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A sabedoria da ndia
Capitulo I A ndia e Ns
Pesadelo ou deslumbramento Aos olhos dos ocidentais, a civilizao
hindu apresenta-se sob duas perspectivas violentamente
contrastantes.
A primeira, inteiramente negativa, mostra um quadro de desolao
econmica e abominao social - superpovoamento, fome, epidemias,
misria crnica, injustias em massa, atrasos tcnicos, supersties etc.
Sob esse ponto de vista, a ndia um permanente escndalo, um tumor
purulento no flanco da humanidade "em marcha para o progresso".
Fala-se dos ossurios vivos que so Bombaim e Calcut, dos milhes de
leprosos, da sina abjeta dos intocveis, das desigualdades
intolerveis, do obscurantismo exacerbado que substitui a instruo
para a multido de analfabetos, sem esquecer a condio das mulheres,
sinnimo de servido medieval. Corno poderia a ndia ter alguma coisa
de importante ou de til para nos ensinar, visto ser to
dramaticamente incapaz de resolver seus problemas mais
prementes?
Outra perspectiva, outro olhar: a essa paisagem de pesadelo
contrape-se um cenrio ferico, um conto das mil e urna noites,
saturado de clichs. a "ndia fabulosa", a "ndia misteriosa", com
suas legies de swamis, de iogues, de gurus, de vacas sagradas, de
elefantes reais, de marajs tursticos, imenso bazar espiritual,
fervilhante de deuses, de faquires, de grandes sbios possuidores de
um notvel senso do show-business internacional.
Esta verso esplendorosa e um pouco teatral destila urna pesada
mistura de exotismo tropical, de exibicionismo folclrico, de cobias
de toda espcie, onde se encontram, ao mesmo tempo, uma necessidade
de liberao sexual disfarada em tantrismo, um delrio de poder atravs
do libi da ioga e uma infantilidade bastante pattica, bizarramente
vestida com ornamentos msticos e devocionais.
A ndia do pesadelo econmico e social existe realmente, tanto
quanto existe a ndia dos traficantes de poderes sobrenaturais e dos
escroques espirituais. Porm o essencial est bem distante disso.
Uma falncia geral H cerca de vinte anos se v, no Ocidente, uma
extraordinria abundncia de revistas e publicaes, bem como uma
proliferao de movimentos e de seitas ligados a um vasto e vago
domnio onde se acotovelam, misturados, magia, astrologia,
ocultismo, parapsicologia, esoterismo, simbolismo e espiritualidade
orientais. claro que esse amlgama, profundamente abusivo, provoca
confuses e irradia, para o grande pblico, uma imagem inteiramente
simplificada e estereotipada, onde os fundamentos do hindusmo se
apresentam pura e simplesmente escamoteados.
A sociedade ocidental contempornea est dominada por uma
insatisfao bastante obsessiva que se assemelha muito a uma confisso
de derrota e impotncia. O paradoxo histrico que, a despeito das
flutuaes e das crises, vivemos na primeira civilizao conhecida onde
a
Andrespor Patrick Ravignant
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abundncia e a prosperidade tornaram-se inegveis realidades
cotidianas. As mais carentes de nossas grandes cidades
beneficiam-se de um contexto material principesco, se comparadas
aos deserdados do Terceiro Mundo. E, entretanto, as tenses, as
ansiedades, o mal-estar chegaram ao auge: drogas, alcoolismo,
barbitricos, violncia, dio racial so sintomas flagrantes e provas
de que a verdadeira felicidade, a paz interior, no depende
absolutamente de condies exteriores.
A falncia clamorosa e geral das ideologias e dos sistemas
religiosos, filosficos e polticos e a desconfiana, mais e mais
alastrada e justificada face a todos os proselitismos teolgicos e
morais, a todos os militantismos de direita e de esquerda,
constituem outra fonte de frustrao e de angstia existencial
profunda. O relativismo cientfico caminha lenta, mas seguramente no
inconsciente coletivo, tomando cada vez mais difcil a adeso
incondicional a uma verdade dogmtica e cada vez menos crveis as
antigas pretenses objetividade intelectual.
Porm o mais chocante, sem dvida, a impossibilidade de as velhas
doutrinas transformarem o nosso modo de conscincia, aclararem a
nossa percepo do universo, mudarem esquemas inertes em experincia
viva, abstraes rgidas em realidade dinmica.
O infinito atrelado De fato, h duas espcies de motivao,
radicalmente diferentes, que nos impelem para a cultura e a
espiritualidade hindu.
Muitos ocidentais tm um apetite de dominao universal, de
controle integral do destino e do universo, que no mais pode ser
satisfeito com os sucessos tecnolgicos e cientficos, por mais
espetaculares que sejam. O sistema solar poder ser visitado, o
mistrio dos buracos negros elucidados, os xitos mdicos
multiplicados, fontes de energia insuspeitas exploradas, sem que,
no entanto, sejam suprimidos os medos, o sofrimento, os conflitos,
a solido, o desespero da separao e da morte, to torturantes numa
ultramoderna torre de ao e de vidro quanto numa cabana de terra
batida.
Revoltados contra a servido e as limitaes de nossa condio humana
e aspirando a um estado sobre-humano, muitos acreditaram encontrar,
na ndia, as receitas de uma onipotncia e as frmulas de uma
oniscincia que lhes permitiriam desenvolver faculdades
extraordinrias, dons paranormais que os elevariam ao posto de
demiurgos.
Esses, em geral, erram de guru em guru, de ashram em ashram, de
seita em seita, com uma avidez pueril e vulnervel, sempre
aguardando o aparecimento do mestre infalvel, do grande instrutor,
da revelao divina e da iniciao suprema. Pem nisso, geralmente, um
ardor inquieto, esperando indefinidamente a recompensa miraculosa
com a mesma f incessantemente esgotada e renovada - de um apostador
da loto. As falaciosas promessas de absoluto em plula, poo ou
figuras mgicas so tpicas da mentalidade ocidental, que acredita
poder atrelar o infinito, colocar uma focinheira no nada, empacotar
a verdade em embalagens congeladas.
Mais raro so aqueles que vo ao essencial da mensagem da ndia -
alm da superfcie gangrenada e mutvel, alm mesmo da brilhante
exploso de uma cultura incrivelmente rica e diversificada.
A dimenso da interioridade Para um moderno ocidental, o que
verdadeiramente desconcertante no ensino tradicional da ndia menos
a profuso ritualista e multicolorida que satisfaz ao seu gosto pelo
exotismo e pelo
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bizarro do que a dimenso de interiorizao, em completo contraste
com o barulho, a violncia, a atividade a todo preo, a perseguio
febril aos bens e prazeres, a necessidade desesperada de afirmao
pessoal, a impossibilidade de ser sem ter, fazer ou parecer, isto ,
uma vida incessantemente projetada, arrastada, precipitada para o
exterior.
Se alguma coisa da ndia pode interessar-nos verdadeiramente,
esta interiorizao, despojada de seu folclore e restituda sua vocao
universal, num caminho onde poderiam ser reconhecidos, ao mesmo
tempo, um discpulo de Scrates, um monge cristo ou um mstico
sufi.
Uma felicidade no-dependente De que se trata?
Visto de fora, o hindusmo aparece como uma massa de tal forma
extravagante, confusa e complicada de mitologias, doutrinas,
asceses, prticas religiosas heterclitas e contraditrias, termos
snscritos quase intraduzveis, que se afigura impossvel discernir
nesse magma alguma coerncia, alguma convergncia, um fio condutor
simples e nico ligando os contornos tortuosos dessa trama
desordenada.
Entretanto esse elemento existe; ele est nos centros dos
ensinamentos mais diferentes e constitui o objetivo ltimo de
disciplinas espirituais completamente dspares. a busca de uma
felicidade no dependente de circunstncias favorveis ou no,
felicidade inimaginvel, para alm de toda expresso, correspondendo a
um modo de conscincia libertado dos apegos e dos medos, livre da
ditadura dos contrrios (belo-feio, bem-mal, gosto-no gosto etc),
desembaraado das angstias do ego, das limitaes do tempo e do
vir-a-ser, dos imperativos da relatividade.
Esse estado, cujo contedo desafia qualquer definio ou descrio,
foi batizado de Libertao (moksha). Renem, na realidade vivida,
aquilo que os budistas denominam Despertar ou Natureza do Buda, e
os cristos, Reino dos Cus.
Essa felicidade libertadora no tem nada de profundamente
estranho, longnquo ou inacessvel. Ao contrrio, constitui o
fundamento de nossa natureza: est para o nosso ser fsico, emocional
e mental como a gua, em geral, est para um determinado rio ou o
ouro para uma jia especfica. Simplesmente est encoberta, oculta
pela incessante agitao de suas prprias formas - o conjunto dos
processos biolgicos e psicolgicos pelos quais estamos sujeitos
mudana e relatividade.
Esse estado prprio de todo ser vivo, quaisquer que sejam suas
origens, destino, nvel cultural, opes filosficas ou crenas
religiosas. Aparece espontaneamente, como conseqncia de uma
transformao interior que mais ou menos rpida, mais ou menos difcil,
s vezes herica, segundo os indivduos, avano progressivo cujas
etapas e mtodos variam consideravelmente de uma pessoa para
outra.
Esse trabalho sobre si mesmo no requer absolutamente um estgio
de dez anos num ashram de Bengala ou numa gruta do Himalaia. Um
ponto capital do ensino hindusta , justamente, que qualquer pessoa
pode operar essa transformao, seguir esse itinerrio (Sadhana), onde
est e como , sem ter, necessariamente, que desorganizar o quadro de
suas atividades e obrigaes familiares, profissionais etc.
No so suficientes alguns sinais exteriores _ crnio raspado,
tnica aafro, votos de pobreza e castidade - para ascender Libertao
e ao Despertar. infinitamente mais sutil e mais simples.
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Ningum se converte ao hindusmo, e mesmo as profisses de f so
apenas acessrios bastante vazios de sentido, uma vez que se limitam
a exprimir opinies e crenas, em vez de manifestar uma experincia
interior.
claro, a existncia que levamos em nossa civilizao de
hiperconsumo e de acumulao neurtica no favorece um encaminhamento
"espiritual", e preciso constatar que a maior parte dos cristos ig
nora completamente, hoje em dia, a dimenso interior da vida
religiosa, reduzida mais e -mais a uma espcie de catecismo
socializante e moralizador.
Quem, afora alguns monges, d um contedo realmente vivo, ntimo,
cotidiano a expresses como "presena em si mesmo e em Deus", "morte
do Homem Velho" ou "o Reino de Deus que existe dentro de vs"? Que
cristo, de qualquer Igreja, aspira a poder dizer, como So Paulo:
"No sou mais, Cristo que vive em mim"?
Deus tornou-se, para ns, objeto de teorias e de hipteses, de
afirmaes definitivas ou de contestao radical, s vezes de emoes
violentas, positivas ou negativas.
De fato, temos apenas idias sobre Deus, ao passo que a ndia
tradicional, como a Idade Mdia crist, procura viver em Deus,
mergulhar em Deus, ser Deus.
Acima das incompatibilidades teolgicas, das distores semnticas e
dos abismos culturais, h um reencontro imenso no seio do inefvel,
no incio de um silncio que tambm uma perfeita experincia.
O nico realismo autntico Para o ocidental interessado no
hindusmo, no apenas como curioso ou esteta, uma grande questo vem
mente: como passar seriamente prtica sem ir ndia para seguir com
assiduidade o ensino direto deste ou daquele mestre qualificado?
Como conciliar, em seguida, essa prtica, a realizao pessoal desse
ensino, com as mil obrigaes e lutas cotidianas, os aborrecimentos,
as tenses, os conflitos muitas vezes insolveis, enfim, toda essa
atividade avassaladora que deixa to pouco espao para o recolhimento
e a meditao? Como atingir essa paz, essa serenidade, esse centro
imutvel de ns mesmos, se temos constantemente a cabea, o corao e o
corpo trabalhados, atormentados, perturbados por barulhos
lancinantes, vibraes convulsivas, ecos de cataclismas - contnuo
leilo do terrorismo, do sadismo, da megalomania, da demncia
organizada, da iminncia do apocalipse?
Quando nos lembram, de uma ou de outra forma, o ensino ligado ao
hindusmo, pensamos geralmente: sem dvida, isso admirvel beira do
Ganges, mas sejamos realistas; h dvidas a pagar, impostos que
aumentam, filhos para criar, perigo de desemprego, concorrncia cada
vez mais dura - tantos desejos no-satisfeitos, medos
no-apaziguados! Que significa isto de que me falam, felicidade
no-dependente, conscincia transformada, Libertao?
Entretanto, bem disso que se trata, no beira do Ganges, mas no
meio de todos os problemas e condicionamentos prprios da sociedade
ocidental contempornea. Em ltima anlise, no ser a busca da
eternidade o nico realismo autntico, pois que a morte nossa nica
certeza?
A necessidade do pluralismo Neste domnio do trabalho sobre si
mesmo, da transformao interior, dos processos do Despertar ou da
Libertao, a tradio hindusta reuniu, no curso de milnios, uma soma
de conhecimentos,
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de experincias e, digamos, de competncia pedaggica sem
equivalncia no resto do mundo, o que no minimiza, absolutamente, o
esprito e a amplitude das outras tradies.
A ndia soube, ao mesmo tempo, especializar e diversificar ao
extremo sua abordagem e seus caminhos, no excluindo nenhum aspecto
da vida, englobando todas as energias e todas as aspiraes to bem
que podem cohabitar, com mtua tolerncia e profunda harmonia,
ascetas mendigos habituados s mais terrveis austeridades e
discpulos tntricos que utilizam o desejo, as emoes erticas e os
impulsos sensuais como catalizadores do Despertar ou como alavanca
para a mutao espiritual.
No Ocidente, o misticismo cristo relegou sombra, ou mesmo
dissidncia ou a clandestinidade, qualquer iniciativa de transformao
interior. Na ndia, a efuso emocional representa apenas um caminho a
mais, entre outros. Mas nenhuma abordagem seja ela religiosa ou
metafsica, ativa ou contemplativa, pretende possuir sozinha as
chaves do Reino: a necessidade do pluralismo e da diferena aqui
respeitada ao extremo. No tem o Absoluto todos os aspectos - mesmo
os mais contraditrios?
Dito isso, ser necessrio morar na ndia para seguir certos
ensinamentos?
A viagem Fazemos parte, hoje em dia, de uma cultura planetria,
onde as diversas tradies se interpenetram e se sobrepem cada vez
mais estreitamente. At os anos imediatos ao ps-guerra conhecamos o
Oriente apenas atravs de alguns trabalhos de erudio ou de relatos
de viajantes e exploradores. Essas obras eram, s vezes, notveis
(por exemplo, as de Alexandra David-Neel), mas tinham apenas um
carter de informao geral: podia suscitar um interesse apaixonado,
motivar expedies China ou ao Tibete. No eram, em absoluto, uns
manuais completos de ensino: era necessrio viajar para o local,
procurar tal swami, roshi ourimpotch, compreender e assimilar seu
ensinamento, o que poderia consumir anos de aventuras e esforos.
Tal foi o papel de pioneiros como John Blofeld, nos EUA, Douglas
Harding, na Inglaterra, Jean Herbert, Arnaud Desjardins e Jean
Klein, na Frana, e Karlfried Graf Drkheim, na Alemanha etc.
Esses, e alguns outros, so bem mais que simples amantes do
exotismo. Tendo sabido integrar o essencial das grandes
perspectivas tradicionais do Oriente - vedanta, ioga, budismo,
taosmo, sufismo - sem, contudo, renegar suas origens e razes
ocidentais, realizaram em si mesmos essa transformao interior que,
por sua vez, lhes permitiu ensinar ao mesmo tempo atravs de sries
de publicaes e por uma transmisso direta, mais personalizada.
Por outro lado, a expanso das trocas internacionais ou as
vicissitudes do exlio levaram mestres zens, hindus, tibetanos ou
sufis a se estabelecerem em diversos pases do Ocidente, onde
organizaram grupos de trabalho e comunidades facilmente acessveis.
A viagem para um Oriente, alis, cada vez mais ocidentalizado, no
mais, para um discpulo do vedanta ou do tantrismo tibetano, uma
condio sine quanon.
O guru e o fsico A palavra guru, sem dvida, est hoje em dia
terrivelmente comprometida: exala um cheiro forte de sectarismo e
escndalo.
De fato, como reconhecer, entre a multido de mistificadores,
charlates ou escroques, os guias espirituais verdadeiramente
qualificados? Este um campo em que as armadilhas so inmeras e
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as fachadas extraordinariamente pomposas. Todos os critrios
conhecidos podem ser falsificados, invertidos. O verdadeiro sbio
prefere, muitas vezes, calar-se ou mesmo esconder-se sob aparncias
simples e banais.
Mas o sucesso popular no , necessariamente, sinnimo de mentira e
desonestidade. Desconfiemos de sistemas e apriorismos.
De um modo mais geral, devemos perguntar-nos se a funo de guia
ou guru , antes de mais nada, indispensvel, a que corresponde
realmente, e se no constitui muitas vezes, na perspectiva mesma de
uma conscincia libertada, mais um paradoxo e um obstculo que um
auxlio verdadeiramente eficaz.
Outro elemento contribuir, certamente, para familiarizar mais e
mais os pesquisadores espirituais ocidentais com as abordagens
tradicionais do Oriente. Trata-se das recentes perspectivas abertas
por certos trabalhos cientficos pioneiros, sobretudo no domnio da
astrofsica e da fsica nuclear.
A viso de uma realidade global, nica, de um todo indissolvel
onde o observador no pode mais permanecer separado do objeto
reservado nem o experimentador do experimento, desemboca nas
intuies fundamentais dos antigos rishis vdicos e dos primeiros
sbios taostas. Voltaremos a tratar desse assunto mais
longamente.
Modelos ocidentais e orientais A ndia espiritual continua, sob
muitos aspectos, exemplar, desde que se desfaa um certo nmero de
mal-entendidos e contra-sensos difceis de evitar para um ocidental
desatento. Antes de mais nada, conveniente manejar as generalizaes
com prudncia: no esqueamos que se trata de um continente mais
povoado que a Europa, com uma prodigiosa disparidade geogrfica,
tnica e lingstica.
Na Idade Mdia as naes europias tinham, de Brest a Moscou, de
Edimburgo a Npoles, de Hamburgo a Bizncio, um smbolo comum que era
um vivo e grande trao de unio: a cruz do Cristo. Nela comungavam
peregrinos e cavaleiros, e tambm camponeses, mercadores e at
malfeitores, da Inglaterra, de Flandres, da Provena ou da Hungria.
sombra dessa cruz encontravam-se figuras de santos e santas que
representavam, aos olhos de todos, o estado mais invejvel e o mais
maravilhoso destino possvel, a salvao eterna assegurada.
Na civilizao hindu h algo bastante comparvel, algo que a
sociedade ocidental medieval poderia talvez compartilhar, mas que
foge completamente dos esquemas e critrios da sociedade ocidental
contempornea: a venerao e a devoo com que a ndia, unanimemente,
cerca os sbios, os homens e mulheres que em vida ascendem suprema
Libertao - conscincia do Despertar e da Eternidade.
No Ocidente, os modelos que elevamos s nuvens e com os quais
procuramos febrilmente identificar-nos so imagens de poder, de
glorola, de avidez: estrelas de espetculos, vedetes polticas,
milionrios, play-boys internacionais, superespies. Trata-se de
valores puramente exteriores, teatrais, quantitativos, mensurveis
em curvas de popularidade, em nmero de bens, de ttulos, de
conquistas amorosas.
O sbio e o santo quase desapareceram de nossa cultura como
modelos, ao passo que representam infinitamente mais aos olhos da
maioria das crianas hindus, que um ministro, um P.D.G. ou um ator
clebre. Alis, vem-se comumente dirigentes polticos e poderosos
desse mundo prosternarem-se aos ps de um desses "libertados-vivos"
(Jivan-Mukta), considerados, s vezes,
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como verdadeiras encarnaes divinas - como foi o caso da santa
bengali M Ananda Mayi, falecida em 1982.
O mistrio do sbio As pessoas diante das quais se vem tocar o
solo com a testa no tm nenhum ttulo, nenhuma funo honorfica, nada
que as distinga, primeira vista, de milhes de outras. No dirigem
nenhuma igreja oficial, nenhuma seita, no toma parte de nenhuma ao
social, no detm nenhum recorde, no executaram nenhum feito
excepcional - tangvel, verificvel. No so guias nem oradores, e, no
entanto atraem massas considerveis, milhes de homens e mulheres que
vm, simplesmente, receber o darshan, isto , simultaneamente, a
viso, a graa e a bno do sbio ou do santo.
No Ocidente compreendemos facilmente o fervor inspirado por um
Joo Paulo II, um Martin Luther King ou um Gandhi, que se engajaram
em lutas, que se empenharam pessoalmente, encarnaram um ideal.
Compreendemos tambm o efeito carismtico deste ou daquele
pregador.
O prestgio incontestado de um Ramana Maharshi nos parece bem
mais misterioso. um homem que nada fez de especial (alguns anos de
recolhimento e isolamento no tm nada de original na ndia), que
falou pouco e pouco escreveu, e cuja existncia, vista de fora,
parece insignificante e montona.
Ora, esse homem simples, inteiramente desprovido de qualquer
ambio ou pretenso e que, de resto, jamais fez coisa alguma para
estimular ou desencorajar o ardor de seus discpulos, tomou-se, por
si s, objeto de culto e peregrinao considerveis. Em seu caso no
houve viso celeste, revelao divina ou um rosrio de milagres:
somente uma presena inesquecvel, um olhar, um sorriso, uma evidncia
de ser que tambm pode ser chamada de plenitude, amor,
eternidade.
Uma transformao radical De fato, o Ocidente sempre esperou, de
seus mestres do pensamento, receitas absolutas, respostas
definitivas, a equao ltima que permitiria tudo entender e tudo
explicar - como a criana espera de sua me a mamadeira
salvadora.
Enquanto nossos filsofos nos abastecerem com sistemas
apetitosos, nos saciarem com teorias excitantes, brilhantes, ns nos
deixaremos encantar e at mesmo hipnotizar. O que o filsofo , sua
vida e seu modo de ser, pouco nos interessa. Que ele seja um homem
psicolgica e nervosamente abatido, a arrastar uma existncia em
contradio com seus prprios princpios, isso no nos atinge
absolutamente. Para ns, os problemas pessoais de um Kant, um Hegel,
um Bergson ou um Sartre est fora de questo. O que desejamos um
truque, o truque que nos permitir agarrar, fixar, aprisionar a
verdade, definitivamente. Pouco importa quem nos ensina o truque,
se Jeov, Lcifer, o Grande Manitu, Freud, o K.G.B., Coluche ou a
Samaritana.
O Oriente sabe, h milhares de anos, que no h resposta absoluta
formulvel, que a verdade no pode ser aprisionada em conceitos ou
apreendida intelectualmente, mas sim vivida, realizada, percebida
atravs de uma experincia interior direta, implicando uma
transformao radical do nosso modo de conscincia habitual.
A verdade no uma questo de idia: ela pertence ao domnio do ser e
da experincia vivida.
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Perder nossas limitaes Portanto, na ndia, essa questo de
transformao interior e de realizao pessoal que se sobrepe a tudo.
Um libertado-vivo (Jivan-Mukta) algum que realizou. Sua eloqncia,
sua habilidade intelectual, seu nvel de conhecimento e de cultura
so absolutamente secundrios. Sabe-se que as palavras e os conceitos
so apenas sinalizaes a indicar o caminho, mostrando um mapa mais ou
menos preciso e detalhado: cada um deve, em seguida, explorar o
territrio e descobrir o tesouro. "A palavra um dedo que aponta para
a lua", diz um provrbio zen; "s os imbecis que olham para o
dedo.
Como no pode ser traduzido em imagens e esquemas, nem reduzido a
formas mentais, o essencial brota de uma experincia ntima, s
comunicvel por aquela espcie de certeza ou evidncia que se impe no
contato com os seres transformados - os libertados ou despertos.
Mistura de simplicidade, de transparncia, de no-dependncia e de
disponibilidade, de extrema espontaneidade e extrema presena em si
mesmo, de inefvel serenidade mas, tambm de contnuo deslumbramento,
tal a impresso global da maioria dos testemunhos, mais inesquecveis
que discursos ou tratados geniais.
preciso salientar que essa realizao no , em absoluto, uma busca
de originalidade ou de afirmao pessoal, no est a servio de nenhum
ideal, por mais sublime que seja. Como veremos, no se trata de
procurar uma vantagem qualquer, seja ela o paraso, mas de perder
nossas limitaes, nossa ignorncia, e dissipar as projees mentais que
nos ocultam o esplendor do Real, impedindo-nos de aderir ao
instante eterno, aqui e agora, e que obscurecem a felicidade da
nossa imutvel e verdadeira natureza.
Uma verificao experimental De certa forma, o pesquisador
espiritual da ndia est bastante prximo do pesquisador cientfico.
Ambos tm em comum a experimentao. A diferena que o campo de
experimentao do pesquisador cientfico pertence ao mundo exterior,
ao passo que o pesquisador espiritual , ao mesmo tempo, o
pesquisador e seu prprio campo de experimento.
Em ambos os casos, porm, a verificao direta, a certeza vivida,
demonstrada, excede consideravelmente as proposies tericas.
A confiana ilimitada que o discpulo deposita em seu guru (e que
uma condio para o sucesso) no tem nada de fanatismo ou f cega.
bastante comparvel, efetivamente, ao tipo de relao que se
estabelece entre o estudante e seu professor de fsica ou de qumica:
enquanto ele prprio no realiza a experincia, o estudante no tem
nenhuma prova real de sua validez. obrigado a acreditar em falas
alheias e relatos de segunda mo.
De uma maneira mais geral, no pensamos em questionar as afirmaes
e as capacidades de nossos tcnicos e especialistas, pois no estamos
absolutamente qualificados para avaliar a autenticidade de sua
competncia. Desse ponto de vista, o domnio cientfico e tcnico
provavelmente aquele que apresenta no Ocidente, por exigncias
comuns de realizaes concretas, um maior nmero de pontos comuns com
a filiao tradicional da espiritualidade hindu.
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Saberamos reconhecer o Buda? H milnios que os hindus tm sob os
olhos, a cada gerao, esses homens e mulheres libertados, que
constituem provas vivas muito mais convincentes que as frmulas de
catecismo ou as histrias de santos desaparecidos h sculos.
No temos, em nossas periferias e campos, Frncicos de Assis,
Teresas de vila ou Mestres Eckart que possam trazer-nos o
testemunho direto e a convico imediata. Quando falamos de um sbio,
de um desperto, quase sempre atravs de livros, de artigos, de
relatos no-comprovveis deste ou daquele viajante. Saberamos
reconhecer o Buda? Nosso inconsciente est carregado de clichs
pueris, venerveis velhinhos com longa barba branca, seres
imaculados banhados por uma luz sobrenatural, dividido entre o
jejum, a levitao e o xtase.
O libertado-vivo pode ter, num primeiro contato, uma aparncia
absolutamente banal, corriqueira. A conscincia do despertar no
produz nenhum sinal exterior que o diferencie - no tem aurola ou
terceiro olho dissimulado numa ruga da testa. Ela no impede a fome,
a sede, o sono, o ranger de dentes, as dores de estmago, se bem que
esses diversos sintomas no sejam mais percebidos como antes.
Uma felicidade absoluta No decorrer do tempo, a ndia apresentou
inmeras tcnicas de transformao interior, adaptveis a todas as
formas de sensibilidade, a todos os tipos de desenvolvimento e
compreenso: fsico, emocional, intelectual, ativo ou
contemplativo.
No centro de uma disparidade s vezes desconcertante, essas
prticas tm todas um fundo comum que dividem, alis, com todas as
grandes tradies - staosmo, budismo, sabedoria de Scrates e de
Epicteto, msticos muulmanos e cristos: ser livre libertar-se do que
foi adquirido, de toda posse, de todo apego, de todo haver, no
somente no domnio material, mas tambm em planos mais sutis,
emocionais, culturais, intelectuais - preconceitos, paixes,
opinies. Essa entrega, esse abandono vontade divina uma profunda
adeso espontaneidade, indizvel mobilidade do real, uma vigilante
presena na eterna transparncia do instante atual. acompanhada por
uma desapario do sentimento do ego - angstia do isolamento e da
separatividade -, aquilo que a tradio crist denomina "morte do
Homem Velho" ou, s vezes, "segundo nascimento".
Para os que viveram essas transformaes e realizaram esse
despertar o novo estado aparece como extremamente simples, natural,
evidente, trazendo menos solues e respostas definitivas que um
desaparecimento das perguntas. , mais ou menos, como uma cura aps
longa doena povoada de febres e pesadelos. O Buda mesmo, alis,
apresentava-se no como filsofo ou profeta, mas como um mdico capaz
de curar o sofrimento: "Vim apenas para ensinar duas coisas: as
causas do sofrimento e os meios de suprimi-lo.
No fundo, o que a tradio hindusta prope a procura mais rigorosa,
mais cientfica e, s vezes, mais herica da felicidade - uma
felicidade sem contrrios, uma felicidade sinnima de absoluto.
Captulo II
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Dados de Base A viso progressista Fundamentada num conjunto de
projetos racionalistas e de sonhos cientficos visando uma denominao
ilimitada do universo, a civilizao ocidental basicamente
progressista. Suas esperanas e seus valores supremos esto sempre
situados num futuro mais ou menos hipottico. Seja no plano poltico,
econmico, moral ou mesmo religioso, amanh o grande libi, o
argumento irrefutvel. Quaisquer que sejam as ideologias e as opes,
de direita ou de esquerda, crentes ou no-crentes, por todo lado
afirma-se a esperana, se no a certeza, de que amanh ser
intrinsecamente melhor do que hoje e que necessrio sacrificar o
presente ao futuro - o futuro da democracia liberal avanada, do
bem-estar tecnolgico, do paraso socialista, do governo mundial
unificado ou do alm consolador.
Trata-se de uma concepo onde a Histria valorizada sobremaneira -
at mesma divinizada e onde o Tempo arvorado em absoluto, includo
numa finalidade teolgico ou econmico qual tudo deve ser
imperiosamente submetido. O esquema geral "quanto mais voc se
reprime hoje, mais voc falar amanh; quanto mais voc infeliz hoje,
mais voc ser feliz amanh", pois amanh essencialmente melhor do que
hoje. Assim, as angelicais promessas do futuro justificam todos os
infernos do presente.
Esse progressismo (j existente na noo bastante temporal de um
Messias ou de um fim do mundo exclusivamente histrico) inteiramente
submetido ao culto do deus Tempo consagra tanto o passado quanto o
futuro. Basta observar o entusiasmo das comemoraes, a exaltao das
memrias, a exumao de acontecimentos esquecidos.
Para nossa civilizao progressista, o passado aparece como uma
lio, o futuro como um ideal, o presente como um problema. Em outras
palavras, a realidade vivida aqui e agora sentida negativamente,
enquanto as sombras fantasmagricas do ontem e do amanh so aceitas
como as nicas dignas de todos os esforos e d todas as lutas.
Despoja-se violentamente o presente em nome de espectros
passadistas ou de brumas utopistas e procura-se, nos dois casos,
violentar o real e negar a vida. Conhecem-se as monstruosidades
legitimadas por uma tal acepo - campos de concentrao, torturas,
gulags.
Essa glorificao do futuro projeta, evidentemente, solues
exteriores no tempo e no espao: amanh estaro suprimidos os
desconfortos, os conflitos, os sofrimentos, graas magia da
modernidade triunfante, que tomar sobre os ombros, integralmente,
todos os problemas fsicos ou psquicos longevidade, segurana,
bem-estar material, harmonia para todos, assegurados do nascimento
morte.
A busca da eternidade As civilizaes tradicionais - como aquela
em que est imerso o hindusmo - tm outra preocupao: atingir a
eternidade, perceber a realidade temporal atrs da mscara do tempo,
o imutvel no centro da incessante mudana, o sem-nome, o sem-forma
alm dos nomes e das formas.
O Ocidente tem, muitas vezes, tendncia de confundir posio
tradicional com tradicionalismo.
O tradicionalismo reivindica, como principal virtude, uma
escrupulosa e incondicional fidelidade aos dogmas, ritos e
catecismos ancestrais. uma posio monoltica e rgida que geralmente
se transforma numa mstica passadista e absoluta, que baseia a
verdade em simples argumentos de anterioridade.
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A posio tradicional prende-se ao que no pertence a nenhum tempo,
passado ou futuro, a essa realidade interior que no muda e que est,
portanto, alm de toda crena, de toda prtica particular, sem,
contudo neg-las. Essa eternidade no depende de pontos de vista ou
de opinies contestveis, tributrias de condies culturais especficas
e mutveis; depende apenas de uma experincia direta, indescritvel,
que cada um deve viver em si mesmo.
Eis por que, contrariamente ao tradicionalismo, a posio
tradicional nada tem de estreitamente formalista ou dogmtico. Mesmo
dentro de uma rigorosa observao de costumes e ritos, essencialmente
branda, aberta e tolerante.
O poder libertador do mito No Ocidente, apesar de j ter passado
o tempo em que as Igrejas e as seitas guerreavam furiosamente entre
si, cada uma continua persuadida de que a nica depositria da
verdade. Essa atitude inevitvel no quadro da viso estritamente
histrica e temporal que , geralmente, a do cristianismo. Se Deus se
manifesta a alguns privilegiados, santos ou profetas, e encarna-se,
para sempre, em um ponto preciso do espao e do tempo, atravs de um
nico indivduo, a mincia dos relatos adquirem enorme importncia.
A ndia preocupa-se menos com exatido histrica ou com fatos
objetivos do que com mitos.
Inscrevendo-se, por definio, margem de toda realidade material
exterior, o mito oferece uma narrativa maravilhosa, um itinerrio
simblico: seu poder libertador proporcional sua faculdade de
adaptao, sua capacidade de despertar ressonncias profundas em
homens e mulheres de pocas, culturas e sensibilidades completamente
diferentes. Ao contrrio da "verdade" dogmtica ou histrica, a
verdade do mito nada exclui e nada rejeita. No pretende fornecer
uma resposta completa ou definitiva, mas, antes, os segredos
dinmicos de um entendimento mais sutil e de interrogaes essenciais:
"O que, em mim, assemelha-se a tal deus, monstro ou heri, a tal
espao mgico, encantado ou infernal?"
Desse modo o mito se torna fator de comunho e de identidade,
enquanto o dogma, artigo de f, mais separa do que une.
A tolerncia Na ndia, o termo tradicional aplica-se sobretudo, a
um modo de filiao e de transmisso que no mudou desde a origem dos
tempos vdicos. A originalidade, a novidade, a virtuosidade
dialtica, to importante para os intelectuais ocidentais, so aqui
secundrias. Ao contrrio, parece capital adaptar a cada poca, a cada
grupo, a cada personalidade as grandes intuies e certezas
eternas.
O resultado uma diversidade prodigiosa e uma tolerncia
fundamental em face de outras solicitaes espirituais: budismo,
islamismo, cristianismo.
O proselitismo e o esprito missionrio so inteiramente estranhos
mentalidade hindu. Os missionrios catlicos ou protestantes que
proclamavam: "Jesus o filho de Deus!" ouviam, geralmente, a
resposta: "O senhor tem razo, Krishna tambm!" Alis, freqente
encontrarem-se imagens de Cristo piedosamente expostas entre
figuras dos grandes avatares e de divindades milenares. Certos
movimentos, como o dos Sikhs, representam uma verdadeira fuso entre
o islamismo e o hindusmo.
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Acresce ainda que, a despeito de discusses filosficas - s vezes
muito veementes ou mesmo virulentas, opondo os representantes de
diversas correntes hindustas e budistas em interminveis combates
oratrios -, a ndia jamais conheceu o equivalente das cruzadas ou
das guerras de religio, sendo as perseguies apenas episdios raros e
marginais, enquanto em diferentes pocas grandes soberanos, como
Ashoka ou Akbar, instituram a tolerncia, o dilogo, o respeito mtuo
como verdadeiro sistema de governo.
Os seis pontos de vista ortodoxos A ndia admite seis grandes
caminhos ou perspectivas (darsanas) que oferecem diferentes pontos
de vista, desenvolvimento e interpretao das escrituras santas.
Essas darsanas so chamadas ortodoxas na medida em que reconhecem a
autoridade dos Vedas e do conjunto dos textos sacros fundamentais.
Os seguintes sistemas so tradicionalmente admitidos: niaia,
vaisesica, snquia, ioga, mimansa e vedanta. O jainismo e o budismo
no esto a includos, apesar de seu papel e influncia terem sido
considerveis na histria espiritual da ndia onde contam, ainda hoje,
com milhes de adeptos.
As darsanas constituem, em suma, modos de abordagem ou de
esclarecimento mais complementares que divergentes, mais ou menos
como se, para um mesmo territrio, fossem desenhados diferentes
tipos de mapas': rodovirio, fluvial, ferrovirio, geolgico etc. Os
desenhos no se relacionam entre si, apesar de serem do mesmo local,
visto de mltiplos ngulos. As seis darsanas tratam da mesma
realidade ltima e universal sob ticas diferentes, cujas aparentes
contradies ligam-se simplesmente diversidade dos itinerrios
prospectivos: por exemplo, ponto de vista cosmolgico do snquia,
ponto de vista religioso da ioga, ponto de vista metafsico do
vedanta.
O religioso e o no-religioso De maneira geral e paralelamente,
os caminhos religiosos e no-religiosos no so, aqui, absolutamente
exclusivos e incompatveis.
Na busca do absoluto, inefvel e inatingvel (Brama), a ndia
sempre admitiu as boas razes de duas atitudes complementares e
opostas: a da efuso devocional e mstica (Bhakti) e o puro
conhecimento metafsico (Jnana), perfeitamente ilustrado pelo
Advaita Vedanta, ou vedanta no-dualista.
Simplificando: pode-se chamar a via metafsica de negativa; o
clebre "Neti, Neti". O absoluto no passvel de reduo a nenhuma
forma; a nenhum esquema, a nenhum conceito: no isto nem aquilo, no
a soma dos dois nem algum dos dois, no nada imaginvel ou acessvel,
seja pelos sentidos, seja pelo psiquismo.
Inversamente, pode-se denominar a via devocional de afirmativa,
na medida em que proclama a onipresena do absoluto e se extasia
diante do espetculo desse absoluto manifestado por toda parte.
De resto, frmulas como "o absoluto (Brama) no est em lugar
algum" ou "o absoluto est em toda parte" so ainda muito relativas.
O vivido na experincia libertadora e na conscincia do Despertar
ultrapassa e engloba, ao mesmo tempo, a negao e a afirmao.
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claro que os libertados-vivos (Jivan Mukta), os despertos como
Shankara, Ramakrishna, Ramana Maharshi ou M Ananda Mayi,
transcendem, com sua realizao interior, qualquer espcie de
classificao.
Este livro se consagra mais particularmente pesquisa do puro
conhecimento atravs da experincia metafsica, especialmente o
Advaita Vedanta. Outras duas obras desta mesma coleo evocam,
respectivamente, as diversas formas da ioga e os "loucos de Deus"
da mstica devocional.
Um templo gigantesco Quando se aborda o hindusmo, importante
precisar, com clareza, o sentido e a extenso de certos termos que
se obrigado a empregar freqentemente e cujo significado bastante
ambguo.
o caso, entre outros, da palavra espiritualidade, que se
encontra a todo o momento.
Trata-se de um vocbulo que mesmo os hindus utilizam com
circunspeco, na medida em que ele habitualmente implica uma
rigorosa e desprezvel demarcao entre mundo profano" e "mundo
sagrado", como se houvessem certos aspectos privilegiados da vida e
do universo que merecessem pertencer ao domnio espiritual, no meio
de uma massa de elementos grosseiros, relegados ao plano oneroso e
miservel do mundo material.
assim que o entendemos no Ocidente, onde o espiritual designa um
meio um tanto ou quanto fechado, misterioso, separado da vida,
bastante triste no seu conjunto, terrivelmente srio e destitudo de
humor.
Na concepo hindu, o espiritual abrange e engloba a totalidade da
existncia em suas manifestaes mais elementares, em suas funes mais
naturais, em seus impulsos mais secretos. Nesse sentido, o
espiritual aquilo que dissolve as antinomias e novas categorias, do
gnero sagrado/profano ou divino/no-divino.
A natureza inteira sentida como um gigantesco templo: das
menores partculas s mais longnquas galxias, a integralidade do
cosmos um lugar santo. Os edifcios religiosos so apenas evocaes,
representaes simblicas, assim como as danas rituais so apenas o eco
e a mmica da eterna dana de Shiva, a prodigiosa e infinita
sarabanda criadora do espao-tempo, com suas torrentes de energia,
seus milhares de sis engendrados e destrudos, sua mirade de espcies
e criaturas em incessante metamorfose.
De fato, no h uma sensao, uma emoo, um pensamento, uma ao, que
no seja espiritual, pois o Brama - o absoluto - est em tudo, em
todo lugar, sempre, e os seres, as coisas, os acontecimentos
transitrios, perecveis, fugazes - so as mltiplas manifestaes,
atividades, disfarces e representaes dessa realidade nica.
O guru Outra palavra-chave do hindusmo, hoje em dia muito
malcompreendida e desacreditada, guru.
Personagem eminentemente tradicional, o guru representa em toda
a civilizao da ndia um papel essencial e idntico, atravs das
diferentes correntes religiosas e metafsicas.
No Ocidente, a imagem que se tem do guru (inspirada na prtica de
certas seitas) no , absolutamente, lisonjeira: escroque ou
iluminado, vivendo faustosamente s custas de vtimas
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crdulas, abusando de adolescentes desorientados, facilmente
manipulveis e reduzidos por ele condio de verdadeiros escravos,
esse charlato merece, aos olhos do grande pblico, um tribunal
correcional.
verdade que a condio de guru pode ser usurpada, no Oriente como
no Ocidente, por pessoas pouco escrupulosas, vidas de exercer um
poder fsico e psquico sobre seus semelhantes. Sempre existiram
falsos mdicos, sacerdotes indignos, tiranos domsticos.
Para compreender a verdadeira natureza do guru e sua vocao
bastante especfica, necessrio lembrar que, ao contrrio do que se
passa conosco, a transmisso do ensino no tem, na ndia, nenhum
carter livresco. O essencial no est nem na erudio, nem na soma de
conhecimentos acumulados, nem no brio intelectual, mas na realizao
pessoal, no trabalho de transformao interior. A verdade no pode ser
fixada em sistemas, aprisionada em textos ou proposies dialticas,
mas deve ser realizada e percebida pela prpria pessoa, no mais
ntimo de seu ser. E o saber livresco , nesse sentido, uma ajuda de
bem pouco valor. Quando muito pode suscitar uma reflexo ou
estimular certas interrogaes. Mas o processo de mutao interior, que
a conduta espiritual propriamente dita, implica uma tal revoluo e
uma tabula rasa das velhas maneiras de sentir, de pensar, de julgar
e de reagir, que se torna necessrio, para bem levar a cabo um tal
empreendimento e liberar tais energia, uma fonte de ajuda e de
inspirao intensa, direta, ao mesmo tempo prtica, viva,
personalizada, inteiramente adaptada aos problemas e sensibilidade
de cada um.
aqui que intervm o guia qualificado, quer dizer, aquele (ou
aquela) que, tendo realizado essa transformao interior e resolvido
suas prprias contradies, estando livre dos mecanismos
constrangedores do desejo e do medo, tendo atingido, no centro de
seu ser e de todas as coisas, uma paz sem limites, uma serenidade
inabalvel, para alm de toda compreenso, pode ajudar os que,
prisioneiros de suas angstias, procuram tateando nas trevas.
claro, a conscincia do despertar - a imerso no absoluto -
incomunicvel. Mas o guru pode transmitir uma experincia, indicar as
etapas de seu prprio caminho, ensinar os diversos modos prticos que
o prepararam para o derradeiro desfecho. Esses modos esto,
evidentemente, ligados sua personalidade, intimamente ajustados s
suas tendncias, aptides, limites e condicionamentos. Cada pessoa
deve, portanto, achar o guia, o mestre cujo modo de ensino
corresponde ao seu prprio temperamento, s suas opes, motivaes e
linhas de fora mais profundas.
A procura do guru pode ser longa e fastidiosa. No basta
reconhecer e venerar o brilho e a autoridade de um desses despertos
para tornar-se seu discpulo. Os laos que se formam entre um
buscador e seu guia infinitamente mais sutis, mais ntimos, mais
fundamentais. Trata-se, ao mesmo tempo, de morrer e renascer, e
aqui o guru aparece ora como cirurgio, ora como parteiro. A
imensidade do resultado final implica, s vezes, processos
draconianos e necessita, por parte dos discpulos, de um conjunto de
disposies de esprito e de corao: ardor, perseverana, coragem,
sinceridade, lucidez. No h lugar para o amadorismo ou
meias-medidas, nem para complacncias ou equvocos. A sano imediata e
a nica vtima a prpria pessoa.
Os itinerrios so, portanto, infinitamente diversos, e o guru
adapta seu ensino no somente ao acaso de cada discpulo, mas a cada
fase, a cada etapa, a cada momento.
A uma mesma pergunta feita por dois interlocutores diferentes o
sbio pode muito bem fornecer respostas divergentes, mesmo
violentamente contraditrias, pois nenhuma pergunta pode ser isolada
de quem a apresentou, de seu contexto e de suas motivaes
especficas.
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De fato, jamais o guru executa o trabalho no lugar de seu
discpulo. No lhe fornece nenhuma receita infalvel, nenhuma frmula
mgica: ajuda-o a percorrer um certo caminho, indicando-lhe os
perigos e os atalhos, os melhores desvios, as armadilhas e os becos
sem sada a serem evitados; ensina-o a utilizar-se das armas que lhe
permitiro abater o drago que guarda o templo. Mas o discpulo, e s
ele, quem deve caminhar, combater, transpor o umbral supremo.
A confiana As relaes com o guru no esto subordinadas a nenhuma
regra. Podem estender-se por anos ou mesmo por toda uma vida, podem
ser espaadas ou regulares, tanto quanto podem reduzir-se a um
pequeno nmero de encontros, de excepcional intensidade: tudo
depende da maturidade do discpulo. s vezes suficiente uma nica
entrevista, ou mesmo uma simples troca de olhares, para provocar um
verdadeiro abalo interior de onde procede a uma evidncia e que
estabelecer uma certeza envolvendo e incluindo a totalidade do ser
em nveis bem mais profundos e decisivos que uma simples convico
intelectual. O encaminhamento espiritual de Arnaud Desjardins junto
a seu guru Swami Prajnanpad durou nove anos, ao passo que Shri
Nisargadatta Maharaj conta que se encontrou com seu guru um pequeno
nmero de vezes.
necessrio, da parte do discpulo, uma confiana de um gnero
bastante especial, aquela que inspira as empresas mais audaciosas.
No se trata de acreditar cegamente nas asseres do mestre e depois
fixar-se tranqilamente em posies teolgicas ou filosficas, mas de
fazer a teoria transformar-se em prtica, converter as palavras do
guru em atos, em novos modos de conscincia e comportamento. como um
tratamento mdico: a mais essencial das receitas no passa de um
pedao de papel. No ela que cura, mas a constncia e a vontade do
doente em segui-Ia. Se este questiona seus termos ou negligencia
algum detalhe, a eficcia do tratamento estar comprometida.
Este problema da confiana primordial. O Ocidente admite e at
louva a f que se tem em uma crena ou numa opinio; mas desconfia
profundamente da f que dedicada a um ser de carne e osso, como se
nisso existisse um culto malso, perigoso ou mesmo indecente e
escandaloso.
As imagens de multides prosternadas aos ps de certos sbios, no
Oriente, ofuscam o grande pblico europeu e americano, que v a
apenas idolatria e obscurantismo.
Entretanto, cotidianamente damos provas de confiana radical na
competncia de nossos especialistas em inmeros campos onde o menor
erro tcnico pode desencadear conseqncias trgicas e irreparveis -
mutilaes, doenas, morte. A vida seria possvel se, constantemente,
tivssemos que duvidar do concessionrio que nos vende o carro, do
qumico que manipula os medicamentos etc.?
sua maneira, o guru igualmente um especialista competente, mas
sua especialidade o absoluto, a eternidade - o meio de passar de um
estado de ignorncia, de iluso, de confuso, de disperso mental, de
excitao emocional a esse estado de liberdade interior, de pura
conscincia e de felicidade que nossa verdadeira natureza
original.
Um comprometimento total Num clebre versculo do Upanishad, o
discpulo, dirigindo-se ao guru, diz sob forma de orao:
"Do irreal conduza-nos ao real, das trevas conduza-nos luz, da
morte conduza-nos imortalidade". Em outros termos, faa com que
vejamos o ser imutvel e autntico atrs das
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aparncias enganosas, faa com que saiamos de nosso sono obscuro,
desperte-nos para o puro conhecimento, a realidade ltima e
inaltervel, ns que nos debatemos no transitrio e no perecvel.
A saudao ao guru - que os hindus chamam pranam -, que tanto
choca os ocidentais, no se destina a um homem ou uma mulher
enquanto indivduos, mas a uma conscincia transformada, inteiramente
estabelecida em Brama, definitivamente morta para todo impulso ou
projeo egosta, para toda emoo de medo ou avidez, para todo conflito
e separatividade.
De fato, diante de seu prprio Eu realizado (Atman), manifestado,
visvel que o discpulo se prosterna, ou diante de uma prefigurao
viva de sua prpria realizao espiritual a ser atingida. O ritual
exprime e concretiza, de certo modo, o reconhecimento de uma
realidade indestrutvel e presente que engloba e transcende, ao
mesmo tempo, a pessoa do discpulo e a do guru. um ato que simboliza
a ddiva completa do discpulo, seu comprometimento integral no
caminho da libertao. Pois, nessa aventura interior que na ndia
chamada Sadhana, no pode haver comprometimento parcial e
condicional do contrrio se tornaria uma pardia, uma caricatura,
alguns trejeitos a que se chamaria orao, algumas encenaes que se
denominariam ioga e estados um tanto nebuloso que se tomariam por
meditao.
A transparncia do guru Seguidamente se diz que, quando o guru e
o discpulo esto juntos, no h duas pessoas, mas apenas uma: o
discpulo.
Se conseguir verdadeiramente libertar-se dos medos, das
frustraes, dos arrebatamentos emocionais, das projees do
inconsciente, o sbio no est mais dominado por critrios e
julgamentos subjetivos, escravizado aos poderosos mecanismos das
simpatias e antipatias, do "gosto-no gosto". Seu ego desapareceu, o
que no significa, absolutamente, que ele se torna invisvel e se
desfaz no ter (ele est, ao contrrio, admiravelmente presente), mas
sua conscincia no est mais identificada com os processos fsicos e
mentais, todos eles relativos e fugazes - corpo, sensaes, emoes,
idias -, pois seu ser um com todas as coisas e todas as criaturas
atravs de suas flutuaes, diferenas e contradies.
O guru compreende que, fundamentalmente, no outro seno o
discpulo, pois que o percebe em sua ltima e infinita realidade, sem
separao, sem dualidade, a no ser aquela que o prprio discpulo
projeta e da qual resultam todas as suas angstias.
O guru v o discpulo tal como ele : manifestao instvel do ser
total e nico. O discpulo, cuja percepo est deformada por seus
julgamentos, emoes, simpatias e antipatias, pelas projees de seu
inconsciente, tm do guru uma viso fragmentria, falseada pela
intensidade de seus receios, de suas obsesses, de suas perguntas
mltiplas e contraditrias. atravs desse espelho deformante de sua
mente que ele interpreta o comportamento do sbio: "Ele me aprecia,
me rejeita, me ignora, prefere um outro" etc. E segue os
ensinamentos de um guru quase inteiramente imaginrio.
Tal justamente, um dos objetivos essenciais de toda orientao
espiritual: conseguir dissipar as camadas de nvoa fantasmagrica que
envolve todos os nossos contatos e experincias a fim de ver
simplesmente o que .
Cada um de ns vive num mundo particular, inteiramente fechado e
subjetivo, herdado de imagens residuais do passado, de medos
recalcados, de sonhos desfeitos, de frustraes
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acumuladas. como uma contnua miragem, um filme terrivelmente
trepidante e barulhento cujo turbilho de seqncias recobre e
escurece a transparente realidade do instante presente.
O que vemos no tal ser, tal acontecimento, mas a opinio que
deles temos, os desejos e medos que nos inspiram, as lembranas
felizes ou infelizes a eles associadas. Nenhuma circunstncia , em
si mesma, boa ou m, nenhum indivduo , em si mesmo, belo ou feio,
admirvel ou infame. Enquanto o mundo revelar-se a ns atravs desse
filtro de julgamentos e qualificaes, desse caleidoscpio emocional,
no viveremos na realidade, mas nas projees de nosso prprio ego,
vido e ansioso.
Esse universo, aque chamamos orgulhosamente "nossa
personalidade", que consideramos como nosso mais precioso tesouro,
cuja contestao por outra pessoa parece-nos insuportvel, , na
realidade, uma priso que nos mantm implacavelmente fechados em ns
mesmos, sem abertura ou comunicao, pois dialogamos apenas com o eco
deformado de nossas prprias solicitaes e lamrias.
O guru conseguiu evadir-se das masmorras do ego e acordou para o
mundo real, fazendo malograr a ditadura do eu e do meu.
Ex-prisioneiro, conhecendo bem a planta da priso, seu regulamento
administrativo, as horas de ronda, os momentos e as zonas de menor
vigilncia, a altura dos muros e a profundidade dos fossos, pode
facilitar a evaso de outros cativos.
Psicoterapia e espiritualidade Existe um certo parentesco entre
um guru e um psicoterapeuta, na medida em que qualquer trabalho de
transformao interior necessita de uma verdadeira limpeza do
inconsciente: nenhum resultado espiritual durvel pode ser obtido
com a represso e o recalque, que extravasam numa compensao neurtica
que beira a histeria.
Mas o papel do psicoterapeuta consiste apenas em ajudar seus
semelhantes a se sentirem um pouco melhor ou um pouco menos mal no
interior da priso; pode-se sempre melhorar as condies do
encarceramento, at mesmo criar um conforto macio e uma rotina
tranqilizadora. O psicoterapeuta raramente toma conhecimento da
funo e da realidade alienante do ego, do qual ele nem suspeita
possa algum libertar-se.
Para o guru, sentir-se um pouco melhor ou um pouco menos mal em
sua cela bastante ridculo. Tanto o psicoterapeuta quanto o guru
devem ter um conhecimento profundo e detalhado do espao mental. Mas
o primeiro mostra esse conhecimento procurando tornar o local
suportvel, enquanto o segundo convida-nos a sair do labirinto, a
desertar definitivamente desse lugar de tormentos.
Outra diferena capital est no fato de que, quaisquer que sejam
sua escola e seu mtodo, o psicoterapeuta no absolutamente obrigado
a ter resolvido seus problemas e suas contradies pessoais, o que,
com certos pacientes, torna muitas vezes inevitveis uma implicao
pessoal, impresses e reaes negativas. Em resumo, o psicoterapeuta
no est pessoalmente ao abrigo das perturbaes e delrios que trata
nos outros. Ao passo que o guru - se verdadeiramente qualificado.-
cortou definitivamente, no fundo de seu ser, o n grdio das tenses,
conflitos e angstias. As emoes, desejos e medos do discpulo o
atingem ou lhe dizem respeito tanto quanto o relato de um pesadelo
ou terrores noturnos feito por uma criana atinge a seus pais. Sua
imperturbvel neutralidade, sua perfeita transparncia interior
permitem-lhe ouvir com uma pacincia e disponibilidade sem limites,
porque nada esperando nem admirao, nem gratido, nem vantagens de
qualquer espcie -, o dom que ele faz, totalmente livre e gratuito,
merece apenas o nome de amor.
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A ausncia de ambio Esse aspecto deve ser destacado porque
constitui, se no um critrio, pelo menos um indcio srio de autntica
realizao interior. O verdadeiro guru nada faz para aumentar o nmero
de seus discpulos, nem mesmo, alis, para ter discpulos.
Absolutamente indiferente censura e ao elogio, ao dio e adulao, est
livre de qualquer noo separadora, a comear precisamente pela de
guru e discpulo. O guru s existe aos olhos do discpulo. Aos olhos
do sbio h apenas uma realidade nica, que se manifesta por uma
infinidade de vibraes fsicas e psquicas.
No Ocidente, conhecemos alguns homens e mulheres que as
circunstncias tornaram clebres sem que tivessem, eles mesmos,
qualquer ambio a esse respeito. Mas centenas de sbios e de santos,
cujo comportamento e ensino foram igualmente notveis, continuam
para sempre no anonimato. Qualquer comparao nesse domnio seria
absurda. Shri Nisargadatta Maharaj, a quem um visitante perguntou o
que pensava de Shri Babaji, respondeu: Mas que idia, perguntar-me
isso. Pode-se perguntar ao espao de Bombaim o que ele pensa do
espao de Poona? Os nomes so diferentes, mas o espao no. A
palavra.
Babaji apenas um endereo. Quem vive nesse endereo?"
O paradoxo do guru Existe algo que poderamos denominar 'paradoxo
do guru e que Krishnamurti denunciou com um rigor impiedoso e uma
acuidade notvel.
Sua grande crtica que todo mestre espiritual, qualquer que seja
sua prpria liberdade interior, apenas acrescenta mais
condicionamentos aos anteriores, substitui as antigas dependncias
por novas. A Libertao uma rejeio de toda imagem, de todo valor
admitido, de todo esquema preestabelecido. Como se pode atingir a
adeso ao real - ou seja, ao puro desconhecido, ao inatingvel
instante presente - com essa fixao em doutrinas, tcnicas, rituais,
disciplinas, e num indivduo sobre o qual seriam projetados
fatalmente as obsesses e os sonhos? A caracterstica da ignorncia
deixar-nos obnubilar por noes mortas e estereotipadas -
psicolgicas, religiosas, morais -, de olhar sempre com os olhos do
passado, que nos impede de ver a vida tal como ela . No
apegando-nos desesperadamente aos conceitos de espiritualidade, de
divindade, de despertar que poderemos recuperar-nos e despertar
efetivamente. alguma coisa que devemos conseguir sozinhos, sem
intermedirios, sob pena de errar de imagem em imagem, de alienao em
alienao. "Se encontrardes o Buda, matai-o!", diz um provrbio
zen.
Digamos desde j que seria bastante tolo pretender, aqui,
justificar ou condenar quem quer que seja. A questo, alis, no est
colocada nesses termos. Querer explorar tal ou qual proposio de
Krishnamurti para estabelecer uma tese "antiguru" seria, de
qualquer maneira, basicamente contrria ao ensino mesmo de
Krishnamurti.
O importante a atitude interior: todo mtodo pode conduzir a uma
rotina e a um entorpecimento. Mas a ausncia de mtodo pode
igualmente ser considerada um mtodo. Krishnamurti considerado por
muitos como uma autoridade venervel, apesar de ter sempre rejeitado
toda espcie de autoridade, a comear pela sua. E entre seus
seguidores ouve-se constantemente: Krishnaji diz... Krishnaji
pensa..."
No fundo, o problema no decidir se necessrio ou se no necessrio
um guru, pois isso significa permanecer na periferia mais
superficial das coisas e contentar-se em julg-las pelo lado de
fora. O problema eminentemente pessoal, particular, irredutvel a
generalizaes.
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Para desembara-los de falsos conceitos , diz Nisargadatta
Maharaj, eu vos fornecerei outros conceitos, que so como uma
agulha, com a qual podeis extrair um espinho do p. Mas, se
deixardes a agulha no p no lugar do espinho, o que ganhastes?
Uma vez que meus conceitos cumpriram seu papel, necessrio
rejeit-los. Jogai fora o espinho e a agulha." (Nisargadatta
Maharaj, Sois, Les Deux Ocans)
O aprendizado da no-dependncia A Libertao (Moksha)
caracteriza-se por um estado de no-dependncia absoluta, difcil de
ser compreendida - ou mesmo admitida - pela imensa maioria de
indivduos cuja existncia , do primeiro ao ltimo momento, uma trama
de dependncias fsicas, materiais, afetivos e culturais. Dependncia
de uma famlia, de um meio, de bens emocionais, de uma situao
adquirida, de bens acumulados, de uma imagem a sustentar, de
preconceitos e hbitos inextirpvel, de secretas angstias e terrores
ocultos; dependncia de certos princpios, do que se deve e do que no
se deve fazer, de ter ou no ter, de parecer ou no parecer;
dependncia do que se quer obstinadamente conquistar ou
conservar.
O sbio aquele que compreendeu que, ao despojar-se de tudo, at
mesmo de seu prprio ego, desembaraou-se ao mesmo tempo de todos os
fardos que o oprimiam, consentindo em uma total no-dependncia
relativamente a tudo o que antes governava sua vida, reduzindo-a a
um cego encadeamento de aes e reaes - como se conseguisse
desintoxicar-se de hbitos perversos e inteis, que os outros homens
consideram vitais e indispensveis.
Em seu novo estado, seu principal papel como guru consiste em
guiar seus semelhantes aqueles que o solicitam com ardor e
seriedade - da dependncia para a no-dependncia. uma misso pedaggica
comparvel dos pais que ensinam seus filhos a usar progressivamente
suas prprias asas.
Aqui, o guru ajuda o discpulo a conduzir uma transformao
interior no fim da qual ele no ter mais necessidade de qualquer
espcie de ajuda, portanto, antes de mais nada, no ter mais
necessidade de seu guia. Resumindo, pode-se dizer que o guru ensina
o discpulo a desembaraar-se dele para melhor juntar-se a ele, pois
necessrio que o guru e o discpulo desapaream como tais para serem
um na realidade ltima de todas as coisas.
O guru interior Na ndia a devoo ao guru tem fundamentos e
prolongamentos que ultrapassam de muito a prpria pessoa do
instrutor, mesmo se ele for um libertado vivo, um autntico Jivan
Mukta. O guru de carne e osso, cujo ensinamento se segue,
considerado como a simples manifestao fsica, a expresso concreta,
exterior, de um Guru interior (ou Sad Guru) que , no discpulo, como
uma fonte intuitiva de suprema sabedoria e de quem o guru de carne
e osso apenas um poderoso reflexo projetado no mundo dos fenmenos.
As palavras que alargam e fecundam a conscincia do discpulo
repercutem numa conscincia latente, adormecida, porm presente. Para
que tenham um poder transformador e libertador, necessrio que
provenham, no de uma boca exterior, mas do mago mais profundo
daquele que escuta - do corao mesmo de seu ser.
Esse guru interior, cada um de ns o traz consigo, e ele que se
exprime cada vez que uma palavra de sabedoria nos toca ou
esclarece, mesmo por uma frao de segundo.
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20
Mas temos em ns tantas outras vozes teimosas, febris,
clamorosas, que procuram fazer ouvir seus gemidos, seus pedidos de
socorro, suas exigncias, que acabam abafando, com sua constante
dissonncia, esse canto calmo e doce que em ns murmura nos confins
do silncio.
Muitas vezes o papel do guru exterior simplesmente o de fazer
cessar o rudo e dizer: "Agora escutai! Escutem, dentro de vosso
ser, cantar a eternidade...
A graa do guru H um outro aspecto determinante, sem o qual todo
caminho espiritual- toda Sadhana - toma-se uma distrao intelectual
ou uma efervescncia emocional. o que os hindus chamam de "a graa do
gum".
"No verdadeiro ensino, que j no requer o recolhimento fora do
mundo", escreve Arnaud Desjardins, " o mundo inteiro que se torna
mosteiro ou ashram o mundo inteiro, a cada 24 horas, que
considerado a graa do guru operando (00')' O mais hbil, o mais
eficaz, o mais genial dos gurus no poderia criar para mim, em seu
eremitrio ou mosteiro, condies mais frutferas, mais proveitosas,
mais habilmente difceis que aquelas que a vida me proporciona
(...). Se minha determinao suficientemente grande, no tenho
necessidade do sino ou do gongo do mosteiro, no tenho necessidade
de roupas, no tenho necessidade de perceber o guru a 5 ou 25 metros
para pr em prtica seu ensino, e a vida no sculo torna-se ainda mais
til que no eremitrio. Desperto pela manh num mosteiro amplificado
escala do planeta, e a partir da tudo o que me acontece a graa do
guru. Todo esse universo no seno a graa do guru operando para
ajudar-me a progredir. Posso dizer de tudo: foi meu guru que o quis
para mim, para o meu bem. Essa fadiga vai me permitir progredir,
esse mal-estar vai me permitir progredir, essa m notcia vai me
permitir progredir. Esse contratempo, essa inquietao, tudo o que
acontece eu recebo como a graa do guru operando. (Amaud Desjardins,
A ia Recherche du Sai, La Table Ronde).
Essa situao que assimila cada circunstncia da vida a uma prova
libertadora, a uma possibilidade de Despertar, desejada e proposta
pelo guru, confundese com os grandes arrebatamentos do misticismo
cristo: "Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus", Seja
feita a Tua vontade, e no a minha"
Numa tal abertura, no resta o menor lugar para qualquer medo ou
qualquer recusa: tudo bno, tudo amor divino, tudo Brama.
Captulo III Perspectivas Metafsicas Somente o absoluto real O
tema filosfico central da cultura ocidental gira em torno de um
certo nmero de questes que podem ser formuladas da seguinte
maneira: De onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui?
Quais so o sentido e a finalidade da existncia?
No Oriente, particularmente na ndia, a interrogao de base
bastante diferente: O que ' real? O que a realidade? O mundo real?
Sou real?
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21
No Ocidente, a minha realidade enquanto indivduo e a do universo
que me cerca no so seriamente tratadas - a no ser em alguns
exerccios de acrobacia puramente intelectual. Nesse ponto o
desenvolvimento do hindusmo de uma exigncia e de um rigor
extremo.
A primeira observao que as teorias mais grandiosas e os sistemas
mais hbeis so bastante irrelevantes, pois o pensamento que os
concebe um instrumento relativo e limitado. Ora, o intelecto no
pode ser dissociado do indivduo, ele prprio tributrio de uma certa
posio no espao e no tempo, de critrios subjetivos e de mltiplos
condicionamentos, psicolgicos, sociais etc.
A questo inicial no , portanto, o que necessrio pensar, mas quem
pensa, quem est atrs de todo pensamento.
A dificuldade est em que a resposta seja ela qual for, ser ainda
forosamente Um pensamento, portanto subjetiva e no-confivel. Assim,
no se pode conceber e formular a verdade objetiva. Mas essa
constatao pertence ao formulvel e ao concebvel.
Pode-se sair desse crculo vicioso?
necessrio abordar o problema de outro modo.
Que que no pode ser desmentido ou contradito por nada? Que que
inaltervel e imutvel, cuja validade no pode ser posta em dvida em
qualquer lugar, poca ou circunstncia? Que que dotado de uma
realidade estvel, permanente, invarivel?
De fato, somente o Absoluto responde a tais exigncias. O que
confirma que somente o Absoluto verdadeira e totalmente real. De
modo recproco, o real s pode ser o Absoluto.
Eis a uma proposio bem surpreendente e at mesmo, primeira vista,
extravagante, na medida em que parece escarnecer do senso comum
mais elementar e das bases da experincia corrente.
Somente o Absoluto seria real? Todos os fenmenos relativos que
compem ao mesmo tempo minha prpria vida, a de milhes de seres que
me rodeiam e o conjunto do cosmos seria sem consistncia, ilusrios?
Mas se me machuco sinto dor se caio do alto da torre Eiffel morro.
Isso no bem real?
medida que formos aprofundando o ponto de vista da ndia vedntica
faremos tbula rasa de todas as idias preconcebidas, de todos nossos
hbitos de pensamento, de nossas certezas mais enraizadas. A
perspectiva em que se situa o vedanta no-dualista varre o que
sempre aceitamos como evidente e irrefutvel.
Dito isso, nunca ser demais lembrar que seu objetivo liga-se no
a um saber, a uma doutrina, a uma construo mental, mas a uma
experincia vivida, a uma percepo direta, a uma conscincia
transformada, completamente diferentes de nossa maneira usual de
conscincia.
Como voltar fonte? Em sua pesquisa sobre a natureza da realidade
(ou sobre o Eu, em snscrito Atma Vichara), os sbios da ndia julgam
necessrio partir do ponto preciso em que estamos, neste mesmo
momento, para tentar atingir progressivamente a fonte - a origem de
nosso ser e de todas as coisas.
Uma simples observao mostra que, ao nvel do mundo manifestado,
todos os fenmenos inscrevem-se e desenvolvem-se dentro de uma
tripla dimenso, espao, tempo e causalidade. um quadro universal, do
qual no escapa nenhum processo fsico ou psquico. Todo
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22
acontecimento implica necessariamente uma localizao no espao,
uma sucesso temporal, e resulta fatalmente de um encadeamento de
causas e efeitos.
Essas trs categorias - espao, tempo, causalidade - parecem,
primeira vista, ter uma realidade prpria, perfeitamente exterior a
mim, que me condiciona estreitamente e me submete a angustiantes
limitaes materiais, biolgicas e mentais: separao, isolamento,
sofrimento, degradao e morte. Tal , ao menos, o veredicto das
aparncias.
Levando mais longe suas investigaes, bem depressa conseguiram os
sbios da ndia desfazer essas aparncias enganadoras.
O espao O espao, por exemplo, enquanto distncia, volume ou direo
referenciava, outra coisa no seno um produto de minha prpria
avaliao, de minha prpria escala de medidas, de relaes, de
comparaes.
Um objeto no em si mesmo nem grande nem pequeno. S tem tamanho
quando relacionado a alguma coisa, a algo determinado. Poder ser
imenso na tica de um micrbio e nfimo na de uma montanha. Qual seu
verdadeiro tamanho, sua dimenso intrnseca? No os tem, ou os tem
todos.
Em outras palavras, ele s se manifesta no espao relativo,
mensurvel, atravs do meu olhar.
Isso no significa, absolutamente, que esse objeto no tenha
existncia fora de mim, mas sim que no possui forma definida
exterior minha conscincia, dissocivel de minhas estruturas mentais
e sensoriais. Posso pretender que minha percepo mais "justa", no
absoluto, que a de um daltnico? A norma, nesse domnio, apenas uma
questo de estatstica.
Essa relatividade aplica-se tambm ao tamanho e forma do meu
prprio corpo.
Avanando um pouco mais, se o espao, enquanto conjunto de relaes
localizveis e mensurveis tributrio de minha conscincia, ento onde
estou?
Quando digo estou em tal lugar, vou a tal outro, eu me projeto,
de uma forma ou de outra, para fora de mim mesmo, como se fizesse
parte do espetculo.
Mas onde est aquele que observa, o espectador escondido tanto da
paisagem quanto de meu corpo, de minhas sensaes, de meus
pensamentos?
De fato, posso situar apenas o que abarcado pela minha viso, tal
elemento relacionado com tal outro, mesmo quando se trata de uma
galxia longnqua, da mercearia da esquina, da caneta que escreve
estas linhas ou do corao que sinto bater em meu peito. Mas a viso
mesma, em relao a que posso situ-la? Ela est em todo lugar e no est
em lugar algum. Onde estou eu, o espectador de onde procede a essa
viso? Estou em todo lugar e no estou em lugar algum.
Uma objeo acode sempre ao esprito: o espao existe fora de mim,
portanto ocupo nele uma posio precisa, pois 'que ele existia antes
do meu nascimento e continuar a existir aps a minha morte.
Esta afirmao, que parece cheia de bom senso, , na realidade, um
enorme contra-senso. Implica, com efeito, a possibilidade, para
mim, de ver o que se passa fora da minha presena, de estar quando
no estou.
Sob qualquer ngulo que se examine o problema, acaba-se sendo
forado a admitir que o mundo fenomenal percebido como realidade
exterior - o universo observvel - inteiramente dependente
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do observador. Os trabalhos da fsica quntica desembocaram numa
perspectiva consideravelmente semelhante.
Onde estou? Voltemos terra: estou em tal casa, em tal regio, em
tal continente, em tal planeta, tal sistema solar, ele mesmo em tal
galxia, ela mesma onde, com certeza? Qualquer que seja a natureza
dos envoltrios sucessivos e a imensidade das escalas concebveis
finaliza-se sempre no infinito, quer dizer, na nossa prpria
conscincia, o infinito no sendo nem visvel nem mensurvel.
O tempo A segunda questo : quando eu sou?
Ainda aqui o bom senso intervm para soprar-me respostas do gnero
estou em tal ano, tal dia, tal hora. O inconveniente que, quanto
mais exato quero ser, mais certo estou de enganar-me. Pois, no
momento mesmo em que enuncio o instante - a hora, o minuto, o
segundo - ele j passou e parece divertir-se comigo. Quando se
pretende agarr-la, o instante vivido torna-se essencialmente
fugitivo, sempre ainda por vir e sempre j passado.
Posso ento tentar situar-me relativamente a uma idade, numa
progresso evolutiva ao mesmo tempo pessoal e histrica: vivo em tal
seqncia de acontecimentos mundiais, em tal encruzilhada de minha
vida, entre 'esta e aquela srie de experincias.
Esse raciocnio feito em termos de itinerrio e de trajetria, como
se o tempo fosse, de fato, espao. Meu passado, o do cosmos, est to
para trs de mim quanto o futuro est para frente. Um no mais, o
outro no ainda, e ambos existem apenas agora, na conscincia que
tenho deles neste mesmo instante.
O incidente de h cinco minutos no e to nem mais perto nem mais
longe, to passado quanto a Guerra dos Cem Anos, o fim dos
brontosurios ou a formao dos anis de Saturno.
esta pergunta quando eu sou? h apenas uma resposta: eu sou
agora, imediatamente, nem antes nem depois, apenas agora.
Mas e a memria, e as lembranas? No sero elas uma prova da
persistente realidade do passado? Perguntemos, de preferncia,
quando funciona a memria, quando surgem as lembranas: s h memria e
lembranas no presente. As imagens do passado so apenas formas
atuais de minha conscincia.
Ao mesmo tempo inatingvel e nico real, este agora imutvel,
idntico, eterno: sempre houve, sempre haver o agora, e nada alm do
agora. Pode se mesmo dizer que a criao inteira apenas o jogo
polimorfo, variegado, genialmente inventivo deste eterno agora,
suas formas, seus corpos, seus semblantes infinitamente
variados.
A causalidade Depois do espao e do tempo, a causalidade.
Todo processo - qumico, fisiolgico, psicolgico - desenvolve-se
segundo um estrito encadeamento de causa e efeito que, do
nascimento morte, parece submeter existncia frula de urna lei
implacvel. Tal , pelo menos, a impresso que se tem quando se
estudam os fenmenos fragmentariamente: derrubo um copo, ele cai e
quebra-se; machuco um dedo, ele sangra; insulto um passante, ele
replica; etc.
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Quando procuramos a causa exata de um fenmeno, esbarramos com
srias dificuldades. Por exemplo, no caso do copo que se quebra,
qual a verdadeira causa? Seria o peso do objeto? A fragilidade de
seu material? As leis de atrao terrestre? Ou, ainda, meu prprio
desajeitamento?
Mesmo quando se isola e se favorece, um pouco arbitrariamente,
tal ou qual fator, deve-se determinar de que processo ele
conseqncia e assim sucessivamente. Chega-se logo origem das espcies
e formao do mundo.
De fato, nenhum fenmeno pode ser isolado de urna trama de
interconexes, de um tecido de causas mtuas e interdependentes que
se repetem ao infinito. O que quer dizer que um acontecimento no
resulta de urna causa, mas de urna infinidade de causas, onde cada
seqncia particular exprime e contm, de urna maneira especfica e
nica, a totalidade da criao.
Nessa realidade global, onde tudo est inextricavelmente ligado,
ns que despedaamos, fragmentamos, partimos essa imensidade movente
e fluida em coisas, em categorias, em peas de construo mecnica. O
que so, efetivamente, os encadeamentos de causas e efeitos fora da
conscincia que os descreve e os regulamenta?
"No ternos necessidade da causalidade", escreve Alan Watts,
"para explicar corno um acontecimento influenciado por outro que o
precedeu. Imaginemos que olho atravs da fresta de urna paliada no
momento em que urna serpente passa do outro lado. Jamais havia
visto essa serpente antes, ignoro tudo a seu respeito. Atravs da
fresta vejo primeiramente a cabea, depois um corpo muito alongado e
enfim a cauda. Depois disso a serpente faz meia volta e retoma no
outro sentido. Vejo novamente a cabea e, aps um momento, a cauda.
Se chamar a cabea e a cauda acontecimentos, pensarei que o
acontecimento "cabea" a causa do acontecimento "cauda", a cauda
sendo o efeito. Mas, se eu olhar a serpente em seu conjunto, vejo
urna unidade cabea-cauda e seria completamente absurdo dizer que a
cabea da serpente a causa da cauda, corno se a serpente comeasse
sua existncia pela cabea, a cauda aparecendo em seguida. j sob a
forma de um conjunto cabea-cauda que a serpente sai de seu ovo;
exatamente da mesma maneira que todos os acontecimentos so um s e
mesmo acontecimento. O que percebemos, quando nos referimos a
acontecimentos diferentes, so as diferentes seqncias de um fenmeno
contnuo. (Alan Watts, L'Envers du Nant, Denoel)
Quem sou eu? Assim o espao, o tempo e a causalidade aparecem
como construes artificiais, corno a fragmentao arbitrria de urna
realidade global, de um todo indissolvel, onde a conscincia do
observador e o espetculo observado so apenas um.
Corno o mundo no separvel da conscincia que dele tenho,
perguntar "Que o mundo?" urna maneira terrivelmente complicada e
torcida de perguntar: "Quem sou eu?"
Eis a questo, ao mesmo tempo primordial e ltima, da qual todas
as outras so apenas prolongamentos, casos particulares. Esse "Quem
sou eu?" uma das bases do ensino vedntico.
Uma observao mais atenta nos mostra que, no plano dos fenmenos
fisiolgicos e dos processos psquicos, tudo se modifica
incessantemente e nada jamais perfeitamente idntico. Ora, se no
existisse em mim uma realidade idntica e imutvel, como poderia eu
reconhecer a mudana e a diferena? So necessrias balizas fixas - ao
menos relativamente - para detectar o movimento.
Quando penso''eu", tenho a impresso de saber perfeitamente de
quem se trata; no minha experincia a mais evidente e a mais
imediata, minha certeza a mais ntima e a mais invarivel?
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Um esprito bastante hbil pode conseguir fazer-me duvidar de mil
coisas - da existncia de Hitler ou mesmo do globo terrestre; de
minha prpria existncia, jamais.
O problema : Quem existe? Quem esse eu cuja permanncia e
continuidade me parecem to evidentes?
Por outro lado, meu corpo no uma coisa isolada, separvel do
mundo fsico que o rodeia. Ele o ar que respira, o alimento que
absorve, o calor que o banha, o solo que o sustenta, a terra sobre
a qual ele anda e repousa, a luz do sol, a alternncia dos dias e
das noites, o ritmo das estaes, o conjunto das energias e vibraes
que ele recebe e assimila. Nesse sentido posso dizer que, de fato,
o cosmos inteiro que o meu corpo, e no somente um pacote de vsceras
e rgos envolvido em um "saco de pele", para usar a bela expresso de
Alan Watts, como se houvesse uma demarcao radical, uma verdadeira
pelcula de nada a isolar a superfcie de minha epiderme do resto do
universo.
Dizer" eu sou o corpo" , portanto, uma enorme iluso de tica, uma
perspectiva grosseiramente errada.
Os nveis sutis Consideremos agora nveis mais sutis por exemplo,
o do domnio emocional e afetivo: atraes, repulses, simpatias,
antipatias, toda a multido fervilhante e contraditria de impulsos,
pendores e paixes de toda espcie.
Ainda aqui todo processo passional est em contnua mutao. A emoo
, antes de tudo, um fenmeno movente e instvel, condenado a
desaparecer cedo ou tarde para ceder o lugar a emoes completamente
diferentes ou mesmo oposto. O que outrora nos exaltava ou indignava
pode muito bem deixar-nos hoje profundamente indiferentes, e
inversamente. Aquele ou aquela a quem declaro hoje meu amor eterno
pode inspirar-me amanh uma averso incoercvel.
Onde est, em tudo isso, o eu inaltervel?
Pertencer ele ao plano mais abstrato das faculdades intelectuais
e das idias? Mas que pode haver de mais inconstante, disparatado e
mesmo verstil que essa turbilhonante atividade mental, essa sucesso
de opinies e conceitos que se perseguem mutuamente?
s vezes somos tentados a associar o eu e a memria
(particularmente o gigantesco e obscuro territrio do inconsciente)
como elemento fundamental de permanncia e continuidade.
Mas as prprias lembranas esto em incessante flutuao, oscilando,
baralhando-se, deformando-se com o tempo, ao arbtrio das
circunstncias. Jamais temos duas vezes a mesma lembrana. Pois,
mesmo quando um acontecimento se grava em ns e de maneira
definitivamente indelvel, jamais pensamos nele dentro do mesmo
contexto nem sob a mesma luz.
A evidncia de ser Na sua essncia intrnseca e imutvel, que os
hindus denominam Eu (Atman) para distingui-lo do simples eu dos
psiclogos, o eu real no pode ser reduzido nem ao corpo, nem s
emoes, nem aos pensamentos, nem memria.
Como perceber, ento, sua verdadeira natureza? Voltemos ao ponto
de partida: a certeza de existir.
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Essa evidncia de ser independente de toda sensao, imagem ou
pensamento particular, anterior s palavras, aos conceitos, s
formas, aos acontecimentos.
Acontece a qualquer um, quando est levemente adormecido,
esquecer bruscamente quem ou onde est sem que, entretanto,
desaparea a certeza de existir - para alm de um nome ou de uma
posio determinada.
Essa conscincia pura de ser insistimos, jamais variou. Hoje, ela
idntica ao que era na primeira infncia. exatamente a mesma em todos
os lugares e em qualquer circunstncia. O que muda so as definies em
que se procura encerr-la. De uma certa maneira, esse simples "eu
sou" no pode nem deslocar-se, nem envelhecer, nem alterar-se, nem
ser afetado por nada. Est sempre aqui e agora, qualquer que sejam
as aparncias exteriores, os dados conjunturais desse aqui e desse
agora.
Esse "eu sou", a raiz do meu ser, est alm do tempo e do espao,
alm da forma e do movimento. De resto, se eu no fosse, em minha
realidade essencial, sem nome e sem forma, como poderia perceber os
nomes e as formas?
Esse "eu sou", para alm de qualquer qualificao e mutao
perfeitamente neutra e estvel, costuma ser associado noo depuro
espectador (Drg) ou depura testemunha (Sakshin).
Esse ser imutvel, que est no fundo de todos os processos fsicos,
emocionais, intelectuais, de todos os fenmenos relativos,
freqentemente comparado, pelos sbios da ndia contempornea, tela de
um filme.
Claro, trata-se apenas de uma alegoria, mas bastante evocadora.
Durante a projeo de um filme, as seqncias desfilam pela tela sem
que esta seja vista. Ora, sem a tela no haveria imagem. Essa tela
invisvel o suporte imutvel, imaculado, indiferenvel, o elemento de
permanncia e de continuidade que sustm a sucesso dos planos e das
cenas. o filme que dissimula a tela, que a subtrai aos nossos
olhares, mas no pode nem afet-la nem modific-la. "Ela no nem
arranhada pelas balas das metralhadoras de um filme de guerra nem
molhada no fim de um filme de naufrgio" (Arnaud Desjardins).
Neutra, vazia, indeterminada, no pode ser assimilada a uma imagem
particular; mas, ao mesmo tempo, inclui todas as imagens, agrega-se
a todas as seqncias.
Outra analogia tradicional a do espelho. Todos objetos so por
ele refletidos, indistintamente. Essas imagens so apenas a
superfcie espelhada, e esta no absolutamente alterada pelas cenas
que nela se desenvolvem.
Como a tela ou o espelho, o Eu (Atman) sustm e engloba todas as
formas particulares sem ser limitado ou subjugado por nenhuma
delas.
Ele o Eu que habita o mais profundo de cada individualidade.
Permanece sempre idntico a Si mesmo e, entretanto, transparece
atravs das mltiplas transformaes do material.
No nasce nem morre; no cr nem descr.
Quando o corpo se transforma em p ele no cessa de existir, tal
como o ar contido no bojo de um cntaro incondicionvel."
(Shankara, Le Plus Beau Fleuron de Ia Discrimination, 131, 134,
Adrien Maisonneuve).
Este texto pode ser comparado com uma soberba passagem do
Brihadaranyaka Upanishad (111, IV, 2):
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"No podeis ver Aquilo que o Vidente da viso; no podeis ouvir
Aquilo que o Ouvinte da audio; no podeis pensar Aquilo que o
Pensador do pensamento; no podeis conhecer Aquilo que o Conhecedor
do conhecimento. o vosso prprio Eu que habita dentro de tudo o que
existe, e tudo o que existe deve perecer - salvo ele".
O Brama O Eu (Atman) , portanto, minha mais ntima realidade, o
nico que escapa mudana e morte.
Absoluto, inefvel, indescritvel, irredutvel a palavras e a
textos, ultrapassa toda faculdade de percepo e entendimento. Ao
mesmo tempo menor que o mais minsculo entre os mais nfimos e maior
que o mais imenso entre os mais vastos, ele propriamente
incomensurvel, e nenhuma escala de medida lhe pode ser
aplicada.
Infinito, universal, ele a ltima e nica realidade, gerando e
englobando ao mesmo tempo minha pessoa e a totalidade da criao.
Enquanto tal, os hindus o chamam Brama Atman e Brama so idnticos,
so a mesma realidade superior, considerada como centro e fundamento
de minha existncia individual (Atman) ou como centro e fundamento
da totalidade dos mundos existentes e possveis, manifestados ou
no-manifestados (Brama).
No-dualidade a propsito de Brama que se costuma falar de
no-dualidade. Diz-se ainda que ele Um-Sem-Um-Segundo.
Todo esse universo que a Ignorncia nos apresenta sob o aspecto
da multiplicidade .
No outra coisa seno Brama, para sempre liberto de todas essas
limitaes que condicionam o pensamento humano.
Ainda que a jarra seja uma modificao da argila, ela no se
diferencia da argila.
Em todas as suas partes a jarra tem a mesma natureza da
argila.
Por que lhe dar o nome de jarra?
Esse nome imaginrio; no corresponde a nada de real.
Na nica existncia de Brama a idia do universo pura
fantasmagoria.
Naquele que o Absoluto - sem mudanas e sem formas - onde
acharamos traos de diversidade?
Na nica existncia, livre de noes tais como o que v, o visto e a
viso.
Na nica existncia que o Absoluto - sem mudanas e sem forma -
onde acharamos traos de diversidade? (Shankara, op. cito 227, 228,
399, 400)
No plano do mundo fenomenal e relativo estamos profundamente
imersos na multiplicidade, subjugados pelas duplas de contrrios
(Dvandas), preto-branco, grande-pequeno, ativo-passivo,
positivo-negativo, unio-separao, nascimento-morte, e igualmente
finito-infinito, particular-universal, ou mesmo absoluto-relativo,
unidade-multiplicidade.
O Brama no pode ter contrrio, seja ele qual for, pois isso seria
ainda limit-lo. Ora, todo conceito, por vasto e indeterminado que
seja, comporta forosamente o seu contrrio. Eis por que
-
28
os hindus preferem o termo no-dualidade (Advaita) a unidade, que
pode ser oposta multiplicidade.
Tu s isso A expresso um-sem-um-segundo aponta igualmente para
essa realidade suprema e indizvel; impossvel de ser dividida,
circunscrita e percebida. Mas as prprias palavras "no-dualidade",
"um-sem-um-segundo" pertencem ao domnio da linguagem e do relativo.
"Quanto quele que confunde as palavras com Brama, ele todo
poderoso, mas 'somente no domnio das palavras!" (Chandogya
Upanishad, VII, I, 5).
O carter inconcebvel, onipresente e incomensurvel de Atman-Brama
evocado em outra clebre passagem desse mesmo Upanishad. Trata-se de
um dilogo durante o qual um pai instri seu filho:
- Traz-me um fruto deste nyagrodha.
- Ei-lo aqui, Senhor.
- Divide-o.
- Est dividido.
- Que vs?
- Algumas sementinhas, Senhor.
- Pois bem! Divide uma destas sementes. - Pronto, Senhor.
- Que vs?
- Nada, Senhor.
O pai continua.
- Meu amigo, esta essncia sutil que escapa nossa percepo, em
virtude dela que esta rvore, grande como , se ergue. Cr em mim, meu
amigo, esta essncia sutil anima tudo; ela a nica realidade; ela o
Atman. Tu mesmo, Cvetaketu, tu s Aquilo. (VI, XII, C 2, 3).
"Todo este universo Brama", "o Atman Brama", "Tu s Aquilo. -
estas frmulas fazem parte do que denominado "as grandes palavras"
(Mahavakya) dos Upanishads. Resumem e contm em si todo o ensino do
vedanta. Aquele que lhes percebe o verdadeiro sentido para alm de
uma estreita compreenso intelectual, quer dizer, que vive
diretamente sua realidade imediata, dentro e na totalidade de seu
ser, no tem mais necessidade de ler nenhum outro texto, nem, alis,
de se fazer nenhuma pergunta...
As vagas e o oceano Devemos sublinhar um ponto importante, sob
pena de dar margem a confuses e contra-sensos que poderiam
desfigurar completamente o prprio esprito mesmo desta
trajetria.
Se Brama sem dualidade, sem contrrio, ento no pode ser isolado,
separado do mundo relativo e fenomenal, contraposto ao universo das
aparncias e da multiplicidade. Se h apenas uma realidade,
perfeitamente indivisvel, sem o menor lugar para dois, ento Brama
no pode ser outro seno os inmeros processos - tomados, ao mesmo
tempo, global e isoladamente - que aparecem, evoluem, misturam-se,
transformam-se e depois desaparecem.
-
29
Em outras palavras, nada do que fazemos, sentimos, pensamos,
tememos, desejamos, tornamo-nos, nada disso outra coisa seno
Brama.
Uma das imagens tradicionais mais correntemente evocadas a esse
respeito a das vagas e do oceano.
Enquanto vaga - fenmeno individual, particular, limitado,
relativo - surjo do seio da massa lquida para rolar durante algum
tempo na superfcie das guas e depois dispersar-me em espuma na
beira da praia. Entretanto, essa vaga no outra coisa seno o
oceano.
Enquanto vaga estou fadado mudana e ao desaparecimento.
Enquanto oceano - conscincia da realidade total e indivisvel -
sou tambm a totalidade das vagas existentes ou tendo existido,
nascendo e morrendo em todo lugar, a cada instante. .
Assim o sbio, cuja conscincia est firmemente estabelecida em
Brama, sente-se simultaneamente como vaga e como oceano. Enquanto
vaga tem sempre uma existncia individual: bebe, come, dorme, pensa,
age, sente dor ou prazer. Enquanto oceano imutvel, eterno,
onipresente, onisciente, conhecendo " aquilo pelo qual a totalidade
do universo conhecido" .
Esse aspecto do vedanta no-dualista fundamental, pois somos
sempre tentados a reintroduzir uma dualidade, distinguindo e opondo
absoluto e relativo, Brama e o mundo fenomenal manifestado, Atman e
o processo individual perecvel, ou, numa linguagem religiosa,
sagrado e profan