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A Legibilidade Como Gestao

Mar 01, 2018

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Tiago Lemões
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    A Legibilidade como Gesto e Inscrio Poltica de Populaes: notas etnogrficas

    sobre a poltica para pessoas em situao de rua no Brasil1

    Patrice Schuch (UFRGS)

    James Scott (1998) situa a legibilidade como um dos problemas centrais das

    prticas de formao do Estado. O conhecimento dos sujeitos, sua localizao, riqueza e

    identidade, assim como os processos de criao de mtricas e medidas que permitem

    que tais elementos sejam traduzidos para padres comuns, seriam fundamentais para o

    monitoramento, registro e inspeo, que acompanham a criao dos Estados. A

    inveno de sobrenomes, a padronizao de pesos e medidas, o estabelecimento de

    pesquisas cadastrais e registros populacionais, a padronizao de linguagem e discursolegal, o desenho das cidades e do transporte pblico so exemplos dessas prticas de

    legibilidade. Para Scott (1998), as prticas de legibilidade aumentariam a capacidade

    estatal e tornariam possveis intervenes discriminatrias de todo o tipo, tais como as

    polticas de vigilncia, de sade, de assistncia social, etc. Segundo o autor, seriam

    espcies de mapas abreviados, os quais possibilitariam refazer as realidades que

    retratam atravs dos processos de racionalizao, padronizao e simplificao.

    Ao analisar um conjunto diverso de produo de legibilidade em cenrios muitodiversospor exemplo, a coletivizao sovitica, a construo de Braslia, as prticas

    de criao de vilas/aldeias na Tanznia (1973-6) o autor destaca uma composio de

    fatores que caracterizaram tais esforos: ordenamento administrativo da natureza e

    sociedade; ideologia modernista na crena no progresso, tcnica e cincia; Estado

    autoritrio disposto a usar seu poder coercitivo para construir seu projeto; e, finalmente,

    sociedade civil aptica. Entretanto, Scott (1998) tambm se interroga acerca dos

    problemas na efetivao da legibilidade nos contextos analisados e conclui, ao

    responder a questo, por ele mesmo colocada por que tais projetos falharam? - que,

    fundamentalmente, isso se deu porque tais propostas no levaram em conta o

    conhecimento prtico local, assim como os processos informais e a improvisao em

    face do imprevisvel, presentes nos cenrios em que tais propostas visaram se efetivar.

    Sem dvida, a improvisao, os processos informais e o conhecimento prtico

    das pessoas a que tais propostas se destinam so fundamentais de serem levados em

    1Texto publicado no livro: FONSECA, Claudia e MACHADO, Helena (Orgs). Cincia, Identificao eTecnologias de Governo.POA, Editora da UFRGS/CEGOV, 2015, p. 121-145.

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    conta analiticamente. Scott (1985 e 1990) j mostrou, em seus estudos sobre resistncia,

    o quanto o que chama de infrapoltica dos dominados pode exercer um papel

    importante na configurao da poltica. Nessa direo, convence a sua fantstica

    descrio sobre as relaes entre fazendeiros e camponeses na aldeia que chamou de

    Sedaka, em que o autor reivindica sua contrariedade com as noes de hegemonia e

    falsa conscincia a partir da potncia das prticas de fofoca, colocao de inusitados

    apelidos, realizao de corpo mole e de pequenos roubos e greves de trabalho realizadas

    pelos trabalhadores, em um cenrio de transformaes nas relaes de trabalho.

    Tambm, ao desenvolver, em seus estudos sobre as revoltas camponesas, a noo de

    economia moral(Scott, 1977), enfocou com grandeza os sentidos de justia forjados a

    partir do que chamou de tica da subsistnciados camponeses, a qual valorizava o

    risco mnimo e embasava seus sentidos de justia, baseados em reciprocidades entre

    camponeses e seus patres.

    Embora tenham recebido algumas crticas veja-se, por exemplo, as colocadas

    por Monsma (2000) - fundamentalmente colocadas na pouca ateno s diferenas e

    desigualdades presentes entre os prprios dominados, as anlises de Scott (1977, 1985 e

    1990), sem dvida, so um marco muito significativo e inovador nas abordagens sobre

    resistncia. Ao abordar as prticas de legibilidade estatais, entretanto, fica-se com a

    sensao de que o problema na analtica de Scott (1998) no exatamente na

    considerao da criatividade e improvisao presentes nos cenrios estudados, mas em

    algo inverso: uma perspectiva muito homognea do prprio Estado e da ao de suas

    tecnologias de governo.

    Anlises como as de Das e Poole (2004) j criticaram o duplo efeito de ordem e

    transcendncia imaginado nas anlises mais clssicas sobre Estado, questionando sua

    construo. Em coletnea de estudos antropolgicos sobre o Estado, tais autoras

    rejeitaram a ideia do Estado como forma administrativa centralizada de organizaopoltica que se torna enfraquecida ou menos articulada ao longo de seu territrio e nas

    suas margens. Na analtica proposta por Das e Poole (2004) o Estado imaginado

    como um projeto sempre incompleto, que deve ser constantemente criado e imaginado

    atravs de uma invocao de selvageria e ilegalismos. Por outro lado, as margens no

    so apenas territoriais, mas so tambm espaos de prticas nos quais a lei e outras

    prticas estatais so colonizadas por outras formas de regulao.

    neste sentido que as interrogaes de pesquisa podem abarcar tambm asquestes de como as prticas e a vida poltica desses/nesses espaos conformam as

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    prticas polticas, regulatrias e disciplinares que constituem o que se chama de

    Estado, convidando os analistas a repensarem as dicotomias bem estabelecidas entre

    legal/ilegal, centro/periferia, pblico/privado, etc. Como possveis agendas de pesquisas

    inspiradoras sobre a relao entre Estado e suas margens, as autoras sugerem a anlise

    das tecnologias de poder com as quais o Estado tenta administrar e pacificar populaes,

    a relao entre corpos, disciplina e lei e, tambm, as dinmicas de produo da

    legibilidade e ilegibilidade (Das e Poole, 2004).

    No caso das anlises sobre a produo de legibilidade estatal, o privilgio

    analtico da maior parte das abordagens tm sido a de destacar a relacionalidade entre

    legibilidade e ilegibilidade, mostrando sua consubstancialidade (por exemplo, Das e

    Poole, 2004; Duro, 2009 e Soilo, 2015). Entretanto, acredito que a abordagem

    proposta por Das e Poole (2004) convida tambm a explorar a sua produo a partir das

    margens. Em minha opinio, o que interessante nesta perspectiva a possibilidade

    de abertura para considerar a produo de legibilidade no apenas como uma dimenso

    unilateral de um Estado centralizado que produz mapas abreviados que simplificam,

    controlam e refazem as realidades que retratam (Scott, 1998). Na medida em que nos

    permitimos pensar as margens como espaos que tambm podem colonizar o Estado,

    a prpria produo de legibilidade tambm pode ser um espao em que novas inscries

    polticas so efetivadas. exatamente essa a argumentao que desejo enfatizar neste

    captulo, a partir de uma experincia de engajamento etnogrfico com o Movimento

    Nacional de Populao de Rua (MNPR), coletivo que luta pela defesa e promoo dos

    direitos humanos das chamadas pessoas em situao de rua no Brasil.

    Atravs desse acompanhamento etnogrfico, possvel perceber um esforo,

    tanto do MNPR quanto de organismos jurdicos e rgos ligados ao Estado, em tornar a

    chamada populao em situao de rua legvel ao Estado.Como pretendo tambm

    demonstrar neste texto, tal esforo implica a celebrao de tcnicas importantes deproduo da legibilidade como, por exemplo, as pesquisas censitrias, as definies

    conceituais expressas em novas normativas legais e os manuais e cartilhas para a devida

    considerao desse grupo social como uma populao oficialmente inscrita no universo

    da garantia dos direitos no Brasil. Entretanto, tais prticas de produo de legibilidade

    no podem ser consideradas como esforos constitudos apenas pelo Estado; tais

    tcnicas de governo so coproduzidas a partir de composies heterogneas e tensas

    entre Estado, movimento social, organizaes jurdicas e no governamentais enarrativas transnacionais mais amplas dos direitos humanos, num entrelaamento

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    dinmico de lutas e leis, processos de subjetivao e moralidades, modos concomitantes

    de gesto e inscrio poltica.

    Engajamentos Etnogrf icos e a Poltica Contra e a Parti r do Estado

    Desde o ano de 2013, tenho acompanhado as reunies e atividades diversas do

    MNPR em sua seo do Rio Grande do Sul, estado do sul do pas. Meu atual

    engajamento etnogrfico provm de um interesse iniciado em 2007, quando coordenei

    uma pesquisa quali-quantitativa sobre esse grupo populacional, em Porto Alegre, em

    parceria com os colegas Ivaldo Gehlen (UFRGS), Claudia Turra Magni (UFPEL) e Iara

    Kundel (UFRGS). A pesquisa intitulou-se: Perfil e Estudo do Mundo da Populao

    Adulta em Situao de Rua (UFRGS, 2008) e deu origem a uma mobilizao reflexiva

    que articulou acadmicos e profissionais da Fundao de Assistncia Social e Cidadania

    (FASC), rgo gestor da poltica de assistncia social no municpio e responsvel pela

    administrao da pesquisa em Porto Alegre, a qual originou uma coletnea de artigos

    sobre a pesquisa e as polticas de atendimento populao de rua (Gehlen, Borba e

    Silva, 2008)2.

    Na poca, o Ministrio do Desenvolvimento Social do Brasil, em parceria com a

    UNESCO, estava realizando a primeira e at o momento, nica contagem

    populacional em nvel nacional em relao populao de rua. A pesquisa abrangeu

    todos os municpios com mais de 300.000 mil habitantes, com exceo de Belo

    Horizonte, So Paulo e Porto Alegre, que realizaram estudos prprios, com equipes

    locais (como aquela em que eu estava includa). A contagem nacional totalizou o

    nmero de 31.922 pessoas em situao de rua nos 71 municpios pesquisados e, na

    poca, agregando-se os dados das cidades que realizaram pesquisas especficas,

    calculou-se que havia cerca de 50.000 pessoas em situao de rua no pas. A pesquisade Porto Alegre, por sua vez, totalizou 1203 adultos e 383 crianas e adolescentes em

    situao de rua, contribuindo com dados importantes acerca de seus modos de vida,

    2A pesquisa quali-quantitativa acerca da populao de rua integrou um projeto mais abrangente de estudode outras populaes em Porto Alegre, com objetivo de compreender a diversidade cultural na cidade. Foifinanciada pelo Ministrio do Desenvolvimento Social, administrada pela Fundao de Assistncia Sociale Cidadania (FASC) e coordenada pelo socilogo Ivaldo Gehlen. Foram estudados tambm os

    remanescentes de quilombos, as comunidades indgenas e os afro-brasileiros de Porto Alegre/RS,pesquisas que contaram com uma ampla equipe de profissionais, entre os quais antroplogos, socilogose historiadores. Ver: Gehlen, Borba e Silva, 2008.

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    relao com servios pblicos, sade, cotidiano e violncia na rua (UFRGS, 2008,

    Schuch et al, 2008).

    Posteriormente, em 2011, engajei-me novamente no estudo de tal populao, a

    partir do convite da Prefeitura Municipal de Porto Alegre que, s vsperas do

    lanamento do ento chamado Plano de Enfrentamento Populao de Rua no

    municpio, desejava realizar o que foi chamado de cadastro populacional dos adultos

    em situao de rua. Eu e o socilogo Ivaldo Gehlen realizamos ento tal assessoria para

    o cadastro populacional, que visava atualizar os dados de 2007 e subsidiar as aes do

    governo previstas no Plano de Enfrentamento Populao de Rua, por sua vez

    obrigatrio a partir das orientaes da Poltica Nacional para a Populao em Situao

    de Rua, lanada em 2009. Sem prever o estudo mais amplo a respeito dos modos de

    vida, educao, sade, relao com servios pblicos, sociabilidade e violncia, o

    cadastro populacional contabilizou o nmero de 1347 pessoas adultas em situao de

    rua em Porto Alegre. Mais que a publicao do nmero de pessoas em situao de rua

    em Porto Alegre, este cadastro populacional deu origem a uma nova mobilizao efetiva

    dos servios de assistncia social em termos de reflexo sobre a populao em situao

    de rua na cidade de Porto Alegre. Houve a articulao de acadmicos e profissionais

    envolvidos com a efetivao das polticas pblicas em seminrios e discusses diversas,

    originando mais uma vez a publicao de uma coletnea de artigos sobre isto (Espndola

    et al, 2012).

    No ano de 2013, incentivada pelo desejo de realizar relaes menos contingentes

    do que aquelas estabelecidas pelas pesquisas quali-quantitativas, passei a coordenar um

    projeto de pesquisa-extenso intitulado: Direitos Humanos: moralidades e

    subjetividades nos circuitos de ateno populao de rua no Brasil. O projeto, que

    conta hoje com dois anos de trabalho e ainda est vigente, prev a compreenso das

    prticas de governo em torno desse grupo a partir das moralidades e subjetividadesdaqueles que esto as produzindo nas prticas cotidianas3. Inicialmente pensado para

    abordar tanto os profissionais do Estado como aqueles atendidos pelas polticas de

    governo, fazendo uma espcie de mediao entre esses atravs de encontros de reflexo

    3Atualmente, a equipe formada pelos alunos de graduao em Cincias Sociais Bruno GuilhermanoFernandes e Pedro Ferreira Leite. Participam ativamente ainda desse campo de pesquisa e extenso oaluno de doutorado Tiago Lemes da Silva e a aluna de mestrado Helena Lancelotti. O trabalho de campointenso vivenciado por essa equipe comea agora a ser refletido e pensado em textos e artigos sobre o

    assunto e, nesse sentido, indico os textos de Fernandes e Schuch (2015) e Silva (2013 e 2014). Agradeoimensamente a colaborao de todos, a qual fundamental para a efetivao do projeto e inspirao paraconfeco desse texto.

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    em torno de temas especficos (violncia e cidadania, direito cidade, etc), o projeto

    atualmente privilegia o engajamento e compreenso da luta poltica do Movimento

    Nacional de Populao de Rua (MNPR).

    Como disse a mim certa vez Jos Batista, atual co-coordenador do MNPR no

    Rio Grande do sul (RS): Patrice, voc olhou o lado dos vencedores... Agora est na

    hora de olhar para os perdedores, tem que escrever sobre os perdedores. Possivelmente

    ele estava se referido s minhas participaes nas pesquisas administradas pela FASC.

    A forma de colocao dos termos da frase perdedores e vencedores colocava o

    MNPR e a Prefeitura de Porto Alegre em lados opostos e desiguais, minando minhas

    expectativas de atuar como uma espcie de mediadora dessas relaes4. A partir de

    seu convite, passei a frequentar as reunies semanais do MNPR, assim como dos

    intensos e frequentes encontros e seminrios de discusso sobre a poltica de gesto da

    populao de rua em Porto Alegre, promovidos a partir das redes estabelecidas entre

    movimento social, Estado, organismos judiciais e rgos no estatais de proteo e

    promoo de direitos. A prpria existncia dessa profuso de encontros de discusso

    sobre a formulao e execuo das polticas mostrou que essas entidades se

    encontravam em direta e disputada relao, podendo-se sugerir o mesmo para as

    prprias polticas ali refletidas e inventadas.

    Foi atravs desse acompanhamento das suas lutas e debates que passei a

    perceber um modo de ao poltica bastante peculiar, que analiso como sendo realizado

    simultaneamente contrae apartirdo Estado, hiptese que tambm persigo neste texto.

    Para acompanhar esse modo de produo poltica, foram fundamentais duas referncias

    clssicas da teoria social: de um lado, as anlises de Michel Foucault (1977, 1979, 1984

    e 1985) sobre as prticas de subjetivao, formuladas a partir da sua proposio do que

    ficou conhecido como paradoxo do sujeito. Em seu entendimento, os sujeitos so

    formados discursivamente por tecnologias que entrecruzam saberes e poderes e, a partirdessa constituio e atravs do que Foucault (1984 e 1985) chama de processos de

    4Sobre as formas de trabalho antropolgico e sua justificao, ver o texto de Ramos (2007) que, comrelao aos povos indgenas, argumenta que o trabalho a ser realizado deve perseguir o movimento doengajamento ao desprendimento, na medida em que tais povos tm representantes polticos atuando

    potentemente na configurao de suas causas, alm de contar com etngrafos para estudar e visibilizarsuas questes configuradas como antropolgicas. O texto de Velho (2008) tambm argumenta para aabertura da tarefa de mediao na construo da nao, tradicionalmente colocada para antroplogos

    brasileiros, propondo a possibilidade do trabalho enfatizar a politizao da tarefa antropolgica em umcenrio em que a nao explodiu, como refere em suas palavras. Esses dois textos so refernciasfundamentais para o trabalho de pesquisa-extenso que desenvolvo junto populao de rua.

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    subjetivao, podem desenvolver originais ticas de existncia e estilos de vida

    singulares.

    De outro lado, fascina-me a possibilidade de pensar a prpria potncia da

    etnografia de Pierre Clastres (2003) em torno das formas de evitao do Estado entre os

    Guayaki e as possibilidades abertas pela sua obra de acompanhar as formas de

    subjetivao em ao, empreendidas a partir de relaes e prticas concretas entre

    sujeitos, o que de certa forma inexiste na abordagem foucaultiana5. Alm disso, ressalto

    suas precisas influncias, sobretudo, na construo de uma analtica de

    dessubstancializao do Estado, na evocao de uma pragmtica da produo do poder

    poltico que se expande para alm das formas coercitivas e, de mxima relevncia para

    os fins de minha argumentao em torno das formas de produo da poltica da

    populao de rua no Brasil, nas possibilidades de manuteno da indivisa sociedade

    Guayaki a partir da lgica da guerra como mecanismo que protege a disperso dos seus

    grupos.

    Tais referncias constituem inspiraes importantes para estabelecer uma

    espcie de zona de vizinhana com as foras de produo da poltica ora abordadas,

    fornecendo certas grades de inteligibilidade. Com Clastres (2003), possvel pensar as

    foras de contraposio ao Estado que se exercem, no caso estudado, sem prescindir

    deste e que, inclusive, atuam a partir de suas tecnologias de governo, simultaneamente

    opondo-se s suas foras de atrao atravs das denncias crticas s suas formas de

    atuao e seus instrumentos. Com Foucault (1979 e 1984), temos um modelo dinmico

    tanto da simultaneidade das relaes de poder e resistncia, como das prticas de

    governo que administram e inscrevem politicamente populaes, que acredito ser

    fundamental para a considerao das tecnologias de legibilidade como formas de

    administrao e inscrio poltica de populaes.

    No obstante, o privilgio deste texto ser acompanhar os modos de gesto einscrio poltica da populao de rua a partir da dimenso da etnografia como um

    modo de conhecimento que privilegia a experincia (Das e Poole, 2004) e que, portanto,

    de fundamental importncia para afirmao da complexidade de dinmicas que muitas

    vezes extrapolam esquemas analticos mais rgidos. De forma original e dinmica, a

    5 Didier Fassin (2009), no intuito de recuperar analiticamente os sujeitos portadores de valores e ossentidos morais empreendidos por prticas de governo, prope os conceitos de biolegitimidade epolticas da vida. O arcabouo deste texto pequeno para desenvolver tais noes, mas registro os

    esforos de Fassin em dinamizar as anlises foucaultianas no estudo das prticas de governo e,substancialmente, seu original empreendimento de agregar a dimenso experiencial dos sujeitos comoparte da anlise das tecnologias de governo.

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    vivacidade do funcionamento das lutas polticas empreendidas pela populao de rua no

    Brasil constitui uma rica teoria etnogrfica e no deve ser encapsulada pelas teorias

    sociais acima destacadas. um pouco da potncia dessas prticas polticas, dirigidas

    reflexo sobre legibilidade e, especialmente, dos debates em torno da configurao,

    caractersticas, usos e efeitos das pesquisas censitrias, que passo a destacar a seguir.

    As Pesquisas Censitrias: somente Mapas Abreviados?

    Para alm de descrever o incio de meu engajamento com a temtica das

    polticas de gesto da populao de rua no Brasil e minhas principais hipteses

    analticas, a recuperao dos aspectos acima referidos importa porque mostra o quanto a

    realizao de pesquisas censitrias e de perfil populacional esteve agregada produo

    de polticas governamentais para esse grupo. Na cidade de Porto Alegre, a Prefeitura

    Municipal, atravs da Fundao de Assistncia Social e Cidadania (FASC), desde 1994,

    executa servios voltados ao atendimento de pessoas em situao de rua da cidade. E

    significativo que a primeira pesquisa censitria sobre essa populao e seus modos de

    vida, que totalizou 222 vivendo nessa situao, foi realizada j em 1995, em uma

    colaborao entre a FASC e profissionais do curso de Servio Social da Pontifcia

    Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (FASC, 2012). A prpria contagem

    nacional, realizada em 2007, antecedeu a promulgao do celebrado Decreto n 7.053,

    de 23 de dezembro de 2009, que institui a Poltica Nacional para a Populao em

    Situao de Rua, ao mesmo tempo definindo oficialmente tal populao e orientando

    uma srie de programas e polticas para seu atendimento. Estes dados parecem apontar,

    portanto, que as pesquisas censitrias e de perfis populacionais so fundamentais para a

    produo da legibilidade de determinados grupos ao Estado, possibilitando refazer as

    realidades que retratam a partir de processos de padronizao, racionalizao esimplificao, dimenso bastante destacada nos estudos de Scott (2008).

    Sem dvida, no que diz respeito s polticas para populao de rua, a profuso

    de pesquisas censitrias e a busca por configurao de perfis populacionais que se

    realizam para compor a produo de polticas para este grupo social no uma realidade

    apenas existente no estado do Rio Grande do Sul, mas verificada tambm em

    inmeros outros locais do pas6. Segundo Pereira (2007), em geral essas pesquisas

    6Ver, por exemplo: Costa (2005), Pereira (2007), Vieira (2004), Vieira, Bezerra e Rosa (1992), Rosa(2005), Stoffels (1997).

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    caracterizam-se por uma contextualizao histrica da visibilidade das pessoas em

    situao de rua, assim como mostram preocupaes com as causas desse fenmeno

    (emprego, famlia, transtornos psicossociais, etc) e o entendimento de seu modo de

    vida. Analisando a tendncia de produo de estudos sobre perfis populacionais da

    populao de rua no Brasil, De Lucca (2007) enfatizou como evidenciam uma

    valorizao de atributos individualizados dos sujeitos pesquisados, em detrimento das

    variadas mediaes institucionais, histricas e polticas que engendram a construo

    dessa populao como uma problemtica social (De Lucca, 2007).

    Certamente, a expectativa dos organismos institucionais , muitas vezes,

    conseguir produzir uma espcie de retrato do universo que se apresenta como

    desconhecido e como se pudesse ser captado em sua naturalidade ou essncia; para

    produzir uma fotografia, entretanto, h inmeras escolhas do que captar e qual o

    enquadramento a realizar. Em cada fotografia, muitos outros enquadramentos possveis

    ficam de fora e o resultado obtido , simultaneamente, uma representao e uma

    simplificao dos cenrios trabalhados. neste sentido que concordo com Scott (1998),

    quando assinala que tornar uma populao legvel ao Estado implica em procedimentos

    de padronizao que configuram espcies de mapas abreviados que refazem as

    realidades que retratam e que so fundamentais para a ao poltica e o controle

    efetivado pelo Estado. Entretanto, como possvel perceber no caso das prticas de

    inscrio poltica da populao de rua no Brasil, tais tcnicas de legibilidade no so

    apenas isso: ao mesmo tempo em que simplificam, classificam e conformam uma

    populao s possibilidades do governo, tambm a inscreve nos cenrios de ateno

    pblica7.

    Obviamente, o movimento de inscrio poltica da populao de rua no Brasil

    tem uma histria importante em que importam no apenas as pesquisas de contagem e

    perfis populacionais, mas sim tambm os movimentos de ajuda caridosa e/oufilantrpicos e, de forma bastante significativa, o prprio movimento social (Melo, 2013

    e Silva, 2014). Sem tentar encontrar uma razo nica para processos complexos, trata-se

    de destacar essa composio de elementos heterogneos e um cenrio de

    7Sobre isso, ver as consideraes de Fonseca e Cardarello (1999), ao lembraram a importncia de levar-se em conta a dimenso discursiva nos estudos sobre cidadania e direitos. Como dizem Fonseca eCardarello (1999), as frentes discursivas um conjunto de mobilizaes variadas em torno da produode epistemologias, instituies e prticas ligadas a um tema ou grupo especfico so uma faca de doisgumes: por um lado so fundamentais para mobilizar apoio poltico em bases amplas e eficazes, mas por

    outro lado tendem a reificar o grupo alvo das preocupaes, alimentando imagens que pouco tm a vercom a realidade. Acredito que a dinmica a que me refiro neste artigo, de simultnea administrao einscrio poltica de grupos, pode ser aproximada das reflexes de Fonseca e Cardarello (1999).

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    redemocratizao propcio para modificao da arena do debate poltico, informado

    ainda por influncias de narrativas transnacionais de direitos humanos. Como j

    escreveu Richard Wilson, tais narrativas dos direitos humanos e sua incidncia em

    programas e instituies nacionais so extremamente importantes em pases com

    experincias de redemocratizao, uma vez que so fontes de legitimidade em cenrios

    internacionais (Wilson, 1997).

    Em Porto Alegre, no que se refere luta poltica em relao populao de rua,

    em meados de 1991 foi institudo um movimento popular chamado Movimento dos

    Direitos dos Moradores de Rua (MDM de rua). Segundo Lima e Oliveira (2012), esse

    movimento visava a organizar e estimular os moradores de rua a participarem de

    encontros semanais para debater problemas enfrentados e buscar suas solues de forma

    coletiva. Originou-se no ento chamado albergue municipal Abrivivncia, que apoiou o

    projeto. Por conta da falncia de alguns projetos originados nesse mbito do movimento

    (essencialmente, um galpo de reciclagem), o movimento teria sucumbido. Alguns anos

    depois foi articulado, em conjunto com a organizao no governamental ALICE, o

    Frum da Populao Adulta em Situao de Rua. O Frum funcionava a partir de

    encontros semanais em uma sala do Mercado Pblico de Porto Alegre e foi um

    movimento importante que originou conselheiros da assistncia social e de outras reas,

    no mbito do Oramento Participativo de Porto Alegre (Lima e Oliveira, 2012 e

    Pizzato, 2012). Por sua vez, a organizao no governamental ALICE a entidade que

    coordenou a implantao do Jornal Boca de Rua, existente h quatorze anos em Porto

    Alegre. O jornal uma mdia que foi propulsora na divulgao de reportagens sobre a

    vida na rua, escritas pelas prprias pessoas em situao de rua, autointitulados

    jornalistas do Boca de Rua. Sem dvida, o Boca de Rua tambm vem ampliando

    significativamente a visibilidade e luta poltica dessa populao.

    Relatos ainda de pessoas participantes do MNPR contam da existncia doMovimento Aquarela, o qual teria se desconstitudo em funo de ser um movimento

    de um homem s. Simone, militante do MNPR, jornalista do Boca de Rua e escritora,

    ao falar dos variados movimentos de luta poltica salienta que: um movimento que se

    movimenta, para exatamente apontar a dinamicidade dessas formas de organizao

    poltica, que perdem a fora exatamente quando seus lderes passam a querer apenas se

    auto-representar e promover e/ou encontram modos de vida alternativos rua, pelo qual

    so lembrados negativamente e destitudos pelo grupo, numa dinmica que pode seraproximada com aquela referida por Clastres (2003). Destaco que esses diversos

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    movimentos presentes no cenrio porto-alegrense tinham uma dinmica regional, ao

    passo que diferem significativamente do atual MNPR, movimento criado em 2004 para

    atuar e representar nacionalmente tal populao e que, no Rio Grande do Sul, passou a

    ter uma sucursal com existncia efetiva apenas em 2013.

    A prpria criao do MNPR agente fundamental na inscrio poltica da

    populao de rua no Brasil decorre de um cenrio de inscrio da linguagem dos

    direitos no Brasil e processos mais abrangentes de transformaes de instituies,

    normativas e modos de interveno a variadas populaes, realizadas a partir do

    processo de redemocratizao poltica e no bojo da expanso da retrica dos direitos

    humanos no pas (Fonseca e Cardarello, 1999 e Schuch, 2009). Sem dvida, no que diz

    respeito especificamente populao de rua, foi fundamental a visibilidade adquirida

    pelos meninos de rua (Milito e Silva, 1994 e Schuch, 2009) e pelo Movimento

    Nacional de Meninos e Meninas de Rua, criado em como entidade civil independente

    em 1985, com o apoio da UNICEF (MNMMR, 1988). Esses personagens ampliaram as

    lutas por reconhecimento da rua como um espao de luta poltica, ao mesmo tempo em

    que divulgaram as prticas de violncia a que os sujeitos que a ocupavam estavam

    sujeitos, num espao social e poltico bastante ambguo.

    O nascimento do MNPR, por exemplo, resulta de um evento de violncia

    extrema contra pessoas em situao de rua, o conhecido Massacre da S, em So Paulo,

    efetivado em 2004. Neste evento, mais de uma dezena de pessoas foram assassinadas

    e/ou ficaram feridas, por estarem simplesmente ocupando tal espao pblico para

    habitao. Pode-se dizer que a marca de criao do MNPR passa a ser a prpria

    denncia de violncia e desrespeito aos direitos humanos das pessoas em situao de

    rua, configurando uma forma de subjetivao poltica em que a forma denncia de

    violao dos direitos humanos fundamental, assim como os processos de reverso dos

    modos de se engajar politicamente: da queixa luta, do favor aos direitos.Como afirmou Roberto, militante e atual co-coordenador do MNPR no Rio

    Grande do Sul, em seminrio realizado em novembro de 2013, na UFRGS, realizado em

    colaborao entre MNPR, UFRGS e Secretaria dos Direitos Humanos da Presidncia da

    Repblica: A gente tem dois caminhos na vida: um v iver de queixas e o outro

    transformar as queixas em lutas.Numa dinmica bastante peculiar de atuar a partirdo

    repertrio das polticas oficialmente vigentes dos direitos das populaes brasileiras,

    mas ao mesmo contraa forma de sua efetivao, o MNPR passa a atuar utilizando-se dalinguagem dos direitos humanos como forma de luta poltica. Nos encontros do

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    movimento, h um incentivo para que as pessoas em situao de rua possam aprender

    no mais a pedir, mas exigir direitos. Vamos ns, populao de rua, exigir nossos

    direitos: no favor!, disse em uma das reunies do MNPR um de seus coordenadores,

    Joo Batista. Ele e outros de seus colegas, frequentadores assduos do movimento,

    insistem na poltica de que morador de rua tem que se informar sobre seus direitos e

    sobre as polticas de direitos humanos, assim como a respeito do funcionamento dos

    rgos estatais para sua ateno.

    Nessa mobilizao, destacada a relevncia dos processos de transformao das

    polticas de caridade e assistncia s polticas dos direitos humanosmesma tnica dos

    organismos governamentais que, com o apoio de entidades transnacionais de proteo e

    promoo aos direitos humanos (como UNICEF e UNESCO), se engajam com o

    movimento social numa espcie de pedagogia informativa dos direitos da populao de

    rua no Brasil e das normativas legais para sua proteo (Silva, 2014). Tal pedagogia

    explcita na intensiva publicao de cartilhas em relao aos direitos da populao de

    rua e as formas de interveno que a esta populao devem ser dirigidas. Numa rpida

    pesquisa na internet e sem esgotar, portanto, o universo dessas produes, encontrei em

    outubro de 2014 cerca de 30 cartilhas e guias de servios produzidos no pas, em geral

    produzidos atravs de redes governamentais e no governamentais, organismos

    jurdicos e rgos de defesa de direitos humanos, muitas com o apoio do MNPR.

    Em geral, constava nesse material a conceituao de pessoa em situao de rua,

    um arcabouo significativo de normativas legais em torno dessa questo e, de acordo

    com a origem da cartilha e guia de servios (governamental ou no governamental),

    instrues sobre como intervir (nas abordagens policiais, nos CREAS e SUS, por

    exemplo) ou como denunciar violaes de direitos humanos (rgos a procurar, como

    fazer um Boletim de Ocorrncia, o que um habeas corpus, etc). Embora, neste texto,

    no caiba uma ateno maior s cartilhas e guias de servios, meu argumento quetambm constituem um material significativo de produo de legibilidade populao

    de rua, mostrando uma forma de coproduo das formas de gesto e inscrio poltica

    dessa populao no Brasil e o quanto a preocupao com o tema da populao de rua e

    seus direitos tornou-se uma questo nacional na dcada de 2000.

    Um dos pontos interessantes de observar nesse processo de nacionalizao das

    preocupaes com a populao de rua, evidenciado tambm nas cartilhas e guias de

    servios, a prpria definio dos termos utilizados para defini-la. Na dcada de 2000,a visibilidade crescente desse grupo colocou em debate tambm prpria terminologia

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    utilizada para defini-lo e classific-lo, historicamente bastante variada. Como j nos

    ensinou Didier Fassin (1996), ao trabalhar com as terminologias de definio do

    clandestino ou excludo na Frana, as palavras no servem apenas para nomear,

    classificar ou definir: elas permitem tambm definir aes e orientar as polticas. neste

    sentido que um dos pontos fundamentais da criao da Poltica Nacional para a

    Populao de Rua, instituda pelo Decreto n 7.053, de 23 de dezembro de 2009, a

    prpria definio do que se entende por populao em situao de rua. Neste

    documento, pode-se ler que:

    Pargrafonico. Para fins deste Decreto, considera-sepopulao em situao de rua o grupo populacionalheterogneo que possui em comum a pobreza extrema, os

    vnculos familiares interrompidos ou fragilizados e ainexistncia de moradia convencional regular, e que utilizaos logradouros pblicos e as reas degradadas como espaode moradia e de sustento, de forma temporria ou

    permanente, bem como as unidades de acolhimento parapernoite temporrio ou como moradia provisria (Decreton 7.053 de 23 de dezembro de 2009:1).

    Como j destaquei anteriormente (Schuch et al, 2012), a populao em

    situao de rua definida acima a partir de sua pobreza, da interrupo de vnculos

    familiares e pela inexistncia de moradia regular convencional atributos de

    despossesso alm de ser tambm caracterizada pela utilizao de servios de

    acolhimento ou moradia temporria ou provisria, isto , pela dependncia de agentes e

    instituies. interessante como a definio proposta contrasta frontalmente com

    aquela proposta pelo Movimento Nacional da Populao de Rua. Nos termos da

    definio deste movimento:

    O MovimentoNacional da Populao de Rua formado porhomens e mulheres em situao ou trajetria de rua,comprometidos com a luta por uma sociedade mais justa quegaranta direitos e a dignidade humana para todos. Esseshomens e mulheres, protagonistas de suas histrias, unidosna solidariedade e lealdade, se organizam e mobilizam paraconquistas de polticas pblicas e transformao social6.

    Nessa definio, acentuada a disposio para a luta por direitos e dignidade, o

    protagonismo dos seus participantes na produo da histria e a sua unio na

    solidariedade, na lealdade e na mobilizao para conquista de direitos. A autodefinio

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    dada pelo movimento produz uma viso mais ambgua da prpria rua como espao de

    criao de identidades e novos relacionamentos, no marcados apenas por falta, perda e

    despossesso. A rua aparece, ento, no s como um espao da carncia, mas de

    inventividade, criatividade e, sobretudo, luta (Schuch et al, 2012). O Movimento

    Nacional da Populao de Rua, ao definir-se prioritariamente por sua agncia poltica,

    fornece uma viso ambgua da rua: ao mesmo tempo em que busca alternativas para a

    sada ou a melhoria dessa situao social, tambm luta pelo prprio direito rua (De

    Lucca, 2007).

    Assinalar essas diferenciaes conceituais importante porque coloca em

    questo a luta poltica constante que realizada em torno dos significados legtimos

    para esse conjunto diverso de pessoas que, como destacou Fassim (1996), tem

    incidncia direta no modo como as prticas de governo sero orientadas efetuadas.

    Explicita tambm que as prticas de coproduo realizadas entre o MNPR e organismos

    jurdico-estatais e o apoio do movimento a determinadas tecnologias de legibilidade

    estatal como vimos, atravs da proposio das cartilhas e da celebrao da Poltica

    Nacional da Populao de Rua - no deve ser compreendido como adeso direta aos

    prprios termos propostos, mas tambm como parte de estratgias e tticas polticas nas

    quais variados modos de habitar instrumentos e categorias so possveis. Afinal, se o

    Estado deve ser constantemente refundado e no homogneo ou completo (Das e

    Poole, 2004), ser que no poderia tambm haver diferentes modos de habitar suas

    normas e categorias e coproduzias e coproduzir-se neste processo?

    Prti cas de Legibi l idade e as Formas I nvent ivas de sua H abi tao e

    Copr oduo

    Nos esforos de produo de visibilidade poltica, o prprio MNPR celebrou eapoiou a realizao da primeira contagem nacional, realizada em 2007 no Brasil, como

    uma importante conquista de suas lutas. Isto porque, atravs dessa contagem a

    problemtica da situao de rua adquiriu uma dimenso nacional, para alm das

    preocupaes regionais de municpios e de estados brasileiros8. Tal movimento de

    8 No mbito das polticas pblicas federais, o maior interesse sobre as especificidades da populaoadulta em situao de rua data de 2004, quando o Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a

    Fome (MDS) props o debate em torno de polticas especficas para os indivduos colocados nessasituao social. Em torno dessa poca foi realizado o I Encontro Nacional de Populao em Situao deRua, mais exatamente em 2005, e foi solicitada uma pesquisa de abrangncia nacional sobre o assunto,

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    nacionalizao tambm teve como ato importante o I Encontro Nacional de Populao

    em Situao de Rua, promovido pelo Ministrio do Desenvolvimento e Combate

    Fome, em 2005, com a participao de representantes polticos e militantes da

    populao de rua, gestores federais, estaduais e municipais. Atualmente, o movimento

    social pressiona para a realizao da insero da populao de rua nos censos nacionais

    da populao brasileira, o que por ora ainda no aconteceu.

    importante destacar, porm, que essa participao na configurao das

    polticas nacionais e reivindicao por estudos censitrios e cadastrais acerca desse

    pblico no significa legitimar os dados levantados (ou mesmo o rumo das polticas

    propostas), mas destaca a importncia que certas tcnicas de legibilidade tm para as

    lutas por reconhecimento, ao registrar oficialmente uma populao flutuante e inscrev-

    la como alvo de ateno das polticas governamentais. No significa tambm dizer que

    as pessoas pesquisadas celebraram a insero de seus cadastros individuais nos sistemas

    de controle governamentais, havendo aqui uma diferena fundamental entre os nveis

    molar (massificante) e molecular (individualizante) das estratgias de governo e de sua

    aceitao, marcando modos distintos de habitar suas formas de efetivao e usos9.

    Em minha experincia com pesquisa censitria, por exemplo, percebi um

    interesse legtimo dos pesquisados em compreender exatamente os termos da pesquisa e

    seus usos, alm de estratgias de ocultamento das identidades, os quais no podem ser

    desconsiderados. Em um dos casos que analisamos, o mesmo indivduo investigado se

    apresentou com trinta diferentes perfis de dados, mudando pequenas informaes sobre

    idade, procedncia e etc, em cada uma das vezes em que foi questionado. No mesmo

    sentido, foi possvel perceber um substantivo acrscimo de pessoas que simplesmente se

    recusaram a responder a pesquisa, quando comparamos os nmeros do estudo de 2007,

    que foi coordenado e executado por uma equipe significativa de profissionais da

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com o nmero de recusas aresponder pesquisa em 2011, quando esta foi realizada pela Fundao de Assistncia

    Social e Cidadania (FASC) atravs de seus profissionais e estagirios.

    que fornecesse informaes sobre o nmero e modo de vida das pessoas em situao de rua dos principaismunicpios brasileiros, realizada finalmente em 2007, o que deu uma dimenso nacional problemticada situao de rua.9 A distino entre os planos molar e molecular que realizo inspirada naquela efetivada por Rabinow eRose (2006), ao discutirem o biopoder na contemporaneidade, em que o plano molar aquele das nfases

    e relaes sobre os modos de pensar e agir ao nvel dos grupos populacionais e coletividades e o planomolecular refere-se individualizao de estratgias biopolticas.

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    No cadastro efetuado em 2007, a universidade participou apenas atravs da

    equipe de consultoria e tambm por meio da equipe de supervisores do trabalho de

    campo, composta em sua maior parte por estudantes de ps-graduao da antropologia e

    sociologia. Enquanto na pesquisa de 2007 os que se recusaram responder abrangeram

    apenas 4,2% (50 pessoas) do universo pesquisado, este percentual subiu para 12,8%

    (172 pessoas) em 2011. Essa substantiva diferena foi explicada, no relatrio final do

    cadastro, tanto atravs da mudana do organismo de produo da pesquisa, quanto por

    conta de uma maior organizao poltica das pessoas em situao de rua, o que teria

    levado a disputas de representatividade e conflitos com o grupo de representantes da

    populao de rua que foram consultados na atividade de mapeamento, durante a

    organizao da pesquisa (FASC, 2012).

    Entretanto, tanto o caso do sujeito que se identificou diferentemente em 30

    questionrios, quanto o caso do alto percentual de pessoas que se recusaram a participar

    do cadastro censitrio no podem ser compreendidos como se fossem simplesmente

    resultados de uma falha na confeco da pesquisa ou um mero erro de entendimento dos

    temos do estudo, por parte dos investigados. Acredito que traga uma potncia

    significativa de contrariedade individualizao das informaes e de seu registro e

    uma prtica de resistncia importante em relao s tcnicas de legibilidade, em seu

    nvel molecular. A importncia da distino analtica entre os nveis molar e molecular

    preciosa, pois quando consideramos o nvel molar em que as tcnicas de legibilidade

    atuam, os esforos do movimento social parecem ser o de ampliar os processos de

    visibilidade poltica dessa populao.

    Isso pode ser evidenciado tanto pelas reivindicaes e a celebrao em torno da

    produo de estudos censitrios dirigidos a este pblico, quanto pela crtica dirigida ao

    nmero de pessoas em situao de rua, os quais resultam dos censos. Em Porto Alegre,

    foram bastante significativos os debates em torno do nmero resultante das pesquisas de2007 e 2011, na medida em que representantes da populao de rua, em fruns sobre o

    tema e em conversas cotidianas em torno do assunto, questionaram o que salientavam

    ser o reduzido nmero de pessoas em situao de rua resultantes da pesquisa. Tal

    questionamento incidiu diretamente nos esforos de pesquisa, tanto em 2007 quanto em

    2011, quando uma espcie de fora tarefa foi montada para tentar encontrar pessoas

    em situao de rua que no tivessem sido ainda pesquisadas, mesmo aps o

    encerramento do prazo estabelecido para a investigao e da percepo dosinvestigadores do prprio esgotamento do nmero de pessoas a serem pesquisadas.

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    Todavia, os nmeros resultantes ainda foram questionados (respectivamente

    1203 pessoas na pesquisa de 2007 e 1347 pessoas adultas em situao de rua no estudo

    de 2011) em que pese que o resultado de Porto Alegre condizer com o padro

    populacional resultante dos estudos com cidades do mesmo porte no Brasil. O

    movimento social estimava, em 2007, a existncia de 4.000 pessoas em situao de rua

    na cidade (Lima e Oliveira, 2012)10; as estimativas de 2011 eram ainda maiores, de

    cerca de 5.000 pessoas, e foram veiculadas em jornais tanto por militantes, quanto por

    acadmicos envolvidos com projetos de extenso populao de rua, oriundos das reas

    de enfermagem e arquitetura11.

    Em 2007, a crtica atingia no apenas os nmeros resultantes do estudo, mas

    tambm os seus prprios objetivos. Segundo Lima e Oliveira (2012), alguns

    representantes do Frum chamavam a ateno de que as pesquisas realizadas pelas

    universidades no acrescentam nada de novo ao seu cotidiano (Lima e Oliveira,

    2012:170). Em reunies do MNPR e conversas informais com pessoas do movimento,

    no era raro ouvir crticas aos estudos acadmicos de um modo geral, no sentido de no

    aproveitamento dos estudos realizados. Em 2014, a crtica pesquisa de 2011 tambm

    foi feita por Simone, mulher de cerca de 40 anos, militante do MNPR, escritora e

    jornalista do Boca de Rua. Em uma das reunies do MNPR, levantou seu brao com a

    coletnea resultante da publicao de textos acerca da pesquisa realizada e de outros

    artigos sobre a poltica para pessoas em situao de rua e lamentou veementemente sua

    publicao.

    Essa situao me constrangeu de forma significativa, pois era uma das autoras de

    um captulo do livro e havia especialmente o entregado a ela, em uma reunio anterior

    10Em torno de 2007, dois pesquisadores da rea da arquitetura, ligados UFPB, realizaram uma incursojunto ao ento Frum da Populao Adulta em Situao de Rua. O objetivo dos pesquisadores era

    compreender a trajetria e a luta poltica pela criao desse movimento, o qual objetivava inserir asdemandas da populao de rua no Oramento Participativo do municpio, o qual trabalhava a partir dasetorizao de bairros esse movimento e no considerava as demandas da populao sem domiclio. Almda historicizao dessa trajetria, os pesquisadores ressaltaram outras informaes recolhidas junto aomovimento e salientaram que: Algumas informaes obtidas contrariam os dados oficiais, entre elas amais alarmante relaciona-se ao nmero total de moradores de rua no municpio. Integrantes do Frumestimavam que, no ano de 2007, o nmero total de moradores sem domiclio institucional daquelemunicpio ultrapassava a 4.000 pessoas, enquanto os dados oficiais apontam para um nmero beminferior (Lima e Oliveira, 2012:170).11 Em relao s estimativas de 2011, ver a reportagem do jornal Zero Hora de 15/08/2014, onde secoloca o clculo de 3.000 a 5.000 pessoas em situao de rua em Porto Alegre, sugerida por FernandoFuo, professor da arquitetura da UFRGS e coordenador do projeto Universidade na Rua, que rene umarede importante de professores relacionados com a problemtica da situao de rua na cidade e ao qual

    tambm estou vinculada. A reportagem originou um pedido de explicao da FASC ao reitor da UFRGS,em torno da metodologia usada para produzir esse nmero, que se afastava daquele produzido pelo estudofeito pela instituio.

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    do MNPR, achando que havia ficado aparentemente satisfeita. Naquele dia, ela juntou o

    livro a uma grande pasta que eventualmente levava s reunies e que orgulhosamente

    dizia ser o material que embasou a denncia de violao de direitos humanos contra a

    Prefeitura de Porto Alegre. Quando em um dos encontros Simone rapidamente deixou-

    me verificar tal material, pude perceber que consistia em uma composio diversa de

    denncias, como ela denominava: abaixo-assinados de pessoas em situao de rua

    com diversos fins e destinatrios, fotos, Boletins de Ocorrncia de delegacias por

    denncias diversas relacionadas rede de atendimento, relatrios de visitas tcnicas de

    militantes de direitos humanos realizados em abrigos e albergues, reportagens de jornal

    sobre populao de rua, cartas e bilhetes de pessoas usurias das redes de assistncia,

    etc.

    A pasta era um material simplesmente fascinante, na medida em que Simone

    produzia um grande arquivo em torno das formas de inscrio poltica e jurdica da

    populao de rua em Porto Alegre e era incrvel ver, atravs dos papis, a circulao

    que realizava pelos organismos de proteo aos direitos humanos, organismos jurdicos,

    rgos estatais e no estatais de ateno populao de rua. Arrisco-me a dizer que a

    pasta de Simone era, ela prpria, um instrumento de produo de legibilidade. Mais do

    que isso, possvel assinalar que tal instrumento incidia ou, nos termos de Das e

    Poole (2004), colonizavaos prprios modos estatais de produo de legibilidade. Isto

    porque a pasta de Simone e seus incansveis esforos de denunciar o que configura

    como sendo as violaes de direitos humanos contra a populao de rua, em conjunto

    outros esforos de uma rede heterognea composta pela Comisso de Defesa do

    Consumidor, Segurana Pblica e Direitos Humanos da Cmara Municipal de

    Vereadores de Porto Alegre, pelo MNPR e pelo Ministrio Pblico, conseguiram

    configurar, a partir de 2008, uma ao civil pblica contra a Fundao de Assistncia

    Social e Cidanadia (FASC), da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.Tal ao civil pblica visava questionar a estruturao dos servios de

    assistncia social em relao populao em situao de rua em Porto Alegre e,

    sobretudo, a capacidade dos abrigos e albergues em acolher tal populao. Para encurtar

    um processo longo que aqui no cabe especificar, mas que foi composto por visitas

    tcnicas realizadas nos abrigos para verificar suas condies, testemunhos de gestores e

    profissionais ligados assistncia social e uso de informaes disponveis sobre a rede

    de atendimento, a ao foi finalmente julgada procedente ao fim de 2013, em funo dainadequao das polticas estatais de acolhimento populao de rua. Lendo o material

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    disponvel para seu acompanhamento, entretanto, ressalta a importncia que os dados

    numricos das pesquisas censitrias tanto de 2007, quanto de 2011 tiveram na

    configurao dos debates legais e na deciso judicial.

    Com estruturas de abrigamento e albergagem para moradores de rua cuja

    quantidade de vagas suportava somente a metade do nmero de pessoas em situao de

    rua recenseado pela prpria FASC em 2011, o estado do Rio Grande do Sul foi

    condenado a construir: no prazo de um ano, duas Casas Lares para idosos e duas

    repblicas; no prazo de dois anos, mais duas repblicas e um abrigo para famlias em

    situao de uma e uma casa para cuidados transitrios; no prazo de trs anos, triplicar o

    nmero de vagas em residenciais teraputicos. A condenao ainda orientou a multa

    diria de R$ 2.000,00 por cada estabelecimento no instalado e condenou o municpio

    de Porto Alegre a multa diria de R$ 3.000,00 em caso de no observncia das

    determinaes, cujas verbas devero estar previstas no oramento pblico nos anos que

    se seguirem. Tal condenao foi imensamente celebrada pelos militantes e movimento

    social e, para os termos de interesse desse artigo, pode-se ver atravs dela um efeito

    bastante inesperado das pesquisas censitrias: promovidas a partirda FASC/Prefeitura

    Municipal de Porto Alegre para possibilitar suas formas de governo, foi finalmente

    utilizada contra essas, numa dinmica articulao entre movimento social, rgos

    jurdicos e influncias das narrativas dos direitos humanos incidentes em normativas

    legais e entidades no governamentais de promoo e proteo de direitos.

    Exatamente pelas caractersticas trazidas por Scott (1998) e aqui

    etnograficamente explicitadas, isto , de comporem mapas abreviados que

    simplificam, padronizam e racionalizam, os nmeros das pesquisas censitrias

    revelaram possuir uma potncia de verdade facilmente assimilveis e legveis nos

    parmetros de objetividade e materialidade normalmente caractersticos da configurao

    de um fato jurdico no Ocidente (Bourdieu, 1989 e Geertz, 1997). Essa dinmicaparece apontar que, atravs dos ativos e complexos modos de habitar normas e

    categorias, novas formas de inscrio poltica so possveis, realizadas simultaneamente

    a partir e contra o Estado. Ao mesmo tempo, em sua colonizao por lutas sociais

    articuladas com organismos jurdicos colocados em uma arena pblica sensvel s

    narrativas dos direitos humanos, parece ser possvel afirmar que o Estado tambm

    transformado e produzido dinamicamente neste processo.

    Consideraes F inais

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    A partir da anlise de certas prticas de legibilidadefundamentalmente, atravs

    do debate em torno das pesquisas censitrias e cadastrais, mas tambm perpassando as

    cartilhas e guias de servios e as questes relacionadas terminologia que define apopulao de ruaespero ter deixado claro que tais tecnologias no apenas descrevem,

    nomeiam e classificam, mas orientam e conduzem polticas. Isto , no so apenas

    meios tcnicos neutros de conhecimento, mas instrumentos poltico-morais pelos quais

    novos modos de governo so constitudos. Ao refazerem as realidades que desejam

    retratar, so mapas abreviados que simplificam, padronizam e classificam seres e

    elementos, permitindo o governo (Scott, 2008).

    Entretanto, ao produzi-las, o Estado tambm se d a conhecersimultaneamentetornando visvel seus modos de ao, permitindo a sua crtica e possibilitando formas

    variadas de habitar seus instrumentos, normas e categorias. Ao envolverem um modo

    dinmico de fazer o Estado, colocam em xeque perspectivas que trabalham a partir

    das noes de sua transcendncia, homogeneidade ou completude (Das e Poole, 2004).

    Na medida em que o Estado deve ser sempre refundado, pode haver tambm diferentes

    modos de habitar suas normas e categorias e coproduzias e coproduzir-se nesse mesmo

    processo. As diferenas entre as apreenses moleculares (individualizantes) e molares

    (massificantes) das pesquisas censitrias e cadastrais, a distino entre as terminologias

    em torno da populao de rua oficialmente constituda pelos organismos estatais e

    aquela produzida pelo movimento social e os usos estratgicos das pesquisas censitrias

    para a abertura da ao civil pblica contra o municpio de Porto Alegre foram vias

    etnogrficas que persegui para tentar afirmar tal argumento. Foi tambm atravs desses

    elementos que busquei constituir o que considero a minha principal contribuio deste

    texto: as prticas de legibilidade fazem mais do que possibilitar o governo; elas so

    tambm vias relevantes de produo de sujeitos e, sobretudo, so oportunidades onde

    novas lutas e inscries polticas so possveis.

    Antes de finalizar este texto, gostaria de adicionar mais um comentrio. Embora

    meus escritos tenham sido um argumento em torno das tecnologias da legibilidade,

    possuem tambm um subtexto, que exatamente sobre as formas tensas de engajamento

    antropolgico e seus estilos de atuao pblica. Tendo aceitado coordenar a realizao

    da pesquisa quali-quantitativa, realizada em 2007, em um momento de finalizao do

    curso de ps-doutorado e procura de trabalhos, fui envolvida numa rede heterognea

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    de agentes estatais, militantes, atores judiciais e estudantes de antropologia e sociologia.

    Na poca, tanto esses estudantes quanto eu estvamos fascinados pelos desafios abertos

    pelo trabalho antropolgico com pessoas to dinmicas, assim como desafiados a

    contribuir para uma melhor formulao de polticas pblicas nesta rea. Este ainda um

    desafio e um compromisso que me coloco, embora agora, com mais de cinco anos aps

    a primeira pesquisa, eu perceba o quo difcil compreender o que seria uma melhor

    formulao de polticas pblicas, numa configurao dinmica de conjunes e

    disjunes de agentes, organismos e instituies.

    Confesso que, trabalhando com pessoas envolvidas em processos de luta poltica

    e que empregam polticas que entendo serem realizadas a partir e contra o Estado e,

    tendo sido autora de artigos sobre o assunto disponveis publicamente - alguns deles

    escritos atravs de minha contratao como assessora ou pesquisadora de organismos

    governamentais - a recepo de meus escritos sempre um motivo de tenso. Embora

    as crticas s pesquisas acadmicas sejam constantes, sobretudo, por no adicionarem

    nada de novo ao cotidiano estudado e em que pese algumas experincias de piada e riso

    sofrido por pesquisadores Lima e Oliveira (2012) relatam que na poca em que

    trabalharam com o Frum da Populao de Rua em Porto Alegre alguns militantes

    chamavam os pesquisados de gravatinhas minha expectativa de contribuio, em

    algum nvel, para as lutas polticas e sociais da populao da rua no Brasil e ainda estou

    experimentando as formas possveis disso se efetivar.

    Para alm de manifestar esse compromisso, esse posfcio serve tambm para

    relatar mais um pouco desse cenrio dinmico de minhas relaes com o movimento

    social e as pessoas que dele participam, trazendo o relato de uma situao vivenciada

    com Jos Batista atual co-coordenador do MNPR - a quem conheci em 2007 e,

    posteriormente, passei a novamente me relacionar a partir do projeto de pesquisa-

    extenso iniciado em 2013. Em novembro de 2013, em uma mesa de bar comestudantes da UFRGS e tambm da UFSCAR que estavam em Porto Alegre para um

    seminrio e ficaram interessados em conhecer o MNPR no Rio Grande do Sul, Jos

    Batista aproveitou para informar os estudantes de nossos contatos. Bebendo um copo de

    cerveja e fazendo-me tremer segurando meu prprio copo de caipirinha, anunciou que

    tinha lido o artigo escrito por mim em coletnea sobre a pesquisa de 2011 (Schuch et al,

    2012) e se reconhecido como personagem do artigo.

    Jos Batista fez um suspense terrvel (o qual pareceu interminvel para mim), atfinalmente declamar que tinha gostado muito do artigo e cair numa boa risada, fazendo-

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    me fazer o mesmo. Ressaltou, sobretudo, a possibilidade do registro no texto de que,

    mesmo naquela poca e antes de ter uma trajetria consolidada em termos de luta

    poltica, j havia criticado a poltica da assistncia social como uma poltica de

    primeiros socorros. Ao falar sobre os escritos sobre a pesquisa, Jos Batista no falou

    nada do censo, dos nmeros, dos percentuais ou de qualquer outro dos dados recolhidos

    pelo estudo. Orgulhoso do modo como eu o havia representado, citou apenas e

    literalmente apenas as minhas observaes quanto configurao das pessoas em

    situao de rua como de sujeitos altamente reflexivos e com agncia poltica.

    Repetiu esses termos algumas vezes, em uma entonao sincera e emocionada.

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