CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018. O APADRINHAMENTO AFETIVO COMO CAMINHO PARA A ADOÇÃO Jucelia Oliveira Freitas* RESUMO: O presente artigo busca demonstrar que, passados quase oito anos de sancionada a Nova Lei de Adoção, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 2008, milhares de crianças e adolescentes continuam abrigados, por anos, em instituições de acolhimento, sem acesso ao direito constitucional de convivência familiar e comunitária. Isso é verificado tanto pela morosidade das autoridades em decidir pela reintegração à família biológica ou perda do poder familiar dos abrigados, quanto pelo preconceito que afasta as crianças mais velhas dos pretendentes a adoção. Dessa forma, propõe o incentivo aos programas de Apadrinhamento Afetivo como instrumentos capazes de minimizar os danos provocados pela institucionalização, ressaltando que através deles crianças e adolescentes que estão fora do perfil de adoção poderão usufruir do convívio familiar e de experiências afetivas com seus padrinhos ou madrinhas, além de terem a possibilidade de estreitar vínculos que podem resultar na adoção tardia. Palavras-chave: Adoção. Afetividade. Apadrinhamento afetivo. ABSTRACT: This article aims to demonstrate that, after almost eight years of sanctioning the New Adoption Law, which amended the Statute of the Child and Adolescent, in 2008, thousands of children and adolescents have remained sheltered for years in host institutions, Without access to the constitutional right of family and community coexistence. This is verified both by the delays of the authorities in deciding to reintegrate to the biological family or loss of the family power of the sheltered ones, as well as by the prejudice that distances the older children from the adoptive adopters. In this way, it proposes to encourage Affective Sponsorship programs as instruments capable of minimizing the damages caused by institutionalization, pointing out that through them, children and adolescents who are outside the adoption profile may enjoy family life and affective experiences with their godparents , As well as having the possibility of closer ties that may result in late adoption. Keywords: Adoption. Affectivity. Affective sponsorship. Sumário: 1 Introdução. 2 O papel do afeto no desenvolvimento da criança. 3 A adoção e a afetividade como princípio fundamental da constituição federal. 4 Apadrinhamento afetivo versus institucionalização. 5 Caminho para a adoção. 5.1 A busca pela experiência do apadrinhamento afetivo. 5.2 Pedras no caminho da adoção. 5.3 Cadastro Nacional de Adoção. 5.4 A idade distancia a criança da adoção. 6 Considerações Finais. Referências Bibliográficas. * Presidente da Comissão de Assuntos da Criança, do Adolescente e do Idoso da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Pós-Graduada em Direito da Infância e da Juventude pelo Instituto de Educação e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – IEP/MPRJ. E-mail: [email protected].
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CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
O APADRINHAMENTO AFETIVO COMO CAMINHO PARA A ADOÇÃO
Jucelia Oliveira Freitas*
RESUMO: O presente artigo busca demonstrar que, passados quase oito anos de sancionada a Nova Lei de Adoção, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 2008,
milhares de crianças e adolescentes continuam abrigados, por anos, em instituições de acolhimento, sem acesso ao direito constitucional de convivência familiar e comunitária. Isso
é verificado tanto pela morosidade das autoridades em decidir pela reintegração à família
biológica ou perda do poder familiar dos abrigados, quanto pelo preconceito que afasta as
crianças mais velhas dos pretendentes a adoção. Dessa forma, propõe o incentivo aos
programas de Apadrinhamento Afetivo como instrumentos capazes de minimizar os danos
provocados pela institucionalização, ressaltando que através deles crianças e adolescentes que
estão fora do perfil de adoção poderão usufruir do convívio familiar e de experiências afetivas
com seus padrinhos ou madrinhas, além de terem a possibilidade de estreitar vínculos que
ABSTRACT: This article aims to demonstrate that, after almost eight years of sanctioning
the New Adoption Law, which amended the Statute of the Child and Adolescent, in 2008,
thousands of children and adolescents have remained sheltered for years in host institutions,
Without access to the constitutional right of family and community coexistence. This is
verified both by the delays of the authorities in deciding to reintegrate to the biological family
or loss of the family power of the sheltered ones, as well as by the prejudice that distances the
older children from the adoptive adopters. In this way, it proposes to encourage Affective
Sponsorship programs as instruments capable of minimizing the damages caused by
institutionalization, pointing out that through them, children and adolescents who are outside
the adoption profile may enjoy family life and affective experiences with their godparents , As well as having the possibility of closer ties that may result in late adoption.
Milhares de crianças e adolescentes brasileiros encontram-se confinados em
instituições de acolhimento, longe do convívio familiar. À sua volta, vêm deixar os abrigos
por intermédio da adoção as crianças mais jovens e os bebês, enquanto eles acabam
permanecendo nos abrigos até completarem 18 anos. Por outro lado, quem deseja adotar,
independentemente da aparência física ou idade do futuro filho, enfrenta entraves que põem à
prova e muitas vezes minam por completo as suas forças.
Para os que se tornam adultos dentro dos abrigos a única opção é, com data marcada,
deixar esse ambiente coletivo para enfrentar a vida lá fora. Saem em condições de
desigualdade, porque não se fortaleceram com a auto estima, o afeto e a confiança que
alimentam os que crescem em família. Esse retrato da realidade brasileira contrasta com o
texto do art. 2271 da Constituição Federal de 1988, que afiança à criança e ao adolescente,
com prioridade absoluta, o direito à convivência familiar, sendo reiterado pelo art. 19 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990)2, e
consubstanciado pelas mudanças apresentadas pelo Direito de Família, que passou a definir o
afeto como um direito fundamental e princípio constitucional implícito. Não podemos deixar
de observar também as alterações feitas à Lei 8069/90 pela Nova Lei Nacional de Adoção
(Lei nº 12.010, de 03 de agosto de 2009), que estabeleceram importantes regras, inclusive no
que se refere ao acolhimento institucional.
O abrigamento cumpre o papel de proteger a criança da pobreza familiar, que
representa a maior parte dos casos, e também do abandono, da violência doméstica, de abusos
sexuais, da vivência de rua, da prisão de pais ou responsáveis, e da exploração do trabalho
infantil, entre outros fatores. Ainda que todos os esforços devam ser envidados para reintegrar
essas crianças às suas famílias de origem, é fundamental que as instituições legalmente
responsáveis por decidir o seu futuro atuem com eficácia e celeridade. Levando-se em
consideração que mais de 40% das crianças e dos adolescentes institucionalizados perderam
1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 65, de 2010.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 jun. 2017. 2 Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente,
em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu
desenvolvimento integral. Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016.
emperramento dessa traquitana, quando pais adotivos suplicam pela oportunidade de adotar5?
Este artigo pretende, como objetivo geral, apontar o projeto Apadrinhamento Afetivo,
que já se multiplica em todo o Brasil, como instrumento capaz de atenuar a situação de
milhares de crianças e adolescentes que não têm preferência para adoção, além de servir de
importante incentivo à adoção tardia.
Por objetivos específicos tem-se: discutir o papel do afeto no desenvolvimento da
criança por entender que ele é um fator essencial à vida humana; identificar o princípio da
afetividade com base na Constituição Federal; validar o Apadrinhamento Afetivo como um
condutor para a adoção tardia. Utilizamos a metodologia qualitativa, por entendermos que os
fatos que serviram de embasamento para nossa pesquisa estão diretamente ligados a um
contexto social.
2 O PAPEL DO AFETO NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA
As sementes do afeto são mais eficazes quando existe uma família que se disponha a
amar e cuidar dela. Esse ambiente familiar sadio é o adubo desta grande floresta de segurança
afetiva, importante para toda a vida6.
O léxico afetividade tem como raiz a terminologia “afeto”. Sua etimologia remonta do
substantivo latino affectus, us – “disposto, inclinado a, constituído”. Traz uma marca
semântica muito forte, pois quer dizer “sentimento terno de adesão, afeição, ligação espiritual
em relação a alguém”. Deste modo, podemos apontar que a afetividade é a expressão máxima
que traduz o sentimento de querer bem, do carinho em cuidar do outro. Sem ela não há como
estabelecer uma ligação entre pares, pois é a amálgama do relacionamento desejado. Embora
esteja presente em toda forma de convívio, uma vez que a afetividade pode se dar no trato
com seres não humanos, sua lembrança dá-se prontamente na relação entre os homens, já que
a sua carência pode produzir vários tipos de perturbações na fase adulta do indivíduo.
Por estar diametralmente vinculada à constituição do caráter de um determinado
sujeito por se tratar de um sentimento afetivo, exerce um papel de grande importância durante
toda a existência do ser, especialmente na fase de desenvolvimento em que ocorre todo o
processo de aprendizagem de qualquer pessoa, ou seja, na infância. Daí a afetividade ser
5 HERKENHOFF, João Baptista. Juiz de Direito aposentado (ES) e escritor. Disponível em:
<http://www.amb.com.br/publicacoes/desalento-na-caminhada/>. Acesso em: 10 de jul. 2017. 6 BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Rio de Janeirro: Lumen Juris. 2013, p. 4.
conectada na formação dos costumes. Destarte, a construção dos laços afetivos, é imperativa
na vida de qualquer indivíduo. Sua ausência poderá fazer com que a pessoa não possua
reminiscências positivas, levando-a a se transformar em um ser insensível e excluso da vida
social, assim como interferindo nos seus sentimentos, vale ressaltar que os sujeitos que se
desenvolvem sem afetividade não são capazes, na maioria das vezes, de suscitar comiserações
benfazejas para com seus iguais.
Um fator importante deve ser destacado no entendimento da afetividade. Ela não pode
ser confundida com os sentimentos da paixão ou da emoção, já que pertence a um campo mais
extenso, mas que as inclui. É uma possessão funcional que se desenvolve a partir dos fatores
orgânico e social. Tanto que no decorrer da evolução do sujeito, devido à afinidade presente
entre os fatores, transformam tanto as fontes que geraram as manifestações como as formas de
demonstração. Deste modo a afetividade que em princípio é determinada basilarmente pelo
orgânico, passará a sofrer influência do meio social. Como nos aponta Henri Wallon: “a
constituição biológica da criança ao nascer não será a lei única do seu futuro destino. Os seus
efeitos podem ser amplamente transformados pelas circunstâncias sociais da sua existência,
onde a escolha individual não está ausente”.
Ela é um fator essencial à vida humana, como o ar que nos mantém vivos. Está
relacionada ao social e constitui-se como parte integrante de todo relacionamento humano, em
virtude de ser a premissa de nossa implicação com o mundo.
Por influenciar diretamente o modus vivendi do homem, seja consigo mesmo ou com
os seus pares, a afetividade pode, por carência, produzir fissuras irremediáveis, que poderão
motivar sérios distúrbios. Isso nos leva a apontar a importância da família saudável ou
funcional7, evidenciando que ela irá propiciar o clima de afeto e apoio indispensáveis ao
desenvolvimento saudável da criança, independentemente de sua conexão biológica8. Na
contemporaneidade, existem composições e conformações diversificadas de famílias em
virtude da própria evolução da sociedade, assim como modelos variados em uma mesma
família, que possui formação díspar, seja por origem ou valores diferentes, o que não diminui
ou apaga a sua importância capital, apesar de todas as mudanças ocorridas, o que reverbera e
integra ainda mais a afetividade no arcabouço familiar.
Embora a afetividade tenha sido objeto de estudos de pensadores, como Jean Piaget e
7 MACEDO, Rosa Maria. Ambiente acolhedor, continente, podendo as relações entre seus membros serem
caracterizadas como amorosas, carinhosas e leais. p. 186. 8 ROSSOTO, Rafael Bucco. A importância das relações afetivas advindas da convivência familiar vai além e
independe do vínculo biológico, aplicando-se também as famílias socioafetivas. p. 15.
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
Lev Vygotsky, Henri Wallon apontou que o processo de evolução depende tanto da
capacidade biológica do sujeito quanto do ambiente, destacando que a afetividade o afeta de
alguma forma. Sabemos que ela está elencada em diversas áreas, como por exemplo, na
educação que abaliza a sua contribuição para a aquisição do conhecimento e conquista da
autoestima do indivíduo, pois as relações afetivas não podem ser desassociadas do universo
familiar.
Com base nesta premissa, é preciso definir que o conceito de família ao qual nos
referimos está calcado no ordenamento jurídico, segundo o qual trata-se de uma organização
social com base em laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos; ou seja, ela não é somente a
instituição jurídica, devendo ser compreendida em sua importância social, englobando as
múltiplas formas e variantes9. Por não ser inflexível, o Direito perde seu propósito ao não
refletir os avanços e mudanças da sociedade, raiz e orientação dos princípios jurídicos. Na
qualidade de matriz de família, o afeto está essencialmente manifestado na adoção, pois ele
está fora dos laços sanguíneos, solenização, uma vez que ela parte exclusivamente do afeto
manifestado pelos pais. Logo, o afeto excede a própria família, já que o enlace familiar ocorre
a partir de um envolvimento que alimenta as relações de benquerença, enternecimento e
humanidade.
3 A ADOÇÃO E A AFETIVIDADE COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A palavra adotar vem do latim adoptare, que significa escolher, perfilhar, dar o seu
nome a, optar, ajuntar, escolher, desejar. Do ponto de vista jurídico, adotar é um
procedimento legal, garantido no Código Civil brasileiro e no Estatuto da Criança e do
Adolescente, que consiste em transferir todos os direitos de pais biológicos para família
substituta, conferindo à criança/adolescente os direitos e deveres de filho. Esse procedimento
não é regra. A regra, indiscutivelmente, é a família biológica. Em um outro sentido, a adoção é
a oportunidade do exercício da maternidade/paternidade. Um desejo que nasce no coração e é
gestado pelo afeto.
A Constituição Federal de 1988 desenhou uma nova estrutura para o Direito de
Família ao acabar com antigas e inaceitáveis discriminações e trazer novas ramificações. São
9 LÔBO. Paulo. Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os
grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos
de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a
integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). p. 2.
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
reconhecidos o pluralismo familiar resultante das novas espécies de família, a igualdade de
direitos entre homens e mulheres, tratamento jurídico igualitário para os filhos genéticos ou
não, a inclusão da afetividade como princípio fundamental e a oficialização da união estável e
da família monoparental, tanto fundada nos laços de sangue quanto por adoção.
A família atual, reflexo de mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais,
passou a ter como objetivo principal alcançar a relação de afeto dentro do seu núcleo. O filho
deixou de ser o objetivo do matrimônio, a família não é mais o núcleo social responsável por
moldar os filhos para o convívio social, assim como deixou de existir a figura do pai como
patriarca. Com as sucessivas modificações que sofreu, a família moderna avançou e continua
avançando rumo a um ambiente predominantemente igualitário e afetivo.
A nossa Carta Magna estabelece que a “família é a base da sociedade” (Art.226) e que,
portanto, compete a ela, juntamente com o Estado, a sociedade em geral e as comunidades,
“assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais” (Art. 227).
Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, Nucci observa que, embora a
pobreza não sirva de justificativa para a destituição do poder familiar, nos termos do art. 23,
caput deste Estatuto, também não pode servir de escudo protetor para abusar dos filhos
pequenos, obrigando-os a pedir esmola nas ruas, explorando o seu trabalho, impedindo-os de
estudar, bem como os fazendo passar privações completamente inadequadas para sua faixa
etária. Isto posto, destaca o autor a necessidade de se distinguir os genitores pobres
interessados no bem-estar dos filhos daqueles que os desprezam e, em nome da pobreza,
abusam dos pequenos10
.
Neste último artigo, também são especificados os direitos fundamentais especiais da
criança e do adolescente, ampliando e aprofundando aqueles reconhecidos e garantidos para
os cidadãos adultos no seu artigo 5º. Dentre estes direitos fundamentais da cidadania está o
direito à convivência familiar e comunitária.
Por sua vez, descrita como um conjunto de atividades desenvolvidas por pessoas de
referência da criança, a parentalidade visa assegurar a sua sobrevivência e o seu
desenvolvimento pleno, através dos cuidados, do estímulo, da educação e do fortalecimento
de sua autonomia como preparativos para os desafios e as oportunidades da vida futura. Dela
surgiu a parentalidade socioafetiva, desempenhada pelos adultos responsáveis pela criança na
ausência de pais biológicos11
.
10
NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Rio de Janeiro: Forense,
2015. 11
Fundação Maria Cecília Souto Vidigal pela Primeira Infância. Disponível em: <http://www.fmcsv.org.br/pt-
comunitária. De acordo com Sávio Bittencourt, eles vão muito além do apoio à família
adotiva, denunciando as falhas sistêmicas que emperram o poder público incumbido de
garantir o direito da criança e do adolescente, combatendo a cultura da institucionalização e
dirimindo preconceitos existentes contra o vínculo adotivo14.
À luz da Carta Magna, a afetividade, ao aproximar os indivíduos e propiciar as
relações que resultam em estruturas familiares, deve ser definida como direito fundamental e
princípio constitucional implícito, em consonância com seu art. 5º, § 2º, sendo reconhecido e
inserido no sistema jurídico15
.
4 APADRINHAMENTO AFETIVO VERSUS INSTITUCIONALIZAÇÃO
Inegavelmente, os avanços legais garantiram que o país enterrasse definitivamente a
cultura que perdurou do período colonial até o início do Século XX, em que se dispensava a
oficialização da adoção e as famílias ricas, mesmo sem qualquer relação de afeto, recebiam
em suas casas os “filhos de criação”. A adoção legal passou a ser um ato motivado pela
vontade de ter um filho ou filha, cujo vínculo seja o sentimento de afinidade e de afeto, que
nada tem a ver com a biologia.
Cenise Monte Vicente aborda a importância do vínculo familiar, associando-o ao
direito à vida, em seu texto intitulado “O direito à convivência familiar e comunitária: uma
política de manutenção do vínculo, quando afirma:
O vínculo é um aspecto tão fundamental na condição humana, e particularmente
essencial ao desenvolvimento, que os direitos da criança o levam em consideração
na categoria convivência – viver junto... A criança tem direito a viver, desfrutar de
uma rede afetiva, na qual possa crescer plenamente, brincar, contar com a paciência,
a tolerância e a compreensão dos adultos sempre que estiver em dificuldade16
.
Neste aspecto, o programa de Apadrinhamento Afetivo, gestado pelo Poder Judiciário
e a ele subordinado, sendo adotado pelas Varas da Infância, da Juventude e do Idoso por
adesão dos magistrados, revela-se eficaz como forma de romper com o ciclo de fragilidade a
14
BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção. Do Abandono à garantia do direito à convivência familiar e
comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 20. 15 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 11 maio 2017. 16 KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (org.). Família brasileira: a base de tudo. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2010, p.
Juçara destaca, na matéria, que foi um relacionamento construído aos poucos, sem
compromisso, e dele nasceu o amor, lamentando que o processo de adoção seja tão vagaroso.
O casal informou que era obrigado a renovar de quatro em quatro meses a guarda provisória e
que, às vezes, havia demora para sair a prorrogação. Até a publicação da matéria, três anos
haviam se passado, enquanto o casal continuava lutando pelo filho afetivo.
5.1 A BUSCA PELA EXPERIÊNCIA DO APADRINHAMENTO AFETIVO
Ao escrever este artigo de conclusão do curso de Pós-Graduação fui motivada pela
experiência vivida com a habilitação ao programa de apadrinhamento afetivo, bem como pelo
desejo de contribuir para que esse processo passe a ser uma realidade na vida de crianças e
adolescentes abrigados em nosso país. O conhecimento que adquiri sobre a temática da
adoção foi obtido a partir do relato de amigos e matérias jornalísticas. Esse processo, que no
Brasil ainda é difícil, doloroso e angustiante, mesmo levando-se em consideração as
contribuições trazidas pela Lei nº 12.010/2009 (Nova Lei da Adoção), enfrenta um grande
número de obstáculos. Segundo Maria Berenice Dias, em seu artigo “O lar que não chegou22
”,
a lei que deveria solucionar o problema dos infantes institucionalizados, burocratizou ainda
mais o processo.
O mais surpreendente é tomar conhecimento de que muitas dificuldades são também
enfrentadas por aqueles que desejam apadrinhar. Habilitar-se tanto para o processo de adoção,
quanto para o de apadrinhamento, é um verdadeiro desafio; uma corrida com data e hora
apenas para começar, sem perspectiva de terminar. Essa temática, tão relevante como todas as
demais que envolvem a infância e juventude, bem como as suas peculiaridades, requerem
olhar e trato especiais.
Segundo Sávio Bittencourt, em seu livro “Guia do pai Adotivo23
”, a adoção deve ser
motivada pelo desejo de dar amor e afeto com intensidade, e eu me atrevo em a ir além,
afirmando que ambos os processos, seja ele de adoção ou apadrinhamento, devem ser
norteados por tais sentimentos. A afetividade é a única ponte que ligará o adotante ao futuro
adotado, o padrinho ao futuro afilhado. Digo futuro, porque para se criar o elo de afetividade é
preciso que haja o encontro, e é a partir dele que começa a surgir o entrelace da alma e do
coração. Mas como criar afetividade sem conhecer as crianças, sem vê-las, visitá-las? Não há
22
DIAS, Maria Berenice. O lar que não chegou. Disponível em:
<https://espaco- vital.jusbrasil.com.br/noticias/1564113/o-lar-que-nao-chegou>. Acesso em: 24 maio 2017. 23 BITTENCOURT, Sávio. Guia do pai Adotivo. Orientações para uma adoção feliz. Curitiba: Juruá, 2014.
CADERNO IEP/MPRJ, v. 1, n. 1, junho/2018.
como.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu Art. 19, afirma que é direito da
criança e do adolescente o convívio familiar e comunitário. E certamente, não prevê esse
direito somente para as que já têm uma família, mas sim, para todas. E como terão garantidos
esses direitos aqueles que estão abrigados em instituições? Estariam eles fadados a uma vida
intramuros?
Estamos vivendo uma nova era, entretanto, apesar dos programas dos Tribunais de
Justiça, do Ministério Público, dos juízes das Varas da Infância e Juventude e das novas
legislações, é preciso fazer com que os diretores de instituições de acolhimento também
entendam que as crianças e adolescentes ali abrigados devem ter passagem transitória, e que
devem ser apadrinhados e adotados. Vale salientar que, em 2011, logo o início dos seus
trabalhos, a Frente Parlamentar pela Adoção encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça e
ao Supremo Tribunal Federal propostas com o objetivo de acelerar e humanizar as adoções.
Uma delas solicitava orientar os tribunais de Justiça para que semestralmente qualificassem os
profissionais que trabalham nos abrigos e os responsáveis pelos processos de adoção. O
mesmo deve ser feito com relação ao apadrinhamento afetivo.
O Apadrinhamento Afetivo pode ser um passo para a adoção tardia bem- sucedida,
gerada a partir da construção de vínculos, e isso sem prejuízo do processo legal, haja vista,
apenas as crianças que não estão mais na lista de preferência para adoção podem ser
apadrinhadas. Assim sendo, nenhum padrinho estaria burlando a fila do Cadastro Nacional de
Adoção, e sim, tendo a oportunidade de dar afeto (e também receber) a um infante, que na sua
tenra idade já traz marcas de dor, sofrimento, maus tratos e abandono. Essas crianças e esses
adolescentes têm garantidos por lei o direito de serem visitados, abraçados, acalantados, de
receberem amor e contarem com uma família para chamar de sua.
Neste sentido, como órgãos responsáveis pela deliberação e controle das ações e
políticas públicas relacionadas à infância e à adolescência, criados por imposição do inciso II
do art. 88 do ECA, os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente podem exercer
papel relevante, principalmente nas esferas municipais, como disseminadores do debate e da
informação sobre a importância do apadrinhamento afetivo e da adoção tardia. Cartilhas,
cartazes e materiais de divulgação para este fim podem ser custeados por recursos dos fundos
municipais da criança e do adolescente, visto terem a finalidade de garantir direitos da
infância e adolescência.
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5.2 PEDRAS NO CAMINHO DA ADOÇÃO
De acordo com Dias, “a paternidade deriva do estado de filiação, independente de sua
origem, se biológica ou afetiva. A ideia de paternidade está fundada muito mais no amor do
que submetida a determinismos biológicos. Também em sede de filiação, prestigia-se o
princípio da aparência24
”.
Ainda que o Brasil tenha avançado de forma eficaz na garantia de direitos de crianças
e adolescentes, ainda não conseguiu garantir à infância o direito constitucional ao convívio
familiar. A legislação em vigor, embora seja qualitativa, deve ser melhor aplicada a fim de
evitar entraves burocráticos tanto para as crianças e os adolescentes que estão à espera de
adoção, quanto para as famílias aptas a adotar ou apadrinhar. Em seu Art. 227, a Constituição
Federal dispõe que:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Disponível
KALOUSTIAN, Sílvio Manoug (org.). Família brasileira: a base de tudo. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2010.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: família 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MACEDO, Rosa Maria. A família diante das dificuldades escolares dos filhos. In: Bossa Nádia e OLIVEIRA, Vera Barros de (Org.). Avaliação Psicopedagógica da criança de 0 a 6
anos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
MACIEL, Regina Ferreira Lobo Andrade (coordenação). Curso de Direito da Criança e do
Adolescente – Aspectos teóricos e práticas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza, Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Rio de
Janeiro:Forense, 2015.
PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
PORTUGAL. Diário da República Portugal. Lei nº 103, de 11 de setembro de 2009.
ROSSOT, Rafael Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do Princípio da convivência familiar. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre,
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil v. 6: Direito de família. 16. ed. Rio de Janeiro:
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VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
WALLON. Henri. Do ato ao pensamento. Lisboa: Moraes Editores, 1959.