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A questo da memria nos fotgrafos ficcionaisde Italo Calvino,
Adolfo Bioy Casares
e Julio Cortzar
Carolina Martins EtcheverryBruna Rajo FrioOlvia Silva Nery
DOI 10.5433/1984-7939.2014v10n17p139
Artigo recebido em: 29/09/2013Artigo aprovado em: 28/10/2014
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* Bolsista de Ps-Doutorado PNPDI- Capes - Universidade Federal
de Pelotas, Doutora emHistria pela PUCRS. E-mail:
[email protected]
** Bacharel em Turismo pela UFPel e mestranda no Programa de
Ps-Graduao em MemriaSocial e Patrimnio Cultural da UFPel. Bolsista
Fapergs. E-mail: [email protected]
***Bacharel em Histria pela FURG e mestranda no Programa de
Ps-Graduao em MemriaSocial e Patrimnio Cultural da UFPel. E-mail:
[email protected]
discursos fotogrficos, Londrina, v.10, n.17, p.139-162,
jul./dez. 2014 | DOI 10.5433/1984-7939.2013v10n17p139
A questo da memria nos fotgrafos ficcionais de ItaloCalvino,
Adolfo Bioy Casares e Julio Cortzar
The issue of memory in the fictional photographers of Italo
Calvino, Adolfo BioyCasares and Julio Cortzar
Carolina Martins Etcheverry *Bruna Rajo Frio **
Olvia Silva Nery ***
Resumo: Este artigo prope a anlise de trs contos que
envolvemquestes de memria e fotografia: As aventuras de um
fotgrafo(1955), de Italo Calvino, As babas do diabo (1959), de
JulioCortzar e A inveno de Morel (1963), de Adolfo Bioy Casares,a
fim de refletir sobre as relaes entre a fotografia, a memria e
ocomportamento social do fotgrafo enquanto fotgrafo. Em todosesses
casos, a fotografia (ou a reproduo do real vivido) apareceem sua
relao com a memria como evocadora do passado.
Palavras-chave: Fotografia. Memria. Literatura.
Abstract: This article proposes an analysis of three stories
involvingquestions of memory and photography: The Adventures of
aPhotographer (1955), by Italo Calvino, Blow Up (1959), byJulio
Cortzar, and The Invention of Morel (1963), by Adolfo BioyCasares,
in order to reflect upon the relationship between
photography,memory and the photographers social behavior in his
role asphotographer. In all of these cases, the photograph (or
thereproduction of the real) appears in its relation to memory
asevocative of the past.
Keywords: Photography. Memory. Literature.
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Introduo
Em As aventuras de um fotgrafo, de Italo Calvino, opersonagem
principal, Antonino, torna-se obcecado pela fotografia,buscando um
modo de registrar tudo o que passa ao seu redor. Em Asbabas do
diabo, de Julio Cortzar, a fotografia apresenta-se como formade
documentao capaz de comprovar acontecimentos vistos pelofotgrafo.
Em A inveno de Morel, de Adolfo Bioy Casares, a ideiade reproduzir
ad infinitum momentos vividos por um grupo de amigos,atravs de um
aparelho que registra no apenas as imagens emmovimento, mas tambm
cheiros, sons, volumes e texturas, exacerba ascaractersticas da
fotografia e do cinema.
Em todos os trs contos, a fotografia aparece como mediadoradas
relaes sociais dos fotgrafos ou, no caso de Morel, do inventor. a
partir do ato de fotografar, que envolve o congelamento de
ummomento vivido, que os fotgrafos acionam um processo derememorao.
A fotografia, ento, passa a ser um suporte da memria,atuando como
auxiliar do fotgrafo e daqueles que observam as imagens.Segundo
Joan Fontcuberta (1997, p. 58) siempre fotografiamos pararecordar
aquello que hemos fotografiado, para salvaguardar la experienciade
la precaria fiabilidad de la memoria.
Walter Benjamin (1892-1940) pensa na relao que a
fotografia,enquanto tecnologia, tem sobre o comportamento social e
pessoal. Segundoo autor:
Com a inveno do fsforo, em meados do sculo XIX, comeauma srie de
inovaes que tm em comum o fato de dispararemuma sequncia completa
de operaes por meio de um gestoabrupto de mo. [...] Entre os
inmeros gestos de acionar, introduzirpeas, pressionar, o clic do
fotgrafo foi um dos que tiveram asconsequncias mais importantes:
uma presso do dedo bastoupara fixar um acontecimento por tempo
ilimitado. [...] Assim, atcnica submeteu o sensrio humano a um
training complexo(BENJAMIN apud SCHTTKER, 2012, p. 63).
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Esse treinamento na prtica fotogrfica, nos tempos de hoje,
tornou-se fato consumado. Observamos uma superabundncia de
imagenscirculando todos os dias, em jornais, na internet, na
televiso. As imagensso feitas no apenas por profissionais, mas por
qualquer pessoa comacesso a uma cmera fotogrfica, e este tipo de
equipamento tem sidocada vez mais fcil de obter, se levarmos em
considerao que os aparelhoscelulares tm cmeras razoavelmente boas.
Nesse caso, a fotografia perde,talvez, o valor de perpetuao da
memria, visto que so imagens feitaspara serem esquecidas no dia
seguinte, e isso especialmente no caso dasfotografias veiculadas em
mdias impressas, em blogs etc. Assim, podemospensar, ao lado de
Zigmunt Bauman (2007), que vivemos em temposlquidos, e que a questo
da memria deve ser pensada a fundo como umproblema de nossos
tempos. No entanto, ao trabalharmos com os contos,que datam das
dcadas de 1950 e 1960, como podemos pensar a relaoda fotografia com
a memria em uma poca em que a prpria prticafotogrfica era diferente
da que vivemos hoje?
O fascnio que o ato de fotografar exerce (e esse o caso
deAntonino, do conto de Calvino) traz tona questes como o valor
decomprovao de algo que aconteceu (o isso foi de Roland Barthes).
Nocaso de Michel, o fotgrafo do conto de Cortzar, a busca
incessanteempreendida por ele , justamente, a de comprovao de
umacontecimento. Mas podemos nos perguntar: at que ponto a
fotografiatem condies de exercer esse papel comprobatrio de
modoincontestvel?
Sobre a fotografia-documento e sua relao com a verdade,
AndrRouill (2009) afirma que
a fotografia-documento refere-se inteiramente a alguma
coisapalpvel, material, preexistente, a uma realidade
desconhecida,em que se fixa com a finalidade de registrar as pistas
e reproduzirfielmente a aparncia. Essa metafsica da representao,
que sebaseia tanto nas capacidades analgicas do sistema tico
quantona lgica de impresso do dispositivo qumico, leva a uma ticada
exatido e a uma esttica da transparncia (ROUILL, 2009, p.62).
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O autor afirma tambm que uma falcia a crena na exatido,
naverdade e na realidade da fotografia. Segundo ele, (...) nem o
exato nemo verdadeiro so inerentes fotografia (ROUILL, 2009, p.
62). Eleprope que compreendamos quais so os dispositivos que nos
levaram aacreditar que a fotografia possua tais caractersticas, uma
vez que elas,em verdade, so do comeo ao fim construdas,
convencionais e mediatas(ROUILL, 2009, p. 62).
Em ltima instncia, todos os trs contos so exemplos da mediaoda
tecnologia sobre o homem, e das possibilidades que a fotografia
temde atuar como suporte da memria, coletiva ou individual.
Guardadas asdevidas diferenas, Calvino, Cortzar e Bioy Casares se
preocupam coma mesma questo: como a fotografia impacta sobre a vida
das pessoas,sobre seus processos de memria, ou seja, quais as funes
da fotografiana vida dos sujeitos. Nesse sentido, cada autor tem
seus prpriospressupostos tericos a respeito do instantneo, da pose
e das convenesfotogrficas.
Italo Calvino As aventuras de umfotgrafo (1955)
O conto A aventura de um fotgrafo, de Italo Calvino, foi
escritoem 1955 e faz parte do livro Os amores difceis, publicado,
pela primeiravez, no ano de 1958. Apresenta a histria de Antonino
Paraggi, inicialmenteum no fotgrafo, que passa a fotografar no
momento em que se senteisolado de seu crculo de amigos, isto ,
quando seus amigos comeama casar e constituir famlia, e ele
permanece solteiro. Segue-se, crticados fotgrafos, uma paixo
beirando o patolgico.
A crtica que Antonino faz aos fotgrafos de fim de semana
aparecej na abertura do conto:
Com a chegada da primavera, os habitantes das cidades, scentenas
de milhares, saem aos domingos levando o estojo a
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tiracolo. E se fotografam. Voltam satisfeitos como caadores como
embornal repleto, passam os dias esperando com doce ansiedadepara
ver as fotos reveladas (...) e somente quando pem os olhosnas fotos
parecem tomar posse tangvel do dia passado (...).(CALVINO, 2013, p.
45).
A narrativa, em terceira pessoa, apresenta uma prtica
fotogrficaque j no a dos nossos dias, em que havia a ansiedade
inerente espera da revelao das imagens. No entanto, o que comum,
aos nossosdias, a necessidade de fotografar os momentos vividos,
como se aexperincia no fotografada no fosse efetivamente uma
experincia.Estranho hoje quem viaja sem tirar fotografias, que
funcionam como acomprovao de que a viagem realmente aconteceu.
Ocorre que, em cada sada com amigos, Antonino era chamado atirar
fotografias das pessoas. Assim, foi sendo cooptado pelo
maravilhosomundo da fotografia:
Nesses casos, Antonino no podia recusar seus prstimos:recolhia a
mquina das mos de um pai ou de uma me que corriampara se colocar na
segunda fila enfiando o pescoo entre duascabeas ou para se acocorar
entre os menores, e concentrandotodas as suas foras no dedo
indicado para o uso apertava ogatilho. (CALVINO, 2013, p. 47).
Calvino apresenta-nos um Antonino com opinies bastante
fortessobre a prtica fotogrfica. Nos casos em que era chamado a
fotografar,(...) sua inteno era emprestar o dedo como dcil
instrumento da vontadecoletiva, mas ao mesmo tempo se utilizar da
posio momentnea deprivilgio para advertir fotgrafos e fotografados
do significado de seusatos (CALVINO, 2013, p. 47). Ou seja,
Antonino sabia que a fotografiatem funes poderosas, e que cada
fotografia carrega, em si, significadosespecficos.
O momento da virada de Antonino no fotgrafo para
Antonino-fotgrafo se d no dia em que algumas amigas (Bice e Lydia)
pedem paraque ele tire uma foto instantnea delas enquanto jogavam
bolas entre asondas. O pedido gera um discurso a respeito do
instantneo:
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- O que que leva vocs, moas, a retirar da
movimentadacontinuidade de sua jornada essas fatias temporais da
espessurade um segundo? Jogando a bola uma para a outra esto
vivendono presente, mas mal a diviso dos fotogramas se insinua
entre osgestos de vocs j no o prazer do jogo que as impulsiona e
simo de reverem no futuro, de se encontrarem novamente daqui avinte
anos num cartozinho amarelado (sentimentalmenteamarelado, mesmo se
os processos modernos de fixao opreservarem inalterado). O gosto
pela foto espontnea naturalcolhida ao vivo mata a espontaneidade,
afasta o presente. Arealidade fotografada assume logo um carter
saudoso, de alegriasumida na asa do tempo, um carter comemorativo,
mesmo se uma foto de anteontem. E a vida que voc vive para
fotografar j desde o princpio comemorao em si mesma. Achar que
oinstantneo mais verdadeiro que o retrato posado umpreconceito...
(CALVINO, 2013, p. 49, negrito nosso).
Nesse discurso, Antonino levanta uma srie de
questesinteressantes a respeito das funes da fotografia em nossa
sociedade. Aprimeira delas diz respeito ao uso que fazemos das
diversas fotografiasque tiramos ao longo de nossas vidas. Elas
servem para que a gente sereveja, e que lembranas daqueles momentos
vividos presentifiquem-se,a partir de um processo de rememorao. A
segunda questo levantadadiz respeito preservao das imagens
(amareladas) e dos processos defixao, que preservam ou no a
fotografia de modo inalterado em relaoao momento da revelao. Hoje
em dia, essa questo premente no quediz respeito salvaguarda dos
acervos j existentes em papel ou negativo(ou outros tipos de
suporte fsico) e, tambm, dos acervos digitais. Aterceira questo,
que diz mais respeito prtica fotogrfica em si, aquelada fotografia
instantnea e do seu antagonismo em relao fotografiaposada, em que a
pose representativa de contextos socioculturaisespecficos. Antonino
entende que ambas so construes, sendo que,por esse motivo, nenhuma
mais verdadeira que a outra.
Identificamos no conto o uso da fotografia j naquela poca como
registro de todos os momentos e com o temor da perda da identidadee
da memria do sujeito. Isto fica claro na seguinte citao:
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Ah, que bonito, tinha era que tirar uma foto!, e j est no
terrenode quem pensa que tudo o que no fotografado perdido, que
como se no tivesse existido, e que ento para viver de verdade
preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o maisque
se possa preciso: ou viver de um modo o mais fotografvelpossvel, ou
ento considerar fotografveis todos os momentosda prpria vida. O
primeiro caminho leva estupidez, o segundo, loucura. (CALVINO,
2013, p. 48).
No entanto, depois de ser cooptado pela fotografia e de se
apaixonarpor Bice, Antonino segue justamente o caminho da loucura.
Ao procurarpela fotografia nica de Bice, acaba por fotograf-la em
todos osmomentos possveis. Tinha at dispositivos para poder
fotograf-la noiteenquanto dormia (CALVINO, 2013, p. 55). Calvino
define essas imagenscomo violncias fotogrficas, justamente porque
tirar incessantementefotografias de uma pessoa um comportamento
doentio e agressivo paraquem est sendo submetido sesso fotogrfica
infinita. Antonino justificavasua atitude ao pensar que a
fotografia s tem sentido se esgotar todas asimagens possveis
(CALVINO, 2013, p. 55). Ela serviria como umatestado de vida
daquele que fotografado, seria um dirio fiel de nossasjornadas.
Tal pensamento reafirmado por Phillipe Dubois (1993) quandodiz
que a foto percebida como uma espcie de prova, ao mesmo
temponecessria e suficiente, que atesta indubitavelmente a
existncia daquiloque mostra. Joan Fontcuberta (1997) escreve sobre
o protocolo dofotografvel levado ao limite. Segundo ele: llevada al
lmite, esta actuacinnos conducira a una paradoja de naturaleza
borgiana: tener que fotografiarsin concesiones cada instante de la
existencia, para que absolutamentenada escape de la voracidad de la
cmara (FONTCUBERTA, 1997, p.59).
Ao longo do texto, percebemos claramente a fotografia
comoevidncia de algo:
Tem que partir novamente desse ponto explicou s amigas. - Nomodo
como nossos avs posavam, na conveno segundo a qual
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se dispunham os grupos, havia um significado social, um
costume,um gosto uma cultura. Uma fotografia oficial ou matrimonial
oufamiliar ou escolar dava o sentido do quanto cada papel
ouinstituio tinha em si de srio e importante, mas tambm de falsoe
forado, de autoritrio, hierrquico. Este o ponto: tornarexplcitas as
relaes com o mundo que cada um de ns trazconsigo, e que hoje se
tende a esconder, a tornar inconscientes,achando que desse modo vo
desaparecer, enquanto, aocontrrio... (CALVINO, 2013, p. 50).
A fotografia, mesmo que tenha, como inteno, o registro
dedeterminado fato, cercada de uma aura subjetiva. Sem a presena
dofotgrafo e do fotografado, impossvel saber se a interpretao
quefazemos a que eles gostariam que fosse feita. Como diria Barthes
(1984),vai depender do punctum de cada um de ns. Vai depender do
contextoem que mostrada ou exposta. A subjetividade de Antonino
pode serverificada na seguinte afirmao: Havia muitas fotografias
possveis deBice e muitas Bices impossveis de fotografar, mas aquilo
que ele buscavaera a fotografia nica, que contivesse tanto umas
quanto as outras(CALVINO, 2013, p. 51). Essa fotografia ele busca
incessantemente, es consegue no momento em que, no estdio, depois
de tentar diversasposes, acaba por tirar o vestido de Bice e o
momento mgico da fotografiase faz:
Antonino sentiu a viso dela lhe entrar pelos olhos e ocupar
todoo campo visual, tir-lo fora do fluxo das imagens causais
efragmentrias, concentrar tempo e espao numa forma finita. E,como
se essa surpresa da viso e impressionar a chapa fossemdois reflexos
ligados entre si, apertou imediatamente o disparador,recarregou a
mquina, disparou, ps outra chapa, disparou,continuou a trocar chapa
e disparar, tartamudeando, sufocadopelo pano (...). (CALVINO, 2013,
p. 54-5).
A subjetividade tanta na fotografia que o passo entre a
realidadeque fotografada na medida em que nos parece bonita e a
realidade quenos parece bonita na medida em que foi fotografada
curtssimo
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(CALVINO, 2013, p. 48). Por isso, fotografa-se para ver
depois,para sentir o que se sente no instante da captura, sentir o
prpriomomento passado no presente. Assim como a fotografia, a
memriatambm recria o real. Portanto, fotografia memria e com ela
seconfunde. A memria est vinculada identidade do sujeito e
suasensao de pertencimento a determinado grupo social, afinal,
semmemria o sujeito se esvazia, vive unicamente o momento
presente,perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua
identidadedesaparece (CANDAU, 2012, p. 132).
Podemos perceber, no texto, a fotografia como um suporte
dememria, quando o autor fala do instinto dos pais de fotografar
seusfilhos desde o momento em que nascem: afinal, dada a rapidez
docrescimento, torna-se necessrio fotograf-lo com frequncia, pois
nada mais transitrio e irrecordvel do que uma criana em fase de
crescimento.Alm disso, o lbum de fotografias, de acordo com o
autor, tambm podeservir como suporte de memria; afinal, o lugar
onde todas essasperfeies fugazes se salvam e se justapem, cada uma
aspirando a umabsoluto prprio incomparvel (CALVINO, 2013, p. 46). A
fotografia vista, portanto, como uma recordao do acontecido, como
uma prova,quando o autor afirma que ela d corpo lembrana para que
esta substituao presente diante de seus olhos.
O que mais chama a ateno no texto de Calvino o fascnio que oato
de fotografar exerce. E a interseco existente entre a paixo
deAntonino por Bice e pela fotografia.
Antonino descobriu no mesmo dia que estava apaixonado porela.
Comearam a viver juntos, e ele comprou aparelhos maismodernos,
teleobjetivas, acessrios aperfeioados, instalou umlaboratrio. Tinha
at dispositivos para poder fotograf-la a noiteenquanto dormia. Bice
despertava debaixo do flash, contrariada;Antonino continuava a
tirar instantneos dela que se desenredavado sono, dela que se
irritava com ele, dela que tentava inutilmentevoltar a dormir
afundando o rosto no travesseiro, dela que sereconciliava, dela que
reconhecia como atos de amor essasviolncias fotogrficas. (CALVINO,
2013, p. 55).
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E, ao mesmo tempo que a paixo e a fotografia se confundem,
asolido aps Antonino ter sido abandonado por Bice e a
fotografiatambm sero intrnsecas;
(...) era em suma uma paixo difcil de suportar. Bice logo o
largou.Antonino caiu numa crise depressiva. Comeou a fazer um
dirio:fotogrfico, claro. Com a mquina pendurada no pescoo,afundado
numa poltrona, disparava compulsivamente com o olharno vazio.
Fotografava a ausncia de Bice. (CALVINO, 2013, p. 56).
Antonino ir defender-se ao longo do texto, afirmando que:
No se trata simplesmente de Bice respondia. uma questode mtodo.
Qualquer pessoa que voc resolva fotografar, ouqualquer coisa, voc
tem que continuar a fotograf-la sempre, sela, a todas as horas do
dia e da noite. A fotografia s tem sentidose esgotar todas as
imagens possveis. (CALVINO, 2013, p. 55).
Acreditamos que o texto de Calvino pode ser definido em
umapalavra: intensidade. a intensidade com que fotografa que leva
Antoninoa buscar equipamentos para montar um estdio em sua casa. a
intensidadedo sentimento por Bice que o levar a fotograf-la o tempo
todo. aintensidade da depresso por t-la perdido que levar a
fotografar suaausncia. Antonino um homem intenso, suas fotografias
so intensas, e ouso delas ir refletir este sentimento. Afinal, mais
do que quem posa, quem fotografa que ir transmitir sua mensagem e
este o uso da fotografiaem A aventura de um fotgrafo.
Julio Cortzar As babas do diabo (1959)
As babas do diaboO conto de Julio Cortzar, intitulado As babas
do diabo, foi
publicado em 1959, no livro intitulado As armas secretas. Nele,
temosa narrativa escrita por Roberto Michel, tradutor
franco-chileno e fotgrafoamador, a respeito de uma cena fotografada
em um passeio por Paris.
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Andando pelo Quai de Bourbon, Michel chega a uma pracinha, na
qualv um casal que chama a ateno pela diferena de idade: a mulher
muitomais velha que o menino, a ponto de o fotgrafo confundi-los
com me efilho. A partir da observao dessa cena inslita, o narrador
passa a umasrie de reflexes antes de realizar o clic fotogrfico. So
feitas infernciassobre a vida do menino, que tipo de filho ele
seria, o que estaria fazendoali. No passam de ilaes sobre o que se
est olhando, sem comprovaespossveis, embora o autor busque a
verdade atravs da fotografia. Diz oautor: Curioso que a cena (o
nada, quase: dois que esto a, desigualmentejovens) tivesse uma aura
inquietante. Pensei que era eu que colocava isso,e que minha foto,
se a fizesse, restituiria as coisas sua tola verdade(CORTZAR, 2010,
p. 76).
O conto foi escrito com uma narrativa multidiscursiva, na qual
halternncia tanto de tempo verbal (presente e passado) quanto de
vozes(primeira, segunda e terceira pessoa). H nisso uma hesitao do
narradorquanto melhor forma de conduzir a sua narrativa, visto que
o fato a sernarrado um caso intrigante. No meio da narrativa,
encontramos diversasobservaes sem relao com a narrativa a respeito
das nuvens que passamno cu, demonstrando o fluxo de pensamento do
narrador e sua dificuldadeem encontrar o melhor modo para nos
contar a sua histria.
Logo no incio do conto, o protagonista nos diz: Entre as
muitasmaneiras de se combater o nada, uma das melhores tirar
fotografias,atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo s
crianas, poisexige disciplina, educao esttica, bom olho e dedos
seguros(CORTZAR, 2010, p. 72). A prtica fotogrfica vista como uma
formaeducativa completa, no apenas do olhar, mas dos vrios
sentidos, comoa ateno e o senso esttico. Sair para tirar fotografia
seria uma forma deocupar o tempo de maneira til. O sair com uma
cmera em mos seriauma forma de atingir um olhar atento (e de achar,
talvez, o momentodecisivo bressoniano):
Michel sabia que o fotgrafo age sempre como uma permutaode sua
maneira pessoal de ver o mundo por outra que a cmara lheimpe,
insidiosa (agora passa uma grande nuvem quase negra),
discursos fotogrficos, Londrina, v.10, n.17, p.139-162,
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mas no desconfiava, sabedor de que bastava sair sem a Cntaxpara
recuperar o tom distrado, a viso sem enquadramento, a luzsem
diafragma nem 1/250 (CORTZAR, 2010, p. 72).
O trecho acima interessante por abrir outro debate, aquele
daverdade fotogrfica: a maneira pessoal de ver e aquela que a cmera
lheimpe. O olhar que a cmera proporciona, importante salientar, no
o mesmo do olhar humano. A permuta entre um e outro sempre
tensa.Como pode a fotografia trazer algum indcio de verdade, se ela
recorta,seleciona, fragmenta, descontextualiza a cena? H uma
dissonncia entrea cena real e a cena fotografada. Ainda assim, a
fotografia atua comoevocadora da memria que, de modo algum, se
apresenta de forma unvoca.
O momento do clic vem depois do processo de observao dacena, das
elucubraes sobre possveis desenvolvimentos; a mulher seaproximando
do menino, o menino conseguindo escapar. O momento datomada
fotogrfica um ato de reflexo, o momento em que os doisolhares (o
humano e o da foto) se encontram.
Por que esperar mais? Com um diafragma 16, com umenquadramento
onde no entrasse o horrvel automvel preto,mas sim essa rvore,
necessria para quebrar um espao demasiadocinzento...Levantei a
cmara, fingi estudar um enquadramento que no osinclua, e fiquei na
espreita, certo de que enfim os apanharia nogesto revelador, a
expresso que resume tudo, a vida que omovimento mede com um
compasso mas que uma imagem rgidadestri ao seccionar o tempo, se no
escolhemos a imperceptvelfrao essencial. (...) Pus tudo no visor
(com a rvore, o parapeito,o sol das onze) e tirei a foto. Bem a
tempo de compreender que osdois tinham percebido e estavam me
olhando, o garotosurpreendido e interrogante, mas ela irritada,
decididamente hostisseu corpo e seu rosto que haviam sido
roubados,ignominiosamente presos numa pequena imagem
qumica(CORTZAR, 2010, 77-79).
A fotografia que Michel tira uma fotografia instantnea no
posada,feita de modo furtivo, sem que os personagens fossem
consultados. Nomomento em que decide fazer a fotografia, ele j
tinha percebido o terceiro
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elemento presente na cena: havia um carro estacionado perto, e
dentrodele um homem que observava a mulher e o rapaz. O gesto
reveladorseria, talvez, o instante decisivo de Henri
Cartier-Bresson:
Ocorre s vezes de, insatisfeitos, ficarmos paralisados,
esperandoalgo acontecer, s vezes tudo desenlaa e no haver
nenhumafoto; mas digamos que algum venha a passar, ns acompanhamoso
seu trajeto no quadro do visor, esperamos, esperamos...disparamos e
vamos embora com o sentimento de ter alguma coisana bolsa
(CARTIER-BRESSON, 2004, p. 24).
Neste ponto, vale a pena fazer uma breve reflexo da relao entreo
ttulo do conto e a histria narrada. Em alguns lugares da Argentina,
osfios que as aranhas tecem e que acabam voando com o vento,
tambmso chamadas de babas do diabo. Podemos pensar que Michel, ao
ver-se envolvido naquela cena, ainda que no totalmente por ele
compreendida,acaba por ficar enredado no acontecimento, sem
conseguir sair dele pelavia da compreenso. Assim, a busca que o
fotgrafo faz pela verdade doque foi visto e fotografado, acaba por
ser uma metfora desses fios deteias de aranha, que se juntam e se
dispersam no ar.
O conto, a fotografia e a memria O que acontece depois do ato
fotogrfico consiste em uma srie
de rememoraes e anlises a partir da ampliao da fotografia, a fim
debuscar indcios que expliquem o que est acontecendo entre o homem
nocarro, a mulher e o menino. A narrativa segue:
De toda a srie, a instantnea na ponta da ilha era a nica que
ointeressava; pregou a ampliao numa parede do quarto, e noprimeiro
dia passou um bom tempo olhando e recordando, nessaoperao
comparativa e melanclica da recordao frente realidade perdida;
recordao petrificada, como toda fotografia,onde no faltava nada,
nem mesmo e principalmente o nada,verdadeiro fixador da cena. (...)
A primeira surpresa foi estpida;nunca me havia ocorrido a ideia de
pensar que quando olhamos
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uma foto de frente, os olhos repetem exatamente a mesma posioe a
viso da objetiva; so essas coisas que se do por descartadase que no
ocorre a ningum considerar (CORTZAR, 2010, p.81).
Michel amplia a fotografia sucessivas vezes, para poder
entendermelhor a cena, ver todos os detalhes. Ao olhar a fotografia
ampliada presaem sua parte, ele comea um processo de rememorao da
cena, aoperao comparativa e melanclica da recordao frente
realidadeperdida, em busca de explicaes. nesse momento que o
narrador sed conta de como funciona o ato de olhar fotografias: h
uma tendnciaem repetir o ngulo proporcionado pela cmera. Mas e se
olharmos demodo diferente?
ao deparar com essa nova possibilidade do olhar que Michel
v,enfim, o gesto revelador, aquele que explicaria toda a cena:
(...) e vi amo da mulher que comeava a se fechar devagar, dedo a
dedo(CORTZAR, 2010, p. 83). A cena torna-se, ento, reveladora de
umatenso entre os trs personagens, tenso que Michel identifica, mas
noconsegue explicar somente a partir da fotografia. O fato de a
mulher terpedido o rolo de negativo, para ele, fez surgir a
centelha de dvida sobreo que acontecia naquele momento, entre a
mulher e o menino. O narradoropera, ento, com a convico de que algo
que tinha acontecido foifotografado por ele. Segundo Andr Rouill
(2009, p. 62) o documentoprecisa menos de semelhana, ou de exatido,
do que de convico.
Michel passa, ento, a tentar entender o que teria sido feito a
partirde sua fotografia, que bem teria advindo do ato de fotografar
a cena,interrompendo-a. Ele nos diz: O importante, o
verdadeiramente importanteera haver ajudado o garoto a escapar a
tempo (isto, no caso de minhasteorias serem exatas, o que no estava
suficientemente provado, mas afuga em si parecia demonstrar). (...)
No fundo, aquela foto havia sido umaboa ao (CORTZAR, 2010, p. 82).
Mais uma vez, Henri Cartier-Bresson nos ilumina com suas reflexes
pertinentes ao nosso debate: Amquina fotogrfica no um instrumento
apto a responder o porqu dascoisas, ela antes feita para evoc-lo, e
na melhor das hipteses, a seuprprio modo, intuitivo, ela pergunta e
responde ao mesmo tempo
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(CARTIER-BRESSON, 2004, p. 55). Assim, a fotografia, por si s,
no explicativa, ela necessita de contextos externos a ela para
fazer algumsentido, pelo menos o sentido real da cena fotografada.
Ela evoca oacontecimento, mas no permite, ao observador, colocar-se
totalmentena cena.
Em decorrncia, restam dvidas quanto ao papel do fotgrafo navida
daquelas pessoas, e o papel delas na vida do fotgrafo:
Minha fora tinha sido uma fotografia, essa, ali, onde se
vingavamde mim mostrando-me sem disfarces o que ia acontecer. (...)
Derepente a ordem se invertia, eles estavam vivos,
movendo-se,decidiam e eram decididos, iam rumo a seu futuro; e eu
do lado dec, prisioneiro de outro tempo, de um quarto em um quinto
andar,de no saber quem eram essa mulher, e esse homem e esse
menino,de ser nada mais que a lente da minha cmara, algo rgido,
incapazde interveno (CORTZAR, 2010, p. 84).
No fim das contas, o fotgrafo segue sendo aquele que v, mas
nosabe muito bem o qu, mas que acaba por afetar a vida daqueles que
sopor ele fotografados. Ele se v prisioneiro de outro tempo, aquele
queest em um tempo estagnado, que uma cmera incapaz de intervir
nacena a ser fotografada, mas que, no entanto, a afeta de outros
modos.Tantos so os fotgrafos que, a partir de suas imagens, acabam
pormodificar situaes sociais ou pessoais que, apesar de Michel
sentir-sergido, tal qual a lente da cmera, ele um sujeito atuante
na cena queobservou e fotografou.
O conto, a fotografia, a memria e a verso cinematogrfica BlowUp,
Depois daquele beijo
H, ainda, uma relao importante a ser feita entre o conto
deCortzar e o filme Blow Up Depois daquele beijo (1966),
deMichelangelo Antonioni. O conto serviu de inspirao para o roteiro
dofilme, ainda que com enredos diferentes. No filme, Thomas, um
fotgrafode moda londrino, acaba fotografando inadvertidamente uma
cena de crimeem um parque. A cena de um casal no parque,
aparentemente banal, revela-
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se instigante no momento em que a moa fotografada (interpretada
porVanessa Redgrave) segue o fotgrafo at seu estdio, exigindo a
devoluodo filme. Recebe em troca um filme virgem, e faz com que o
fotgrafopasse a se interessar pelo contedo da fotografia. assim, a
partir desucessivas ampliaes, que Thomas acaba por descobrir o
corpo que jazentre os arbustos no parque, e uma mo que aponta uma
arma na direodo corpo.
A grande granulao resultante das sucessivas ampliaes no
deixaclaro que ali esteja, mesmo, um corpo assassinado e seu
assassino, mas aideia de que testemunhou um crime acaba por obcecar
Thomas. O quetemos so indcios, mas nada concreto. De acordo com
Joan Fontcuberta(1997, p. 66), Blow up maniobra con un concepto
tradicional dedocumento que implica la relacin temporal con el
pasado (...). Tal conceitotradicional o de prova testemunhal, de
veracidade, que a fotografiaprovoca no observador. O autor
continua: el mensaje de MichelangeloAntonioni en Blow up, ms all de
decirnos que las formas familiares delencubren otra realidad, se
reduce a que todo la certeza fotogrfica incluida es pura ilusin
(...) (FONTCUBERTA, 1997, p. 67).
Adolfo Bioy Casares A inveno deMorel (1963)
A inveno de MorelO ltimo conto a ser analisado a A inveno de
Morel, de Adolfo
Bioy Casares (1914-1999). Nele temos a histria de um
venezuelanoque, seguindo o conselho de um amigo, se esconde em uma
ilha deserta.Ao chegar ilha se depara com algumas construes, uma
que chamamuseu, com dormitrios como um grande hotel uma capela e
umapiscina, tal como seu amigo havia descrito. Com o passar dos
dias, ovenezuelano passa a conhecer e a explorar a ilha, at que, em
um dia aopr do sol, percebe uma msica e outras pessoas na ilha,
entre as quaisuma mulher chamada Faustine, pela qual acaba se
apaixonando. Com
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medo de quem sejam essas pessoas, inicialmente as observa
escondido,receoso de que o estejam procurando, para entreg-lo
polcia.
Em seu dirio, no entanto, o homem sem nome relata os momentosem
que essas pessoas aparecem, e as coisas totalmente estranhas
quefazem: nadar na piscina com cobras e sapos, danar no meio da
tempestadeetc. Vo-se passando os dias e ele percebe que quando as
pessoasaparecem, algumas coisas no se mexem, parecem ser feitas de
ferro:
Com extrema languidez, laboriosamente, desci do jarro
dealabastro. Esperando que meus nervos se acalmassem um
pouco,ocultei-me atrs das cortinas. Estava to fraco, que no
podiamov-las; pareciam-me rgidas e pesadas como as cortinas depedra
que h em alguns tmulos. Imaginei, dolorosamente,sofisticados pes e
outros manjares prprios da civilizao: nacopa, por certo, os
encontraria. (CASARES, 1986, p. 60).
Prestando ateno nos movimentos de Faustine, e observando
osvisitantes da ilha, ele comea a escutar as conversas e os
movimentosdessas pessoas, atrado pelo fato de que nunca notado, e
que essaspessoas no demonstram nem sequer ter visto ou ouvido
qualquermovimento dele. O homem ento cria vrias hipteses para o
fato de noser observado: pensa que a doena e desnutrio o fizeram
invisvel; queas pessoas so de outro planeta; que so fantasmas ou so
fruto de suaimaginao. Ele descreve o momento em que estranhou o
fato de serignorado, como se fosse invisvel: esta mulher algo mais
do que umafalsa cigana. Espanta-me a sua coragem. Nada nela
demonstrou que metivesse visto. Nem um pestanejar, nem sequer um
leve sobressalto.(CASARES, 1986, p. 32). A narrativa comea a mudar
quando o foragidoescuta uma conversa de Morel com seus convidados,
na qual Morel contapara eles sobre a sua inveno, sobre a sua
vontade de permanecer naeternidade. Nas palavras de Morel,
O meu abuso consiste em t-los fotografado sem autorizao. claro
que no se trata de uma fotografia como as outras; a minhaltima
inveno. Viveremos para sempre nessas fotografias.
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Imaginem um cenrio era que se representasse completamente anossa
vida nestes sete dias. Ns representamos. Todos os nossosatos
ficaram registrados. [...] Ento, dei-lhes uma
eternidadeagradvel.(CASARES, 1986, p. 78 grifo nosso).
A partir dessa fala de Morel, podemos fazer a primeira
anliserelacionando o conto de Casares com a fotografia. As frases
destacadasmostram a relao da inveno de Morel com a fotografia, e o
desejo queele tinha de deixar, na eternidade, os momentos agradveis
que passoucom os seus amigos na ilha. A prpria narrativa do livro,
com a clarezados detalhes do espao e da histria podem ser
comparados com osdetalhes de uma fotografia. A mquina de Morel
teria, ento, o poder deguardar, para a eternidade, uma realidade
que deixa de ser real para sersomente visual, pois as pessoas que
so filmadas ou fotografadas pela suamquina acabam morrendo e
existindo apenas na projeo da mquina.A inteno de Morel de congelar
momentos felizes vividos com seus amigos,e de torn-los eternos e
nicos, est ligada concepo da funo dafotografia que muitas pessoas
possuem: ela seria o que queremos congelarem uma imagem, para que o
momento permanea entre ns, de certamaneira, eternizado, como se
estivesse sempre sendo revivido.
A fotografia auxilia na preservao dos momentos vividos,
servindocomo suporte de memria e como evocadora de tais momentos.
Quandoolhamos fotografias pessoais, tiradas h algum tempo,
lembramos dosmomentos, das pessoas, das coisas ditas e no ditas, do
lugar, dos sons edos cheiros. Quando fotografamos paisagens,
lugares que visitamos econhecemos, e outras curiosidades do
dia-a-dia, buscamos deixarregistrado na fotografia o congelamento
da imagem e do momento, paraque no se perca, para que no se
esquea.
Alm disso, a fotografia serve tambm como prova, como acomprovao
de que aquilo realmente aconteceu, e que ns estvamospresentes.
Nesse sentido, vale recordar Dubois (2003) a respeito dostrs
diferentes estatutos pelos quais a fotografia passou desde
seusurgimento. O primeiro deles, que se refere fotografia como
espelhodo real, aquele que preconiza que a semelhana entre o
referente e a
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imagem fotogrfica o que garante seu efeito de realidade. Ela
seria,nesse sentido, a imitao mais perfeita da realidade (DUBOIS,
2003,p. 27). Tal capacidade mimtica seria devido ao procedimento
mecnicoque gera a imagem fotogrfica, no permitindo a interferncia
no resultadofinal.
Os outros dois estatutos da fotografia em relao ao seu
referenteso o da fotografia como transformao do real (relativo
interpretaodo real produzida pela imagem) e o da fotografia como
trao de umreal (relativo ao discurso do ndice e da referncia). Nos
dois casos, afotografia vista com relatividade em relao sua ligao
com o real,no servindo ento como prova de algo, mas sim como indcio
de presena,como sugesto de acontecimento.
No caso especfico do conto A inveno de Morel, o produtofinal no
a fotografia em si, mas o que poderamos chamar de umvdeo
hologrfico, ou uma fotografia mvel, em que, ao serem projetadas,as
imagens gravadas parecem reais e, mais ainda, parecem interagir
como mundo real. A obsesso de Morel de ficar para a eternidade, de
tornarpara sempre presentes sua amada, seu corpo, cheiro, gestos,
voz etc.,faz com que ele crie a mquina que supera a fotografia, a
televiso e ordio; uma mquina que junta todas as tecnologias em um
nicodispositivo.
Quando o venezuelano descobre que a sua amada Faustine e
asdemais pessoas que visitam a ilha so somente projees, e mais, que
asnicas pessoas com quem convivia e interagia eram projees
depessoas j mortas, acaba abrindo mo da sua vida real e humana,
paraviver somente no mundo irreal da projeo, com a sua amada.
Acreditamosque um dos aspectos mais interessantes do conto de
Casares tratartanto da relao entre o criador e o seu produto Morel
e a mquina que podem ser comparados com fotgrafo e mquina
fotogrfica; comomostrar as peculiaridades e a complexidade dessa
relao, dando espaopara reflexes acerca da vontade de registrar e do
excesso de registroque faz com que quase se deseje parar de viver
no mundo real para viverem um mundo de imagens.
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No entanto, o visitante, ao descobrir como funciona a mquina
equais as consequncias de ser gravado por ela (a morte), assume
asresponsabilidades e os riscos, e prefere estar junto daquelas
pessoasmesmo que na realidade ele no esteja. Para isso, ele estuda
e ensaia osmovimentos de toda a projeo, identificando a melhor
maneira de seencaixar cena. A complexidade da situao est justamente
em que elenunca interage realmente com o grupo de amigos, apenas
com as gravaes,no se sentindo mais vontade no mundo real, pois est
sozinho, rodeadode projees, ansiando fazer parte delas. Por outro
lado, ele sai do mundoreal sozinho, para entrar no mundo da imagem
tambm sozinho, pois elesomente tem a iluso de que interage e vive
com sua amada, que narealidade nunca o conheceu. Joan Fontcuberta
afirma que tanto elprincipio basico de la memoria como el de la
fotografa es que las cosashan de morir en orden para vivir para
siempre (FONTCUBERTA, 1997,p. 70). A mquina de Morel tambm trabalha
com a questo da morte eda memria que se projeta para sempre atravs
das imagens gravadas.
Conforme dito anteriormente, vivemos em um mundo de excessode
imagens, de informaes e de facilidade ao acesso s imagens e a
suareproduo, diante da popularizao das mquinas fotogrficas e de
suadisponibilizao nos aparelhos celulares. As redes sociais
valorizam eincentivam a produo de fotografias, que registram e
contam o quepensamos e fazemos por meio de imagens. Ser que, em
alguns casos, oexcesso de imagens faz com que nos desliguemos do
mundo real, epassemos a viver no mundo digital?
Outro aspecto importante que merece um pouco mais de reflexo o
fato de que a fotografia sempre produto da viso do fotgrafo:
eleescolhe o que vai fotografar, o que ficar focalizado e assim por
diante.Ele escolhe como vai contar uma histria atravs da foto. A
fotografiafaz parte de uma narrativa, como acontece no conto de
Morel, que escolheuos momentos que iam ser filmados e registrados
para a eternidade. Osseus amigos no foram consultados antes, a
programao de quando ecomo seriam fotofilmados foram escolhas de
Morel, da mesma formacomo um fotgrafo que escolhe o momento do
clic.
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O filme L invenzione di MorelO livro de Casares deu origem ao
filme italiano, dirigido por Emilio
Greco, Linvenzione di Morel, de 1974 que registra com fidelidade
oclima do livro, a riqueza dos seus detalhes, a complexidade da
relaoentre o homem que se esconde na ilha e seus demais habitantes.
Nacena em que Morel conta a seus amigos que todos os momentos
queviveram na Ilha foram e continuam sendo registrados, as falas do
inventordo a dimenso da sua construo e de seus objetivos ao
construir amquina: Viveremos na fotografia para sempre, Manter uma
contnuaalegria, A vontade de gravar e reproduzir a vida, e A
imortalidade,que lhes dei, era o nico modo de perpetuar estes dias
de despreocupadaalegria. Estas falas de Morel no filme so
ilustrativas do desejo de ficarpara a eternidade, de fazer com que
seja eterna a alegria dos momentosda ilha, mesmo que, para isso,
fosse necessrio morrer, ideia que se fazpresente tambm no livro.
Alm do personagem de Morel no filme, osltimos momentos do
venezuelano na ilha tambm mostram a vontade defazer parte da gravao
e da vida de Faustine, na eterna semanarepetitiva. Para ele: agora
estarei ao teu lado na eternidade, nesta semanarotatria, quem sabe
no entro no cu de tua conscincia?.
Consideraes finaisA fascinao que a fotografia exerce desde o seu
surgimento opera
de dois modos distintos: naquele que cria (o fotgrafo responsvel
peloclic) e naquele que observa a imagem. Nos contos de Cortzar e
deCalvino h uma convergncia entre o criador e o observador. No
contode Bioy Casares, a ideia de que a imagem projetada, a
superfotografia,seria capaz de perenizar as vidas, ainda que ao
custo da morte daquelesregistrados, remete relao entre a fotografia
e a morte, visto que ascenas fotografadas j esto no passado. Como
escreveu Fontcuberta, nafotografia, as coisas precisam morrer para
viver para sempre.
A eternizao da vida a partir da memria, especialmente da
memriade momentos felizes, prtica comum na nossa sociedade,
evidenciando-
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se nos hoje obsoletos lbuns de fotografias. A reunio de
fotografias emlbuns (ou caixas, e hoje na efmera memria do
computador) umadas formas mais comuns de manuteno da memria
familiar, deconstruo de identidade do sujeito a partir de seu
conhecimento sobreo passado.
Talvez a questo mais premente que os contos aqui
analisadostrouxeram a respeito da fotografia como evidncia de algo
que aconteceuno passado e foi eternizado pela lente operada pelo
fotgrafo residejustamente na incerteza subjacente imagem
fotogrfica. A propsito destetema, Rosengarten (2012), entendendo
que a fotografia opera na mesmalgica do arquivo, afirma o seguinte:
o facto de um arquivo conter vestgiosdo passado marcas indexicais
de algo que aconteceu corrobora aocorrncia de determinados
acontecimentos histricos, mas nada diz quantoao modo como esses
acontecimentos so recordados(ROSENGARTEN, 2012, p. 18). A autora
segue em suas colocaes: mobilizada pela sua riqueza mnemnica, mas
tambm encarada comdesconfiana porquanto testemunho impreciso,
devolvendo, na melhordas hipteses, um registro fragmentrio do que
de fato aconteceu(ROSENGARTEN, 2012, p. 48).
Parece oportuno encerrar este artigo propondo o debate a
respeitoda funo da fotografia enquanto receptculo da memria, uma
vez queela um veculo potente na reflexo sobre o passado. No
entanto, estesespoletadores mnemnicos que so as fotografias, alm de
forneceremtestemunhos de presena, nada dizem de concreto em relao
ao objeto,e por isso que, atualmente, a autoridade documental da
fotografia vemsendo questionada. No caso de lbuns familiares (ou de
fotografias deamigos, como o caso de Antonino), a fotografia serve
como evocadorada memria familiar e como comprovao das vivncias
coletivas, a partirda narrativa dos membros da famlia sobre a cena
fotografada. No casode Michel, do conto de Cortzar, no possvel
comprovar a partir dafotografia que algo de fato aconteceu entre a
mulher e o menino, masserve para que, a partir da observao, o
fotgrafo relembre aspectosesquecidos da cena observada.
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