponto de vista, sem hierarquias, em que todos haviam perdido a noção do seu
posicionamento, diante da imaginada e abstrata estrutura que o emoldurava.
122
O mundo das idéias havia sido inundado por reflexões de ordem filosófica, política,
social que versavam sobre questões relacionadas à liberdade e a igualdade. Isso produz no
tecido social francês a apreensão por parte de seus sujeitos de que a ordem feudal era
portadora de atributos e características que, ao contrário, reafirmavam, por meio de sua
organicidade a negação desses anseios.
Os atributos relacionados à liberdade e a igualdade como proposta a se realizar
(ideário revolucionário francês em seu primeiro momento) ao longo do processo
revolucionário deflagrado, tornam-se as peças chaves ao entendimento da visão produzida
por Tocqueville. Este conforma toda a sua crítica ao que considera como uma equação de
propósitos que não reúne condições de modelar o corpo social francês.
Para o autor, a “desordem” observada na agudeza do processo revolucionário se
manifesta pela equivocada apreensão dos sujeitos políticos quanto ao desejo de liberdade e
igualdade, pois esses se manifestam de forma conjunta e devem, portanto serem
perseguidos, assim como a realização de um implica necessariamente a realização do
outro.
O incômodo político que se manifesta no ensaio de Tocqueville, por meio do que ele
descreve como “processo de desordem” é fruto de sua apreensão de que a nova ordem
deve, sim, contemplar a questão da liberdade, mas que a igualdade não passa de uma
quimera verbalizada e “decantada” pela intelectualidade que havia se insinuado como
vanguarda do movimento revolucionário, produzindo nos sujeitos a idéia de que a ordem
social deveria se conformada a esses princípios.
Portanto para Tocqueville o que se passava diante de seus olhos no período assinalado
nada mais era que um momento em que a desordem havia sido a tônica e que uma nova
ordem, necessariamente deveria se instaurar. No entanto, esta deveria conformar em seu
escopo institucional formas de esteios políticos que modelassem a sociedade a partir de um
princípio de liberdade aos cidadãos, mas que não comportasse o principio da igualdade,
que para aquele era inexeqüível socialmente.
São autores que analisam a formação da nação moderna francesa a partir do colapso do
Absolutismo como ordem social e política. Não interpõe aos fatos descritos quaisquer
123
argumentos que possam, mesmo que indiretamente, evocar a formação de uma nova ordem
social e política que se constitua a partir de condições culturais ou lingüísticas. É
essencialmente pela luta política, travada entre as forças sociais, que vai se delinear os
contornos do processo em curso.
A língua oficial( pretensamente comum), o padrão étnico ou a cultura são sem
sombra de dúvidas elementos que se prestaram à consolidação do conceito moderno de
nação. Contribuíram para que determinados grupos humanos reivindicassem direitos em se
constituir a partir de singularidades e especificidades que lhes assegurassem a condição de
nacionais. Contudo, não se deve considerar de forma absoluta que tais elementos possam
ter assumido historicamente a condição de indutores naturais à construção de uma idéia ou
“consciência nacional”.
O conceito de Nação e o Estado Moderno, assim como sua emergência histórica,
fundado em bases de pertencimento, territorialidade e língua, não pode ser encarado
analiticamente como decorrência e produto desses fatores, como se constituintes fossem de
uma idéia de protonacionalismo indutor do conceito moderno de nação. A inegável
dinâmica social - em seus matizes religiosos, econômicos, filosóficos e políticos -
decorrente do processo de ajustamento da ordem política aos fatores de ordem material,
experimentados ao longo do processo de emergência e maturação da condição moderna,
respondem de maneira mais apropriada àqueles que buscam apontar o conjunto de fatores
determinantes a sua emergência histórica.
Por fim, deve ser considerada como pertinente à idéia de que o Estado moderno não se
define, em sua institucionalidade histórica, pela lógica que pretensamente o antecipa: o
conceito de nação. Mostra-se mais producente a uma análise política conceber quando se
procura argüir as bases constituintes de sua emergência - enquanto aparelho transcendente
de Poder, cuja característica principal afirma a incondicional negação do plano da
imanência como momento de afirmação da ordem política – a inversão dos fatores: O
Estado enquanto instância de Poder é que define através de uma ordem jurídica e demais
fatores alçados à condição de pertencimento a abrangência da Nação.
O Estado moderno se faz por contingências de um processo histórico que busca a
afirmação superestrutural de uma ordem política dada pelas relações sociais de produção.
124
Elabora o conceito e a própria conformação da nação a partir de elementos arbitrados –
seja por força de argumentos que imputam à língua ou a origem étnica a unidade
indispensável a sua apreensão simbólica - como se naturais fossem. Assim, dando-lhes
feições de representação de uma homogeneidade em flagrante contraste com uma realidade
social, política e econômica cuja essencialidade se manifesta por uma diversidade que se
procura eclipsar.
Idealismo e o Estado Ético: A Nova Ordem Transcendente
“O Estado, como realidade em ato de vontade substancial, realidade que essa adquiri na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito
125
soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever” G.W.F Hegel
Como fora destacado no capítulo anterior, o novo poder soberano interno
institui-se a partir da emergência do Estado moderno e todo o seu corolário se molda a
partir da idéia de um arranjo pseudonatural, que se consuma através de elementos culturais,
produzindo efeitos relacionados às raízes de um pertencimento que se deseja incorporado
por aqueles que se encontram em uma dada territorialidade, definida soberanamente por
força de um ordenamento jurídico e administrativo. Tal condição não só alterou
profundamente as relações políticas internas às comunidades que o reivindicavam, dando-
lhes um caráter administrativo e jurídico centralizado, ensejando o que se define
modernamente como os Estados nacionais, mas como também por estabelecer
definitivamente as novas formas pelas quais as relações de poder entre as novas
territorialidades, enquanto ordens políticas nacionais, se manifestarão na modernidade em
sua posição de soberania em suas relações externas.
O Estado-Nação é o produto político mais evidente das transformações
experimentadas ao longo da afirmação da modernidade. A antiga ordem transcendental
baseada no rebatimento da ordem espiritual sobre a ordem material estava definitivamente
suplantada. Obviamente que as pretensões de realização de formas políticas de Poder que
afirmassem a idéia de imanência como momento de realização da soberania, também
haviam sido solenemente excluídas do horizonte político das comunidades que passaram
pelos processos de afirmação do Estado como instância da ordem política.
O importante a ser ressaltado é que o mecanismo de afirmação da nova ordem
soberana interna acaba por definir as relações entre estas unidades políticas quando
observada a própria dinâmica de afirmação do ordenamento de soberanias externas que
dela deriva. Ou seja, a soberania nas relações externas entre as unidades políticas nacionais
é conseqüência da instituição de um ordenamento administrativo e jurídico em um dado
espaço territorial.
126
O ordenamento jurídico/administrativo, a secularização da política e o
monopólio do uso da força são as marcas indeléveis do caráter político do Estado moderno.
Contudo, uma outra forma de apreender a sua essencialidade política deve ser considerada:
a perspectiva simbólica de uma pretensa neutralidade que este procura manifestar diante de
uma ordem econômica e social que não comporta unicidade de interesses.
Como todo ordenamento das relações de poder implica um arranjo do pensamento que
o define, a filosofia política assume um papel preponderante na conformação da nova
ordem política ensejada pelo Estado moderno. As especulações que passaram a ocupar o
espectro do pensamento político moderno – como já fora observado em partes anteriores
deste trabalho - tiveram como fim enunciar e conformar o desenho do novo aparelho
transcendente de poder. Dentre as matizes filosóficas que se debruçaram sobre a questão,
pode-se considerar que a forma mais bem acabada em se instituir as bases filosóficas desta
expressão, necessária ao ordenamento político que institui o Estado moderno, se manifesta
em toda a sua essencialidade através do pensamento filosófico de Hegel 32.
As concepções elaboradas a partir do conjunto do pensamento hegeliano, atentas
como tal a idéia de universalidade histórica como produto do desenvolvimento da Razão,
que se conforma à definitiva simbologia que induz a idéia de neutralidade e universalidade
da emergência das formas políticas definidoras da ordem política moderna, sãoa essência
de um pensamento filosófico que imputa àquela o papel de definir os processos materiais e
históricos experimentados ao longo da afirmação e manifestação do absoluto, enquanto
espírito portador da essencialidade e da própria universalidade que contempla.
O Estado moderno e seu arranjo jurídico são produto de um arco reflexivo que
procura a partir da manifestação da Razão na objetividade histórica justificar a emergência
e a própria definição absoluta e definitiva do ordenamento político que institui a
modernidade em sua manifestação política.
32 - George Wilhelm Friedrich Hegel – (Alemanha, 1770 – 1831). filósofo alemão. Juntamente com Immanuel Kant forma a tradição do pensamento idealista alemão. A base de seu pensamento filosófico repousa na apreensão da dialética como concepção do real que se dá na esfera da Razão. Par Hegel o processo histórico se constitui, não pelas relações que implicam a convivência humana, mas sabido por força de uma ordem que lhe é exterior, mas que, contudo define a materialidade. O espírito absoluto transita pela temporalidade histórica conformando as formas sociais não pela ação dos homens, mas tendo este o papel de perceber as através do pensamento que lhe é dado ppela ordem universal que a tudo contempla. A história se faz por um continuado processo dialético entre as formas ideais, cuja afirmação, no real, é produto da ordem espiritual, irremediavelmente provedora do devir.
127
Sem dúvida alguma, o pensamento de Hegel - quando se insinua, a partir de sua
matriz reflexiva, para com a análise dos princípios da filosofia do Direito está construindo
a idéia de que a condição moderna que institui a ordem jurídica do Estado é produto do
processo de assimilação histórica da manifestação material do “espírito absoluto” em seu
transcurso. Hegel vai buscar em sua equação dialética a resposta para o que observa
diante das transformações pelas quais passa o mundo europeu. Em especial a partir dos
acontecimentos revolucionários em França, forjando-os como modelo à própria idéia pela
qual concebe o processo político em sua terra de origem.
A Revolução Francesa para Hegel é indiscutivelmente um ponto de inflexão, no qual
a manifestação das transformações produzidas pela força inexorável da Razão sobre a
objetividade se manifesta de forma didática, elucidando sua proposição acerca da idéia de
que os fatos verificados na objetividade são, nada mais nada menos, do que a
manifestação, em um dado período histórico, da ordem racional que conforma e impera
sobre os processo de afirmação histórica.
A contraposição de formas ideais – dialética - traz à objetividade material um
desenrolar de sucessivas transformações que encadeadas ao longo da história conformam o
processo de afirmação das novas ordens políticas e sociais, dadas pela inexorabilidade do
transcurso experimentado pelo “espírito absoluto” em sua ação imperativa e ordenadora
sobre a realidade objetiva.
O sistema dialético de Hegel se articula a partir da idéia de que há um permanente
conflito de contrários, em que a idéia inicial se vê contraposta pelo seu inseparável
contrário, cuja conseqüência indica algo novo, cujo caráter é precário e provisório, pois
assim que se insinua constrói novamente o seu contrário, produzindo um processo de
contradições advém desse processo a lei universal da contradição, que se repete a cada
momento manifesta pela provisoriedade dos resultados que produz, os quais, contudo, leva
ao cabo e ao fim, ao se manifestar pelo absoluto que contém a universalidade. Em alguns
momentos aparentemente particularizados, mas partes integrantes de um todo absoluto que
os contém.
128
Daí a idéia de que o processo histórico pode ser percebido como descontinuado ou
sem relações diretas, entre as várias formas que temporalmente pode assumir. Hegel, no
entanto, chama a atenção e destaca suas formulações acerca desta possível incompreensão,
para o fato de que as singularidades são etapas a serem vencidas pelos transcursos
singulares experimentados pelas diversas formas de emergências históricas observáveis.
Mas a condição de singularidade porém se desfaz quando se consegue apreender as
relações que este mantém com o todo, universal e absoluto.
Por essa condição é que o idealista alemão vai perceber a necessidade de que sua
Alemanha percorra e configure a ordem monárquica como momento imprescindível,
produto efetivamente de uma singularidade que, por fim, dar-se-á em um momento, cuja
modelagem o autor vislumbra ao observar a manifestação histórica exemplar da
manifestação do “espírito absoluto”, contida nas transformações que se sucederam a partir
do processo revolucionário francês. Em outras palavras, o entrechoque dos contrários
produzido idealmente acaba por engendrar na ordem objetiva as transformações percebidas
no transcurso histórico. É a dialética da abstração se manifestando na ordem material.
A dialética hegeliana pressupõe uma unidade permanente de contrários. Ao se
insinuar uma idéia, imediatamente tal condição implica o seu contrário correspondente,
produzindo um momento que se vê na contingência de ser novamente defrontado com seu
contrário. Essa dinâmica idealista, segundo o autor, acaba por insinuar-se na própria
maneira pela qual o processo histórico se manifesta.
Importante notar que tal maneira de formular e conceber o processo de apreensão
das idéias está em contraposição à própria lógica clássica. Enquanto esta, procura tornar
absolutas, as observações que produzem ao sistema dialético, que se pauta por instituir
momentos ungidos por um caráter provisório que se supera pela própria dinâmica que o
induz – o conjunto dialético e a unidade dos contrários que se estabelece. O que para
Hegel, e seu sistema dialético, deve ser apreendido como parte precária e não definitiva de
um momento, que se desfaz por força do movimento inerente ao pensamento em sua
dinâmica dialética.
Hegel define esta precipitação em busca do definitivo como sendo entendimento
(Verstand), reconhecidamente como parte indispensável da Razão (Vernunft), mas que
129
contudo não pode ser encarado como verdadeiro ou absoluto. Possui e deve ser aprendido
como relativo nos termos da validade que manifesta. Como bem destaca Hegel ao afirmar
que “estas leis do pensamento são momentos singulares que desaparecem e cuja verdade
é apenas o todo do movimento pensante, é apenas o próprio saber”.
Ou, ainda, como destaca Jacques D’Hondt33 comentando essa condição: “A critica
racional mostra esse caráter relativo, passageiro, momentâneo, parcial das operações do
entendimento, e por isso mesmo a sua validade relativa” (D’HONDT: Pg. 103)
A singularidade do pensamento de Hegel manifesta-se por apontar o processo de
transformação da ordem material e histórica como produto da afirmação da Razão
enquanto absoluto, ou, ainda, a própria imersão na objetividade da manifestação do
desenvolvimento do “espírito absoluto” em sua trajetória de afirmação. Ou seja, as formas
históricas que se manifestam em determinados períodos do transcurso civilizador nada são,
senão a manifestação da Razão que encontra as condições objetivas para se afirmar em
uma dada realidade, que não se realiza por força ou contingência dos homens, mas através
destes, por força da idéia (o espírito absoluto) – essa, sim, a construtora da ordem material.
Jacques D’Hondt, ao comentar o pensamento filosófico de Hegel, aponta e destaca
essa condicionalidade, definida pela onipotência da idéia sobre a materialidade histórica e,
sobretudo, ao próprio papel de veículo de sua manifestação imputada aos homens
(filósofos), não como criadores da idéia, mas por ela utilizados como forma de expressão
da verdade, que se quer contida na universalidade que sua manifestação, particular, e até
mesmo singularizada, indica em cada momento, mas que, correspondem a um todo.
“ Todavia, não é em toda e qualquer condição que se abre o caminho
para a verdade. É da natureza do verdadeiro só se impor quando chegou o
seu tempo e, portanto, secundariamente é que o êxito depende do talento do
autor e do arbítrio do leitor. O encontro entre ambos é regido por uma
necessidade, antes de tudo secreta: o público atingir a maturidade
indispensável quando o filósofo efetua oportunamente a descoberta.
Aproxima-se uma correspondência profunda e ambos são levados, cada um 33 - Jacques H’Hondt. filosofo francês, professor de Filosofia na Universidade de Poitiers. É especialista e estudioso da obra de Hegel.
130
a sua maneira, por um mesmo espírito novo, uma mesma nova maneira de
pensar, uma mesma aspiração de uma época” (D’HONDT : Pg. 25, 1982)
O processo histórico para Hegel é um desfilar de manifestações que, mesmo que
percebidas como singularizadas, guardam relação direta com a totalidade e a
universalidade. São momentos de afirmação em separado de uma dada etapa do processo
de afirmação objetiva do “ espírito absoluto”, que, por serem partes de um todo, se
esgotam por força da dinâmica dialética que impulsiona a trajetória das idéias ao longo do
percurso histórico.
O que aparentemente pode se mostrar desconexo, descontinuado ou esporádico em
sua manifestação histórica, a bem da verdade inteligível ao pensamento hegeliano, possui e
guarda intima ligação com o todo. Essa é a maneira pela qual Hegel concebe o
desenvolvimento histórico. Afinal, para o autor a história possui um engendrar coníinuo.
Tal como refere D’Hondt, quando alude à perspectiva pela qual Hegel concebe a história.
“Ao contrário, a História deixa de assemelhar-se a uma coleção desarticulada
quando restituímos os fenômenos à totalidade histórica. Os fatos já não nos
parecem então simplesmente justapostos ou sucessivos; descobrimos a
continuidade de sua descontinuidades, o “laço do laço e do não laço”
(D’HONDT: Pg. 109, 1982)
Para que se possa entender o conceito de Estado na perspectiva de Hegel tem-se
que necessariamente absorver esses dois procedimentos de produção do conhecimento: a
maneira de conformar o pensamento a partir de um processo dialético que se realiza na
própria dimensão da idéia; concebendo essa como produto de uma ordem universal que se
manifesta incessantemente e que produz e conforma a própria realidade material em que
aquele se manifesta, cuja dimensão histórica se afirma diante do processo que opera a
manifestação definitiva do absoluto. E principalmente a maneira pela qual essa dimensão
universal vai paulatinamente objetivando, através do curso histórico as formas definitivas e
absolutas que caracterizam o universal como um fim absoluto que inexoravelmente se
manifesta.
131
A emergência do Estado moderno torna-se, portanto a manifestação de um
momento, não mais relativo, mas, substancialmente absoluto, de afirmação da ordem
concebida pela essência e universalidade do “espírito Absoluto” em sua afirmação ideal,
manifesta historicamente na ordem material.
Ou seja, para Hegel: “O Estado é a realidade em ato da idéia moral objetiva, o
espírito como vontade substancial revelada para si mesma, que se concebe e se pensa, e
realiza o que sabe e porque sabe” (HEGEL: Pg, 216, 2003). A forma acabada e verdadeira
da manifestação, na objetividade da ordem política, do arranjo de poder como produto da
manifestação objetiva do “Espírito absoluto” é o Estado.
O Estado, enquanto vontade substancial, implica necessariamente apreender a
relação que este mantém, enquanto objetividade, quando observada a condição dos
Indivíduos, em si e para si, que se realiza, segundo o autor, somente como membro efetivo
desta ordem política, diante da possibilidade de liberdade objetiva. Para Hegel, somente
através da objetividade, cuja manifestação se realiza substancialmente através do Estado –
enquanto manifestação da Razão - os indivíduos possuem objetividade. Não há
objetividade no indivíduo, sem que este se torne membro do Estado.
“Considerada abstratamente, a racionalidade consiste essencialmente na íntima
unidade do universal e do indivíduo e, quanto ao conteúdo no caso concreto de
que isso se trata, na unidade entre a liberdade objetiva, isto é, entre a vontade
substancial e a liberdade objetiva como consciência individual” (HEGEL: Pg.
219, 2003).
Ao apor essa relação entre o indivíduo e o universal, Hegel rompe de forma
epistemológica com a tradição filosófica do pensamento contratualista, cuja dimensão tem
sistematicamente apontado para a ação facultativa dos indivíduos de aderir ou não às
formas de Poder coletivo; neste, os indivíduos se reúnem por força de uma contingência Já
no pensamento hegeliano, as adesões como membro do Estado - esses enquanto vontade
substancial do espírito - torna-se necessária a própria objetividade, com a qual se afirma a
condição de indivíduo. Não há realização da condição de indivíduo, sem que esse flua e se
integre como membro efetivo desta ordem política. O Estado torna-se desta forma a
maneira pela qual os indivíduos adquirem consciência de sua condição objetiva. Sem essa
132
unidade, entre o universal e o individual, não há apreensão ou consciência objetiva da
condição de indivíduo.
Portanto, na concepção hegeliana, a realização da percepção de indivíduo, enquanto
possibilidade de objetivação, só se manifesta objetivamente na consciência, e na própria
ordem material, quando o absoluto e universal - que se introduz por força do engendrar
temporal e histórico do “espírito absoluto” - da ordem política baseada no arranjo
transcendente do Estado.
Se, por um lado, existem distinções entre o idealismo hegeliano e os contratualistas, no
que tange à ação que produz a ordem política que se quer garantidora dos direitos
individuais, o mesmo não se pode afirmar ao se relacionarem as concepções hegelianas e
os contratualistas, quando se observam os resultados que tais concepções acarretam para a
própria condição, e ponto de afirmação, do Poder soberano. Neste aspecto, a distinção
desaparece e se configura uma igualdade de termos.
Se, por ação facultativa ou por necessidade de objetivação, ao realizar o
movimento de alienação, nos contratualistas, e de incorporação incondicional, observada
na concepção de Hegel, fato é que ambas as conformações do poder implicam um
distanciamento da condição de imanência como ponto de realização do poder soberano.
O que há de desafiador para com o pensamento moderno e inovador na perspectiva
hegeliana, no que tange à afirmação histórica do Estado, é que, em primeiro lugar, tal
manifestação na ordem política decorre de uma expressão irreversível da condição
permanente pela qual a Razão acaba por impor ao ordenamento humano as condições
materiais de existência.
O Estado moderno, na concepção de Hegel , decorre de um processo de afirmação
deste preceito formador. Não há, no pensamento hegeliano, liberdade aos homens em
constituir suas formas de ação na materialidade. Os homens, em especial os filósofos, são
os meios pelos quais a idéia universal se manifesta. Não quando querem, mas condicionada
de acordo com a objetividade e a favorabilidade com a qual essas idéias encontram as
condições de se afirmarem.
133
Essa condicionalidade advèm do processo dialético, cujas formas definidas
provisoriamente acabam por induzir – pela própria dinâmica do sistema - a outros
patamares do pensamento. Portanto, o processo histórico de afirmação do Estado moderno
é para Hegel um contínuo de manifestações provisórias de ordens políticas que em um
dado momento encontram as condições ideais para afirmação do seu absoluto e universal.
O estado moderno para Hegel é a forma absoluta e universal da manifestação do espírito
absoluto nas formas históricas de ordenamento político.
O que implica admitir, a partir dessa formulação, que o Estado e sua condição
transcendente de poder é a forma final da expressão do poder político. Superando, por
força da Razão, como condutora e conformadora da ordem, todas as etapas anteriores que
se constituíam, não em singularidades que se perderem historicamente, mas sim como
partes momentâneas e provisórias de um processo, cuja natureza aponta inexoravelmente
para a afirmação de sua forma absoluta.
Considerada a condição de os indivíduos em afirmar sua consciência e liberdade, em
si e para si, condicionada á assimilação deste na ordem política, estar-se-á diante da mais
completa negação da condição de imanência. Agravado pelo fato de que sua afirmação é
produto de um processo que nega de forma sistemática a capacidade de os homens, através
de sua ação e autonomia, constituírem o seu devir. Assim, ele imputa ao “espírito” a força
condicionadora das formas sociais e políticas.
O determinismo religioso, vivenciado em outros momentos, assume a sua nova
condição. Se naquele a ordem era uma conseqüência dos desígnios de uma vontade
transcendente evocada pela onipotência de um Deus, na concepção hegeliana, torna-se
difícil abstrair o caráter determinista com a qual este incondicionalmente opera sobre a
ordem objetiva. O que ocorre é a substituição de Deus por uma força provinda da dinâmica
racional, cujo conceito Hegel nomeia e intitula como a ordem absoluta e universal: “o
espírito absoluto”.
Hegel se afirma como o pensador da nova ordem transcendente – e, por que não
dizer, da nova ordem produzida pelas novas relações sociais, cuja hegemonia procurava
afirmar o poder da sociedade burguesa. Sua forma final, absoluta e universal, se manifesta
de forma irreversível por força de elementos que buscam na metafísica de um
134
ordenamento político. O reconhecimento indivíduos como parte deste todo não lhes
assegura a mais cara e revolucionária descoberta produzida pela ruptura com os
paradigmas do determinismo religioso, observado na realidade histórica pré-moderna, que
fora destroçado pela emergência da condição de liberdade, em detrimento da condição de
necessidade, descoberta através da condição de Indivíduo, matiz do pensamento produtor
da percepção moderna do ser.
Por fim, há de se observar que a implicação desta ordem transcendente,
constituinte da soberania do Poder interno, traz consigo uma condição de pretensa
homogeneidade que procura imbuir o novo aparelho transcendente de poder como ponto de
realização e neutralidade – já que o indivíduo nesta perspectiva está destituído de
consciência em si e para si. Ao incorporar-se a ordem política como condição de objetivar
sua existência, os indivíduos são vistos como elementos destituídos de quaisquer interesses
e, portanto, incapazes de consciência produzidas a partir da dinâmica social na qual se
encontram mergulhados.
A condição de indivíduo articula-se pela mitigação do processo que engendra as
relações sociais, não somente em relação a sua consciência em si, mas também enquanto
possibilidade de perceber-se para si. É a tentativa de eliminar a condição de conflito que
as transformações políticas, econômicas e sociais inegavelmente engendram.
Hegel observa a nova ordem social e a própria exacerbada valorização da condição
de indivíduo nucleado – base da ordem liberal que se afirma historicamente - como
produtora de efeitos deletérios a sua própria manutenção. Por isso, pode ser apreendida a
partir das formulações do Estado ético a tentativa de conformar ideologicamente a ordem
liberal, sem incorrer nos percalços e exageros retóricos – muito difundidos pelos
economistas clássicos - que esta produz ao naturalizar, descrever e apontar a
preponderância e o protagonismo exagerado da condição de individuo como elemento
propulsor da ordem política e econômica.
Atilio Boron34,, em seu texto Filosofia Política e Crítica da Sociedade Burguesa,
destaca este aspecto essencial e contributivo ao pensamento liberal e para a própria
34 – Atlio Boron – (1947 ) Argentina – Ph. D em Ciência Política pela Universidade de Harvard, Mestre em Ciência Política pela Faculdade ´Latina Americana de Ciências Sociais (FLACSO) Professor titular da cadeira de Teoria Política e Social na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
135
conformação de afirmação da nova ordem soberana interna, produzida por meio do
pensamento de Hegel.
“Hegel percebeu com mais profundidade que suas contrapartes
francesas e inglesas as tarefas políticas e ideológicas
fundamentais que o Estado deveria desempenhar na nova
sociedade, tarefas que não poderiam ser cumpridas nem pelos
mercados nem pela sociedade civil. A lógica destrutiva do
capitalismo, baseada na potencialização dos apetites
individuais e do egoísmo maximizador de ganâncias, requer um
Estado forte, não por causalidade presente em todos os
capitalismos desenvolvidos, para evitar que aquela termine
sacrificando a sociedade toda em nome da ganância do
capital”. (BORON: pg . 297, 2003)
Contudo, o Estado ético do ideal hegeliano cumpre sua função de incorporar - mesmo
que de maneira falseada - uma realidade cuja natureza implica um processo de agudização
de conflitos produzidos a partir de interesses distintos. Postula e idealiza para aquele a
condição de uma neutralidade, a qual não corresponde ordem objetiva.
Somente incorporando á sua concepção os conceitos de universalidade e
neutralidade é que Hegel pode subscrever a enunciação de que o absoluto da ordem
política encontra seu derradeiro universal através da emergência do Estado moderno. Ou
seja, negando, ou pelo menos pretensamente abstraindo, a variável que condiciona as
transformações históricas, dadas por força da própria dinâmica das relações que comporta
aliadas às nuances distintas de interesses, é que se pode afirmar que a realização idealizada
do “Estado ético” – no sentido de ser esse um momento supra-apartado da sociedade -
produz a convergência finalizadora do processo histórico.
É a negação do Estado como decorrência da sociedade civil. Para Hegel o Estado
realiza a sociedade civil, a organiza e neutraliza as divergências que possam ocorrer em
sua dinâmica relacional. Enfim, para o idealista alemão o Estado ético não se comporta, ou
136
melhor, manifesta o resultado da condição de conflito; tão-somente a realiza sem
considerá-las.
Contudo, inegavelmente o pensamento hegeliano-e sua concepção de Estado Ético
como ponto de realização do universal e absoluto, produzido pelo culminar do transcurso
histórico do “espírito absoluto” - tornar-se-á a forma assumida, quando observada a
emergência do Estado moderno. E, como conseqüência, a discussão empreendida pelo
trabalho em pauta define a partir destas concepções, as formas pelas quais a Soberania
realizar-se-á ao longo da modernidade. O Estado como aparelho transcendente de poder, e
inegavelmente negador das formas revolucionárias do poder imanente, torna-se o ponto de
realização da ordem soberana interna, cujas conseqüências políticas passam a definir as
próprias formas de relações com a exterioridade, quando contraposta sua soberania em
relação aos demais membros do mundo político.
O Estado Ético hegeliano é a manifestação idealizada da nova ordem transcendente,
cuja funcionalidade se coaduna aos interesses da nova ordem econômica, política e social
ancorada na acumulação e expansão permanente do capital.
A Dialética como Desmistificadora da Idealização do Estado Ético
“... Não se deve condenar Hegel porque ele descreve a essência do Estado moderno como ela é, mas porque ele toma aquilo que é pela essência do Estado. Que o racional é real, isso se revela precisamente em contradição com a realidade irracional, que por toda parte é o contrário do que afirma ser e afirma ser o contrário do que é” (*)
(*) Marx, Karl. Critica da Filosofia do Direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo. Editora Boitempo, 2005.
137
O Idealismo Alemão, no plano das concepções de ordem
filosófica, a Revolução Francesa e seu rastro de transformações espalhadas pela Europa
formaram o caldo histórico que acabou por definir o Estado moderno como momento de
afirmação da ordem soberana interna.
Contudo, não poderia estar ausente da reflexão a crítica feita às concepções acerca
do Estado Moderno, observadas no segmento anterior do trabalho. Se no campo do
pensamento liberal as condições de afirmação da ordem política interna - e ,como tal,
definidora do poder Soberano externo - produzidas pelo Estado Ético hegeliano eram uma
realidade conceitual que procurava definir e afirmar o novo paradigma do poder interno,
outros matizes não menos inovadoras do pensamento moderno insurgiram-se, apondo a
essa reflexão filosóficas distintas perspectivas sobre a realidade objetiva que se desenhava
como produto das profundas transformações que o ordenamento econômico, social e
político havia produzido.
Interessante destacar que as bases do pensamento que fundamenta
epistemologicamente e engendra as formulações idealizadas do Estado Ético serviram
serviram paradoxalmente para o seu desnudamento, como pretensa universalidade
inevitável e de uma neutralidade necessária.
Jovem intelectual alemão, cujas bases do pensamento foram forjadas sob os efeitos
produzidos pela inegável e forte influência que o hegelianismo exercerá sobre a formação
intelectual da juventude alemã, tornar-se-á o contraponto efetivo às críticas engendradas a
partir do até então hegemônico idealismo alemão, tornando-se seu mais contundente
crítico.
138
Karl Marx35, inicialmente jovem e ativo entre as fileiras do chamado hegelianismo de
esquerda, se oporá ao idealismo - sem, contudo, negar o sistema lógico. Ao contrário,
validando-o como ponto de apoio à reflexão sobre a ordem objetiva – em contraposição ao
preceito idealizado que conduzira Hegel a sua concepção do Estado -, propicionara por
meio de suas reflexões uma releitura da realidade objetiva transformando o conjunto
constitutivo do processo dialético o qual assume uma outra dimensão sistêmica, enunciada
através de suas próprias considerações, ao afirmar que “colocava-o de pé”.
Marx se apropria da lógica dialética consignada por Hegel, alterando as relações
existentes entre sujeito e objeto. Para Hegel o sujeito é a própria idéia que acaba por definir
a ordem objetiva: a realização da objetividade do espírito do mundo na ordem material e
objetiva. Marx conduz suas reflexões acerca das transformações observadas na ordem
material; por força dos conflitos de interesses que a ela são inerentes, como sendo o
sujeito, e não o objeto, e que, como tal, acaba por produzir as idéias, essas sim o objeto. Ou
seja, as idéias não conformam a ordem objetiva, mas ao contrário, a ordem objetiva através
do conflito posto pelas relações de interesses distintos em permanente contradição, é o que
a conforma. Afeiçoando e conduzindo o processo transformador da ordem objetiva,
manifestada através dos momentos que se desenrolam historicamente. São as relações entre
os homens que forjam as idéias, cuja finalidade visa estabelecer elementos cognitivos para
a explicação ou justificativa da ordem social (idéias).
Se para Hegel o processo de conflitos, cuja condição ocorre permanentemente pela
unidade dos contrários, se dá através da Razão, ou seja, nas idéias, por força do “espírito
absoluto” que a tudo determina e conforma, para Marx, em oposição ao momento ideal
hegeliano, as contradições não são observadas no entrechoque das idéias, mas
exclusivamente por força das dinâmicas sociais, cujas condições de conflito permanente
35 - Karl Marx – ( Alemanha, 1818 – 1883) Filósofo alemão nascido em Trier Inicialmente estudou Direito na Universidade de Bonn e de Berlim, doutorando-se pela Universidade de Iena (com a tese : A filosofia da natureza: de Demócrito e Epicuro) a . Na juventude perfilou entre a juventude hegeliana. Iniciou sua militância política marcada pela fundação da “Liga Comunista” (1847), com seu amigo Engels. E em seguida elaborou o texto intitulado: Manifesto do Partido Comunista (1848). Seu trabalho intelectual se estende à Ciência Política, História e Economia. Sua contribuição intelectual faz-se a partir da contraposição aos economistas Adam Smith e David Ricardo, juntamente com o questionamento filosófico dos preceitos dialéticos de F. Hegel. Elabora a concepção materialista da História. Suas principais obras são: A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843 e publicada após sua morte); A Sagrada Família (1845, em conjunto com F. Engels); A Ideologia Alemã ( 1845/1846, com Engels);A Miséria da Filosofia : resposta a Filosofia da Miséria de Proudhon (1847);A luta de Classe em França (1850);O 18 Brumário de Luis Bonaparte(1852); Crítica da Economia Política (1859); O Capital, 3 vol. ( 1867/1895, tendo Engels colaborando na edição e finalização do conjunto da obra)
139
traduzem a sua essencialidade constitutiva e, portanto, comporta-se como o móbile, ou
força impulsionadora e condutora do processo de transformação histórica.
Atilio Boron em seu texto intitulado Filosofia Política e Crítica da Sociedade
Burguesa36, destaca e esclarece, sobremaneira, a importância da dialética como sistema
lógico constitutivo das reflexões filosóficas marxianas, quando opta pela inversão lógica
que produz, ao estabelecer seu contraponto ao sistema de Hegel, sem, contudo, negar-lhe a
dimensão de ferramenta cognitiva para o entendimento da ordem objetiva:
“A dialética hegeliana continha uma série de elementos de primeiríssima
importância para esta missão transformadora que Marx queria que a
filosofia. CumprisseEm primeiro lugar punha em relevo o caráter
inerentemente contraditório – e portanto provisório – das instituições e
práticas sociais existentes. Se em sua versão idealista isto se resolvia em
uma inofensiva dialética das idéias, em sua leitura e reconstrução
marxiana estas contradições têm entre as forças sociais e interesses
classistas portadores enfrentados projetos, valores e ideologias” (BORON:
Pg. 306, 2003)
Hegel construirá um sistema lógico e reflexivo acerca da idealizada condição de
absoluto e universal contida na emergência do Estado ético, partindo da premissa da
existência de um transcurso histórico, de natureza cumulativa, no qual a família e a
Sociedade civil são momentos provisórios em um processo universal de transformação
continua do caminhar histórico. A família e a Sociedade civil são para Hegel, portanto,
dois momentos relativos de uma trajetória que culmina com a emergência do Estado ético.
O Estado é para Hegel a realização, a totalidade e a universalidade, cujas partes e
singularidades se manifestaram provisoriamente, através da família e da Sociedade civil.
Contudo, a realização plena e absoluta da ordem social se encontra historicamente no
Estado ético, cuja condição de absoluto contempla, pela totalidade que as demais formas
anteriores manifestavam provisoriamente.
36 - O texto referenciado faz parte do livro organizado por Atilio Boron intitulado: “A Filosofia Política Moderna: De Hobbes a Marx”. Buenos Aires: Ed. Clacso 2003, cujo capítulo XI escrito, pelo referido autor e organizador, se intitula: “Filosofia Política y Critica de la Sociedad Burguesa: el legado teórico de Karl Marx”.
140
Quando Marx empreende à crítica ao idealismo hegeliano e sua concepção de Estado
ético – enquanto momento universal e absoluto que se realiza acima dos interesses
particulares presentes na Sociedade civil – o faz através de seu texto intitulado Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel37, com base nas formulações feitas por Ludwig Feuerbach38
contidas em seu texto A Essência do Cristianismo, a partir do qual o referido autor faz
crítica à construção reflexiva de Hegel sobre a religião. Ele aponta a inversão fundamental
que Hegel comete ao descrever a relações entre Deus, religião e os homens, apondo à
lógica relacional desenvolvida por Hegel uma inversão nos termos. Feuerbach invertera
aquela equação de determinação ao afirmar que: “Contrariamente ao que sustenta a
religião: não é Deus que cria os homens, mas, esses que criam Deus”
Para Hegel, e para a religião, Deus (sujeito) criou os homens (objeto). Essa
premissa relacional servirá a Hegel para que ele elabore a sua filosofia do Direito.
Anteparo epistemológico a construção idealizada e universal e absoluta que deseja instituir
acerca da emergência do Estado Ético.
Marx irá construir sua crítica à filosofia de Hegel, apontando na mesma direção de
Feuerbach. Quando Hegel descreve as relações entre Direito e Estado, a inversão
verificada na questão religiosa se manifesta nos mesmos termos. Paro o idealista alemão, o
Estado é o absoluto e universal, cuja dimensão e imersão no social (realidade objetiva) se
37 – Hegel desenvolve a sua concepção do Direito, diferindo-a do Direito natural, do Direito romano e do Direito como abstração. Sua concepção do Direito repousa sobre a idéia do desenvolvimento da própria Razão, através do transcurso desta, na forma do “espírito absoluto”, manifestando-se no transcurso histórico pela dinâmica da lógica dialética com a qual a Razão se manifesta na objetividade. A partir dessa concepção, da maneira pela qual se dá o processo civilizatório, Karl Marx vai construir sua confrontação argumentativa com o pensamento hegeliano quando concebe o momento dialético não como produto do entrechoque das idéias através da unidade dos contrários, como idealiza Hegel, mas por força das condições materiais de existência dos homens que se tornam antagonizadas pela dinâmica social. O momento absoluto (do sistema dialético) se dá pela superação dos antagonismos no plano da materialidade histórica e não por força da Razão e sua manifestação através do “espírito absoluto. O texto aludido no parágrafo em questão: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel contém a exposição dos argumentos de Karl Marx em resposta ao que esse autor considera como o equivoco hegeliano. Equivoco esse que culmina com a idéia de um Estado ético. Proposição refutada categoricamente por Marx que desconstroi a idéia de um Estado neutro e universal, colocando sua formação como um momento histórico e não absoluto e definitivo como preconiza Hegel”. 38 – Ludwig Feuerbach – (Alemanha, 1804 – 1872) filosofo alemão nascido em Landshut. Membro da “esquerda hegeliana” rompeu com Hegel ao apontar e criticar a idéia hegeliana do movimento da história como produto da Razão. Visão essa que influenciou o jovem Marx em sua crítica ao hegelianismo. Seus escritos principais são: A Essência do Cristianismo (1841) e A Essência da Religião (1841), nos quais desenvolve a idéia de que foram os homens que criaram Deus, como forma de projetar suas esperanças ao invés de realizá-las.
141
realiza por força de um conjunto de leis que permite que a sociedade seja contemplada,
enquanto parte, em seu todo absoluto: o Estado.
Para Marx a inversão dada se manifesta pela simples razão de que o sujeito da
ordem social não é o Estado, mas se dá ao contrário: as relações sociais produzem o
instrumento de poder que manifesta, através deste, a própria dinâmica, com a qual se
constroem os elos de relações. Mantem-se em sua conformação a ordem de desigualdades
– ou como define o autor a diferença entre explorados e exploradores - e de interesses
dispares, que perpassam o tecido social. Ou seja, Marx afirma de forma categórica que
Hegel inverte as relações e as próprias posições entre sujeito e objeto.
A sociedade modela o aparelho político, no caso o Estado, e não ao contrário. Se as
relações se estabelecem desta forma, e não como preconiza a visão idealizada de Hegel, o
Estado torna-se, portanto, o ponto da ordem política na qual são reproduzidas as relações
que se verificam na ordem social. Por coseguinte, não é o Estado que prescinde da
sociedade e realiza, dada sua natureza absoluta e universal; mas ao contrário: é a sociedade
civil o espelho no qual se olha e produz a sua imagem.
Marx é categórico, quanto a esse aspecto, em sua crítica ao antigo mestre, ao
descrever que:
“Distinto mestre. O Estado que Você concebe em sua teoria é uma beleza
sem par e segura garantia para a consecução da justiça neste mundo. O
único problema é que o mesmo só existe em imaginação. Os Estados
realmente existentes pouco ou nada têm a ver com o que surge de suas
especulações teóricas. Você assinala corretamente em um dos apêndices de
sua Filosofia do Direito que os Estados que operam de outro modo, quer
dizer, os que se subordinam ao logro dos interesses universais da
satisfação dos interesses particulares de certos grupos e classes sociais,
não são verdadeiros Estados, e sim simples sociedades civis disfarçadas de
Estados” (MARX: Pg. 116, 2003)
A inversão produzida por Hegel, percebida e transformada por Marx, torna-se,
portanto, a raiz epistemológica que permite a este apontar criticamente as duas mais
142
pertinentes questões que envolvem a construção idealizada do Estado ético hegeliano: a
posição de neutralidade contida em sua construção e sua condição de ápice de um processo
- momento de chegada - e realização enquanto termo objetivado de um transcurso abstrato
produzido pelo “espírito absoluto”, a par de sua trajetória de afirmação na materialidade.
A pretensa neutralidade contida no Estado Ético hegeliano, para Marx, não
corresponde à realidade das relações sociais que representa. Não é simplesmente a inversão
dos termos postos por Hegel na relação entre Estado/Sociedade Civil com a qual opera a
lógica desenvolvida por Marx. É uma questão de natureza constitutiva, pois o que ocorre é
que o Estado enquanto ordenamento político reproduz por meio do seu arcabouço jurídico
as formas pelas quais se procura legitimar as relações entre dominadores e dominados.
As leis ou o Direito, os quais vão definir os contornos e a própria ação do Estado,
são produto da correlação de forças produzida pelo conflito de interesses, cuja natureza e
efetividade se define pelas relações sociais. De maneira distinta à de Hegel, as leis não são
expressão de uma idéia que se quer universal. Para Marx o arranjo político que dá forma à
ação do Estado - logo a sua essência - é produto dos interesses daqueles que detêm o
controle e o poder. Em outras palavras o Estado, sua natureza e sua práxis, são produto das
relações estabelecidas pelo conflito de interesses no seio da sociedade.
A filosofia do Direito não é, por conseguinte, obra da apreensão por parte dos
homens de um momento universal e absoluto produzido pela dinâmica histórica de
afirmação do “espírito Absoluto”, cuja objetivação implica a construção do momento
definitivo da ordem política - enquanto ponto de chegada do transcurso da humanidade –
mas, sobretudo um momento cuja afirmação, mesmo que provisória reflete de forma
incondicional as condições dadas historicamente por força das relações sociais, cuja
expressão se traduz pelo que Marx definirá como sendo a luta dos interesses de grupos, ou,
para usar a expressão cunhada pelo pensador alemão: a luta de classes.
Marx desnuda a idéia de que a neutralidade deste Estado advém de sua natureza
racional, produto de um corpo burocrático, que se situa e atua acima dos interesses
particulares – condição esta que Weber irá,posteriormente definir como a marca indelével
do Estado moderno - esses sim presentes na sociedade civil, mas que por força da
143
afirmação - da idealidade contida no universal - na ordem objetiva produz a superação
desta condição.
Na concepção marxiana, o Estado idealizado pela construção reflexiva de Hegel é na
verdade a afirmação de uma ordem política historicamente datada que reproduz a
afirmação política da resultante produzida pelos conflitos entre os distintos interesses que
conformam historicamente o momento provisório, pelo qual a dinâmica dialética se
manifesta na materialidade histórica. E não como produto de um choque de contrários, cuja
lógica dialética produzida pelas idéias se impõe à ordem social, política e econômica.
O arranjo hegeliano do Estado ético traz para Marx, em sua formulação
idealizada, em seu conjunto ideológico, a definição da ordem política que vai ao encontro
dos interesses de classe daqueles que, no momento histórico em questão, construíam sua
hegemonia superestrutural – já que as decorrentes das relações sócias de produção já eram
uma realidade - sobre o conjunto da sociedade. É a imprescindibilidade de se constituir um
arranjo ideológico que justifique sua dominação, contudo dando-lhe um caráter universal,
absoluto e, sobremaneira, portador da idéia de que ao se constituir estaria superando as
diferenças decorrentes do choque de interesses entre os grupos presentes na sociedade
civil. Por contingência de um conjunto de leis, que não derivam de interesses específicos
de um dado grupo, mas como manifestação da idéia universal e ética, cuja afirmação
decorre do processo histórico levado a termo pela objetivação do sujeito histórico: o
Espírito absoluto.
A. Boron, em seu texto sobre Filosofia Política e Crítica da Sociedade Burguesa,
comentando Norberto Bobbio, em seus apontamentos sobre o pensamento hegeliano,
aponta a importância para com a afirmação ideológica da ordem burguesa e liberal,
indicando a condição essencial, e a própria necessidade das novas classes em seu processo
de afirmação hegemônica, em construí-la ideologicamente:
“Mas cremos que Bobbio exagera seu argumento quando minimiza a
importância de Hegel, porque se bem sua teoria não representa
adequadamente a ontologia dos estados capitalistas, não porque ele deixa
de cumprir uma importantíssima função ideológica, que o descarnado
propósito dos “utilitaristas” deixa vazio; apresentar o Estado – o Estado
144
burguês e não qualquer Estado – como a esfera superior da etnicidade e da
racionalidade, como o âmbito onde se resolvem as contradições da
sociedade civil. Em suma, um Estado cuja neutralidade na luta de classes
se materializa na figura de uma burocracia onisciente e apartada dos
sórdidos interesses materiais em conflito, todo o qual o faculta para
aparecer como representante dos interesses universais da sociedade e
como a encarnação de uma juridicidade despojada de toda contaminação
classista” .( BORON: Pg. 297, 2003)
A Nova Ordem Política Interna e a Condição de Soberania Externa
145
“Foi ela [a burguesia] que criou verdadeiramente a história mundial, na medida em que fez depender do mundo inteiro cada nação civilizada e, para a satisfação de suas necessidades, cada indivíduo dessa nação destruindo o caráter exclusivo das diversas nações que era até então natural (...) E finalmente, enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais particulares, a grande burguesia surge como uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações, e para a qual a nacionalidade deixa de existir”.(*)
A instabilidade provocada pela ruptura do paradigma pré-moderno de
constituição da ordem política interna das comunidades, outrora definidas pelo arranjo
político-teológico, cuja formulação até então prevalecera como mecanismo de
conformação do poder temporal, fora momentaneamente superada pela emergência
histórica de um novo arranjo político.
A concepção hegeliana de Estado proporcionou as bases epistemológicas ao arranjo
teórico, necessário para a afirmação da nova ordem política interna das comunidades -
agora organizadas sobre os pilares da idéia de Nação -, as quais haviam definido por meio
das transformações políticas, econômicas e sociais a ruptura com o modelo constituinte de
afirmação do poder soberano interno, historicamente suplantado pela emergência do
pensamento moderno e toda a ordem de fatores decorrentes da dinâmica histórica que o
engendrará.
A definição do novo aparelho transcendente de poder, que por um lado, havia
dado as condições políticas imprescindíveis e necessária à estabilidade que se procurava
instituir, sobre uma dada territorialidade constituída e definida pelo conceito de Nação
fora também a completa negação da idéia revolucionaria produzida pela descoberta do
plano da imanência como possibilidade de Poder.
(*) Citação de Karl Marx tirada do livro: “A Ideologia Alemã ” . Transcrita a partir da apresentação posta no texto: Mello, Alex Fiúza de. Marx e a Globalização. São Paulo: Editora Boitempo, 1999.
146
O Estado Moderno se afirma como aparelho de ordenamento político a partir da
idéia de neutralidade e ponto de convergência de interesses universais, em contraposição a
uma realidade social eminentemente conflituosa. A evocada e falseada idéia de que o
aparelho político-juridico concebido através do Estado ético hegeliano supera o conflito na
sociedade civil experimentado momentaneamente pela inconformidade histórica através da
afirmação da maturidade da Razão não fora suficientemente capaz de equacionar e
suplantar de forma definitiva a “crise” instituída pela emergência do pensamento moderno.
A imanência estava apartada dessa nova ordem. Contudo, a finitude histórica se manifesta
pelo arbitrado confinamento de um momento provisório, cuja natureza filosófica hegeliana
tratará como definitivo e absoluto, ao em vez de estabilizar as forças engendradas pelas
novas relações sociais: os sujeitos históricos da ordem política interna inauguram uma
“crise39”, cuja natureza tornar-se-á permanente ao transcurso de afirmação da
Modernidade.
Definitivamente, o Estado Moderno se institui como poder soberano interno às
comunidades organizadas sob a égide da idéia de Estado-nação. Mas, da mesma forma que
busca através de sua condição de aparelho político-jurídico a unidade política interna,
desejavelmente universal e imbuído de uma pretensiosa neutralidade, que busca
manifestar, mas, que, contudo não se objetiva dada a sua natureza política decorrente do
caráter hegemônico40, que reproduz superestruturalmente, como resultado momentâneo das
forças sociais em antagonismo e conflito permanente, dando-lhe feições de classe em
completa contradição com a pretensa universalidade advinda da idéia de um Estado ético e
universalizado, no qual os conflitos verificados no seio da sociedade civil estariam
superados.
39 - O conceito empregado ao termo “crise” está baseado nas reflexões de Antonio Negri, produzidas em seu seminal texto O Poder Constituinte: Ensaio sobre as Alternativas a Modernidade. RJ: DP&A, 2002 Editora No qual contrapõem os conceitos de Poder constituinte e Poder constituído. Para o referido autor, o momento de emergência do pensamento moderno se manifesta pela descoberta do plano da imanência como condição possível de Poder. A institucionalização do Poder e da soberania na modernidade através da constituição do Estado e, devido a sua condição em ser um aparelho transcendente de poder, nega categoricamente aquela condição inicial e revolucionária do pensamento moderno, cuja conseqüência propicia a permanente “crise” que se verifica no transcurso da modernidade. 40 - O conceito de hegemonia contido no texto reporta-se ao definido pela idéia desenvolvida por Antonio Gramsci, em sintonia com o pensamento marxista, e com a interpretação desenvolvida por Luciano Gruppi, a partir de seu texto intitulado “O Conceito de Hegemonia em Gramsci”, que enuncia: Uma determinada classe dominante no plano econômico, e, por isso também no plano político, difunde uma determinada concepção de mundo; hegemoniza assim toda a sociedade, amalgama um bloco histórico de forças sociais e de superestruturas políticas por meio da ideologia.”(Gruppi: Pg 90, 1978)”.
147
As construções dos conceitos modernos de Nação e Povo são duas faces de uma
mesma moeda. O arranjo eminentemente simbólico da condição e da própria tentativa de
naturalização da idéia de Nação, verificada na afirmação da modernidade política européia,
especialmente observado no processo revolucionário francês, iniciado em fins da década de
oitenta do séc. XVIII, manifesta o quanto há de “espiritualidade” nos argumentos que
procuram demonstrar que a idéia de que a nação se vincula a existência de um dado povo,
e que tais se comungam por força de uma relação posta pelo “natural nexo”, com o qual se
procura impingir os termos de uma equação construída historicamente. Por força da
objetividade dada através de contingências de um momento político, no qual um dado
projeto de nação é difundido por toda a sociedade, como se comum fosse, amainando a
percepção acerca de interesses díspares, com o qual as relações sociais se constituem,
consolidando as bases teóricas que procuram justificar a existência a priori dessa relação.
Nação e Povo são categorias analíticas que contêm um forte sentido ideológico.
São construções que derivam de visões de mundo elaboradas de forma a apreender e
contemplar o imaginário e a própria idéia pelas quais as pessoas se percebem diante da
realidade em que se inserem, principalmente nos termo do pertencimento que se deseja
imbuído. Em outras palavras, procura construir consensos de natureza existencial
conforme a percepção que se deseja. O que é heterogêneo, distinto ou diverso torna-se
secundado pelo ofuscamento produzido pela força do caráter ideológico que constitui uma
visão que assume diante das percepções à desejável condição de homogeneidade.
Somente por força de uma ação que procure estabelecer um processo hegemônico,
- no que tange à questão por ora observada - construído pelas novas forças do ordenamento
social; em particular a burguesia, mas não somente ela, foi possível construir a idéia de
que os interesses contidos em um projeto político de nação e seu agente constituinte; o
Povo, tornam-se a essência de um projeto para além das óbvias diferenças que as relações
sociais, econômicas e políticas ensejam em uma sociedade que dava seus primeiros passos
rumo ao estabelecimento de um processo de afirmação continuada de interesses, cuja
condição implica e permanente antagonismo.
Antonio Negri e Michel Hardt por meio de seu livro Império, na parte em que
comentam a questão da soberania na modernidade e sua relação com a construção dos
conceitos de Nação e Povo, apontam para essa questão, quando afirmam que:
148
“A Transformação do modelo absolutista e patrimonial constitui um
processo paulatino que substitui a fundação teológica do patrimônio
territorial por uma nova fundação, igualmente transcendente. A identidade
espiritual da nação, mais do que o corpo divino do rei, agora propunha o
território e a população como abstração ideal (....) Eles fazem da relação
de soberania uma coisa ( geralmente naturalizando-a) e assim retiram
qualquer resíduo de antagonismo social. A nação é uma espécie de atalho
ideológico que tenta livrar os conceitos de soberania e modernidade dos
antagonismos e crises que os definem” (NEGRI & HARDT: pg’s 112 e113,
2005)
Antonio Gramsci, ao elaborar o seu conceito de hegemonia e seu complemento
analítico – tendo como observação da realidade política italiana – , ao inseri-lo à idéia de
Bloco Histórico, como pressuposto das forças políticas que engendram para o conjunto da
sociedade uma visão de mundo que não é, necessariamente, aquela que seja produto de
uma condição política, mas, sobretudo de uma condição egoísta-passional 41 - que como tal
permite a impossibilidade aos indivíduos de percepção para além do imediato - retrata de
forma precisa à questão do consenso que se produz por mrio do processo de hegemonia. O
que é perceptível quando se esmiúça os momentos limiares da questão nacional para as
sociedades européias entre os Séc. XVIII e XIX, cujos processos de transformações
implicam e construir novo ordenamento de Poder baseado nos conceitos de Nação e Povo,
em concomitância com a instituição do aparelho transcendente de Poder moderno: O
Estado.
Gramsci constrói seu conceito ampliado de hegemonia, concebendo uma visão
não mecânica entre o momento estrutural (relações sociais de produção) e o superestrutural
(aparelhos políticos e jurídicos) do conjunto social. Isso o coloca para além da visão
reducionista, até então comum entre alguns intérpretes dos conceitos marxistas que
41 - Momento egoísta –passional é a condição pela qual os indivíduos se percebem de forma dissociada de sua real condição de classe. É o que Gramsci define como um momento pelo qual o indivíduo não esta diante de sua condição política e coletiva. A relação deste momento com a questão da hegemonia se dá, pela própria condição, pela qual se estabelece o consenso superclasse social. Somente, não tendo a visão de sua inserção nas relações sócias de produção é que o indivíduo acaba por assimilar uma percepção de mundo que não é a sua.
149
insistem em relacionar a questão das relações entre estrutura e superestrutura como se a
primeira determinasse de forma mecânica a própria condição superestrutural.
Para o intelectual italiano, o que ocorre entre os dois momentos deve ser
percebido como um conjunto dialético, no qual as relações entre aqueles não acontecem
pela preponderância de um sobre o outro, implicando, um determinismo. Em última
instância, deve ser apreendido como relações que se estabelecem e operam em sentidos
contrários e que se complementam.
A soldadura do processo hegemônico requer a construção de consenso entre as
classes que compõem o conjunto social. O momento de construção da hegemonia abarca
um corpo de idéias que enseja a descaracterização da condição de conflito, posta pelas
relações sociais de produção em permanente antagonismo.
O elemento fundamental para a construção desta visão de mundo que permeie as
consciências - que não se dá somente pela força coercitiva do Estado - , dependente da não
percepção, por parte dos indivíduos de sua condição política e de classe – só passível de
superação pelo abandono da posição egoísta-passional - em posições distintas nas relações
de produção, implica a ação de um corpo de pessoas especiais: os intelectuais, que através
de sua ação como formadores de opinião difundem através dos aparelhos ideológicos
pertencentes ao conjunto do que o autor denomina como Sociedade Civil um conjunto de
idéias e visões de mundo que contribuem para o estabelecimento de um arco ideológico
provido de uma falsa homogeneidade de valores. Sua condição permite, para além dos
interesses antagônicos, conceber um mundo comum de percepções difusas, criando,
portanto, as condições ideais para que aqueles valores possam ser incorporados pela
diversidade social. Em outras palavras, estabelece-se uma visão de mundo que passa a ser
compartilhada por todo o conjunto social, conformando o desejado consenso. Condição
necessária à afirmação da hegemonia em detrimento da condição de dominação puramente
coercitiva produzida pelo aparelho político superestrutural.
150
Eis como Luciano Gruppi 42 em seu texto sobre O Conceito de Hegemonia em
Gramsci, ao comentar tal condição, a descreve:
“A hegemonia é isso: a capacidade de unificar através da ideologia e de
conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por
profundas contradições de classe.” ( GRUPPI: Pg. 70. 1978)
Negri, em seu texto “Império”, quando cita o político e deputado constituinte
francês Emmanuel Joseph Sieyès43, e seu estudo intitulado Qu’est-ce que le tiers état,
comenta a pertinência dos argumentos do referido autor quando este manifesta em seu
texto a composição da representação política francesa (Estados Gerais) e de como uma
determinada parcela minoritária de uma sociedade, acaba tornando-se a expressão do Poder
pelo falseamento da representação. Impõe-se ao conjunto social o projeto político que vai
ao encontro de seus interesses enquanto estamento ou classe, em detrimento dos interesses
da comunidade como um todo.
O Estado Moderno se idealiza e manifesta na objetividade, por meio de um
conjunto filosófico, cuja dimensão política de suas concepções servirá de base para a
afirmação de uma nova ordem política, sua indiscutível finalidade é proporcionar a
afirmação e expansão de uma ordem política, econômica e social seja através de sua
permanente ação interna, seja como “ente” e protagonista dessa outra ordem que se deseja
universal. Isso se verifica sobretudo diante das relações, postas pelo advento histórico das
formas políticas baseadas em unidades nacionais que passam a ocupar a moderna ordem
internacional, que se desenvolve em concomitância com a necessária expansão dos
interesses - inconfessos sob a idéia de que representam o conjunto da nacionalidade que o
pleiteia.
Despojado propositalmente de sua feição classista, por força da idéia que difunde
externamente , da mesma forma que o faz internamente, de sua real e verdadeira dimensão
42 – Luciano Gruppi – (Itália, 1920 – 2003) filósofo, militante político, membro do Antigo PCI (Partido Comunista Italiano). Principais trabalhos: O pensamento de Lênin (1970); O conceito de Hegemonia em Gramsci (1977); Lênin e o Estado (1975); A dialética materialista (1978); A teoria do Partido Revolucionário (1980). 43 - Emmanuel Joseph Sieyès (França, 1748 – 1836). Político, escritor e eclesiástico francês. Membro da Assembléia Nacional Constituinte. Autor do ensaio intitulado: Qu’est-ce que le tiers état (O que é o terceiro Estado)
151
política e econômica como aparelho político para a ação e afirmação de uma ordem
econômica, imprescindível ao momento histórico que se procura consolidar. Inicialmente,
através de uma base territorial, cuja finalidade lhe assegure as condições necessárias a sua
expansão permanente, seja na ordem interna, como na nova ordem internacional que se
delineia a partir de sua conformação como protagonista das relações entre as emergentes
unidades nacionais européias – entre os séc. XVIII e XIX.
A soberania moderna, quando pensada em sua dimensão relacional entre os
entes da ordem internacional, surge exatamente a partir da consolidação da soberania
interna dos Estados-Nacionais. O poder e a hegemonia que paulatinamente vão se
consolidando através dos novos protagonistas da ordem econômica produz em sua
dimensão política um aparelho de poder que se coaduna, e atende, a seus interesses
imediatos - necessários a sua afirmação - de acumulação e expansão. Isso se viabiliza por
mecanismos jurídicos que lhes assegurem e facilitem a implantação de uma ordem
econômica e política interna modeladora dos interesses das classes dominantes.
A definição da nova ordem de poder interno às comunidades políticas,
constituídas sob a égide do Estado-nação, fora o mecanismo político apropriado para a
expansão e consolidação de uma ordem econômica mundial calcada na inter-relação entre
Estados nacionais. A afirmação da soberania de cada uma das unidades nacionais que se
inserem na ordem internacional é ditada pela imprescindível necessidade desses novos
Estados, consolidados sob a nova ordem política nacional, se afirmarem no terreno
internacional disputando - por força de uma posição de soberania, dada a priori por um
poder político endógeno, através de mecanismos internos de um Poder afirmado pela
hegemonia com que exerce sua presença no aparelho de Poder: o Estado – espaços de
dominação e influência onde o capital de origem nacional possa empreender, através de
mecanismos jurídicos e econômicos, o processo de permanente acumulação e expansão.
A afirmação desses novos Estados Nacionais internacionalmente guarda estreita e
direta relação com o processo de acumulação e expansão da ordem capitalista em seus
passos de consolidação enquanto forças econômicas nacionais, que consolidavam
internamente sua posição de hegemonia política. As burguesias nacionais, como novo
sujeito histórico em processo de consolidação da nova ordem econômica e política interna,
152
procuram assegurar seu espaço de expansão para além das fronteiras definidas
nacionalmente.
Daí a necessidade de inserir-se no cenário internacional imbuídas de um projeto
que lhes assegure e garanta seus interesses enquanto unidades econômicas de caráter,
inicialmente nacional – cujo objetivo se vislumbra através da própria ordem econômica,
cuja natureza imperativa a sua sobrevivência implica permanente acumulação e expansão.
Consolidadas internamente, decorrem em expansão externa para projetos, historicamente
conformados, a uma dinâmica, momentaneamente de natureza nacional, mas que tende à
expansão global.
A Soberania moderna deve ser entendida como uma necessidade de afirmação
de um projeto burguês, inicialmente de caráter nacional, que se realiza mantendo a
dialética entre a ordem interna e sua conseqüente posição no cenário externo. A afirmação
interna de um poder político que manifeste interesses específicos de uma dada classe
social, no caso as burguesias nacionais, torna-se, portanto, o ponto de confluência de uma
soberania que se quer posta na cena internacional.
A ordem do Capital e o Estado moderno são condições históricas forjadas de
forma a que o primeiro possua as condições ideais para a ampliação e consolidação de um
modelo político, econômico e social, no qual o segundo desempenha o papel de
organizador e estimulador.
Karl Marx em elucidativo texto contido em seu livro O Capital, demonstra a
natureza seletiva desse Estado quando manifesta através de suas ações a permanente
interferência no espaço das relações privadas visando a organização e expansão das
relações sociais de produção capitalista. Sejam através de políticas monetárias, e da própria
política econômica empreendida pelo Estado, que tende a dar uma ação orientada para a
formação, acumulação e expansão da ordem capitalista.
153
Outro tópico decissivo é a criação de uma moeda nacional que seja usada
como equivalente nas trocas nacionais44 . Suzane de Brunhoff45, em seu texto intitulado
Estado Y Capital aborda essa questão de forma elucidativa. Ela descreve o que considera a
“pirâmide” das relações entre as condições internas; a cada Estado, em seu trabalho de
manutenção e expansão da ordem do Capital, e as imbricações destes mecanismos de
controle exercido pelo Estado através de seu poder soberano interno, com a ordem
internacional do capital.
“A moeda de crédito privado figura na base da pirâmide. Forma-se e se
destrói, principalmente, nas transações entre bancos e empresários. Se um
empresário pega emprestado meios de pagamentos para regular seus
gastos de pré-financiamento, deverá reembolsá-los ao banco no termino de
um prazo fixado mediante um contrato, e poderá fazer-lo se comercializou
sua mercadoria . O Banco que efetua o empréstimo emite a moeda que
antecipa a produção e a venda da mercadoria . Isso corresponde ao
movimento de circulação do capital cuja primeira transação é D-M ; o
capital monetário D pode pertencer ao mesmo empresário ou ser
emprestado. Ao término do circuito D-M-D’, o empresário deve reembolsar
sua divida ao banco” ( BRUNHOFF: Pg. 56, 1976)
O mesmo controle que o Estado exerce sobre a política monetária o faz, também
sobre a regulamentação das relações entre Trabalho e Capital, instituindo políticas que
visem a manutenção do primeiro, dada sua natureza singular de reproduzir-se e manter- se
por mecanismos ligados à sobrevivência e não às trocas puras e simples do mercado. As
44 - Relação e mecanismos entre valor de uso e valor de troca) que possa ser transacionada pelas moedas bancárias (dinheiro privado), cuja relação entre dinheiro e mercadoria se dá pela equação D – M. Onde, D é o financiamento bancário feito ao produtor, cuja finalidade visa a produção de M (mercadorias) estabelecendo as bases inicias das relações sociais de produção da ordem do capital, que se consumam por força da equação: D – M – D’, na qual D é o capital inicial, necessário à aquisição por parte dos capitalistas, dos elementos constitutivos da dinâmica produtiva, dentre os quais uma mercadoria particularíssima: a força de trabalho, elaborador do trabalho abstrato, cuja função é estabelecer a relação entre valor de uso e valor de troca, Proporcionando o processo de realização do Capital representado na equação pelo elemento D’.45 - Suzane de Brunhoff - Nascida em 1929, é diretora de pesquisas do Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS) e professora da Universidade de Paris X - Nanterre, tendo trabalhado também em várias universidades européias e americanas. Publicou, entre outras, as seguintes obras: La Monnaie chez Marx (1967), L'Offre de Monnaie (1971), La Politique Monétaire (1973), Etat et Capital (1976), Les Rapports d'Argent (1979). Rapports d'Argent (1979).
154
regulamentações da jornada e da remuneração mínimas ao trabalho são claros exemplos
desta ação do Estado.
Em seu texto Problemas del Intervencionismo de Estado46,, Elmar Altvater destaca
algumas das características básicas desta ação do Estado na regulação das relações sociais
de produção entre o trabalho e capital, e do conflito que a ela é inerente:
“ O problema geral reside mais diretamente que ao nível do mercado a
relação de fato parece ser uma relação entre sujeitos basicamente iguais,
contudo é essencialmente uma relação de dominação e exploração. Dado
que a sociedade capitalista é uma sociedade de classe , devido ao constante
conflito classista e a necessidade de que eles sejam contidos como
condição de preservar a base da sociedade, o Estado também assume
funções que envolvem a criação das condições gerais para a exploração, a
regulação dos níveis de salários e a superação das lutas de classes”
(ALTVATER: Pg. 99, 1979)
Contudo, se no espaço interno exercido pelo Poder soberano do Estado ocorrem
esses mecanismos de regulamentação que proporcionam a formação de uma ordem
monetária e produtiva, o mesmo se da através das relações entre os Estados-Nacionais no
plano de suas relações internacionais. Urge estabelecer uma relação que vise a conversão
das moedas nacionais em um equivalente universal que regularize as trocas efetuadas o
mercado internacional.
O reconhecimento da moeda nacional por parte da comunidade internacional e
sua possibilidade de conversibilidade com o equivalente universal das trocas internacionais
implicam reconhecer que há uma soberania interna que se manifesta externamente, por
meio das relações de trocas produzidas por uma ordem econômica que se manifesta
inicialmente no plano da territorialidade nacional, mas que tende inexoravelmente para a
amplitude do espaço global, dando ao ente que se representa pela moeda conversível a
condição de soberania nos planos das relações internacionais.
46 - ALTVATER, Elmar. El Estado Em el Capitalismo Contemporáneo. Em “ Problemas de Intervencionismo del Estado. 2º ed. Org. Heinz Rudolf Sonntag e Hector Valecillos. Espanha, Madrid: Siglo Veinteuno Editores, 1979.
155
O Estado moderno, por seu caráter de aparelho de poder transcendente, é a
negação da idéia revolucionária de imanência que precipita - enquanto pensamento
destoante da ordem pré-moderna - a modernidade. Este aspecto deve ser considerado
quando se conceitua a Soberania na modernidade, em concomitância com a própria
condição, nesse aspecto não mais conservador, mas revolucionário de consolidação de uma
ordem interna que contemple em sua manifestação de Poder a dinâmica necessária para a
expansão do capital, em sua formação. Inicialmente nacional, em sua formação, este
procura como condição objetiva, e de sobrevivência, a posição soberana de seus interesses
no cenário internacional.
Pensar a Soberania Moderna é pensar a emergência de uma nova ordem
econômica que implica em diversidades de projetos nacionais, mas que não contempla um
projeto de soberania de uma dada comunidade que procura representar, e sim uma parcela
daquela, cuja condição hegemônica lhe dá o caráter falseado de representar o comum. É
uma ação soberana que procura se manifestar tendo como preceito um projeto de ordem
econômica que se realiza sobre as necessidades de expansão do capital, inicialmente
nacional.
É um arranjo de Poder político, interno a uma dada comunidade, em torno da
“espiritualidade” advinda da idéia de nação circunscrita a um dado espaço territorial, cuja
arbitral condição implica eleger um determinado agrupamento humano, não homogêneo,
que se conformará, devido a essa idéia geral de pertencimento, aos conceitos de Povo e
Nação.
É sob esse aspecto que se manifesta a “crise” permanente da modernidade, à qual
aludem A. Negri e M. Hardt em seu texto denominado “Império”. A condição de “crise”
decorre da sistemática negação da descoberta do plano da Imanência como possibilidade
de poder a uma dada comunidade, anulada por força de um arranjo político que institui um
corpo transcende de poder (o Estado Moderno) que não contempla a universalidade que
tenta manifestar e torna-se seletivo em suas ações que se definem por mecanismos de
coerção e consenso (dominação e hegemonia). Estes são instituídos pela condição
hegemônica que imputa à comunidade originária, de natureza heterogênea, a percepção de
que sua realização, nos planos interna e externa, visa a um projeto de comunidade nacional
e, portanto, forçosamente homogêneo.
156
A soberania moderna se traduz em soberania nacional e o agente soberano é o
Estado nacional que atua,não como o representante e mandatário de um poder
soberanamente construído pelo coletivo de uma comunidade, mas pela necessidade de
instituir ações e mecanismos que assegurem um ordenamento interior e exterior a sua
territorialidade, cujos interesses são ditados pela ordem da acumulação capitalista.
O conceito de Soberania que emerge através das mudanças produzidas pela
modernidade, sobretudo a partir dos séc. XVII e XIX, e seu cortejo nacional-popular reflete
menos a possibilidade de autodeterminação de uma comunidade, e muito mais um projeto
particularizado pela força dos interesses que se manifestam de forma inegável em uma
ordem política, econômica e social, cuja essencialidade constitutiva se inscreve na ordem
dos antagonismos.
A Soberania Moderna, portanto, deve ser apreendida como um conceito, que produz
uma dada ação, que imputa falseadamente a uma determinada comunidade territorialmente
definida a idéia de que os interesses manifestos pela condição soberana, que se pretende
efetiva, é produto de um projeto comum àquela comunidade.
O que se observa é que a condição de soberania representada pelo Estado-nação, em
suas relações com seus pares no cenário das relações internacionais, procura reproduzir a
dinâmica de uma ordem política, econômica e social, construída a partir de um caráter
nacional, cuja natureza privilegia a manutenção, expansão de uma ordem (do Capital),
cujos mecanismos que desenvolve não podem ser interpretados como sendo produto de
uma ação imanente – já que exercido por um poder transcendente - determinada pelo
conjunto da comunidade política da qual falsamente emana sob esse ponto de vista
conceitual. As práticas discricionárias, com as quais define e pratica suas ações (Política
Econômica, Política Monetária, Política do Trabalho e principalmente as Políticas
Externas) que visam sobretudo a afirmação em um ordenamento, anterior e territorial, que
só se realiza e é impresindível para sua plena consecução quando reproduzido, guardadas
as devidas particularidades advindas de sua natureza desterritorial, pelas quais se constitui
ao nível global.
157
É a Soberania acessória e coadjuvante, não fundada na vontade coletivamente
construída e imanente. É um Poder manifesto através de um aparato político-jurídico, de
corte transcendente político-jurídico, portanto constituído, e não como implicaria, caso se
manifestasse pelo preceito da ação imanente, pelo caráter permanentemente constituinte.
O conceito moderno de Soberania, por conseguinte, se traduz pela sistemática
negação do preceito fundador do pensamento moderno: a descoberta da Imanência como
forma de ação e construção do poder temporal em substituição ao rebatimento da ordem
Teológica-política da pré-modernidade. Aliado à necessidade de manutenção, expansão e
consolidação da ordem do Capital.
158
Capítulo IV
O Estado: A Soberania do Capital
“ Por meio da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, retirou da industria sua base nacional. As antigas industrias nacionais foram aniquiladas e o são ainda todos os dias. São suplantadas todos os dia por novas industrias, cuja introdução se torna uma questão de vida e morte para todas as nações civilizadas. O antigo isolamento local e nacional, onde cada um se auto satisfazia, cede lugar às relações universais, a uma interdependência universal das nações(....) [ o capital] em uma palavra, cria o mundo à sua imagem” (*)
Ao concluir as abordagens pretendidas no capítulo anterior, algumas
questões importantes foram apontadas acerca do conceito de soberania na modernidade.
Tratou-se do desenvolvimento e da própria afirmação do conceito moderno de Soberania a
partir da emergência histórica do Estado moderno; da relação entre o exercício do poder
soberano desse Estado, sua feição orgânica e sua própria ação, seja na ordem interna, na
qual detém o Poder, como também como ente soberano, que pleiteia representar uma dada
comunidade em suas relações na ordem internacional e, principalmente, as conformidades
deste com a consolidação e expansão da ordem do Capital.
Dentre os destaques temáticos apontados acima, o que mais se relaciona com os
objetivos postos pela dissertação empreendida diz respeito ao que tange as relações entre o
Estado, como Poder soberano, e o desenvolvimento e consolidação da ordem do capital.
Tal dimensão implica observar através do transcurso entre a modernidade e a
contemporaneidade a maneira pela qual o Estado exerceu e exerce sua condição de
Soberania, interna e externa, e de que forma sua efetiva ação se conjuga ao
(*) - Fragmento de Texto retirado da obra de Karl Marx e Friederich Engels: Manifesto do Partido Comunista.
159
desenvolvimento, consolidação e domínio na ordem política das nações e, posteriormente
no plano mundial, do modo de produção capitalista.
É consensual na literatura cientifica produzida pelas Ciências Sociais apontar e
definir essa relação. Não se trata, portanto de repetir ou expandir essas considerações,
amplamente difundidas em diversos estudos. Covém, na realidade empregar um corte
analítico que procure demonstrar que: a Soberania do Estado moderno não é efetivamente
uma condição construída pela comunidade política, a qual, aquele reivindica representar,
mas uma soberania subordinada e secundada aos interesses de uma ordem econômica, que
devido a sua natureza de permanente necessidade de transformação requer distintas e
diversas feições constitutivas daquele, fundamentalmente ao que implica em sua dimensão
normativa.
Quando se procura definir a forma pela qual o Estado atua no
desenvolvimento e na própria afirmação da ordem do capital, deve-se considerar a
maneira pela qual funcionam, na sociedade burguesa, as relações entre as múltiplas
unidades do capital e de que forma o Estado desempenha seu papel diante da perspectiva
apontada.
Como observa Marx e assinala Elmar Altvater em seu texto “Problemas del
intervencionismo do Estado” 1 o capital em geral definido pelo primeiro como Capital
Social, se constitui a partir da interação e da própria interdependência realizada entre as
diversas unidades do capital existente na ordem econômica burguesa, cuja totalidade define
o “ capital total” :
“Em nível do capital em geral, como foi analisada por Marx, a existência
do capital e por pressuposição um capital social total. O capital social
total é a organização unificada no sentido de conformar a existência real e
geral das unidades de capital, cujas ações subjetivas determinadas pelas
condições dadas, dão, como resultado, que essas condições gerais são as
condições do capital total (...) deste modo as leis do movimento do modo
de produção capitalista se relacionam sempre ao capital social total, e não 1 - Referencia feita a: ALVATER, Elmar. “Problema Del Intervencionismo Del Estado” in, El Estado en el Capitalismo Moderno. Org. Heinz Rudolf Sonntag e Héctor Valecillos. Espanha: Siglo Veinteuno Editores sa. 2º ed. 1979.
160
as diversas unidades individuais do capital, as quais, sem dúvidas, através
de suas ações constituem os meios inconscientes, pelos quais se alcança a
Só há capital total, ou como aponta Marx, capital social se as unidades
individuais do Capital estiverem integradas em um movimento regular de transações.
Movimento este que, de acordo com suas características transacionais, define o modo de
produção capitalista.
Contudo, se requer na ordem econômica do capital, como condição imperativa
à própria manutenção da ordem global, a existência de algumas unidades de capital, cujas
naturezas de seus meios produtivos não venham a interessar de forma mais direta e
objetiva aos investimentos do capital privado. Em outras palavras, essas unidades de
capital - que permitem as condições materiais da produção do sistema como um todo mas,
não são atrativas devido às baixas margens de mais valia e margens de lucro com que
operam, a imprescindível necessidade de serem objeto de atuação, e da própria constituição
enquanto unidades de capital, por força de investimentos feitos por uma instituição
especial. Ital tarefa cabe ao Estado, que, contraditoriamente - já que se enseja e se forma a
partir e dialeticamente de uma ordem social de produção que visa sobremaneira a
reprodução continuada do Capital na forma da mais valia - não é um organismo
institucional que tenha como fim a ação empreendedora, necessariamente a busca da
extração da mais valia.
São espaços na cadeia produtiva, as quais naturalmente os capitais privados não
direcionam seus investimentos, cabendo, portanto, ao Estado criar e atuar nessas unidades
de capital, dada a sua natureza de não ser necessariamente uma ação de criação de valor.
É desta forma que deve ser encarada analiticamente a natureza e a intervenção
do Estado na ordem do capital. E não como mecanicamente se interpreta quando. Ele é
reduzido a mero e direto “balcão” de negócios da Burguesia. Não é o caráter
eminentemente econômico que define a natureza do Estado e sua intervenção na
manutenção e ampliação da ordem capitalista, nem tampouco seu rebatimento mecânico,
nas relações entre estrutura e superestrutura - comumente fonte analítica formulada pelo
chamado “marxismo vulgar” . Ele deve ser visto, sobretudo como um agente, em uma dada
161
ordem social, cuja dimensão interventora se aplica à própria reprodução da ordem do
capital, assumindo não interesses específicos de uma dada composição do capital, mas uma
ação eficaz para a formação do capital total ou social.
Altvater descreve em seu texto com bastante precisão esse mecanismo de
complementaridade do Estado para com a ordem do Capital, quando diz:
“Se a produção não é lucrativa e se a produção se realiza abaixo de
condições tais que põem em perigo a existência mesmo da sociedade global
(...) em conseqüência o capital não pode gerar exclusivamente através das
ações das múltiplas unidades que o integram., a natureza social necessária
para sua existência. Requer , então de uma instituição especial que não
está sujeito as limitações do próprio capital, uma instituição cujos atos não
estão determinados assim pela necessidade de produzir mais valia”
(ALTVATER: Pg, 91, 1979)
Não sse trata apenas de uma ação direta na cadeia produtiva (meios de
produção) por meio da criação de determinadas unidades de capital, como fora destacado
no parágrafo acima. As relações de produção são também objeto específico da ação do
Estado.
Elmar Altvater no texto já mencionado anteriormente, destaca algumas áreas, nas
quais se impõe a presença do Estado, por meio de sua função reguladora: Nas condições
materiais gerais da produção (infra-estrutura); Na determinação e salvaguarda do sistema
legal geral na qual ocorrem as relações dos sujeitos (legais) na sociedade capitalista; na
regulação dos conflitos entre trabalhadores e capitalistas; e, se necessário for, na
opressão política da classe trabalhadora, não só por meios políticos e militares; e
finalmente, na garantia e expansão do capital nacional no mercado mundial.
Não se fará um aprofundamento interpretativo das questões relacionadas acima,
até porque não se enquadram diretamente na perspectiva e objetivos do que se deseja
realizar com a dissertação em curso. O intuito em destacar tais aspectos está relacionado ao
apontamento da ação do Estado na ordem capitalista.
162
Como pode observar, os três primeiros aspectos estão ligadas diretamente às
bases territorial/nacional, na qual o Estado exerce seu poder soberano interno. Contudo, o
último aspecto apontado (na garantia e expansão do capital nacional no mercado
mundial) requer destaque por estar diretamente relacionado à centralidade discursiva da
dissertação. A ação do Estado, na sua condição de soberania externa, é determinada pelas
relações com os demais entes nacionais, considerando-se ainda a natureza destes, dada pela
singularidade que cada uma dessas unidades nacionais encerra em seus processos
endógenos de afirmação e regulação da ordem do capital.
A possibilidade de ocorrência de conflitos na ordem mundial, pelas relações de
busca de Soberania, é ditada, pelas contingências de os Estados-nacionais em exercerem a
função de ordenadores de todas as unidades de capital na territorialidade de origem, a qual,
exerce seu poder soberano, em oposição às outras unidades nacionais, no jogo das relações
internacionais.
A soberania exercida através dos Estados nacionais e sua ação interventora para a
afirmação interna da ordem do capital, em um primeiro momento decorrência de sua base
nacional, alcança, como conseqüência de seu próprio desenvolvimento e expansão, uma
ação de complementaridade que procura assegurar a eficácia dos interesses particulares de
cada burguesia nacional. Nesse aspecto as forças e os capitais nacionais de cada unidade
soberanamente definida, passam a se confrontar mutuamente. Produto de sua dinâmica
expansiva, eles ontrapõem às outras unidades nacionais, com interesses semelhantes, mas
particularizados, momentaneamente pelo caráter nacional, dadas as condições iniciais de
afirmação da ordem do capital se darem em concomitância em cada unidade nacional, já
organizada pela dinâmica da acumulação e reprodução do capital. Como bem destaca
Elmar Altvater em seu texto sobre a questão:
“Como Estado-nação, o Estado encerra todas as unidades de capital
dentro de qualquer país em oposição a outros Estado-nação no mercado
mundial. É nesse campo que as funções do Estado podem ser vistas com
maior claridade desde a manutenção da moeda interna e as relações
políticas com os países estrangeiros até o apoio militar para a acumulação
e expansão. (ALTVATER: Pg, 101, 1979)
163
Após apontar a maneira pela qual se produz a intervenção organizadora do Estado
diante da ordem social do capital e a partir desta, o trabalho retoma seu intuito especifico
relativo a este capítulo. Para tal, tomar-se-á a amostragem histórica, usualmente construída,
quando se deseja descrever o ciclo de evolução orgânica do capital observado no
desenvolvimento e afirmação da ordem global do capital e a maneira pela qual o Estado
exerceu e exerce sua função de soberania para os interesses do capital de base nacional.
Ao aplicar tal dimensão explanativa ter-se-á, como resultado, o consagrado
esquematismo histórico que aponta a seguinte ordenação quando se observa a evolução
orgânica do capital em seu trajeto de expansão que vai do eminentemente nacional até
espraiar-se pela ordem global: Capitalismo da “livre concorrência”, e de caráter
eminentemente nacional; Capitalismo “monopolista”, quando a centralização passa a ser
parte do processo de expansão da ordem mantendo, ainda, uma base eminentemente
territorial e nacional. A fase da expansão e exportação de capitais denominada de fase
“imperialista”, cuja essencialidade constitutiva é marcada pelo conflito de capitais
nacionais, através da ação político-militar dos Estados nacionais, cuja dinâmica de
desenvolvimento e expansão do capital já havia alcançado um grau tal de desenvolvimento
que implicará conquistas territoriais. E, por fim, o que se define contemporaneamente
como a fase de financeirização do capital ou “Globalismo” 2
Como o trabalho em questão não está voltado para a eminente abordagem
histórica do processo que se deseja observar, não será produzida uma análise aprofundada
da questão temporal. Será, portanto, observada principalmente a relação entre a evolução e
transformação orgânica do capital (D) e as ações funcionais exercidas pelo Estado como
complementaridade à dinâmica expansiva do capital, seja na esfera interna, enquanto poder
normativo da ordem econômica, ou por meio da sua ação soberana nas relações externas.
A ordem econômica do capital em seus primeiros movimentos de afirmação
experimentou o que os autores que se debruçam sobre o tema definem como a fase da
2– O termo ‘Globalismo” traduz a tentativa de descrição e inteligibilidade das atuais formas de engendramento das relações globais experimentadas pela ordem do capital em sua feição contemporânea. Alguns autores entre eles Serge Latouche, que descreve esse momento como : “ (.....) como sinal da emergência de uma meta-sociedade mundial, assim definida como um mecanismo de trocas ( não unicamente econômicas ) que baseado na concorrência universal e impessoal entre indivíduos ( e para além da mera hegemonia do Estado-nação, como a Inglaterra e o Estados Unidos ) coloca em relação a todas as partes do planeta , impondo-se definitivamente , como espécie de força corrosiva , sobre todas as civilizações “ Latouche, S. L’Occidentalisation du monde, La Découvert, Paris : 1992, pg 9).
164
“livre concorrência”. Este momento inicial, que se estende até os primeiros anos da
segunda metade do séc. XIX se caracterizava pela dinâmica de constituição orgânica do
capital (D)3, voltada eminentemente para a afirmação de uma ordem econômica interna no
processo de reprodução do capital. Afirmação esta que se dá a partir de variadas unidades
de capital que se relacionam e se integram dentro dos marcos da territorialidade que as
contêm.
É uma dinâmica eminentemente de base local, nacional e caracteristicamente
individualizada, quase que exclusivamente atomizada em pequenos núcleos de produção
(unidades de capital) e que não envolve grandes montas de capitais. A
intervenção/estímulo do Estado é marcada pela afirmação da moeda nacional, enquanto
equivalente universal de troca, e por uma incipiente regulamentação das taxas de
exploração e dominação advindas das relações sociais de produção.
Nesta fase o papel regulador do Estado - sua condição de poder soberano - se dá
mais na esfera interna da territorialidade nacional e menos como ente de representação de
soberania posta nas relações entre os Estados. A soberania essencialmente se define nos
marcos da territorialidade que procura representar.
São ações voltadas para o espaço econômico interno que visam à consolidação da
nova ordem nos moldes das exigências impostas pela ainda incipiente dinâmica de
acumulação. São projetos de caráter eminentemente nacional que procuram dar as
condições ideais para o desenvolvimento da ordem econômica do capital. As trocas com o
mundo exterior são de caráter eminentemente mercantil. Não há circulação de capitais para
além das fronteiras definidoras da soberania pretendida.
3 - A organicidade do capital nesta condição representada pela formula D – M – D’, em que D é o capital inicial; de posse privada de cada capitalista ou demandada por este, através do aporte financeiro feito a partir da instituição bancária. M, enquanto mercadoria é produzida através desta condição e posta ao mercado para as trocas, que ao se realizarem produzem D’, que é o D inicial acrescido do valor aferido através dos processos de extração da mais valia – como produto conseqüente da cadeia produtiva, e pela taxa de lucro. É o que K. Marx define como a reprodução simples. A reprodução simples do capital é o conceito pelo qual Marx define as relações de produção de mais valia e expansão do capital em sua fase inicial. Nela, as condições de produção são simultaneamente as condições de reprodução ampliada do capital.. “O capitalismo representa um modo de produção através do qual o valor antecipado de capital que entra no circuito produtivo de mercadorias é o valor que se expande no próprio ato de produção reproduzindo-se assim tendencialmente em escala ampliada. (...) No limite , mesmo que deixando de lado a [a análise da] acumulação propriamente dita, a mera continuidade do processo de produção [ a sua reprodução simples], cedo ou tarde , transforma necessariamente todo capital em capital acumulado , ou mais valia capitalizada” . Mello, Alex Fiúza de. “ Marx e a Globalização”. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.
165
Otto Alcides Ohlweiler, em seu livro Capitalismo Contemporâneo4 descreve esta
fase como:
“Trata-se de uma forma de produção capitalista onde coexistem, em cada
um dos ramos da produção industrial, inúmeros empresários individuais”,
cada um competindo livremente com os demais na conquista do mercado.
(...) A produção era regulada, de modo inteiramente espontâneo, por
indicadores do mercado. O sistema carecia de qualquer planejamento ao
nível gerencial”. (OHLWEILER, Pg 75, 1986)
O livre jogo do mercado, que marca essa fase do desenvolvimento capitalista
acarreta situações que se definem pela própria natureza de uma ordem econômica que se
pretende universalizada. A situação de espontaneidade dada pelo mercado provoca
oscilações nas relações entre produção e consumo, que operam por um equilíbrio precário
prenunciador de crises. É a partir desta situação de automatização que o Estado passa a
ocupar e exercer, mesmo que de forma indireta, as intervenções que caracterizam suas
ações, enquanto instrumento político de poder soberano no espaço interno, como
estimulador e regulamentador da ordem econômica. Ações estas marcadamente voltadas
para a manutenção e consolidação da ordem do Capital.
O período compreendido entre os anos entre 1873 e 1896, no mundo econômico
europeu - e berço histórico do Estado nação e palco irradiador da ordem do capital - fora
marcado por crises - a grande depressão do fim do Séc. XIX - que acabaram por definir
mudanças estruturais na ordem do capital. Se no período anterior à crise a dinâmica
orgânica do capital era constituída a partir de unidades de capital pequenas e dispersas, a
referida crise se desencadeou e desencadeia o que os estudiosos definem como o fim do
capitalismo da livre concorrência iniciando uma nova fase de desenvolvimento e expansão
do capital.
A concentração do capital – que é a expansão do capital resultante da
acumulação de uma parte da mais valia - provocada pela assimilação progressiva das
pequenas unidades de capital pelas maiores – alia-se à centralização do capital,
4- OHLWEILER, Otto Alcides. “Capitalismo Contemporâneo”. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
166
movimento este que implica grandes unidades como o resultado do aumento de volumes de
capitais, a partir da integração de capitais originariamente dispersos desencadeia a fase
monopolista do capital.
É importante destacar que essa nova fase de expansão da ordem do capital deriva de
sua própria natureza de estar permanentemente em movimento de expansão e acumulação.
A formação de conglomerados econômicos de base nacional acaba por impor ao capital a
necessidade de se expandir para além dos marcos territoriais originários. O monopólio
também se define pela diversidade de unidades de capital juntas formando os
conglomerados e as grandes corporações que paulatinamente vão se internacionalizando.
Ohlweiler, em seu ensaio sobre o capitalismo monopolista, define essa fase como
sendo:
“ Foi a partir das duas últimas décadas do séc. XIX que a evolução
orgânica do capitalismo , através dos mecanismos de concentração e
centralização, fez surgir e por fim consolidou as grandes corporações e seu
domínio sobre uma parte substancial dos mais importantes setores da
produção industrial. A emergência e a consolidação do capitalismo
monopolista foram uma conseqüência das própria condições e exigências
da expansão do capital. Num certo momento, o processo de expansão do
capital transpõe os estreitos marcos de um único setor de produção
industrial e,então, a acumulação se traduz na formação de vastos
conglomerados abarcando vários setores ao mesmo tempo. É por fim o
processo de expansão passa a se dar ao nível internacional com o
surgimento das empresas multinacionais” (OHLWEILER, Pg’s 75 e 76,
1986).
O termo capitalismo monopolista se transmuta em imperialismo quando um dos
mais importantes teóricos da crítica marxiana à ordem do capital o define como fase
imperialista do capital. V. I. Lênin torna-se referencia ao estudo da expansão internacional
do capital ao publicar sua importante contribuição ao entendimento do desenvolvimento da
ordem do capital em sua trajetória em tornar-se um sistema mundial: “ O Imperialismo,
estágio supremo do capitalismo” 5.
5 - LÊNIN, V. I. “Imperialismo, Estádio Superior do Capitalismo”. Portugal: Editora Centelho, 1974.
167
Ao afirmar, em seu estudo sobre a expansão do capital, que o imperialismo ou
capitalismo monopolista se define como sendo um novo patamar no processo endógeno do
capital em sua busca permanente por acumulação expansão, Lênin define alguns pontos
característicos deste novo momento que acabam por apontar as condições pelas quais essa
nova dimensão do capital se constitui. A saber: formação de monopólios industriais e
bancários como resultado da concentração da produção e centralização do capital; o
entrelaçamento e fusão do capital industrial com o capital bancário formando “impérios
financeiros”; a exportação de capitais nesta etapa suplanta a exportação de mercadorias;
a formação de consórcios monopolistas internacionais e a repartição das várias regiões
do mundo entre estes e a divisão territorial do mundo entre as grandes potencias
econômicas e militares.
Seguindo o recorte analítico, ao qual a dissertação se propõe, a fase imperialista
pode ser representada por algumas vertentes definidoras: a internacionalização progressiva
da extração da mais valia em concomitância com o abarcamento de áreas dantes fora da
dinâmica de acumulação do capital.
A internacionalização da extração da mais valia - marca indelével desta fase de
expansão da ordem do capital em seu processo de mundialização - dantes basicamente
circunscrita aos espaços nacionais já inseridos na dinâmica do capital, se dá através da
exportação progressiva de capitais para outras áreas do globo, inserindo-as na dinâmica
mundial da acumulação.
Em um primeiro momento a extração da mais valia esta restrita as bases nacionais
dos capitais. Com a expansão e dominação de novas áreas do globo, incorporando-as as
dinâmicas do capital, levou os Estados de economias consolidadas na ordem do capital a
um enfrentamento progressivo na disputa de mercados e também para a instalação de suas
bases produtivas nos territórios progressivamente incorporados.
A reprodução orgânica do capital – as etapas de produção e reprodução do
capital, decorrência intrínseca de um processo infindável e tendencionalmente exponencial
- se mantém pela equação: D – M – D’, para usarmos a relação marxista de acumulação e
168
reprodução do capital. Contudo, o que se manifesta distinto é a base eminentemente local,
que perde sua exclusividade e procura expandir-se para além da territorialidade inicial,
iniciando o processo de mundialização da ordem do capital.
Michalet, 6 em seu texto sobre a mundialização da ordem do capital no decurso da
fase imperialista, destaca:
“Os países industriais já não se cingem simplesmente a
simplesmente vender fora de sus limites nacionais uma parte maior ou
menor de sua produção. Eles começam a deslocar seu próprio aparelho
produtivo, transferindo indústriais inteiras desde seus espaços nacionais
originais para os de outras economias desenvolvidas ou para regiões
periféricas menos desenvolvidas. Em conseqüência desse processo de
internacionalização da produção, que se sobrepõe ao intercambio
internacional, resulta que os espaços econômicos nacionais não são mais
coincidentes com os territórios políticos, que os Estados-nação deixaram
de ser espaços fechados e que a antiga ordem econômica internacional foi
subvertida. É a emergência da economia mundial( MICHALET: pg. 11,
1984)
Tal condição decorre da necessidade de o capital minimizar a progressiva
tendência para a queda na taxa de lucro, processo este inerente à dinâmica de acumulação
e que só pode ser minimizado expandindo as áreas de comercialização e ampliando ou
transferindo, em parte, para outras regiões previamente dominadas e incorporadas, as áreas
de extração de mais valia.
Otto A. Ohlweiler, ao descrever o processo de afirmação da etapa do capitalismo
monopolista ou Imperialista delineia os aspectos descritos acima:
“O modo de produção capitalista, que tem como uma de suas
características a reprodução ampliada, exibe, desde os seus primórdios,
uma dupla tendência. Ele, ao mesmo tempo em que se reproduz
6 - MICHALET, C. A. “ O Capitalismo Mundial “ . Rio de Janeiro: Ed Paz e Terra, 1984.
169
ampliadamente no seio de sua formação social onde surge e afirma a sua
dominação, trata de projetar sua expansão para além das fronteiras da
formação social original. Na etapa imperialista, em que se acentua a
tendência para a queda da taxa de lucro, estabelece-se, no que concerne à
expansão do modo de produção capitalista para o exterior, a supremacia
da exportação de capitais sobre a simples exportação de mercadorias”.
(OHLWEILER, Pg 85, 1986).
O quadro dos primeiros anos do séc. XX está marcado nas relações internacionais
pelo enfrentamento dos Estados nacionais, através de conflitos de grandes proporções. A
partilha entre as potências imperialistas européias de territórios e áreas de influência
(notadamente o continente africano) e efetivo domínio; as guerras mundiais (1914/1918 e
1939/1945) são momentos de enfrentamento dos Estados pela dominação e hegemonia no
processo mundial de acumulação.
Isso transcorre em concomitância com as mudanças verificadas na ordem do
capital – o paulatino abandono da livre concorrência experimentada anteriormente - que
passam a manifestar-se de forma mais perceptível a partir da segunda metade do séc. XIX
e se intensificam alcançando seu ápice em fins da década de trinta do séc. XX, com a crise
e a grande depressão norte-americana. Destaca-se ainda o abalo na ordem do Capital
desferido pelo processo revolucionário na Rússia em 1917; a emergência de regimes
totalitários de corte nazi-fascista que se espalharam pelo globo, entre as décadas de trinta e
meados da de quarenta, que se valeram de variadas experiências, eivadas de
particularidades e idiossincrasias, por parte daqueles que “assaltavam” por meios golpistas
as chefias dos governos fortes, que em seguida se instauravam.
A crise produzira de forma aguda o embate entre as forças transformadoras e os
conservadores, em que estes agiam em resposta à crise do capital, ávidos pela manutenção
da ordem da acumulação, ao preço de apoiarem incondicionalmente regimes que se
deslocavam notadamente do ideário liberal, porém semelhantes quando postos diante da
tarefa que lhes cabia: a guarda da ordem do capital diante do avanço das forças da
transformação econômica e social.
Internamente a ação do Estado, nas economias centrais, diante da catastrófica
crise de 29 (“Crash” de Wall Street), disseminada para além das economias centrais, haja
170
vista o franco processo de mundialização na qual já se encontrava a ordem do capital, e
verificável também nas periferias, que de alguma forma já estavam incorporadas à
dinâmica da divisão internacional do trabalho se manifesta claramente indicando a crise
precursora, como em outras oportunidades, das mudanças orgânicas pelas quais passa de
forma permanente a dinâmica do capital.
A crise brasileira de fins da década de vinte do séc. XX com a “crise do café”, e a
resposta dada a esta, com o golpe de Estado de 1930; o “Varguismo” do Estado Novo; a
ação direta do Estado Norte-americano com a adoção das políticas do “ New Deal”7, além
das premissas do ideário econômico Keynesiano 8, amplamente empregadas por economias
que se debatiam com crises de decomposição econômica e social, são manifestações claras
do poder do Estado e de seu indiscutível papel de efetivo exercício de um Poder Soberano
compromissado com a manutenção interna da ordem do capital.
Com destaca Ohlweiler, ao citar a política de ação interventora do Estado pela
soberania do capital como ordem econômica exemplificando-a com a teoria de Keynes: “A
política dos gastos patrocinados pelo Estado – que só depois Keynes racionalizaria a
posteriori num corpo doutrinário – era o principal meio usado para superar as
dificuldades da valorização do capital”.(OHLWEILER, Pg 80, 1986).
7 – New Deal - O New Deal (cuja tradução literal em português seria "novo acordo" ou "novo trato") foi o nome dado à série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, e assistir aos prejudicados pela Grande Depressão. O nome dessa série de programas foi inspirado no Square Deal, designação dada pelo anterior Presidente Theodore Roosevelt à sua política econômica.
8 - O termo Keynesiano está relacionado ao economista John Maynard Keynes (Cambridge, 1883 —1946) Criador da Macroeconomia, foi um dos mais influentes economistas do século XX. Suas idéias intervencionistas chocaram-se com as doutrinas econômicas vigentes em sua época e estimularam a adoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. O objetivo de Keynes, ao defender a intervenção do Estado na economia não é, de modo algum, destruir o sistema capitalista de produção. Muito pelo contrário, segundo o autor o capitalismo é o sistema mais eficiente que a humanidade já conheceu (incluindo aí o socialismo). O objetivo é o aperfeiçoamento do sistema, de modo que se una o altruísmo social (através do Estado) com os instintos do ganho individual (através da livre iniciativa privada). Segundo o autor, a intervenção estatal na economia é necessária porque essa união não ocorre por vias naturais, graças a problemas do livre mercado (desproporcionalidade entre a poupança e o investimento e o "Estado de Ânimo", ou, como se diz no Brasil, o "Espírito Animal", dos empresários).
Por outro lado, mas, contudo, mantendo porém a mesma natureza e efetiva
determinação por parte do Estado, verifica-se um momento de indiscutível tentativa de
afirmação de soberania externa por parte dos Estados de economia central. É inegável que
a ação militar dos Estados diante dos conflitos globais experimentados na primeira metade
do Séc. XX são produto de enfrentamentos mundiais de projetos nacionais que buscavam,
como forma de expansão da ordem econômica que engendram, a supremacia e hegemonia
em um quadro econômico internacional que se afirmava tendencionalmente para a
efetividade global.
A passagem empreendida pela ordem do capital de uma fase de “ livre
concorrência” para a fase de expansão imperialista, graças aos efeitos produzidos pela
centralização e concentração (monopolização do capital) nas economias centrais, define
uma ação soberana externa por parte do Estado. Este busca a manutenção, ampliação e
consolidação de um projeto originalmente nacional, que requer para sua eficácia a ação de
poder soberano que o represente nas relações globais, anunciadas como imprescindíveis
diante da dinâmica inercial da ordem capitalista em sua permanente busca por novos
espaços a serem incorporados a dinâmica de extração de mais valia e reprodução orgânica
do capital.
Uma nova dinâmica que prescinde da exclusividade inicial da exportação simples
de mercadorias, pois se reproduz por uma forma cada vez mais presente de expandir-se, a
exportação de capital para as formações sociais dominadas e incorporadas pela ação
imperialista dos Estados - enquanto representantes da soberania da ordem do capital em
suas bases nacionais originárias – ao capitalismo.
“A fase imperialista inaugurada com o fim da II Guerra Mundial
revelaria, no seu curso, importantes modificações no que diz respeito às
relações entre metrópoles e as formações sociais dominadas. O modo de
produção capitalista passa a dominar as formações sociais dependentes
não simplesmente atuando sobre estas de fora para dentro e através da
continuada reprodução do vinculo de dependência mas impondo sua
dominação direta no interior das formações dominadas e dependentes . O
modo de produção das metrópoles se reproduz , sob forma específica , no
interior das formações dominadas e dependentes. (OHLWEILER, Pg 81,
1986 )
172
A denominada fase imperialista marcada pela expansão da ordem mundial -
de uma condição de internacionalização progressiva (exportação exclusiva de mercadorias)
para a emergência da mundialização do capital (exportação de Capital) – como causa e
conseqüência dos conflitos mundiais; por conta da monopolização progressiva do capital -
como decorrência de sua dinâmica centralizadora e concentradora - alcança seu momento
critico em meados da década de 70 do Séc XX. Uma nova crise anuncia, e gesta em seu
seio as mudanças substanciais pelas quais o capital engendra, mais uma vez, as novas
formas de acumulação e expansão.
“O processo de internacionalização do capital, ao qual se associa o
fenômeno da multinacionalização das empresas, é a expressão da
reprodução ampliada do modo de produção capitalista. A passagem da
economia internacional à economia mundial não subentende nenhuma
ruptura com o sistema capitalista, mas, apenas denota o surgimento de
novas formas de existência desse sistema”. (OHLWEILER, Pg 97, 1986).
Os desdobramentos da crise experimentados pela ordem capitalista mundial, na
década de setenta do século passado, acabam por definir uma nova etapa na dinâmica
empreendida pelo capital em sua constante condição de reproduzir-se permanentemente.
Nas fases anteriores, D – M – D’ delineava o processo de reprodução e acumulação, no
qual, necessariamente, o capital - dinheiro (capital a juros), aportado na cadeia de
produção, por meio das relações sociais de produção (entre capital e trabalho) produz
mercadorias que através da extração do valor reproduziam D’. A nova fase do capital que
se financeriza de forma tal que passa se traduzir pela expressão: D – D’. Como descreve
Ohlweiler:
“Sendo a mais valia criada no setor produtivo, segue-se que o movimento
do capital a juros assenta internamente no movimento do capital produtivo
(industrial) o capital a juros e invertido na industria para gerar mais valia
(...) o que ocorre é um completo divórcio entre a propriedade do capital e o
uso deste na produção, ou seja, o capital como propriedade se separa do
capital como função. (...) A formula que retrata o movimento do capital a
juros é D -D’, onde é o capital –dinheiro que o prestário entrega ao
173
prestamista e D” é o capital – dinheiro que este último restitui ao primeiro
devidamente acrescido de juros “ (OHLWEILER, Pg 117, 1986).
O movimento da fase imperialista definiu a existência de Estados na periferia
(processo de descolonização e de emancipação nacional com a criação de novos Estados
na periferia e nas bordas da ordem mundial do capital), Estados estes, que refletiam a
condição de subalternidade dada pela dominação econômica definida por suas relações
com os Estados centrais do sistema internacional da divisão do trabalho, na qual, acabavam
por exercer uma soberania limitada. Na fase que se inaugura o Estado, seja na condição de
dominante ou dominado passa, mais uma vez, a exercer sua “soberania” de acordo com a
real dimensão e natureza do poder soberano que representa. Ou seja, a soberania como
ação destinada a preservar e ampliar os interesses da ordem do capital.
Alguns autores contemporâneos9 definem esta nova dimensão orgânica da
ordem do capital como um desdobramento pertencente à própria fase imperialista, não
assinalando por tanto em suas interpretações uma nova fase ou novo patamar.
Não cabe ao momento discutir a questão na profundidade com a qual esses
autores contrapõem seus argumentos acerca da questão da superação ou não da fase do
imperialismo clássico por uma nova dinâmica na contemporaneidade da ordem mundial do
capital. Mas, se forem observadas algumas premissas definidoras, sobre o conceito de
Imperialismo, ver-se-ão algumas significativas diferenças entre os momentos apontados.
A exportação de Capitais não se restringe a dinâmica eminentemente produtiva
– a internacionalização do capital pelas transferências das bases produtivas para as
periferias do sistema mundial (exportação de capital) – , há um fluxo de capitais
financeiros a percorrer o mundo sem que se instalem ou produzam as relações tradicionais
de acumulação e extração de mais valia (D – M – D’), baseadas nas originárias relações
9 - Alex Fiúza de Melo, em seu texto “ Marx e a Globalização “ destaca as dificuldade interpretativas que se apresentam quando de alguns dos mais importantes autores contemporâneos da tradição do pensamento marxista elaboram suas reflexões presos aos paradigmas analíticos da fase imperialista, citando os seguintes autores e suas respectivas obras sobre a questão posta pela nova dinâmica de reprodução orgânica do capital: Michael Barrat Brown, “ Depois do Imperialismo”; Paul Baran e Paul Sweezy, “Capitalismo Monopolista”; Ernest Mandel, “ O Capitalismo Tardio”; Christian Palloix, “ A Economia Mundial Capitalista” e Samir Amin, “ A Acumulação em Escala Mundial”.
174
sociais de produção observável no modo de produção capitalista manifestas pela equação
capital/trabalho. O que não implica, obviamente, que se tenha superado as tradicionais
relações entre dominadores e dominados, ou como queiram, entre centro e periferia nas
desiguais posições entre as comunidades diante do sistema global de acumulação e
extração de mais valia. É perceptível que o processo orgânico da reprodução e acumulação
do capital se desloca para a atividade rentista em detrimento, (e secundando sobre certo
aspecto) da antiga significância com a qual o capital produtivo compunha a organicidade
da acumulação.
O processo de centralização e concentração do capital, experimentado,
inicialmente na denominada fase imperialista, definidora até de sua emergência através da
consolidação dos grandes monopólios também assume uma nova dimensão. Intensificam-
se as chamadas horizontalidades e verticalidades das unidades de capital devido a sua
condição de tornar-se mundializado. O capital assume sua condição histórica de plena
transnacionalização - conseqüência endógena do processo de internacionalização
experimentado na fase anterior. Não é, portanto, uma transferência somente das bases
produtivas de uma territorialidade para outra - na busca por condições mais favoráveis para
a dinâmica do capital na ampliação das margens de extração da mais valia. É a completa
desterritorialidade do capital.
Otavio Ianni, em seu estudo acerca do processo de “globalização” - a que o
autor prefere referir-se usando o termo “globalismo” –, quando contraposto à fase
denominada ‘imperialismo”, acentua a difernça que deve ser observada entre os dois
momentos tomando como base o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de
produção em seu processo de mudanças que interferem na própria dinâmica orgânica do
Capital em seu proceso de expansão e acumulação continua:
“ Na medida em que se desenvolvem as forças produtivas e as relações de
produção , acelerando a concentração e centralização do capital em escala
mundial , logo se forma uma configuração mais abrangente [ mediante o
que ] empresas corporações e conglomerados transnacionais extrapolam
as fronteiras pré-estabelecidas (...) O Globalismo subsume histórica e
teoricamente o imperialismo [ a medida que ]se trata de duas
configurações históricas e teoricas distintas (...) duas totalidades diferentes
175
, sendo que uma é mais abrangente que a outra, [ou seja] o globalismo
pode conter varios imperialismos,assim como diferentes regionalismos,
muitos nacionalismos e uma infinidade de localismos” ( IANNI: pg. 250,
1996)
O processo de transnacionalização do capital traz em sua dinâmica a
necessidade – em nome de sua permanente expansão - de superar as condições objetivas da
ordem institucional, definida a partir das territorialidades postuladas historicamente pelo
Estado-nação. Não com sua eliminação, mas fazendo com que sua ação “soberana” interna
aja novamente como modelador aos interesses do capital em sua dinâmica de
desenvolvimento orgânico.
O Estado-nação e as chamadas economias nacionais não podem ser
pensadas como unidades estanques em um modelo multifacetado (internacional), mas sim
como elementos integrantes de uma ordem que os contém. Esta não se define pelas partes,
mas, por sua totalidade enquanto um sistema. A bem da verdade a ordem do capital nunca
teve um caráter eminentemente nacional – mesmo quando observado seus primeiros
momentos de emergência histórica. Fez-se nacional por contingência de seu processo
inicial de acumulação. Nesse contexto inicial o Estado-nação possui uma funcionalidade
que não é compatível, nem tampouco funcional ou facilitadora, com uma ordem econômica
que alcança o seu destino histórico [dado desde sua origem] de ser global. Por esse prisma
se esboça [pelas contigências atuais do processo de acumulação] sua superação enquanto
elemento imprescindível a ordem do capital, já que esta não está mais ancorada
exclusivamente em territorialidades definidas nacionalmente. Fiuza situa de forma precisa
tal dimensão ao descrever que:
“ Históricamente falando , o fato é que , “no princípio , as redes de
acumulação do capital estavam inteiramente inseridas em redes de poder
(estatal)e lhes eram subordinadas . Nessas condições, para terem sucesso
na busca do lucro, era necessário que as organizações empresariais
estados poderosos (...), entretanto, à medida que as redes de acumulação se
expandem de modo a abranger todo o globo, elas se tornam cada vez mais
autonomas e dominantes em relação as redes (estatais) “ ( MELLO: Pg
246, 1999)
176
A consolidação de seu caráter global enquanto sistema [dado originalmente] já era
plenamente verificável e fora objeto de destaque nas interpelações analíticas produzidas
por Marx. Em seu texto “Grundrise”10 , o referido autor destaca tal condição quando
afirma: “ a tendência para criar o mercado mundial está dada diretamente [isto é
intrinsecamente] no próprio conceito de capital”
As fronteiras e delimitações dos espaços arbitrados geograficamente podem
continuar a coexistir com essa nova forma de expansão orgânica do capital. Porém, mais
uma vez as ordens institucionais [o Estado] definidoras circunstanciais da soberania
territorial - as quais detêm funcionalmente – que definem e delimitam as regras dentro
destes espaços devem estar redirecionadas, criando os meios eficientes, de acordo com as
necessidades de flexibilização e fluxo impostos pela ordem do capital em sua fase
transnacional ou global.
Os movimentos de reestruturação pelos quais passaram e passam os Estados a
partir da década de oitenta do século XX, de acordo com a onda neoliberal (consenso de
Washington)11, que se tornava paulatinamente hegemônica, denota de forma bem
transparente o processo de adequação, dos Estados, outrora nacionais, necessária ao
progressivo aumento da circulação de capitais em escala global.
Os Estados são submetidos a um processo de perda de soberania sobre as
políticas destinadas à regulamentação da ordem econômica vivenciada em suas
territorialidades. Exemplarmente manifestada através das políticas empreendidas pela idéia
10 - MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Critica de la Economia Política (Grundrise). 14 º edição, México: Siglo Veintiuno Editores, 1986.11 -Consenso de Washington é um conjunto de medidas - que se compõe de dez regras básicas - formulado em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras baseadas em Washington, como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do economista John Williamson, do International Institute for Economy, e que se tornou a política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990, quando passou a ser "receitado" para promover o "ajustamento macroeconômico" dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. Independentemente das intenções originais de seu criador, o termo "Consenso de Washington" foi usado ao redor do mundo para consolidar o receituário de caráter neoliberal - na onda mundial que teve sua origem no Chile de Pinochet, sob orientação dos Chicago Boys, que seria depois seguida por Thatcher, na Inglaterra (thatcherismo) e pela supply side economics de Ronald Reagan (reaganismo), nos Estados Unidos. O FMI passou a recomendar a implementação dessas medidas nos países emergentes, durante a década de 90, como sendo uma fórmula infalível, destinada a acelerar seu desenvolvimento econômico ( Wikipedia – enciclopedia livre - www.wikipedia.com.br).