1 A luta pelo direito ao chão: novos atores e estratégias na defesa coletiva de comunidades rurais tradicionais no Estado de São Paulo 1 Marilene Alberini (Defensoria Pública do Estado de São Paulo) 1. Introdução Localizado entre os Municípios de Ibiúna e Piedade, o Parque Estadual do Jurupará (PEJU), abriga entre os seus 26.250,47 hectares de extensão, remanescentes da população caipira tradicional do Estado de São Paulo. Residentes em pequenas áreas de cultivo, representam várias gerações de pequenos agricultores que ali se fixaram a partir da expansão da colonização para o interior do Estado de São Paulo. A partir da criação do parque, pelo Governo do Estado de São Paulo, em 2009, as/os moradoras/es da área, delimitada como unidade de preservação integral, passaram a enfrentar a ameaça de expulsão de suas terras, por conta do processo de reintegração de posse movido pelo próprio Estado. As/os residentes na área pertencente ao PEJU consideram o processo de reintegração de posse injusto, uma vez que se fixaram em pequenas propriedades rurais há várias gerações e entendem que preservam as características de tradicionalidade em seus costumes, modos de vida e reprodução cultural. Argumentam, ainda, que, ao contrário do defendido pelo Estado para justificar a retirada da população do local, não contribuem para a degradação do meio ambiente, mas, inversamente, ajudam a preservá-lo por meio de suas práticas de agricultura de pequena escala, de ações de reflorestamento e preservação da mata nativa. O presente trabalho é resultado da atuação profissional da autora, no cargo de Socióloga, em parceria com a equipe jurídica do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NHU-DPESP). Com o desafio de prover a defesa coletiva dessa população, contrapondo a argumentação apresentada pelo Estado, que acusa as/os residentes de serem ocupantes oportunistas de área de preservação ambiental, o trabalho voltou-se para a produção de relatório técnico, permeado pela orientação metodológica 1 V ENADIR, GT. 01 - Justiça Restaurativa, Mediação e Administração de Conflitos Socioambientais: interfaces entre Antropologia e Direito.
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A luta pelo direito ao chão: novos atores e estratégias na defesa
coletiva de comunidades rurais tradicionais no Estado de São Paulo1
Marilene Alberini (Defensoria Pública do Estado de São Paulo)
1. Introdução
Localizado entre os Municípios de Ibiúna e Piedade, o Parque Estadual do Jurupará
(PEJU), abriga entre os seus 26.250,47 hectares de extensão, remanescentes da população
caipira tradicional do Estado de São Paulo. Residentes em pequenas áreas de cultivo,
representam várias gerações de pequenos agricultores que ali se fixaram a partir da expansão
da colonização para o interior do Estado de São Paulo.
A partir da criação do parque, pelo Governo do Estado de São Paulo, em 2009, as/os
moradoras/es da área, delimitada como unidade de preservação integral, passaram a enfrentar
a ameaça de expulsão de suas terras, por conta do processo de reintegração de posse movido
pelo próprio Estado. As/os residentes na área pertencente ao PEJU consideram o processo de
reintegração de posse injusto, uma vez que se fixaram em pequenas propriedades rurais há
várias gerações e entendem que preservam as características de tradicionalidade em seus
costumes, modos de vida e reprodução cultural. Argumentam, ainda, que, ao contrário do
defendido pelo Estado para justificar a retirada da população do local, não contribuem para a
degradação do meio ambiente, mas, inversamente, ajudam a preservá-lo por meio de suas
práticas de agricultura de pequena escala, de ações de reflorestamento e preservação da mata
nativa.
O presente trabalho é resultado da atuação profissional da autora, no cargo de Socióloga,
em parceria com a equipe jurídica do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da
Defensoria Pública do Estado de São Paulo (NHU-DPESP). Com o desafio de prover a defesa
coletiva dessa população, contrapondo a argumentação apresentada pelo Estado, que acusa
as/os residentes de serem ocupantes oportunistas de área de preservação ambiental, o trabalho
voltou-se para a produção de relatório técnico, permeado pela orientação metodológica
1 V ENADIR, GT. 01 - Justiça Restaurativa, Mediação e Administração de Conflitos Socioambientais: interfaces
entre Antropologia e Direito.
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antropológica. Além disso, dentro da perspectiva de defesa da permanência da comunidade na
área do parque, foram adotados os estudos documentais do processo e tratativas com a
Procuradoria Pública do Estado e a Fundação Florestal.
Neste contexto, este trabalho visa discutir o conceito de tradicionalidade, a partir da sua
orientação jurídica e antropológica, e os desafios quando empregado como parte da estratégia
de defesa coletiva de pequenos agricultores de origem caipiria, como população rural
tradicional, submetidos às ações de desapropriação promovidas pelo Estado. Objetiva, ainda,
analisar a emergência de novos atores e novas estratégias extrajudiciais de defesa coletiva, com
foco no diálogo com o Poder Público e órgãos do Sistema de Justiça.
Para a realização deste trabalho, a metodologia empregada incluiu entrevistas com
lideranças comunitárias e residentes do PEJU, acompanhamento em reuniões com órgãos
Estatais e do Sistema de Justiça, além de pesquisa de campo e análise de documentação,
normativas legais e bibliografia especializada.
2. A constituição da população caipira em Ibiúna e Piedade
Os caipiras, grupos de pequenos agricultores que se fixaram no interior do Estado de
São Paulo a partir da expansão paulista, tem sua origem no movimento colonizador dos
bandeirantes e tropeiros que, em contato com os povos indígenas locais, iniciaram a ocupação
do solo. Em Os parceiros do Rio Bonito2, obra clássica da Antropologia e Sociologia e
considerada o estudo mais importante sobre a transformação nos meios de vida do caipira
paulista, Antonio Candido mostra a importância de buscar as origens históricas da tradição na
formação do caipira, a partir da expansão geográfica dos paulistas entre os séculos XVI e XVIII,
que culminou na composição do que se denominou como “cultura caipira” (CANDIDO, 1964,
pag. 43).
Inicialmente, os caipiras tinham uma vida seminômade, à maneira dos índios e
bandeirantes. No entanto, a mobilidade se restringiu pelo aumento da densidade demográfica e
pela indisponibilidade das terras. Os Municípios de Ibiúna e Piedade reuniram parte
2 A obra clássica de Antonio Candido (1964) está dividida em três partes: a primeira trata da formação do caipira
tradicional, que se fixou ao solo após a expansão paulista, herdando a mobilidade do convívio com os índios; a
segunda expõe a crise da cultura caipira diante do processo de modernização do país; e a terceira analisa a mudança,
a integração do caipira na vida moderna. Antonio Candido analisa a mudança das transformações na vida do caipira
e aponta para a reforma agrária.
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considerável dos caipiras de São Paulo que incialmente se fixaram em terras posteriormente
consideradas como devolutas. Sem possuírem a titularidade formal das terras, as famílias de
origem caipira, que atualmente residem na área do PEJU, seguiram os parâmetros tradicionais
de ocupação do solo, com divisão da terra em pequenas glebas.
No PEJU, observamos que a presença da população tradicional caipira, representada
por grupos de moradoras/es da zona rural que, até a criação do parque, praticavam a agricultura
familiar e de subsistência, segue os parâmetros históricos acima citados quanto à sua origem.
Corroborando esta constatação temos o exposto no próprio Plano de Manejo do PEJU:
A ocupação humana na região remonta aos séculos XVII e XVIII, com o
estabelecimento de pequenos povoados que serviam como local de pouso para
descanso dos tropeiros, que seguiam do sul do país para a região de Sorocaba. No
território do PEJU, a ocupação humana permanece, sendo parte dela remanescente
dos séculos XVII e XVIII, e outra parte composta por áreas ocupadas desde a
década de 50 até os dias de hoje. (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO,
2010, pag. 2)
Ainda que as primeiras ocupações remontem a pelo menos três séculos, a situação
fundiária do caipira sempre foi marcada pela fragilidade, consequência da falta de comprovação
legal da posse da terra e de conhecimento da forma oficial das leis. Enquanto a expansão
paulista que deu origem à população caipira foi possível pela abundância de terras para
colonização, a partir da segunda metade do século XX a lógica de ocupação indiscriminada do
solo e o crescimento urbano relegaram aos caipiras espaços cada vez mais reduzidos, muitos
confinados em pequenos sítios em áreas isoladas.
Assim, as populações caipiras, a partir da expansão das cidades e da exploração do solo,
passaram a ser expulsas da terra, porque não tinham o título de propriedade ou porque já não
podiam praticar a agricultura e os modos de vida de subsistência. Forçosamente, muitos
trocaram o campo pela cidade, outros tornaram-se empregados em fazendas e sítios da região
onde residiam. Antonio Candido (1964) descreveu a presença de vários tipos de organização
social rural dos caipiras, adotadas como estratégias de sobrevivência: sitiantes, parceiros e
agregados. Os que não tinham a terra trabalhavam na terra dos que tinham. Alguns caipiras se
tornaram trabalhadores rurais assalariados.
As famílias mais antigas residentes no PEJU são representantes do processo de
colonização e constituição da cultura caipira do Estado. São, igualmente, vítimas de processo
de expulsão do campo por conta de mudança das normas formais que passaram a reger área que
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ocupam. Porém, além da lógica de valorização do solo e da expansão urbana, os motivos pelos
quais os caipiras residentes no PEJU são objeto de remoção inclui o advento da lógica da
preservação ambiental integral, que por vezes, contraditoriamente, estabelece que o homem não
mais pode fazer parte do meio do qual ele é parte.
3. Tradicionalidade e cultura caipira no Parque Estadual do Jurupará
As visitas, entrevistas e observações de campo realizadas no PEJU permitiram
identificar a existência de população com características de tradicionalidade caipira,
remanescentes dos primeiros colonizadores e de povos indígenas que habitaram a área. Para a
realização deste estudo, privilegiou-se a caracterização cultural das/os moradoras/es do PEJU,
sobretudo a partir das suas relações de sociabilidade, das trocas culturais e dos modos de vida.
O reconhecimento dos aspectos físicos cumpriu o importante papel de oferecer maiores
subsídios para a avaliação do tipo de usos do solo e das práticas de agricultura familiar, assim
como revelou o grau de integração dos núcleos familiares com o meio ambiente e o entorno.
Do ponto de vista da metodologia antropológica, a observação de campo permitiu reunir
elementos que demonstram a presença de tradicionalidade das famílias mais antigas residentes
no PEJU. Do ponto de vista jurídico, a definição do conceito de “povos e comunidades
tradicionais” foi regulamentado no Decreto 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de
Imagem 1: Foto antiga de crianças e
professora na escola local do Parque
Estadual do Jurupará. Fonte: Acervo
pessoal de morador, 21/05/2016.
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Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em seu Artigo 3º, o
referido Decreto, estabelece que:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que
se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;
(BRASIL, 2007)
É preciso apontar que os caipiras, de acordo com os parâmetros antropológicos e a
legislação específica citada acima, estão, de fato, inseridos nos grupos de populações e
comunidades identificadas como tradicionais.
A maior parte das áreas ainda preservadas do território brasileiro são habitadas
com maior ou menor densidade por populações indígenas ou por comunidades