CADERNO IEP/MPRJ, n. 2, out. 2018. A NOVA CONCEPÇÃO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO SUJEITO DE DIREITOS: DEPOIMENTO ESPECIAL EM PROCESSOS JUDICIAIS NO TJ/RJ Valéria Corrêa Tricano 1 RESUMO: Este artigo versa sobre a implantação e o funcionamento do Núcleo de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes – NUDECA, projeto instituído em 2012 pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para garantir a efetividade dos direitos e da proteção de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas em processos judiciais, conforme estabelece o ordenamento jurídico brasileiro. Ao longo do desenvolvimento do tema, a autora acende reflexões sobre as transformações no paradigma de infância ao longo da história e sua influência no Direito. São apresentados os documentos internacionais que marcaram a história do reconhecimento e da ampliação dos direitos da criança e do adolescente e os avanços da legislação brasileira nesse sentido. Há ainda uma análise do papel da Constituição Federal de 1988 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90) – nesse processo de garantia de direitos do público infanto-juvenil. Essas transformações sociais e jurídicas nos remetem ao Depoimento Especial, um modelo de escuta judicial diferenciada para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. A pesquisa foi desenvolvida com base no método indutivo, realizando um estudo exploratório, descritivo e explicativo do tema, priorizando a abordagem qualitativa, por meio de pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Palavras chave: Criança. Adolescente. Depoimento Especial. NUDECA. ABSTRACT: This article talks about NUDECA (Child and Adolescents Special Center) based on testimonies. NUDECA is a project founded in 2012 by Court of Law of Rio de Janeiro in order to ensure the effectiviness of the Protective rights of Child and Adolescents, victims or eye-witnesses in law suits under the Brazilian Legal Order's determinations. Throughout the topic's development the author proposes reflections about transformations in the paradigma of Infancy through its history and influence to the Law environment. Presenting the international documents which set not only the history of recognition and the expansion of the rights of Child and Adolescents, but also the advances of Brazilian legislation about this topic. There is still an analysis of the role of 1988 Federal Constitution, the Child and Adolescent Statute and ECA (law 8069/90) in this process focusing on gensuring the rights of the Youth public. These social and legal transformations remit us to Special Testimony, a model of judicial wire differentiated to children and adolescents (victims or eye-witnesses of violence). This research was developed based on an inductive method, making an exploratory, descriptive and clarified study about the topic and prioritizing the qualitative approach by bibliographic, documental and field research. Keywords: Child. Adolescents. Special Testimony. NUDECA. 1 Comissária de Justiça da Infância, da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
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CADERNO IEP/MPRJ, n. 2, out. 2018.
A NOVA CONCEPÇÃO DE CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO SUJEITO DE
DIREITOS: DEPOIMENTO ESPECIAL EM PROCESSOS JUDICIAIS NO TJ/RJ
Valéria Corrêa Tricano
1
RESUMO: Este artigo versa sobre a implantação e o funcionamento do Núcleo de
Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes – NUDECA, projeto instituído em 2012
pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para garantir a efetividade dos direitos e
da proteção de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas em processos judiciais,
conforme estabelece o ordenamento jurídico brasileiro. Ao longo do desenvolvimento do
tema, a autora acende reflexões sobre as transformações no paradigma de infância ao longo da
história e sua influência no Direito. São apresentados os documentos internacionais que
marcaram a história do reconhecimento e da ampliação dos direitos da criança e do
adolescente e os avanços da legislação brasileira nesse sentido. Há ainda uma análise do papel
da Constituição Federal de 1988 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90) – nesse processo de garantia de direitos do público infanto-juvenil. Essas
transformações sociais e jurídicas nos remetem ao Depoimento Especial, um modelo de
escuta judicial diferenciada para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
A pesquisa foi desenvolvida com base no método indutivo, realizando um estudo
exploratório, descritivo e explicativo do tema, priorizando a abordagem qualitativa, por meio
ABSTRACT: This article talks about NUDECA (Child and Adolescents Special Center)
based on testimonies. NUDECA is a project founded in 2012 by Court of Law of Rio de
Janeiro in order to ensure the effectiviness of the Protective rights of Child and Adolescents,
victims or eye-witnesses in law suits under the Brazilian Legal Order's determinations.
Throughout the topic's development the author proposes reflections about transformations in
the paradigma of Infancy through its history and influence to the Law
environment. Presenting the international documents which set not only the history of
recognition and the expansion of the rights of Child and Adolescents, but also the advances of
Brazilian legislation about this topic. There is still an analysis of the role of 1988 Federal
Constitution, the Child and Adolescent Statute and ECA (law 8069/90) in this process focusing on gensuring the rights of the Youth public. These social and legal transformations
remit us to Special Testimony, a model of judicial wire differentiated to children and
adolescents (victims or eye-witnesses of violence). This research was developed based on an
inductive method, making an exploratory, descriptive and clarified study about the topic and
prioritizing the qualitative approach by bibliographic, documental and field research.
Keywords: Child. Adolescents. Special Testimony. NUDECA. 1 Comissária de Justiça da Infância, da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
CADERNO IEP/MPRJ, n. 2, out. 2018.
Sumário: 1 Introdução. 2 Concepções de infância da antiguidade à atualidade. 3 Aspectos normativos do direito da criança e do adolescente. 4 O depoimento especial e a escuta de
crianças vítimas de crimes sexuais no Poder Judiciário. 5 O Núcleo de Depoimento Especial
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 6 Considerações finais. Referências
bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro implantou, em 2012, o Núcleo de
Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes - NUDECA, com o intuito de fazer uma
escuta diferenciada de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Uma das
questões que impulsionaram a elaboração deste trabalho é o fato de que a temática ainda não
foi largamente enfrentada.
O objetivo desse trabalho é analisar as circunstâncias que levaram à implantação do
depoimento especial, e conhecer a estrutura e o funcionamento do projeto no Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro. Para tal, é necessário compreender a evolução histórica da
concepção de infância ao longo do tempo, bem como as mudanças no ordenamento jurídico
com o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito.
Inicialmente, o artigo aborda o conceito de criança e adolescente, analisando o
processo histórico da construção da concepção moderna de infância. Posteriormente, analisa
os aspectos históricos e normativos do Direito da Criança e do Adolescente, chegando ao
papel desempenhado pelo Poder Judiciário no Sistema de Garantias e Direitos que visa
assegurar a efetivação dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Por
fim, considera a implantação do Depoimento Especial pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro através dos Atos Executivos n° 4297/12 e 4298/12, instituindo o Núcleo de
Depoimento da Criança e do Adolescente – NUDECA, analisando sua estrutura e
funcionamento.
A pesquisa foi desenvolvida com base no método indutivo. O estudo realizado é
exploratório, descritivo e explicativo, na medida em que proporciona maior familiaridade com
o depoimento especial, descrevendo suas características e analisando os fatores que levaram à
adoção de tal prática pelo Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. A abordagem do
tema é qualitativa e desenvolvida com base em pesquisa bibliográfica e documental, além de
algumas considerações fundadas na observação realizada pela autora, tendo em vista
desempenhar a função de entrevistadora no NUDECA.
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2 CONCEPÇÕES DE INFÂNCIA DA ANTIGUIDADE À ATUALIDADE
Nas últimas décadas configurou-se um discurso no sentido de assegurar os direitos
fundamentais relacionados às crianças e adolescentes, impulsionando uma série de
implicações para sociedade contemporânea, mas esta concepção moderna de infância foi
sendo historicamente construída ao longo dos anos. Discorrendo sobre o tema, Andréa
Rodrigues Amin assevera que durante muito tempo “os filhos não eram sujeitos de direitos,
mas sim objeto de relações jurídicas sobre os quais o pai exercia direito de proprietário”2,
sendo conferido a este último o poder absoluto sobre sua prole.
A publicação do livro de Phillipe Ariés, intitulado “A História Social da Criança e da
Família”, na França em 1960 e nos Estados Unidos em 1962, marcou o início do processo de
construção da concepção de infância. A referida obra foi traduzida para a língua portuguesa e
nos permite entender melhor o processo de reconhecimento da infância. Segundo o autor, na
sociedade medieval não havia “sentimento de infância”3, ou seja, não eram consideradas as
peculiaridades da criança em relação aos adultos, e assim que o infante tinha condições de
viver sem depender fisicamente de sua mãe, se afastava da família e era incorporado ao
mundo dos adultos, partilhando seus trabalhos, festas e jogos. Ariés enfatiza ainda que tal
comportamento não significava negligência, abandono ou desprezo por parte dos adultos em
relação aos infantes.
Assim sendo, a transmissão de valores e de conhecimentos se dava a partir dessa
convivência da criança com os adultos. Tal cenário sofre uma mudança considerável a partir
do século XVII, ocasião em que a tarefa de educar foi atribuída à escola e a criança deixou de
ser misturada com os adultos, passando então, a adquirir conhecimento naquela instituição4.
Mary Del Priore, em seus estudos sobre a infância no Brasil, sustenta que o processo
de construção da concepção de infância e adolescência ocorreu de forma diferenciada na
Europa e no Brasil, em consequência de fatores sociais, culturais e econômicos, destacando
que diferente da Europa, no Brasil, a implantação do sistema de escolarização e da
industrialização foi tardio, impedindo a adaptação dos indivíduos a este cenário. Quanto à
escolarização, ela afirma que, desde a colonização até metade do século XVIII, as escolas
eram privilégio para poucas crianças. No século XIX, as crianças oriundas de famílias pobres
2 AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade.
(Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 3 ARIÉS, Philipe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos
Editora S. A., 1981. p. 156. 4 Ibid, p. 10-11.
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eram preparadas para o trabalho, essa atividade tinha prioridade em prejuízo da formação
escolar5.
Discorrendo ainda sobre a situação da população infantil na sociedade escravista no
Brasil, a autora sustenta que as crianças eram inseridas no trabalho infantil cedo, por volta dos
quatro anos de idade, e poucas sobreviviam até os dez anos. Além disso era comum a
separação dolorosa de pais e filhos. Mas, com base nos relatos de viajantes estrangeiros, ela
conclui que a realidade do Brasil colonial não impedia que o afeto dos pais para com seus
filhos permeasse as relações parentais. Segundo Mary Del Priore, a exploração da mão de
obra infantil nas fazendas continuou mesmo após a abolição da escravidão, enquanto nos
centros urbanos ocorreu a proliferação de cortiços e favelas (séc. XIX e XX). Esses fatores
também colocavam as crianças em situações de risco. Este cenário levou a sociedade a refletir
sobre sua relação de responsabilidade para com a população infanto-juvenil, originando uma
nova consciência sobre a infância6.
Em nosso tempo, as gerações vivem divididas em espaços exclusivos, sendo
facilmente perceptível a separação da existência do homem em faixas etárias expressas
através do desempenho de papéis sociais: crianças, adolescentes, adultos jovens e adultos
velhos. Benedito Rodrigues dos Santos reconheceu que as crianças possuem um mundo
distinto do mundo dos adultos, com instituições, bens e serviços voltados para elas nas
diversas áreas e que tal mudança se deu a partir de um modo diferente de se estruturar e de dar
significação às passagens da vida7. Ele observa que, enquanto nas sociedades medievais a
infância era vista como uma etapa natural de progressão que levava a criança a se tornar
adulto, atualmente, a infância e a adolescência são encaradas como fases de formação e
preparação para fase adulta, sendo a infância vinculada ao tempo de estudar, enquanto a
adolescência é o período de transição da infância para a fase adulta. Nesta fase, o ser humano
não é mais criança, no entanto, ainda não se transformou em adulto.
Passamos a analisar como essas transformações no paradigma de infância influenciou
o ordenamento jurídico.
5 PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2016. p. 10.
6 Ibid, p. 11-14.
7 SANTOS, Benedito Rodrigues dos. Por uma escuta da criança e do adolescente social e culturalmente
contextualizada: concepções de infância e de adolescência, universalidade de direitos e respeito às diversidades.
In: SANTOS, Benedito. Rodrigues dos et al. (Orgs.). Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência
sexual: aspectos teóricos e metodológicos: guia para capacitação em Depoimento Especial de crianças e
adolescentes. Brasília: Editora da Universidade Católica de Brasília, 2014.
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3 ASPECTOS NORMATIVOS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A violação dos direitos de crianças e adolescentes ficou evidenciada ao longo da
história da humanidade. Foi somente no final do século XIX que o tema passou a ser alvo de
especial atenção. Embora a mudança no paradigma de infância tenha ocorrido de forma
mundial, a dinâmica da consolidação das normas de garantia dos direitos da criança e do
adolescente em cada país está diretamente ligada a aspectos econômicos e culturais.
Discorrendo sobre a necessidade de atenção aos direitos da criança e do adolescente,
Luciano Alves Rossato relata um caso emblemático ocorrido nos Estados Unidos em 1874,
que deu origem à Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York e
ficou conhecido como o caso Mary Ellen. Uma assistente social, Etta Wheeler, teve
conhecimento de que uma menina de nove anos de idade chamada Mary Ellen era vítima de
maus tratos infrafamiliares. Comovida pela situação em que a criança se encontrava, a
assistente social buscou ajudá-la. O caso chegou até a Suprema Corte. Por falta de uma
legislação que garantisse os direitos da criança e do adolescente, foi invocada a condição da
criança como parte do reino animal e se utilizou a previsão legal que protegia os animais
conforme defendido pela Sociedade de Prevenção à Crueldade aos Animais de Nova York8.
Conforme fartamente abordado na literatura, o século XIX e o início do século XX
foram marcados pela Revolução Industrial, que mudou o desenho da economia mundial, e por
duas Guerras Mundiais. Esses eventos tiveram resultados danosos que atingiram diretamente
a população infantojuvenil. As indústrias, por exemplo, não se furtavam a utilizar a mão de
obra infantil em terríveis condições de trabalho, além disso, as duas grandes Guerras
Mundiais levaram ao abandono de muitas crianças em razão da morte de seus pais.
Segundo Rossato, diante das circunstâncias apresentadas à época, documentos
internacionais foram criados e aprovados com o intuito de garantir os direitos de todos os
seres humanos, sem, no entanto, deixar de mencionar em seus artigos o direito das crianças9.
Entre estes documentos podemos citar: Convenções da OIT (1919); Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948); Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966); e Convenções Europeia, Americana e Africana de Direitos Humanos. Ainda
segundo o autor, diante do contexto apresentado, a comunidade internacional reconheceu que
as crianças necessitam de atenção especial que as defenda dos danos causados por situações
de risco e, consequentemente, passou a adotar documentos voltados para a proteção da
8 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do
adolescente: Lei n. 8.069/90 comentado artigo por artigo. 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2016. 9 Ibid, p. 41-49.
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infância, reconhecendo sua vulnerabilidade e declarando-a detentora de direitos como pessoa
em desenvolvimento.
Outros documentos internacionais foram criados para tutelar os direitos de crianças e
adolescentes, e marcaram a história do reconhecimento e da ampliação desses direitos. Estes
documentos foram relacionados por Andréa Rodrigues Amin, entre os quais destacamos a
Declaração dos Direitos da Criança de Genebra (1924), a Declaração dos Direitos da Criança
(1959), as Regras Mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça da Infância e
Juventude – Regras de Beijing ou Regras de Pequim (1985) e a Convenção dos Direitos da
Criança (1989)10
.
No Brasil, nos anos posteriores à sua Independência, a legislação do país já sinalizava
uma preocupação com a população infantojuvenil. Tal preocupação era limitada aos casos de
crianças órfãs e enjeitadas, com medidas de caráter essencialmente assistencialista. Na
segunda metade do século XIX, a legislação demonstra a preocupação do Imperador D. Pedro
II com a formação educacional das crianças, como, por exemplo, nos Decretos N. 630, de 17
de setembro de 1851 e N. 1331-A, de 17 de fevereiro de 185411
.
Descrevendo o cenário brasileiro durante os séculos XIX e XX, Irene Rizzini relata,
que houve um aumento da população do Rio de Janeiro e São Paulo causado, principalmente,
pelo fim da escravidão. Grande parte da população vivia em condições de pobreza e a
quantidade de crianças e adolescentes abandonados ou delinquentes cresceu, trazendo
preocupação para a sociedade como um todo. A população infantojuvenil passou a ser
considerada como uma categoria jurídica dos menores de idade, e alvo da intervenção
formadora e reformadora do Estado e outros setores da sociedade, como as instituições
filantrópicas e religiosas. Segundo a autora, o enlace das iniciativas educacionais com os
objetivos de assistência e controle social, representou um perigo para aquela população
infantojuvenil, pois nesse tipo de educação, o indivíduo vive em reclusão “na sua modalidade
mais perversa e autoritária”, na qual “o indivíduo é gerido no tempo e no espaço pelas normas
institucionais, sob relações de poder totalmente desiguais”12
.
Nessa perspectiva, em 1926, surgiu o primeiro Código de Menores do Brasil (Decreto
n°5.083), que cuidava dos infantes expostos e menores abandonados. Em 1927 essa norma foi
ampliada e ficou conhecida como Código Mello Mattos (Decreto n° 17.943-A). Referindo-se
10
AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade.
(Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 11
RIZZINI, Irene. A criança e a Lei no Brasil: revisitando a história (1822-2000). 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Universitária Santa Úrsula, 2002. 12
RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A Institucionalização de Crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do
presente. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2004.
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a este código, Irene Rizzini nos diz que, embora seu texto se diferenciasse das normas
existentes por ser mais extenso, seu conteúdo era essencialmente o mesmo, acrescentando que
“O que o impulsionava era “resolver” o problema dos menores, prevendo todos os possíveis
detalhes e exercendo todos os possíveis controles sobre os menores (...)”.13
Em 1979 foi promulgado um novo Código de Menores14
, que, segundo a doutrina em
geral, era direcionado aos menores (art. 1°) em situação irregular (art. 2°), condição
relacionada ao estado de abandono ou delinquência. A segregação parecia a melhor solução e
o recolhimento de crianças às instituições de reclusão foi o principal instrumento de
assistência à infância no país. Dessa forma, a legislação brasileira consolidou a Doutrina da
Situação Irregular e centralizou as decisões na figura do juiz da infância.
Em perfeita sintonia com as normas internacionais que estabeleciam um novo
paradigma da infância e ampliavam os direitos de crianças e adolescentes, o Brasil promulga,
em 1988, a sua Constituição Federal, que representa um marco na história do direito e da
justiça no país, priorizando a dignidade da pessoa humana e conferindo à população
infantojuvenil o status de sujeitos de direito e a titularidade de direitos fundamentais. Em seu
artigo 227 estabeleceu a proteção integral e a prioridade absoluta em favor da criança e ao
adolescente.
Andréa Rodrigues Amin ressalta que o princípio da prioridade absoluta, estabelecido,
no artigo acima estabelece a primazia em favor de crianças e adolescentes na concretização
dos direitos fundamentais ali enumerados, levando em conta a condição de pessoa em
desenvolvimento, condição que deixa essa população mais vulnerável do que os adultos15
. A
prioridade é garantida em todas as esferas de interesse e deve ser assegurada por todos:
família, comunidade, sociedade em geral e poder público, realizando a proteção integral e,
consequentemente, mantendo a criança e o adolescente a salvo de todas as formas que possam
afastá-los do desenvolvimento sadio.
A norma constitucional, prevista no artigo em destaque, “não é meramente
programática, tendo se tornado obrigatória desde a promulgação da Constituição”16
,
assegurando à criança e ao adolescente, atenção especial. Dessa forma, toda legislação
posterior à Constituição de 1988 observou os princípios estabelecidos por ela.
13
RIZZINI, Irene. A criança e a Lei no Brasil: revisitando a história (1822-2000). 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Universitária Santa Úrsula, 2002. 14
Conforme estabelecido pela Lei 6.697 de 10 de outubro de 1979. 15
Cf. AMIN, Andréa Rodrigues, op. cit., p. 63-64. 16 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (Org.); FERRAZ, Anna Candida da Cunha (Coord.). Constituição
Federal Interpretada: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 4. ed. São Paulo: Manole, 2013.
CADERNO IEP/MPRJ, n. 2, out. 2018.
Em 13 de julho de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente17
,
que ficou conhecido popularmente como ECA. O documento se alinhou à referida
Constituição, superando a cultura do revogado Código de Menores. Ele reproduziu, no artigo
3°, o princípio da proteção integral e, no artigo 4°, o dever de assegurar à criança e ao
adolescente a observância de seus direitos fundamentais, pondo-lhes a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com prioridade
absoluta, que é imposto à família, à sociedade e ao Estado pela Constituição Federal.
Segundo Andréa Rodrigues Amin, o Estatuto instituiu uma nova ordem jurídica e
social em relação à população infantojuvenil e, consequentemente, uma nova política de
atendimento. A referida lei assegura efetividade à doutrina da proteção integral,
implementando e regulamentando um complexo sistema denominado Sistema de Garantia de
Direitos - SGD18
. O novo sistema é voltado para todas as crianças e adolescentes,
indiscriminadamente, que venham a ser lesados em seus direitos fundamentais de pessoa em
desenvolvimento.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA, em 19
de abril de 2006, expediu a Resolução 113, dispondo sobre os parâmetros para
institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do
Adolescente19
. No artigo 1°, define a constituição do SGD como a articulação e integração
das instâncias públicas governamentais (Federal, Estadual, Distrital e Municipal) e da
sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento de mecanismos
de promoção, defesa e controle para efetivação dos direitos humanos da criança e do
adolescente. No artigo 5°, estabelece três eixos estratégicos de ação como parâmetro para
órgãos públicos e organizações da sociedade civil exerçam suas funções: Defesa dos Direitos
Humanos, Promoção dos Direitos Humanos, e Controle da Efetivação dos Direitos Humanos.
Na análise proposta daremos ênfase à atuação dos Tribunais de Justiça como órgão
judicial situado no eixo Defesa do Sistema de Garantias de Direito e sua atuação em
demandas que envolvam crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
17
Refere-se à Lei 8.069 de 13/07/1990. 18
Cf. AMIN, Andréa Rodrigues, op. cit., p. 52-53. 19
CONANDA. Resolução n° 113, de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização
e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Disponível em:
infância sofreu mudanças bastante significativas. Na antiguidade, os filhos eram considerados
propriedade de seus pais, sendo conferido a estes poder absoluto sobre sua prole. Não eram
consideradas as peculiaridades da criança em relação ao adulto. Esse cenário começou a se
modificar quando a atribuição de educar os infantes passou a ser responsabilidade da escola.
No entanto, questões sociais impediam que todas as crianças tivessem a oportunidade de
ingressar e permanecer naquela instituição, como por exemplo, as crianças oriundas de
famílias pobres, na vida das quais o trabalho tinha prioridade em prejuízo de sua formação
escolar.
Entre os séculos XIX e XX dois eventos influenciaram a economia mundial com
efeitos desastrosos para a população infanto-juvenil, A Revolução Industrial e a Primeira
Guerra Mundial. No primeiro evento, as indústrias utilizavam a mão de obra infantil em
terríveis condições de trabalho. No segundo, muitas crianças ficaram abandonadas em razão
da morte de seus pais.
Aumentava cada vez mais a violação dos direitos de crianças e adolescentes no
mundo, levando a sociedade internacional a reconhecer que essa população necessitava de
atenção especial que as defendesse dos danos causados por situações de risco. Nessas
circunstâncias, vários documentos internacionais reconhecem e ampliam os direitos das
crianças e adolescentes. Nessa mesma sintonia, o Brasil inicia uma mudança de
posicionamento em relação ao direito da criança e do adolescente com a promulgação do
Código de Menores (1926), Código Mello Mattos (1927), Código de Menores (1979).
O grande marco no ordenamento jurídico brasileiro na garantia e ampliação de direitos
da população infantojuvenil é, sem dúvida alguma, a Constituição Federal de 1988, que
prioriza a dignidade da pessoa humana e confere à crianças e adolescentes o status de sujeitos
de direito, estabelecendo a Doutrina da Proteção Integral e a Prioridade Absoluta em favor de
crianças e adolescentes na concretização de direitos fundamentais. Estas garantias
constitucionais foram efetivadas através do Estatuto da Criança e Adolescente, promulgado
em 1990.
A nova condição da criança e do adolescente no Brasil resultou em vários direitos
antes ignorados, entre eles o direito de manifestação de crianças e adolescentes em juízo sobre
todas as questões referentes à sua vida, sem desconsiderar sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento. Esse desafio levou os Tribunais de Justiça brasileiros a buscar uma forma
de escuta judicial em forma de entrevista, tendo por base protocolos testados cientificamente e
aprovados, realizadas por profissionais qualificados, em ambiente acolhedor, oferecendo
segurança, privacidade e conforto ao entrevistado, conforme Recomendação n° 33/2010 do
CADERNO IEP/MPRJ, n. 2, out. 2018.
CNJ. Esta recomendação se transformou em determinação por força da Lei n° 13.431/2017.
Nesse contexto, através do Ato Normativo n° 4.297/2012, o Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro implantou o Núcleo de Depoimento Especial pelo Poder Judiciário
do Estado do Rio de Janeiro, para atuar na escuta judicial de crianças e adolescentes vítimas
ou testemunhas de violência como forma de minimizar a revitimização da criança e contribuir
para que o depoimento seja o mais fidedigno possível.
Este trabalho, longe de esgotar o assunto, procura demonstrar a essencialidade do
Depoimento Especial e sua conformidade com o regramento constitucional e legal no que
tange à proteção da criança e do adolescente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira
Lobo Andrade. (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016.
______. Evolução Histórica do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 9.
ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
ARIÉS, Philipe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livro
Técnicos e Científicos Editora S.A., 1981.
ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO. CNJ - Salas especiais para ouvir
crianças e adolescentes chegam a 23 tribunais. São Paulo, 2016. Disponível em:
resolucao-113-de-19-de-abril-de-2006/view>. Acesso em: 31 mar. 2017.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ Serviço: como funciona a sala de depoimento
especial para crianças? Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80702-cnj-servico-
como-funciona-a-sala-de-depoimento-especial-para-criancas>. Acesso em: 18 maio 2017.
______. Resolução n° 33, de 23 de novembro de 2010. Recomenda aos Tribunais a criação
de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento Especial. Disponível em:
RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A Institucionalização de Crianças no Brasil: percurso
Histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2004.
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA Rogério Sanches. Estatuto
da Criança e do adolescente: Lei n. 8.069/90 comentado artigo por artigo. 8. ed. rev. São
Paulo: Saraiva, 2016.
SANTOS, Benedito Rodrigues dos. Por uma escuta da criança e do adolescente social e
culturalmente contextualizada: concepções de infância e de adolescência, universalidade de
direitos e respeito às diversidades. In: SANTOS, Benedito. R. dos et al. (Orgs.). Escuta de
crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos: guia para capacitação em Depoimento Especial de crianças e adolescentes. Brasília: Editora
da Universidade Católica de Brasília, 2014.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Ato Executivo Conjunto
n° 49, de 24 set. 2013. Resolvem alterar os Artigos 2°, 3° e 4° do Ato Executivo n°
4297/2012. Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro, 26 de set. 2013.
______. Ato Executivo n° 4.297, de 17 out. 2012. Institui o Núcleo de depoimento Especial
de Crianças e Adolescentes – NUDECA, no âmbito do Poder Judiciário, e dá outras
providências. Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro, 19 de out. 2012.
______. Ato Normativo Conjunto n° 09, de 27 nov. 2012. Regulamentam o sistema de
depoimento especial de crianças e adolescentes, a ser realizado em ambiente separado da sala
de audiências, com participação de profissional especializado para atuar nessa prática, e dá
outras providências. Diário da Justiça Eletrônico do Estado do Rio de Janeiro, 28 de nov.
2012.
______. Ato Normativo Conjunto n° 21, de 24 set. 2013. Resolvem alterar o Artigo 1° e
seus parágrafos 4° e 6°; os parágrafos. 1° e 2° do artigo 2°; e os parágrafos 2°, 3° e 10° do
artigo 3°; e 8° do Ato Normativo Conjunto 09/2012. Diário da Justiça Eletrônico do Estado
do Rio de Janeiro, 25 de set. 2013.
______. Corregedora fala sobre Depoimento Especial em evento promovido pela Emerj.
Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/ca_ES/web/guest/home/-/noticias/visualizar/40507? p_p_state=maximized>. Acesso em: 05 maio 2017.
______. Fórum de Teresópolis ganha sala para Depoimento Especial. Disponível em:
<http://www.tjrj.jus.br/ca/web/guest/home/-
/noticias/visualizar/41025?p_p_state=maximized>. Acesso em: 1 maio 2017.
______. RAD-DGADM-046. Preparar e Apoiar o Depoimento Especial de 10 nov. 2014. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/2080900/RAD-DGADM-046-REV-
0.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2017.
______. Sala de Depoimento Especial de crianças e adolescentes é inaugurada no Fórum
de Madureira. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-
/noticias/visualizar/104907?p_p_state=maximized>. Acesso em: 1 maio 2017.