LUIZ MEIRELLES A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE ENRIQUE DOMINGO DUSSEL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em FILOSOFIA, sob a orientação do Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite Cintra. FILOSOFIA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo 2005
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A IDIA DE JUSTIA NA OBRA DE ENRIQUE DOMINGO DUSSEL · Filosofia da Libertação: ... FL = Dussel, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: ... atacar a origem implica atingir
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LUIZ MEIRELLES
A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE
ENRIQUE DOMINGO DUSSEL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em FILOSOFIA, sob a orientação do Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite Cintra.
FILOSOFIA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
São Paulo
2005
2
LUIZ MEIRELLES
A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE
ENRIQUE DOMINGO DUSSEL
Banca Examinadora:
São Paulo
2005
3
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao meu pai, Antonio
Meirelles (in memoriam) e à minha mãe,
Maria Emília, que me deram a vida.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite
Cintra, pela orientação segura e decisiva
para a realização deste trabalho.
Aos amigos pelo constante incentivo.
A todos os professores e professoras que
têm me conduzido pelo mundo fascinante
do conhecimento.
Ao mundo, que tão bem tem me acolhido.
5
RESUMO
A presente dissertação apresenta a idéia de Justiça na
obra de Enrique Dusel, destacando seu método analético
de destruição da história da Ética, o qual parte do resgate
dos conteúdos de eticidade existentes nas altas-culturas,
anteriores ao mundo helenístico, atinge a Grécia Antiga, o
medievo, o mito da Modernidade e a contemporaneidade,
sempre tendo em vista a responsabilidade diante do
Outro, fundamento da Ética da Libertação e da Justiça.
Na parte final apresenta sua proposta para uma
sociedade fundada no amor-de-justiça, a partir das
categorias humanas fundamentais, Erótica, Pedagógica e
Política, ressaltando os desvios que essas categorias têm
sofrido ao longo dos séculos, a necessidade de
reestruturação e os caminhos possíveis para alcançar
1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU PERIFÉRICA.........19 1.1 - UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA .................................................................. 20
1.4.1 - DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO ................................................... 30
1.4.2 - RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO....................................... 32
1.4.3 - O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA JUSTIÇA .......................... 35
1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA: SENTIDO E MÉTODO...............38
1.5.1 - O MÉTODO ANA-DIA-LÉTICO.................................................................. 43
2 – O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O MITO DA MODERNIDADE .................................................................................45 2.1 - O ESTÁGIO I: EGÍPCIO MESOPOTÂMICO..................................................47
2.2 - O ESTÁGIO II: INDO-EUROPEU ..................................................................49
2.3 - O ESTÁGIO III: ASIÁTICO-AFRO-MEDITERRÂNEO ...................................53
2.4 - ESTÁGIO IV: O SISTEMA MUNDO ..............................................................57
2.4.1 - INVENÇÃO E DESCOBRIMENTO: PRIMEIRO PASSO
CONSTITUTIVO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA ..................................... 58
2.4.2 - DA CONQUISTA À COLONIZAÇÃO: SEDIMENTAÇÃO DA
INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA....................................................................... 59
3 – DE-STRUIÇÃO DA ÉTICA OCIDENTAL......................................61 3.1 – GRÉCIA ANTIGA: O DESVIO ORIGINÁRIO ................................................62
3.2 – A ÉTICA NO PERÍODO MEDIEVAL .............................................................66
9
3.3 – O PERÍODO MODERNO..............................................................................67
3.3.1 - RENÉ DESCARTES E A MODERNIDADE: DO “EGO CONQUIRO”
AO “EGO COGITO” .............................................................................................. 68
3.3.2 - A SEPARAÇÃO ENTRE FORMAL E MATERIAL EM KANT E SUAS
3.5.1 - TAYLOR E O PROBLEMA DA JUSTIÇA................................................... 82
3.5.2 - COMO A NEGAÇÃO DA RAZÃO EM RORTY LEVA À
PERPETUAÇÃO DA INJUSTIÇA ......................................................................... 84
3.5.3 - A IMPOSSIBILIDADE DO CONTRADISCURSO DA PERIFERIA NA
TEORIA DE HABERMAS ..................................................................................... 86
3.5.4 - O ENSEJO À INJUSTIÇA N A TESE DE KARL-OTTO APEL ................... 89
4 – PROPOSTA DE UMA ÉTICA MUNDIAL: FUNDAMENTO PARA JUSTIÇA..................................................................................92 4.1 – O HOMEM COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA E DA JUSTIÇA ...................92
4.1.2 - AS POSSIBILIDADES ÔNTICAS: ABERTURA PARA REALIZAÇÃO
HUMANA NA JUSTIÇA ........................................................................................ 95
4.2 – DA DE-STRUIÇÃO DA ERÓTICA VIGENTE À RELAÇÃO DE AMOR-
CIE = Dussel, Enrique. Filosofia da Libertação: Crítica à ideologia de
Exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
DHE = DUSSEL, Enrique. Para una de-strucción de la História de la
Ética. Buenos Aires, Ser y Tiempo, 1972.
ELL = DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-
americana. São Paulo, Piracicaba, Loyola, UNIMEP, sd., 5 volumes.
EL = DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, na idade da globalização e
da exclusão. Petrópolis, Vozes, 2000. FL = Dussel, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola,
1977.
MFL = Dussel, Enrique. Método para uma Filosofia da Libertação. São
Paulo: Loyola, 1986
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INTRODUÇÃO
O mundo de hoje está cada dia mais violento. Em todos os lugares o
desrespeito ao outro se faz cada vez mais grave. Até pouco tempo, essa guerra
se fazia com maior evidência nos países mais pobres, mas hoje a situação é
diferente. O isolamento do homem o está levando ao extremo da violência e
mesmo à loucura, e até nos países ricos vêm-se ampliando focos de violência,
considerados às vezes mais absurdos do que nos demais, pois na periferia a
violência sempre foi mais aceita em razão dos vários fatores sócio-econômicos.
Em todos os setores sociais o desequilíbrio se faz presente. A família é
um dos núcleos que vêm sendo agredido de modo contumaz. A relação entre
marido e mulher se faz mais e mais tênue e quase já não há laço que a segure.
Entre pais e filhos a situação não é diferente. Cada vez mais cedo os filhos
alçam vôo em direção à liberdade1, e, paradoxalmente, estatelam-se no chão
duro da vida. Os vizinhos já não são conhecidos, e, mesmo no trabalho, as
relações são apenas profissionais...
Pense-se na situação de um trabalhador ou trabalhadora que sai de
casa às 4 horas da manhã, viaja cerca de 04 horas, em várias conduções, para
chegar ao trabalho e dali sair somente quando a noite cai. Então são mais
quatro ou cinco horas de volta para casa... Ali encontra, se tanto, alguns de sua
família em frente a um aparelho de televisão. Não lhe resta alternativa, soma-
se ao grupo, pois do contrário será dele excluído. E logo vem o sono,
incompleto, interrompido pela necessidade do trabalho. Assim a humanidade
vai-se destruindo aos poucos, transformando homens em autômatos. Essa é
apenas uma dentre as várias situações em que vivemos, direta ou
indiretamente.
O problema existe e todos reconhecem, uns mais outros menos. Mas,
por onde começar a solucioná-lo?
Preliminarmente, é preciso ressaltar a imperiosidade de se atacar a
questão em seu fundamento. Não se pode querer tratar uma doença
1 “Liberdade”, aqui, entenda-se como abandono da proteção paterna e materna em nome de
uma vida supostamente “livre” no mundo.
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eliminando seus sintomas, é preciso extinguir a sua causa. Mas, um
problema social de revestimento mundial é de difícil enfrentamento. Tem sido
mais fácil àqueles que conduzem as nações adotarem paliativos, até porque
atacar a origem implica atingir as colunas de sustentação do poder
estabelecido.
Nesse contexto de desestabilidade social, de esvaziamento do ser
humano, encontra-se o filósofo, aquele que ainda resiste ao sufocamento
produzido pelos instrumentos do poder, aquele que ainda insiste em pensar
livremente, que teima em propor uma sociedade justa, equilibrada, onde
ninguém tenha tanto a ponto de obrigar muitos a nada terem, e onde todos
possam ser humanos, livres, conscientes. Mas, posicionar-se dessa forma
exige renúncia e, sobretudo, coragem e firmeza, pois a máquina do progresso
busca, em cada recanto, esses focos de resistência com intuito de extingui-los,
não pela força física, demasiadamente visível e ultrapassada, mas pela
sedução, que embebe os incautos e os arrebata para a ciranda consumista,
privando-os de condições para reflexão.
Ao longo da história da humanidade, encontram-se muitos pensadores
de grande valor, mas não podem ser colocados todos no mesmo pedestal.
Existem aqueles que serviram ao sistema – com suas teorias totalitárias ou que
permitiram interpretações nesse sentido – e aqueles que sempre resistiram ao
jugo - e por isso foram ficando na poeira da história, esquecidos, como filósofos
de menor importância. Poderiam ser elencados vários nomes, várias teorias,
muito brilhantes e corajosas. Contudo, o trabalho requer uma abordagem
específica. Por isso, essa reflexão, do ponto de vista filosófico, isto é, do ângulo
fundamental, decidiu-se selecionar um filósofo, primeiramente que pertencesse
à linhagem dos libertacionistas; depois, que fosse contemporâneo, para que se
pudesse caminhar junto no tempo, refletir e buscar uma proposta de justiça
para nossa sociedade. Além disso, que fosse um filósofo intimamente ligado à
realidade latino-americana, pois, do contrário, correr-se-ia o risco de se
fazerem conjecturas com fundamento em outra realidade, díspare e distante.
Dessa forma, chegou-se a Enrique Domingo Dussel, filósofo argentino,
radicado no México, e fundador da Filosofia de Libertação Latino-Americana.
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Evidentemente, esse caminho começou bem anteriormente, talvez
mesmo inconscientemente. O questionamento do sistema2 vigente é muito
comum entre os adolescentes, mas poucos levam consigo o sonho de ver um
mundo melhor e raros decidem estabelecer um projeto de vida contemplando
esse fim. Desde os tempos do curso de Direito, na “Casa Amarela”, em Santos,
mais acentuadamente a partir do segundo ano, um pequeno grupo de
companheiros de turma ficou marcado pela afinidade especial quanto à
irresignação frente ao sistema competitivo em que estávamos inseridos. As
questões que mais inquietavam eram as de fundamento, e o grupo 3, pequeno,
composto de pessoas e diversas classes sócio-econômicas e faixas etárias,
destoante da maioria, sempre se interessava muito mais pelas discussões
filosóficas do Direito do que propriamente pela sua técnica. Nesse sentido, a
tônica foi o constante questionamento dos métodos utilizados e da validade dos
conteúdos apresentados pelos professores, sobretudo com a preocupação de
conhecer o sistema jurídico desde a prática processual até os últimos
fundamentos, quais sejam, os fundamentos filosóficos do Direito. No curso de
Letras, o laço com a Filosofia se estreitou, e muitas vezes trabalhei com a
Filosofia em aulas Literatura, o que se, para muitos era e é até óbvio, para
outros, causa estranheza. É que algo havia que me causava insatisfação,
talvez a idade ou mesmo a pouca experiência de vida não me permitia ver com
menos obscuridade a importância da Filosofia em minha vida. Mas, um dia,
ainda concluindo o curso de Letras, um amigo bateu à porta e disse: – Vamos
fazer Filosofia? A resposta não demorou e parti para um novo desafio:
compreender o mundo do ponto de vista filosófico.
2 “Sistema” aqui e em toda a dissertação deve ser entendido como a totalidade sócio-
econômico-política em que o homem se insere. 3 Importante lembrar que desse grupo, firmamos uma amizade fundamental com o Ricardo e a
Soninha, os quais tem acompanhado, inclusive, o processo de realização deste trabalho,
enquanto seguem suas vidas, o primeiro trabalhando também no judiciário e dirigindo uma
entidade espiritualista e a segunda, auditora aposentada, cuidando de quase uma centena de
alunos do ensino fundamental de uma escola pública de periferia, mais do que ministrando
aulas de língua portuguesa, plantando sempre a idéia de que eles podem ser os autores de um
mundo melhor.
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Foi durante a Licenciatura em Filosofia, com a oportunidade de
conhecer mais propriamente o pensamento filosófico ocidental, que, apesar
das magistrais e numerosas aulas sobre os pilares da filosofia ocidental
encontrei no pensamento de Enrique Dussel eco para os meus
questionamentos, apesar das poucas aulas. Daí começaram a surgir o trabalho
de conclusão do curso de licenciatura e a indicação para a pesquisa de
mestrado. Isso porque sua filosofia está fortemente vinculada à práxis,
sobretudo à práxis latino-americana, numa luta contra a elitização do
conhecimento, em que mostra com propriedade, ao meu ver, a necessidade de
se estabelecer uma filosofia autenticamente latino-americana, livre do
pensamento totalizador e dominador europeu e norte-americano. Da leitura de
suas obras, depreende-se facilmente que o filósofo já não pode mais ficar
enredado numa elite, servindo aos dominantes e deles se servindo. Ao
contrário, diante da massificação imposta por europeus e norte-americanos,
que exclui o pobre – e isso vale para toda a América Latina e outras regiões
periféricas –, cabe ao filósofo o papel de trabalhar para que as pessoas
possam ter uma consciência crítica mais sedimentada e, por conseguinte,
possam atuar de forma mais eficaz diante da realidade de que fazem parte. O
filósofo deve, pois exercer o papel de pedagogo da cidadania.
A presente dissertação tem por fim apresentar a idéia de Justiça
constante na obra de Enrique Domingo Dussel, bem como sua proposta para
uma sociedade mais justa a partir da restruturação das categorias
fundamentais, Erótica, Pedagógica e Política.
No primeiro capítulo serão dedicadas algumas páginas para tratar de
aspectos que são sumamente importantes para uma compreensão mais
abrangente do trabalho. Serão tratadas as questões indicativas do tema
propriamente dito, além de uma breve apresentação da estrutura desta
dissertação.
Ainda nesse capítulo serão abordados os fatos mais importantes que
contribuíram decisivamente para a escolha do tema e do autor, sobretudo no
que diz respeito aos caminhos que me levaram até a Filosofia, mostrando,
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ainda, alguns pontos demonstradores da necessidade de se trazer à tona
essa discussão.
Considerando a importância do contexto social argentino em que o
pensamento de Enrique Dussel floresceu, serão expostas também breves
considerações acerca da formação Argentina até 2ª Guerra Mundial, para,
então, ser apresentada, já contextualizada, uma biografia incompleta de
Dussel, a fim de que possam ser delineados, então, os sempre presentes
cruzamentos entre a vida e a filosofia do autor escolhido.
A parte final do primeiro capítulo tratará das duas chaves principais para
o entendimento da filosofia dusseliana, o sentido de de-struição empregado
pelo autor e o método por ele empregado, qual seja a ana-dia-lética,
demonstrando a intrínseca e necessária relação com a Justiça, dedicando-se,
ainda, um item especialmente a Emmanuel Lévinas, filósofo fundamental para
a libertação filosófica de Enrique Dussel.
O trabalho de Enrique Dussel envolve uma nova proposta de sociedade
livre, justa e solidária, e propostas com esses objetivos sempre estiveram
presentes na história da humanidade. Entretanto, a coragem de Dussel não se
limita a apresentar uma alternativa ao sistema vigente. Ele pretende, de fato,
uma sociedade estruturada em novos fundamentos. E isso significa falar em
de-struição da história da Ética, cujo sentido será explicado mais adiante, ainda
no capítulo inicial, por ser o caminho que constitui o eixo central de todo o
pensamento dusseliano.
Os temas abordados por ele envolvem vários aspectos da sociedade,
mas, fundamentalmente, a Ética é o principio norteador de seus estudos, como
será visto ao longo do trabalho. Sua busca de um sistema social justo tem em
pauta sempre a necessidade de o homem ser sujeito em condições iguais a
todos, independentemente de sua cor, raça, sexo, religião, história ou
geografia.
Por essas razões, o estudo da idéia de justiça proposta por Enrique
Dussel exige a compreensão dos caminhos por ele percorridos estudando a
formação da cultura ocidental, desde as primeiras sociedades até os dias de
hoje.
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É imperioso demonstrar como e porquê Dussel procede à de-struição
da Ética Ocidental, e, por conseqüência, os fundamentos da nova Ética de
Libertação proposta por ele, em que o Outro assume papel fundamental, e
constitui o ponto de partida e de chegada de todas as demais reflexões.
Não se pode pensar a filosofia sem pensar a história. Com esse marco,
será delineada no segundo capítulo do trabalho a releitura crítica da história da
filosofia4 segundo Dussel, o qual vai muito além da Grécia Antiga, buscando
conteúdos filosóficos nas civilizações anteriores que contribuíram para a
formação do pensamento filosófico e da cultura ocidental, e vem até o
momento contemporâneo, com a globalização.
No terceiro capítulo será abordado o processo de-struição e,
considerando que a intenção de Dussel não é apenas uma proposta superficial,
calcada nos mesmos princípios que sustentam o sistema vigente, mas a de-
struição da Ética no sentido filosófico do termo, isso implica na busca do desvio
originário, que, segundo o filósofo, está na Grécia Antiga. Nesse sentido, aliás,
ele compara o ethos helênico e o ethos judaico, a fim de apontar o que se pode
denominar como origem da implantação da injustiça na sociedade ocidental.
Uma vez estabelecida a de-struição inicial, será apresentada sua crítica às
principais teorias que ensejaram os fundamentos dos sistemas que conduziram
o homem ao longo de sua história, demonstrando a influência do desvio
originário e o distanciamento do homem dos princípios de justiça, incluindo
uma reflexão acerca da história da América Latina, principalmente sobre a
forma pela qual se deu a descoberta e a colonização, do ponto de vista
filosófico, o que é de fundamental importância, posto que marca a expansão
dos fundamentos europeus de exploração do outro, e diz respeito intimamente
à nossa realidade atual.
Em função das peculiaridades do período contemporâneo, bem com de
sua complexidade, o último tópico da terceira parte contemplará o diálogo
estabelecido entre Dussel e as principais correntes filosóficas atuais, sempre
tendo em vista aclarar a importância da reflexão sobre a Ética e a Justiça.
4 Para Dussel, tratar de Filosofia significa tratar de Ética e tratar de Ética significa tratar de
Justiça.
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O quarto capítulo mostrará, enfim, as propostas da Ética de
Libertação, as quais indicam a necessidade de reestruturação da sociedade
mundial a partir das relações humanas fundamentais, bem como a correlação
necessária com a idéia de Justiça. Para isso, a proposta de resgate da
alteridade e de re-construção das relações humanas, a partir das categorias
fundamentais, a Erótica, a Pedagógica e a Política, por serem os pilares para a
realização da justiça.
E, finalmente, serão apresentadas algumas considerações finais no
sentido não de expor conclusões, apenas, mas, sobretudo de apontar algumas
questões que devem ser postas em face do trabalho desenvolvido por Enrique
Dussel.
19
1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU
PERIFÉRICA O primeiro ponto que chama a atenção é a luta de Enrique Dussel contra
a exploração do pobre, a sua luta pela afirmação de uma filosofia
autenticamente latino-americana. Esse trabalho é sumamente dificultado em
razão de a América Latina constituir um objeto de dominação dos povos do
hemisfério norte, mais precisamente dos europeus desde 1492 e, depois da 2ª
Guerra, também dos E.U.A. Mesmo assim, é preciso se propor a pensar e
estabelecer uma filosofica autêntica. Mas, para isso, não se pode ficar limitado
a estudar os pensamentos europeu e norte-americano, pois estão
fundamentalmente vinculados às suas realidades. É necessário ir além,
ultrapassar os limites do pensamento dominante e informar um novo
pensamento, intrinsecamente ligado à realidade Latino-Americana, e, portanto,
erigir a fundação de uma nova Filosofia — Filosofia Latino-Americana, ou
Filosofia da Periferia —, que atenda às expectativas das imensas maiorias
vitimadas pelo sistema vigente.
A necessidade ocorre porque, ao estudar a Filosofia européia, corre-se o
risco de se criarem filósofos latino-americanos inautênticos, isto é, integrantes
de uma realidade, mas discursando com fundamento em outra. Para perceber
tal situação basta se observar que temos sido nascidos e criados, gerações
após gerações, dentro de uma mentalidade enaltecedora e repetidora dos
pensamentos europeus e norte-americanos (estes mais a partir do século XX)
enquanto nossa cultura vem se formando por muitos outros fatores estranhos
ao europeu ou mesmo norte-americano, os quais vêm se somando ao longo
dos anos e constituem verdadeiramente o homem latino-americano. Isso
evidencia claramente o descompasso entre o que podemos chamar de
“pseudo-pensamento” e a prática do homem latino-americano, estabelecendo
uma inautenticidade quase imperceptível. Mas, não se poderia, ingenuamente,
a partir dessa constatação, pretender-se criar uma filosofia latino-americana ou
periférica totalmente liberta da já existente e historicamente impingida ao
homem latino-americano; seria impossível, pois tal filosofia está inserida nessa
20
realidade desde o período de sua formação. Por isso a necessidade, a partir
da imersão total no mundo filosófico existente, de se começar a emergir, buscar
a superfície e lançar-se ao movimento livre de um novo pensamento.
1.1 – UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA
Dentro da obra dusseliana, um dos temas mais importantes é a sua idéia
de Justiça. É que todas as batalhas travadas por Enrique Dussel buscam
estabelecer um estado de justiça desde uma atitude ética entre os seres
humanos, sem privilégios. E mais, ao defender que aquele que tem mais deve
servir àquele que tem menos, Dussel expressa aí a premissa fundamental da
justiça, a qual define como
o hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-serviçalmente ao Outro
o que lhe corresponde, não pela lei do Todo, mas enquanto Tal - enquanto
Outro, enquanto pessoa inalienável, enquanto origem de todo direito
positivo. Justiça é disponibilidade diante dos entes, não fetichismo nem
absolutização das possibilidades do pro-jeto de Totalidade, é um colocar à
disposição do Outro os entes que podem saciar sua fome, mediar sua
libertação cultural e humana integralmente. Justiça é desapego à
liberdade, é ‘pobreza’ como atitude libertadora, que permite entregar ao
Outro o que é seu. (ELL II 149-150)
Para se chegar à compreensão dessa idéia de justiça, faz-se necessário
todo um trabalho de pesquisa no sentido de sua fundamentação. O
pensamento de Dussel é de fato muito valoroso, porquanto vai buscar as raízes
do pensamento ocidental que disseminou a idéia de dominação e, a partir daí,
apontar um caminho distinto para a ética mundial, mostrando que, para se
fundar a justiça, é preciso reconstruir o paradigma ético vigente.
Desse modo, para expor e fundamentar o pensamento de Dussel a
respeito de Justiça, faz-se necessário apresentar os aspectos principais de
todo o processo efetivado por ele para de-struição da ética ocidental e a
proposta de uma nova ética, livre, não-opressora e ensejadora de uma
sociedade justa.
21
1.2 ARGENTINA: BREVES CONSIDERAÇÕES Segundo Enrique Dussel, para fazer Filosofia, é preciso começar pela
história, posto não haver como separar o homem do mundo em que está
inserido. Assim, antes de ingressar no foco central do trabalho, faz-se
importante expor alguns aspectos históricos que envolveram a Argentina, seu
berço originário. Dussel nasceu em plena crise econômica mundial resultante
da superprodução norte-americana e européia. Naquela época, a Inglaterra
exercia forte influência política sobre a Argentina, enquanto os EUA
controlavam o comércio local.
Para melhor entender aquele contexto, é preciso rever alguns dos
principais pontos da história Argentina. A partir de alguns dos mais importantes
historiadores estudiosos da Argentina, como Roberto Cortes Conde, Ezequiel
Gallo, Oscar Cornblit, Claudio Veliz, Ricardo levene, Gino Germani e até
mesmo do ex-presidente Artur Frondizi, pode-se começar a entender o
processo de conquista implantado pelos europeus, os quais buscaram sempre
a máxima extração de riquezas naturais ao menor custo possível, sem
qualquer preocupação com a civilização preexistente a sua chegada. É um dos
aspectos que Dussel ressalta como origem do "mito da modernidade". Quadra
sublinhar a ingerência estrangeira, principalmente da Inglaterra, França,
Alemanha e EUA, perdurante mesmo depois de declarada a independência
Argentina, sendo certo que cabia à primeira o controle absoluto de todas as
ações político-econômicas no país, tendo exercido papel marcante na história
Argentina. Após 1880, com a adesão de Buenos Aires ao sistema federativo,
aquele domínio indireto deu-se em razão dos empréstimos de capital,
sobretudo, para a construção de ferrovias, pois a Argentina estava em
formação e não possuía meios nem tecnologia para fomentar a produção. A
partir daquele momento a Argentina passou a ocupar papel destacado no
mercado mundial como exportador agrícola, e a “injeção” de capital feita pela
Inglaterra tinha claramente o fim de perpetuar seu domínio sobre o país, posto
que favorecia, com seu comportamento, os latifundiários argentinos,
investidores na agropecuária de exportação e produção de matérias-primas
voltadas para o mercado europeu, o qual obtinha, assim, bons produtos por
preços insignificantes.
22
Durante o governo de Roca (1880 - 1886), foram feitos ajustes para
possibilitar o desenvolvimento comercial do país, voltado para a exportação.
Foi a entrada do “sertão” argentino no ciclo produtivo. Veja-se, a propósito, que
em 1879, ocorrera a Guerra do Deserto, que eliminou as aldeias indígenas e
preparou a colonização pelos imigrantes.
Com o capital estrangeiro5, a Argentina aumentou a rede ferroviária de
1.000 Km, em 1871, para 12.000 Km, até a 1ª Guerra Mundial, direcionada
sempre para os portos, com o objetivo de exportação.
De 1885 a 1889 foram mais de 700.000 imigrantes, fluxo esse que
perdurou até a 1ª Guerra. Córdoba, por exemplo, foi um centro recebedor de
imigrantes, em sua maioria com conhecimentos técnicos mais avançados do
que os argentinos, o que colaborou decisivamente para que aquela região
tenha se tornado grande produtora de trigo, um dos importantes produtos do
país. Todavia, os imigrantes eram instalados como meeiros no processo
produtivo e não tinham propriedades, e diante dessas discriminações,
consequentemente tinham poucos direitos e nenhum poder político.
O interesse da classe dominante, no entanto, não se fez inteiramente
bem sucedido, pois 70 por cento dos imigrantes preferiram ocupar os centros
urbanos e não os rurais. Isso provocou uma autêntica invasão estrangeira,
sobretudo espanhola e italiana, das cidades argentinas, posto que a população
nata estava equilibrada entre a área rural e a cidade, o que significava
aproximadamente 1.500.000 habitantes em cada setor , ao passo que os
estrangeiros, que naquele período - 1900 a 1930 - eram em número
semelhante ao dos argentinos - aproximadamente 3.000.000, dividiam-se em
cerca de 2.100.000 nas cidades e apenas 900.000 na área rural.
Essa preponderância de estrangeiros em Buenos Aires e regiões
vizinhas provocou grandes transformações socioculturais na sociedade local. A
produção artesanal entrou num processo de extinção em face do surgimento
dos operários industriais estrangeiros, que dominaram amplamente aquela
atividade econômica, vez que tanto o setor econômico secundário quanto o
5 Todos os dados estatísticos referentes à Argentina foram extraídos das obras dos autores
citados no início deste capítulo.
23
terciário foram tomados por eles, vindos da Europa, onde já haviam obtido
esses conhecimentos.
A partir de 1918, com o fim da primeira Guerra Mundial, a Inglaterra
começou a perder importância em face dos EUA; a indústria frigorífica, o
transporte automotor e as primeiras indústrias químicas, propulsores do
mercado nacional, assim como os empréstimos governamentais e as
instalações de bancos, entre outros, já foram frutos do investimento norte-
americano. Nesse período, os grupos empresariais procuraram se concentrar
em Buenos Aires e Rosário, na tentativa de influenciar o governo, mas pouco
conseguiram porque não conseguiram estabelecer fortes ligações com o
Partido Radical, da elite política, governante no interregno de 1916 a 1930 e
que não discriminava os imigrantes industriais.
Esse quadro de predomínio norte-americano prosseguiu até 1930,
quando assumiu a presidência da Argentina o General Agustín Justo, que
promoveu mudanças na estrutura jurídico-econômica conforme os interesse
ingleses, que passaram a controlar as ações políticas na tentativa de retomar o
poder econômico, que continuava, entretanto, com os EUA.
No período da 2a Guerra (1943/1945), a Inglaterra perdeu seu
poder para os EUA e também para a Alemanha. Nesse período, o mercado
internacional praticamente estagnou, propiciando aos países em formação,
inclusive a Argentina, o desenvolvimento da economia própria, sempre com a
ajuda dos EUA.
O desenvolvimento industrial da Argentina revela-se claro ao se
comparar a participação desse setor no PBN (Produto bruto Nacional) no
começo do século, pois em 1900 era de 13,8%, enquanto em 1925 já contava
17,7% e em 1955 passava de 23%. É imperioso registrar que, em 1935, mais
de 60% das atividades industriais cabiam aos estrangeiros. Mas, se de um lado
os imigrantes dominavam a economia, de outro não tinham influência na
política, porquanto como estrangeiros seus direitos eram demasiadamente
restritos, o que permitiu governos sucessivos desinteressados da proteção da
indústria Argentina e apenas voltados para os interesses europeus.
24
Havia, nesse período, início do século, quatro grandes grupos
políticos razoavelmente estáveis: Unión Cívica Radical; Democratas
Progressistas; conservadores e Socialistas.
A Unión Cívica Radical era um grupo popular, que tinha o apoio das
massas e buscava, assim, a liberdade eleitoral. Com esse pensamento, liderou
a Revolução de 1905, fracassada quanto aos objetivos de poder, mas
detonadora do processo concluído em 1912, com a aprovação da lei Sáenz
Peña, que estabeleceu o voto universal, secreto e compulsório, fato que
ampliou consideravelmente a base eleitoral de 20%, em 1910, para 60%, em
1916. É de fundamental importância destacar que, mesmo formado pelas altas
classes econômico-sociais ligadas à agropecuária, oligarquias e famílias
tradicionais, os radicais tinham o apoio popular.
O Partido Conservador, por sua vez, nada apresentava de
conservadorismo nacional, como seria de se supor, mas era sim, subserviente
aos interesses europeus, e suas decisões políticas baseavam-se em acordos
dos grupos dominantes. Esse grupo permaneceu no poder por 30 anos, e foi
marcado como progressista, reformador, centralista e aristocrático, opondo-se
aos radicais. Isso se evidenciou nas eleições de 1916, quando houve a
coligação entre o Partido Conservador, de Buenos Aires, a Liga der Sur (Liga
Sulina) e demais partidos conservadores, formando o Partido Democrata
Progressista.
O Partido Socialista, criado em 1894 por refugiados socialistas
franceses, alemães e italianos, com base na capital federal, ligado também a
bases populares trabalhistas, conseguiu melhores resultados a partir de 1916.
Sua ideologia programática era trazida do centro europeu, habilitando-o, assim,
naturalmente, a liderar o contingente imigrante, razão pela qual era defensor da
naturalização dos estrangeiros. Apesar dos movimentos anti-estrangeiros, nas
eleições nacionais de 1914, os Socialistas obtiveram vitória na Câmara dos
Deputados.
O crescimento dos movimentos nacionalistas naquele período,
acoplados sempre aos partidos políticos radicais, formavam, então, a Unión
Cívica Radical, na incessante oposição aos conservadores, reunindo as
classes média e baixa, tradicionalistas e nacionalistas. Contudo, apesar da
25
grande discussão travada entre o Partido Socialista, o Conservador e o
Radical, a classe industrial Argentina, que surgira com o século XX não tinha
defensores, posto que os protecionistas pensavam na agropecuária e não na
indústria, formada por estrangeiros.
A partir de 1945, os EUA passaram a ter influência decisiva no
comportamento político-econômico da Argentina, afastando o domínio inglês
definitivamente. Começou, então, a preocupação do bloco capitalista, liderado
pelos norte-americanos, em preservar o sistema vigente e impedir quaisquer
ameaças, sumamente advindas do bloco comunista, liderado pela URSS.
As “marchas” “contra-marchas” da política e da economia argentinas
seguem até os dias de hoje, como toda a América Latina, sofrendo as
ingerências estrangeiras. O ponto que culminou com o exílio de Dussel no
México foi o retorno de Perón em 1973, conforme se verá adiante.
1.3 – ENRIQUE DUSSEL: DA ARGENTINA PARA O
MUNDO Enrique Domingo Dussel Ambrosini nasceu numa pequena aldeia
chamada La Paz, a 150 Km de Mendoza, Argentina, no dia 24 de dezembro de
1934, dentro de um contexto de exploração e vitimação dos argentinos6, os
quais eram desprezados em nome de um mercado de exportação. Durante sua
infância acompanhou frequentemente seu pai pelas montanhas em visitas
médicas a vilarejos pobres e desprovidos. De 1953 a 1957 cursou Licenciatura
em Filosofia na Universidade de Cuyo, Mendoza, tendo sido aprovado com a
monografia La problemática del bien común en el piensar grego hasta
Aristóteles. Em seguida viajou para a Europa, onde permaneceu de 1957 a
6 Dussel ressalta sempre a triste lembrança que tem dos rostos enrugados e sofridos, de
homens e mulheres moradores de palhoças paupérrimas, que via quando fazia visitas
acompanhando seu pai, médico.
26
1967, quando conheceu, então, os principais países pesquisando as origens
dos povos latino-americanos.7
Nos primeiros dois anos de Europa, estudou em Madrid, tendo-se
doutorado na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Central
(Complutense) com a tese El bien común. Su inconsistência teórica, sob a
orientação de A. Millan Puelles
Depois foi para Israel, onde morou em Nazaret, com Paul Gauthier,
tendo trabalhado como carpinteiro na construção civil. Foi naqueles dois anos
em Israel (1959-1961) que Dussel despertou para a situação de opressão que
o pobre vive. Conforme ressalta Mariano Moreno Villa, in Obras Completas de
Enrique Dussel, CD-ROM 2004, “desde então o pobre será o principal
paradigma hermenêutico de suas reflexões filosófica, histórica e teológica”.
Ainda em 1961 viajou para França, onde trabalhou como bibliotecário e
estudou Teologia e História na Sorbonne.
Em 1963 foi para a Alemanha, onde começou seus estudos para o
doutoramento em história da Igreja. Depois, de 1964 a 1966, esteve na
Espanha, estudando os Arquivos das Índias de Sevilha. Doutorou-se na
Sorbonne em 1967 em História.
De volta para a América Latina, Dussel foi para o México, graças a uma
bolsa, para estudar com Leopoldo Zea. Em 1968 retornou à Argentina para ser
professor de Antropologia e de Ética na Universidad Nacional Resistencia
(Chaco), tendo assumido também o cargo de professor de Ética na Universidad
Nacional de Cuyo (Mendoza). A Argentina sob a ditadura de Ongania, apoiado
por Dussel no seu discurso de resistência à dominação estrangeira. Naquele
momento, Dussel despertou para a necessidade de uma Filosofia da Libertação
Latino-Americana e passou a trabalhar com tal objetivo.
Ricoeur, Husserl e Heidegger exerceram grande influência em seu
pensamento naquela primeira fase. Em 1970 publicou Lições de Ética
Ontológica e em 1972, Para uma de-strucción de la historia da la ética.
Emmanuel Levinas, mais tarde, proporcionou os indicadores para Dussel 7 Sua viagem à Europa deu-se principalmente porque os centros de pesquisas mais completos
sobre a América estavam naquele continente, conforme o próprio autor ressalta em várias de
suas obras.
27
encontrar a superação da primeira fase – de interiorização – para expandir
rumo à exteriorização e encontro do outro.
Na década de 70, conseguiu sedimentar sua teoria e publicar sua
grande obra "Para uma ética da libertação latino-americana", em 5 volumes, os
dois primeiros editados pela Siglo XXI, o terceiro pela Edicol e os dois últimos
pela Universidade de Sto. Tomás de Aquino.
Naquela obra, além de estruturar toda a sua filosofia, demonstra uma
preocupação histórico-filosófica fundamental com a América Latina.
Diante da volta do peronismo, em 1973, Dussel passou a ser perseguido
tanto pela direita peronista, que via nele um perigo aos seus ideais de poder
populista, quanto pela esquerda oposicionista, que exigia o seu engajamento
na luta ideológica. O filósofo, contudo, manteve-se fiel aos seus ideais
filosóficos8, atuando tanto nas universidades como nas ruas. Por isso acabou
por sofrer um atentado a bomba, lançado pela extrema direita através dos
membros do sindicato metalúrgico e do Comando Ruci, na noite de 2 para 3 de
outubro de 1973, que destruiu praticamente metade de sua casa. Sob as
acusações de “marxista” e “corruptor da juventude” as ameaças de morte e a
repressão contra suas ações prosseguiram até 1975, tendo sido, inclusive,
expulso na Universidade de Cuyo. Em 15 de agosto daquele ano partiu,
forçado, para o México, onde estudou com pensadores como Leopoldo Zea, A.
Villejas, León Portilla e outros, que lhe somaram novos pensamentos e
contribuíram para a superação dos pressupostos peronistas e fundamentação
de sua Filosofia inovadora.
Percebeu, definitivamente, a imanente conexão entre a teoria e a
realidade, da qual não poderia o filósofo se afastar, sob pena de prejuízo
irreparável à sua formação.
Ainda em 1975 assumiu o cargo de professor no Departamento de
Filosofia da Universidad Autônoma Metropolitana-Iztapalapa (México) e em
1976, na Universidad Nacional Autônoma de México (Unam).
A partir daí aprofundou suas leituras de Marx, tendo publicado algumas
das mais importantes obras sobre o aquele pensador, como o comentário sobre
28
os “Grundrisse”, “Hacia um Marx desconocido”, comentário sobre os
manuscritos de 61-63, “El último Marx(1863-1882) y la liberación
latinoamericana” e “Las metáforas teológicas de Marx”.
Dentre as suas várias obras, merece destaque ainda “Filosofia da
Libertação” (1977), escrita de memória, logo após seu exílio no México;
“História Geral da Igreja na América Latina” (1983); “Ética Comunitária” (1986);
“1492: o encobrimento do Outro” (1992) e “Ética da Libertação na Idade da
Globalização e da Exclusão”(2000), sua mais recente obra.
Continuando seus estudos, no momento exerce diversas atividades de
cunho filosófico. É um dos coordenadores de projetos do CEHILA – Comissão
de Estudos da História da Igreja na América Latina, do qual foi um dos
fundadores e presidente; membro fundador da Association of third World
theologians (AETWOT) e do Comitê Ejecutivo de la International Association of
the Mission Studies (IAMS); fundador e Coordenador Geral da Associação de
Filosofia e Libertação (AFYL); membro fundador da Revista de Filosofia
Latinoamericana (Buenos Aires); tem proferido cursos e conferências em
vários países, tanto nas Américas como na Europa, além de África e Ásia.
No tocante ao Brasil, é membro do conselho editorial da revista
Lbertação-Liberación (CEFIL, Campo Grande/MS) e além de várias palestras
em universidades, tem participado ativamente dos Fóruns Sociais Mundiais
realizados no Brasil, em Porto Alegre/RS.
1.4 – EMMANUEL LÉVINAS: FONTE DE INSPIRAÇÃO
PARA ENRIQUE DUSSEL Antes de se abordar propriamente o tema do trabalho sobre o
pensamento dusseliano, qual seja, a idéia de justiça, mister se faz uma breve
exposição do pensamento de Emmanuel Lévinas, sobretudo no tocante à sua
concepção de metafísica, a qual culminará com a elevação da ética à condição
de filosofia primeira, fator fundamental para compreensão também do
pensamento de Dussel.
8 Zimmermman ressalta que enquanto a direita preferia a categoria “nação” e a esquerda a
categoria “classe”, Dussel defendia a categoria “povo”.
29
No prefácio de Totalidade e Infinito encontra-se uma exposição clara
da leitura que Emmanuel Lévinas faz da realidade e a sua fundamentação da
defesa da ética como filosofia primeira, a qual será demonstrada ao longo da
obra. Aqui, serão abordados apenas alguns aspectos essenciais.
Inicialmente, é importante trazer à tona que, para Lévinas, a sociedade,
ao longo da história, tem estado sempre em estado de guerra. Os conflitos
constantemente vêm dominando as relações sociais:
A lucidez – abertura de espírito ao verdadeiro – não consiste em
entrever a possibilidade permanente de guerra? (Lévinas 1980 9).
Em conseqüência, a paz que se mostra é apenas aparente, vez que está
fundada na força da violência; e uma paz verdadeira, legítima, não pode estar
sustentada pela força da espada. De fato, pode-se ver facilmente que os
poucos momentos de paz que se consegue neste planeta fundam-se no
poderio bélico das grandes potências, que buscam cada vez mais aumentá-lo
para garantir a não-guerra. E mesmo já tendo passado, se é que passou, o
período nefasto da Guerra Fria.
De fundamental importância para o aclaramento da questão também é a
afirmação a que Lévinas chega a respeito da política. Para ele, o que sustenta
esse estado de tensão social é a própria política. É por meio da política que o
homem e os Estados mostram seus argumentos que, no fim, sustentam-se pela
força bélica. A política, afirma Lévinas, é “a arte de prever e de ganhar por
todos os meios a guerra”. (Lévinas 1980 9).
É a mesma política fundada na ontologia da guerra que desestabelece
os preceitos morais; que dita as normas das relações humanas. E é esta
política, aliás, que incute no homem o pensamento de que deve trabalhar cada
vez mais para ter e consumir cada vez mais. Assim é a política dos Estados, a
política de consumo e aniquilamento do homem. E a moral permanece
relativizada segundo o tempo e o espaço, de forma a atender aos interesses
dos grupos dominantes. E Lévinas, que viveu os horrores da Guerra, que
sentiu na pele esta política, não poderia ficar alheio. Defende o rompimento
com a ontologia bélica e procura o caminho para o estabelecimento de uma
paz autêntica, jamais fundada na guerra.
30
Lévinas pretende um caminho que leve ao encontro da identidade
perdida na guerra e na pseudopaz que permeia a sociedade, como assevera:
A paz dos impérios saídos da guerra assenta-se na guerra e não
devolve aos seres alienados a sua identidade perdida. (Lévinas 1980 10).
É preciso resgatar a identidade do ser humano para que ele possa
deixar de ser um mero joguete nas mãos daqueles que defendem a Totalidade
e fazem a história. O homem precisa tomar consciência de sua importância e
de sua responsabilidade diante da história e, para isso, deve assumir sua
própria identidade, o que só é possível por meio de uma “relação originária e
original com o ser”. (Lévinas 1980 10).
Essa relação, enquanto originária, consiste no estabelecimento de uma
relação ética, respeitando a identidade e a alteridade, e assim promotora da
Justiça. Enquanto original, significa dizer uma relação única, individual, em que
o Eu é chamado à responsabilidade diante do Outro e dos Outros.
1.4.1 – DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO
’A verdadeira vida está ausente’. Mas nós estamos no mundo. A
metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para ‘outro lado’,
para o ‘doutro modo’, para o ‘Outro’. (Lévinas 1980 21).
Com a afirmação supra começa Lévinas o capítulo “Metafísica e
Transcendência” em Totalidade e Infinito. Sua concepção de metafísica tem
uma abordagem muito particular, posto pensá-la inserida no mundo, fundada
no homem e não em um Deus perfeito ou alguma transcendência inexplicável,
como se encontra comumente em outros pensadores.
Deparando-se o Eu diante do estranho, do Outro, segundo Lévinas
surgem duas opções: dominar o Outro, fazê-lo representado no mundo egoísta
ou preservá-lo, mantendo a distância9, o afastamento. No primeiro caso ter-se-
á fundado uma totalidade, anulando completamente a alteridade. No segundo
caso, ter-se-á uma relação estabelecida no face-a-face e sustentada pelo
discurso, o qual mantém a distância e preserva tanto o Mesmo quanto o Outro. 9 A distância é fundamental para que o Outro não seja tido como objeto e absorvido pela
mesmidade do Eu. É a distância que permite a preservação da alteridade.
31
É nessa segunda alternativa, na relação entre o Eu e o Outro, que a
metafísica levinasiana encontra sustentação. É o movimento da interioridade
para a exterioridade, do familiar para o estranho.
Todo movimento é provocado por uma força. Para Lévinas, o que
impulsiona o movimento metafísico é o desejo, mas não um desejo que leve à
mera satisfação de uma necessidade, porquanto se assim o fosse, levaria à
absorção do Outro pelo Eu, como no “alimentar-me”, e permaneceria na
totalidade do Mesmo.
Lévinas entende que se trata de um desejo que preserva a alteridade do
Outro, sem qualquer expectativa por parte do desejante de reciprocidade. É o
desejo que não pretende aproximação ou posse; ao contrário, supõe o
afastamento, a alteridade. É o Desejo metafísico:
O desejo metafísico tem uma outra intenção – deseja o que está
para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo. É como a
bondade – o desejado não o cumula, antes lhe abre o apetite. (Lévinas
1980 22).
O Desejo metafísico só pode ser, pois, o desejo do outro “absolutamente
outro” e, portanto, do invisível, como explica o autor:
O desejo é absoluto se o ser que deseja é mortal e o Desejado,
invisível. A invisibilidade não indica uma ausência de relações; implica
relações com o que não é dado e do qual não temos idéia. A visão é uma
adequação entre a idéia e a coisa: compreensão que engloba. A
inadequação não designa uma simples negação ou uma obscuridade da
idéia, mas fora da luz e do escuro, fora do conhecimento que mede seres,
a desmedida do Desejo. O Desejo é desejo do absolutamente Outro.
(Lévinas 1980 22-23).
Assim, o Desejo do Invisível provoca um movimento do Eu em direção à
exterioridade do absolutamente Outro e promove uma ruptura da totalidade,
caracterizando esse movimento como transcendente e, ainda, uma separação
absoluta:
A transcendência pela qual o metafísico o designa tem isto de
notável: a distância que exprime – diferentemente de toda a distância –
entra na maneira de existir do ser interior. A sua característica formal – ser
32
outro – constitui o seu conteúdo, de modo que o metafísico e o Outro
não se totalizam; o metafísico está absolutamente separado. (Lévinas
1980 23).
1.4.2 – RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO
Diante de uma relação do Mesmo com o Outro em que não há absorção,
preservação da alteridade significa dizer uma relação em que o Eu sai de sua
interioridade em direção à exterioridade manifesta pelo Outro, num movimento
transcendente e, pois, metafísico.
O Mesmo, na visão de Lévinas, não se reduz à mera tautologia “Eu sou
Eu”, mas principalmente se refere à relação de posse estabelecida entre o Eu e
o mundo em que está, ou seja, ao domínio egoísta do Eu sobre o mundo. “A
possibilidade de possuir, isto é, de suspender a própria alteridade daquilo que
só é outro à primeira vista e outro em relação a mim é a maneira do mesmo.”
(Lévinas 1980 25).
Considerando, então, que nessa relação o Outro não é compreendido –
do latim comprehendere, significa conter em si; constar de; abranger – pelo Eu
e não faz parte do Mesmo, fica evidente que o movimento do Eu desejante do
Outro invisível, ao romper a totalidade enseja uma relação de natureza
transcendente, isto é, metafísica.
Para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos
sentidos que se apaziguam, a metafísica deseja Outro para além das
satisfações... Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o
afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, a
alteridade, inadequada à idéia, tem um sentido... Morrer pelo invisível –
eis a metafísica. (Lévinas 1980 22-23).
Mas não é só. Essa relação não é unicamente um ato mental. A fala, o
diálogo deve ser estabelecido entre o Eu e o Outro como único meio de contato
em tal afastamento e sustentação dessa relação.
A ruptura da totalidade não é uma operação de pensamento, obtida
por simples distinção entre termos que se atraem ou, pelo menos, se
alinham. O vazio que a rompe só pode manter-se contra um pensamento,
33
fatalmente totalizante e sinótico, se o pensamento se encontrar em face
de um Outro, refratário à categoria. Em vez de constituir com ele, como
com um objeto, um total, o pensamento consiste em falar. (Lévinas 1980
27-28).
O diálogo é o fio tênue que mantém essa relação sem que haja união
total entre o Mesmo e o Outro e, ao mesmo tempo, sem deixar que ela se
desfaça. É a manutenção da ligação entre o finito e o infinito.
A relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da
relação corte os laços que uma relação implica, mas sem que esses laços
unam num Todo o Mesmo e o Outro, está de fato fixada na situação
descrita por Descartes em que o ‘eu penso’ mantém com o Infinito, que
ele não pode de modo nenhum conter e de que está separado, uma
relação chamada ‘idéia do infinito’... (Lévinas 1980 35-36).
Lévinas credita a Descartes essa forma de compreender a idéia de
infinito, cujo esquema encontramos em seu pensamento, tal como nas
Meditações:
Não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira
idéia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que
compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz:
pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na
substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma
maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto
é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que
pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e
que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia
de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu
conheceria as carências de minha natureza?... E isto não deixa de ser
verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito... pois é da natureza
do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa
compreendê-lo. (Descartes 1973).
Tanto Descartes como Lévinas pensam o infinito a partir de uma relação
do Eu com algo que não pode ser contido na razão humana.
34
Mas, Lévinas estabelece um outro entendimento para a origem da
idéia do infinito, diferentemente de Descartes, atribuindo-a à própria relação
metafísica do Mesmo com o absolutamente Outro, exterior ao mundo do Eu,
irredutível à representação e do qual só se pode ter a idéia de Infinito, posto
que o conteúdo do infinito transborda os limites de toda compreensão.
Mas a idéia do infinito tem de excepcional o fato de o seu ideatum
ultrapassar a sua idéia...O infinito é característica própria de um ser
transcendente, o infinito é o absolutamente outro. O transcendente é o
único ideatum do qual apenas pode haver uma idéia em nós: está
infinitamente afastado da sua idéia – quer dizer, exterior – porque é
infinito. (Lévinas 1980 36).
Discordando, pois, de Descartes quanto à origem da idéia de Infinito,
qual seja, Deus, vez que estaria fadado a admitir uma totalidade fundada em
Deus e, por conseqüência, uma superioridade mística ou mesmo a morte como
via de acesso à verdade absoluta, também não aceita a intencionalidade
husserliana para relação com o Outro, tendo em vista que isso levaria à
exclusão da alteridade, ensejando a absorção do Outro pelo Eu, o que
consistiria também numa Totalidade. Desse modo, Lévinas pretende uma
filosofia que respeite a alteridade e, sobretudo, estabeleça uma relação ética e
justa entre os homens. Qualquer outra via que não privilegie essa relação
levará à injustiça.
Entre uma filosofia da transcendência que situa alhures a
verdadeira vida à qal o homem teria acesso, evadindo-se daqui, nos
momentos privilegiados da elevação litúrgica, mística, ou ao morrer – e
uma filosofia da imanência em que captaríamos verdadeiramente o ser
quando inteiramente ‘outro’ (causa de guerra), englobado pelo mesmo, se
desvaneceria no termo da história, propomo-nos descrever, no desenrolar
da existência terrestre, da existência econômica como a denominamos,
uma relação com o Outro, que não desemboca numa totalidade divina ou
humana, uma relação que não é uma totalização da história, mas a idéia
do infinito. (Lévinas 1980 39).
A situação estabelece o face-a-face, numa relação em que o Outro é
irredutível ao Mesmo, mantendo-se absolutamente separado, embora na
35
experiência do face-a-face, que é a própria experiência da transcendência e
da separação, impedindo dessa forma a formação de uma Totalidade (absorção
do Outro pelo Mesmo). É o Infinito que sustenta a alteridade, pois entre o Eu e
o Outro haverá sempre uma distância insuperável.
As nossas análises são dirigidas por uma estrutura formal: a idéia
do Infinito em nós. Para ter a idéia do Infinito, é preciso existir como
separado. Esta separação não pode produzir-se como fazendo apenas
eco à transcendência do Infinito. Senão, a separação manter-se-ia numa
correlação que restauraria a totalidade e tornaria ilusória a
transcendência. Ora, a idéia do Infinito é a própria transcendência, o
transbordamento de uma idéia adequada. Se a totalidade não pode
constituir-se é porque o Infinito não se deixa integrar. Não é a insuficiência
do Eu que impede a totalização, mas o Infinito de Outrem. (Lévinas 1980
66).
Lévinas defende, portanto, que idéia de infinito está no homem como
uma estrutura formal, posto que o homem existe sempre separado do Outro.
Mas tal separação não pode ser meramente espacial ou temporal. A separação
de que fala Lévinas é transcendental, é o transbordamento constante do Outro,
que não é adequado jamais ao meu pensamento. Se não fosse a capacidade
de o Outro transbordar toda e qualquer representação que se faça dele, a
alteridade estaria fadada se exaurir, pois o Eu se completaria do Outro.
1.4.3 – O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA
JUSTIÇA Lévinas ressalta na relação metafísica a vigência do imperativo ético:
A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica,
uma relação ética... Enfim, o infinito extravasando a idéia do infinito põe
em causa a liberdade espontânea em nós. Dirige-se, julga-a e condu-la à
sua verdade. A análise da idéia do Infinito, à qual só se tem acesso a
partir de um Eu, culminará com a ultrapassagem do subjetivo. (Lévinas
1980 38).
36
Verifica-se, portanto, que toda relação com o Outro é uma relação
ética, razão pela qual a Ética é a Filosofia Primeira, visto que, sendo a Ética o
pressuposto da relação metafísica, também ela tem esse caráter.
Destaca-se, por conseguinte, a distinção fundamental operada por
Lévinas em relação à grande maioria dos pensadores ocidentais, pois
enquanto os pensadores ontológicos buscam sempre a unidade do discurso, a
Totalidade e a compreensão do Outro pelo Eu, fundados na unidade da Razão,
Lévinas pretende preservar a interioridade e a exterioridade, rompendo com a
visão totalitária de unidade e, enfim, antes da ontologia supõe a metafísica
como única forma de se pretender a Justiça.
O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma
relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo – onde o
poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e
‘contra todo o bom senso’, impossibilidade do assassínio, consideração
do Outro ou justiça. (Lévinas1980 34).
A preocupação com o não assassinato do Outro, com a preservação da
alteridade é, de fato, a preocupação maior, tanto de Dussel quanto de Lévinas.
Somente assim poder-se-á alcançar a tão desejada JUSTIÇA.
A Justiça, ante o expendido, caracteriza-se intrinsecamente ligada à
Ética. Na relação ontológica, o Eu tem a liberdade absoluta para usar de sua
inteligência com o fim de conhecer o objeto, seja ele qual for. Na Metafísica,
por outro lado, a liberdade do Eu é questionada diante do Outro, a
espontaneidade é chamada à responsabilidade e o Mesmo não se assenhora
do Outro; ao contrário, diante da estranheza de Outrem, o Mesmo o acolhe,
preservando sua alteridade e, numa atitude discipular, dispõe-se a aprender
com o Mestre ao invés de impor a ele sua palavra. É a superação da ontologia
pela metafísica.
A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo
mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a
impugnação do mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a
essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a
metafísica precede a ontologia. (Lévinas 1980 30).
37
Nesse sentido, a responsabilidade pelo Outro é anterior à liberdade do
Eu. O processo de conhecimento deve, então, estar condicionado à
responsabilidade pelo Outro, o que significa dizer que conhecer não é apenas
constatar, mas sobretudo responder ao Outro enquanto acolhimento e não
redução.
Assim, a verdade, embora não separada da inteligibilidade, tem como
ponto fundamental o acolhimento do Outro:
A verdade não se separa, de fato, da inteligibilidade. Conhecer não
é simplesmente constatar, mas sempre compreender. Diz-se também,
conhecer é justificar, fazendo intervir, por análoga com a ordem moral, a
noção de justiça. (Lévinas 1980 69)
A justificação do fato põe sob crivo a espontaneidade, questionando a
liberdade de todos os atos. A liberdade deve se pautar pela crítica dos próprios
atos. Somente assim a liberdade será justa, isto é, repugnando a indignidade
que reveste a espontaneidade acrítica. A moral se funda, portanto, no instante
que se instaura a vergonha da espontaneidade, isto é, quando a liberdade
absoluta, arbitrária e violenta, deixa de se fundar em si mesma e passa a ter o
Outro como referência da sua justificação.
A consciência moral acolhe Outrem. É a revelação de uma
resistência aos meus poderes que, como força maior, não os põe em
xeque, mas que põe em questão o direito singelo dos meus poderes, a
minha gloriosa espontaneidade de ser vivo. A moral começa quando a
liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e
violenta. A procura do inteligível, mas também a manifestação da essência
crítica do saber, a subida de um ser aquém da sua condição, começa ao
mesmo tempo. (Lévinas 1980 71)
Lévinas pensa a realidade não como liberdade absoluta, mas investida
de liberdade. A distinção é fundamental porque uma vez sujeita à crítica, a
liberdade enseja não o saber originário de um processo de redução objetivante,
tal como em Husserl, o que culminaria na redução do Outro, mas
fundamentalmente o saber fundado no desejo do outro invisível, que não pode
ser objetivado porque sobre ele o Eu não tem poderes. Do Outro é que se
38
origina o mandamento “não matarás” e, assim, supera toda idéia que dele se
possa ter.
A relação com Outrem não se transmuda, como o conhecimento,
fruição e posse, em liberdade. Outrem se impõe como exigência que
domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo o que
se passa em mim. Outrem, cuja presença excepcional se inscreve na
impossibilidade ética em que estou de o matar, indica o fim dos poderes.
Se já não posso ter poder sobre é porque ele ultrapassa absolutamente
toda a idéia que dele posso ter. (Lévinas 1980 74)
Para Lévinas, a ontologia está para a injustiça assim como a metafísica
está para a justiça. A ontologia não põe, definitivamente, em questão o Mesmo
e permite o domínio do Outro, encetando-o numa totalidade, constituindo uma
injustiça. Já a metafísica estabelece como princípio fundamental, anterior a
qualquer manifestação do Eu, o respeito ao Outro e o questionamento do
mesmo, buscando assim uma relação justa em que sejam preservadas as
características essenciais tanto do Eu como do Outro.
Enfim, escreve Lévinas:
A essência da razão não consiste em assegurar ao homem um
fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e em convidá-lo à
justiça. (Lévinas 1980 75).
1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA:
SENTIDO E MÉTODO Enrique Dussel, ao escrever Para una de-strucción de la história de la
ética10, pretendia estabelecer uma ética universal ontológica. Embora tenha
renunciado posteriormente ao projeto ontológico, pela sua própria
impossibilidade lógica, manteve o intento de alcançar uma ética universal, sem
abandonar a forma de-strutiva de sua análise, como se evidencia em seu
último livro Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão 11.
10 Buenos Aires: Ser y Tiempo, 1972. 11 Petrópolis: Vozes, 2000.
39
É necessária uma precisa compreensão do termo de-struição,
empregado por Enrique Dussel, para definir a natureza de sua crítica à filosofia
tradicional, assim como do método por ele adotado.
O sentido do termo de-struição foi inspirado notadamente nas palavras
de Martin Heidegger, o qual é citado por Dussel:
De-struição não significa aniquilar, mas desarticular, separar e pôr
de lado... De-struição quer dizer: abrir nosso ouvido, libertá-lo para aquilo
que na tradição se nos coloca como ser do ente. (DHE 6).
O termo de-struição carrega a idéia de uma análise rigorosa de seu
objeto, a Ética em sua História, com a liberdade de não se restringir às
significações já estabelecidas tradicionalmente. Não é intenção, por
conseguinte, arruinar, desprezar, aniquilar os sistemas éticos conhecidos ao
longo história: “A de-struição significa um desarmar o dito pelos filósofos a
partir de seus pressupostos não pensados, e por isso mesmo não ditos.” (DHE
170).
Verifica-se assim o sentido preciso do termo de-struição, de desmontar
os argumentos filosóficos tradicionais mediante a indicação de fundamentos
anteriormente não explicitados pelos filósofos que pensaram a ética. A intenção
é historiográfica, mas de cunho filosófico. Pode-se também afirmar que a
Filosofia da Libertação exige, por conseguinte, de antemão a libertação da
Filosofia.
Etimologicamente o termo vem do latim struere, o qual significa “edificar,
aumentar, tecer etc”, acrescido do prefixo de, o qual possui o propósito de
negação ou privação. Destarte, de-struir significa des-fazer, des-atar, des-
montar, visando à re-construção da Ética, como Filosofia, desde sua História,
tendo em vista uma Ética de conteúdo material universal, que vá além dos
limites espaço-temporais estabelecidos pela história.
Assumindo o emprego etimológico e filosófico do termo, Dussel o
emprega como sinônimo de crítica. Porém, de uma forma radical, desmontando
os vários sistemas desde a Grécia Antiga e propondo a Ética ou Filosofia da
Libertação, atribuindo ao homem papel fundante na História. Assim, é inevitável
a de-struição também no tocante ao período moderno e contemporâneo. Essa
40
é uma das primeiras des-articulações, uma releitura do papel cabente ao
homem na história.
Quando Dussel propõe a de-struição da História da Ética, na verdade,
está pretendendo a de-struição da própria Ética, sempre histórica, visto que o
homem é um ser pela história e não apenas um ser na história. O homem faz a
história e se faz pela história. A história verifica-se verdadeiramente no ser do
homem. A historicidade é condição do homem, sua temporalidade. Essa
indicação é importante, vez que muito comumente se fala da história como algo
exterior ao homem, algo de que o homem faz parte. Em verdade, “não é que o
homem seja histórico porque está na história. O homem é histórico, porque a
historicidade não é senão um modo de viver a temporalidade inerente à
essência do homem.” (DHE 7).
Para realizar um trabalho autêntico, é preciso libertar-se dos sistemas
construídos ao longo do tempo porque somente assim o filósofo terá condições
de ter uma visão liberta das verdades preestabelecidas e estará apto para,
então, estabelecer livre e historicamente o homem em seu papel fundamental:
ser ético.
“Des-atar os nós” da história da ética é mais do que simplesmente
analisar os sistemas passados ou presentes. Assim, Dussel faz divisão da
história da Ética analisando de-strutivamente cada um dos sistemas
estabelecidos desde a Grécia antiga, ao apontar os limites histórico-concretos
que pautaram o pensamento de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino,
Kant e Hegel, entre outros.
Por outro lado, a de-struição da história da ética não é apenas uma
análise do passado, mas, a partir do passado, liberto de seus dogmas, é,
sobretudo, uma busca do ser presente livre:
A de-struição da história não é senão a atitude apropriada pela qual
se reconquista, contra a en-cobridora interpretação vulgar da história, o
sentido esquecido que foi instaurado pelos grandes gênios culturais do
passado; isto é, desde onde esses homens eram-no-mundo. A
historicidade autêntica é concomitante à tarefa de-strutiva, e somente
começa quando alguém des-cobre que seu acontecer é histórico, porque,
livre, e deixa manifestar-se às coisas. (DHE 7).
41
Dussel propõe construir a Ética da Libertação a partir do modelo
passado destruído. Antes, “esses homens eram-no-mundo” (“os grandes
gênios culturais do passado”). Agora, a Ética “somente começa quando alguém
des-cobre que seu acontecer é histórico, porque livre, e deixa manifestar-se às
coisas”.
Fica claro, portanto, que a História da Ética para Dussel deve ser
entendida como a manifestação da própria ética. Mas qual a sua acepção de
Ética?
A Ética não deve ser vista apenas como conjunto de normas morais
vigentes em algum tempo ou espaço. Muitas discussões existem ainda, na
filosofia, sobre o conceito de Ética e de Moral. Muitos afirmam mesmo não
haver diferenças ou confundem um com o outro. Para Dussel, contudo, é
imperioso notar a distinção, vez que propõe uma Ética Perennis, isto é, uma
ética duradoura e imutável ao longo do tempo e do espaço. Logo, não pode
estar se referindo à moral, a qual é vigente em função de determinados grupos
e determinadas épocas.
O termo “ethos” é transliteração dos dois vocábulos gregos: êthos (com
éta inicial) e éthos (com épsilon inicial). E, conforme explica também Dussel, o
primeiro vocábulo refere-se à morada habitual, enquanto o segundo refere-se
ao agir habitual. Em ambos os sentidos, entretanto, não se compreende o
sentido dusseliano de ética, qual seja, o momento temático ou explícito daquilo
que já foi vivido no aspecto do éthos. É o princípio que norteia o
comportamento humano e não se refere ao hábito particular nem ao coletivo. É
o oráculo que em Delfos foi proferido pela sacerdotisa a Sócrates: “Conhece-te
a ti mesmo”.
Todavia, esse ainda não é o sentido filosófico do termo, porquanto se
refere notadamente ao sentido comum. A reflexão metódica sobre essa ética
resulta na ética filosófica, a qual surge na Grécia, sem dúvida. Porém, essa
ética filosófica que se prolongou no tempo e no espaço, de diversos modos,
não é a ética buscada pelo nosso autor, posto que embora já traga em si a
intenção de universalidade e o sentido destrutivo, essas reflexões sempre
tiveram seu fundamento na realidade particular dos vários grupos dominantes
ao longo da história.
42
A ética pretendida por Dussel é a ética destrutiva das éticas
filosóficas. É o pensar crítico dos sistemas estabelecidos.
As éticas grega, cristã ou moderna sempre foram críticas, é verdade,
mas nunca se libertaram dos aspectos contingentes que as sustentaram.
Evidentemente, Aristóteles, por exemplo, e muitos outros filósofos, por certo
pretenderam estabelecer uma ética universal. Incorreram, entretanto, no
equívoco intransponível de se pautarem apenas pelo mundo que os cercava.
Somente no século XX, depois de ter passado por vários sistemas, em plena
globalização, o homem alcançou a condição suficiente para estabelecer uma
Ética Universal, mediante radicalização suficientemente crítica e ampla. Essa é
a tarefa do filósofo da libertação: De-struir a História da ética ocidental e,
concomitantemente, con-struir uma ética Universal, descobrindo, para isso, os
fundamentos das éticas filosóficas passadas e despojando-se do que há de
particular em cada uma delas. Apenas mediante esse processo poder-se-á
estabelecer a ethica perennis, aproveitando-se o que há de bom ao longo da
história, inclusive na modernidade, e assim con-struir a ética ontológica.
Nossa tarefa é descobrir o fundamento e os grandes temas da ética
ontológica entre os muitos mais numerosos temas acerca dos quais
tratam as éticas filosóficas tradicionais... É necessário deixar o grego das
éticas gregas, o cristão das éticas cristãs, o moderno das éticas
modernas, e ante nossos olhos aparecerá uma antiga e sempre fundante
ethica perennis a qual é necessário hoje descobrir, pensar, expor. (DHE
10).
Ao filósofo da libertação concerne, pois, conhecer, des-montar, analisar,
excluir o particular, reunir o que é comum a todos os sistemas e então fazer
uma reflexão crítica com o intuito de encontrar uma Ética de validade universal.
Enrique Dussel, ao pretender descobrir uma éthica perennis, voltou-se
para a ética ontológica. No entanto, como bem alerta o professor Eliseu Cintra,
como poderia Dussel visar a uma “ética universal, ethica perennis ou ética
ontológica fundamental”, se também, nessa tarefa posterior, honestamente seu
“pensar filosófico” tem “como ponto de partida a finitude”? A “finitude”, como
ponto de partida necessário de todo “pensar filosófico” é a própria
43
impossibilidade da “ética universal, ethica perennis ou ética ontológica
fundamental”.
A solução encontrada por Dussel surgiu pouco tempo depois de ter
escrito “Para una de-strucción de la historia de la ética”. Foi a partir seu
encontro com Emmanuel Lévinas, cujo pensamento ganhou fundamental
importância na sua obra, que o segundo tomo prometido naquela obra deu
lugar à grande obra filosófica, “Para uma ética da libertação latino-americana”,
editada em cinco volumes. E naquele texto, Dussel reconhece, ainda que
implicitamente, a existência do referido paradoxo:
O segundo momento, em verdade o terceiro (já que o primeiro é
ôntico-ontológico dialético; o segundo, ontológico-ôntico dedutivo), é o
salto meta-físico ao Outro. Este método meta-físico nos permitirá expor
uma filosofia latino-americana ... Este método parte de Lévinas, embora
vá além e o escrevemos depois de uma nova estada na Europa em
1972... (ELL II 155)
Assim fica creditado ao filósofo judeu-lituano-francês o momento
epifano-filosófico, de amadurecimento do pensamento filosófico de Enrique
Dussel. Acolhendo a tese levinasiana, exposta principalmente em “Totalidade e
Infinito”, Dussel reformulou o paradigma sobre ética e, sem abandonar a idéia
de estabelecer uma ética de validade universal, libertou-se da ontologia
heideggeriana e voltou-se para a ética metafísica da alteridade, com
fundamento no pensamento de Lévinas, o qual foi ainda a grande indicação
teórico-filosófica para os ideais dusselianos.
Destarte, fundado ultimamente em Lévinas, ainda que com algumas
divergências, Dussel firmou-se em sua reflexão filosófica, estabelecendo, de
início, o método para a de-struição da ética ocidental, o método para a Filosofia
da Libertação.
1.5.1 - O MÉTODO ANA-DIA-LÉTICO
Em face da nova proposta filosófica de Lévinas, Dussel conseguiu
desvencilhar-se do paradoxo em que se encontrava e estabeleceu o método
Ana-lético, concluindo que o homem, ou mais precisamente o outro é o ponto
44
fundamental a ser pensado, e o método dia-lético, restrito à totalidade
hermética, em que o outro faz parte do mesmo mundo do Eu, não satisfaz à
necessidade da razão humana. Isso porque a dialética consiste no raciocínio
argumentativo que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes,
encerrando-se numa totalidade em que a dis-tinção do outro é esquecida.
Lévinas mostrou bem que o outro não faz parte do meu mundo e, logo,
não faz parte dessa totalidade dialética, concluindo que se exige a
consideração do outro como fundamental para a realização da justiça.
Dussel, atento à questão, estabeleceu o que denominou o método Ana-
dia-lético, isto é, o método que vai além da dialética, ou precisamente, o
método que parte do outro como fundamento.
O método do qual queremos falar é Ana-lético, vai mais além,
acima, vem de um nível mais alto (ana-) que o do mero método dia-lético
... Agora se trata de um método (ou do explícito domínio das condições de
possibilidade) que parte do Outro como livre, com um além do sistema da
Totalidade; que parte então de sua palavra, da Revelação do Outro e que
confiando em sua palavra age, trabalha, serve, cria. (ELL II 200)
Por isso, tratando-se de um método que parte do outro, considerando-o
como além da Totalidade, não reduzido à compreensão do Eu, e, portanto, livre
e distinto, o método analético é intrinsecamente ético e não apenas teórico ou
ôntico ou ontológico.
E essa característica indica que o filósofo deve ser, desde o início ético,
o que implica em ser um servidor do Outro, ou mais precisamente, um servidor
da liberdade do Outro.
O método ana-lético inclui então uma opção prática histórica
prévia. O filósofo, aquele que quer pensar metodicamente, deve já ser um
“servidor” comprometido na libertação. (ELL II 203)
Ao estabelecer a Filosofia da Libertação, Dussel parte do pressuposto de
que a justiça é filosofia primeira, posto que a política é o centro da ética
metafísica, tal qual ensina Levinas. A filosofia da Libertação está além da
ontologia e da fenomenologia.
45
2 - O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O MITO DA MODERNIDADE
Ao longo dos últimos séculos, a teoria predominante é a de que a
modernidade começou com os avanços ocorridos na Europa a partir do século
XV, os quais determinaram sua superioridade diante das demais nações, e
justificaram, portanto, a mundialização de sua cultura. Dussel destaca a teoria
de Max Weber, como uma das sustentações desse paradigma, diante da
pergunta delimitadora da questão:
Que encadeamento de circunstâncias conduziu a que,
precisamente no solo do Ocidente e só aqui, se produzissem fenômenos
culturais que - pelo menos tal como nós costumamos representá-los para
nós - estavam numa direção evolutiva de significação e validade
universais? (EL 51).
A pergunta de Weber parte do pressuposto de que os fatos culturais
ocorridos na Europa naquele período tiveram validade universal. Contudo, uma
análise mais detida da história mostra que outras regiões eram mais avançadas
do que a Europa, a qual se caracterizava como periferia, fechada em si
mesma, de fora para dentro, tentando uma via de acesso ao centro comercial.
A Filosofia dusseliana da Libertação consiste numa releitura crítica da
história, do ponto de vista filosófico, divergindo da perspectiva universalista de
cultura, estabelecendo um novo parâmetro para a Modernidade, evidenciando
mais claramente, em face desse novo paradigma, os problemas do
pensamento ontológico europeu sustentador do sistema de exclusão da
periferia.
É importante sempre realçar que para Dussel, assim como para Lévinas,
a Ética é o aspecto fundamental da filosofia, a qual deve ser pensada a partir
de uma reflexão crítica acerca da realidade na qual o homem está inserido.
Esse é o sentido da Filosofia para Dussel, também uma Pedagógica que leve o
46
homem a libertar-se da opressão exercida pelos centros do sistema12, de
forma a possibilitar relações as mais justas possíveis.
A exposição da Histórica de Dussel, uma análise que faz história, é
imprescindível para a compreensão do ponto constitutivo da injustiça na
América Latina, e, por extensão, de todas as periferias: a Modernidade 13.
Segundo Dussel, a primeira libertação deve se referir à própria filosofia,
O filósofo deve primeiro libertar-se do pensamento ontológico tradicional para
então proceder a uma filosofia da libertação. Destarte, o primeiro passo é
libertar-se das visões helenocêntrica e eurocêntrica; somente assim o filósofo
poderá pensar livremente e, diante de uma visão mundial, buscar mais
amplamente a origem da eticidade ocidental. Com essa liberdade, Dussel
encontra o nascedouro da filosofia não apenas na Grécia, como é cediço, mas
desde as civilizações mais antigas, como a egípcia e a mesopotâmica, vez que
os textos gregos considerados precursores do pensamento filosófico são,
segundo o autor, tão míticos quanto os dessas outras civilizações. O que deve
ser chamado de filosófico naquele momento histórico, nos textos gregos, é o
“método filosófico formal”, ao passo que o seu conteúdo ético, tradicionalmente
colocados como filosófico, possui as mesmas características míticas dos textos
egípcios também de conteúdo ético. Conclui Dussel: “podemos abordar aqui
filosoficamente textos míticos de todas as culturas da história da humanidade,
de grande importância para interpretar os conteúdos éticos da eticidade atual”
[EL 19].
Fica, desta feita, operada a primeira grande de-struição necessária - a
do mito do nascimento da filosofia na Grécia antiga. Agora, conseqüentemente,
torna-se impendente a inclusão dos sistemas anteriores ao grego para o estudo
12 Para Dussel, a sociedade ocidental se estabelece com o centro vitimário e a periferia
vitimada. Desde meados do século XX o centro está articulado entre Europa Ocidental e EUA,
restando às demais nações a situação periférica, onde a estrutura “centro-periferia” se repete e
as elites locais praticam a vitimação das periferias em benefício dos centros maiores. 13 O terceiro volume de Para uma Ética da Libertação Latino-Americana abre-se com “A
histórica latino-americana”, com dois grandes parágrafos: “40. Para uma pré- e proto-histórica
latino-americana” e “41. Para uma histórica latino-americana”. Estas reflexões de Dussel são
amplamente retomadas e reformuladas na “Introdução: História mundial das eticidades” de
Ética da Libertação (2000).
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filosófico. Eis a tese dusseliana: “foi preciso tempo para se poder atingir um
grau de complexidade civilizatório suficiente que permitisse que a ‘ética’ e a
‘moral’ alcançassem graus mais abstratos de universalidade e chegassem
assim a níveis evolutivos crescentes de criticidade” (EL 20). Para ele, a Ética
formou-se paulatinamente, tal como os agrupamentos sociais organizados, aos
quais denomina sistemas, partindo de situações regionais até tornar-se um
complexo mundial, com princípios de validade universal.
2.1 - O ESTÁGIO I: EGÍPCIO MESOPOTÂMICO
O primeiro sistema inter-regional começa aos 4000 anos a.C., época em
que a Grécia era ainda, na sua própria terminologia, um mundo bárbaro. Nesse
momento histórico, encontramos a civilização formada no oriente mediterrâneo,
o mundo egípcio da África bantu, entre o rio Nilo e o rio Tigre:
O mundo da África bantu, negro (kmt em egípcio), hoje ao sul do
Saara, é uma das origens da cultura egípcia - primeira coluna da
revolução neolítica. No oitavo milênio a.C., o Saara úmido era
atravessado por rios e habitado por numerosos plantadores bantus. A
partir do sexto milênio começou o processo de seca e a origem do
deserto; muitos povos bantus emigraram para o Nilo. A influência cultural
do leste do Nilo será muito posterior. A alta cultura egípcia tem sua origem
massiva no Alto Egito. A partir do quinto milênio a.C., grandes tumbas
podem ser observadas entre a segunda e a terceira catarata no Sudão.
(EL 26).
Naquele período em que floresceu a cultura egípcia, encontra-se já uma
eticidade, uma regra universal: maat, que é a “verdade” ou a “lei natural” em
seu sentido prático. A valoração da vida terrestre e vários outros princípios daí
decorrentes sedimentaram-se, conforme mostra a leitura do Livro dos Mortos:
Não cometi iniqüidade contra os homens... Não empobreci um
pobre em seus bens... Não fiz padecer fome... Não acrescentei peso à
medida da balança... Não roubei com violência... Não roubei pão... Satisfiz
a Deus cumprindo o que ele desejava. Dei pão ao faminto, água ao
sedento, vesti o que estava nu e uma barca ao náufrago... Fazei-o vir,
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dizem os deuses falando de mim. Quem és tu? Me dizem. Qual é o teu
nome? Me perguntam. (EL 27).
É a responsabilidade diante do outro que Dussel desde sempre assumiu
com fundamento de sua reflexão.
Essa foi a primeira coluna cultural. A segunda coluna surgiu no “mundo
sumério, mesopotâmico, semita. No VIII milênio a.C., na Anatólia, e desde o IV
milênio a.C., em cidades como Uruk, Lagash, Kish ou Ur...” [EL 28]. Quanto à
eticidade formada nessas sociedades, ressalta-se a importância do princípios
contidos no código de Hammurabi, como por exemplo:
Naquele dia Anum e Enlil pronunciaram o meu nome... Hammurabi,
o príncipe piedoso, temente a deus, para fazer surgir justiça na terra e
eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco [...] Para
que o forte não oprima o pobre, para fazer justiça ao órfão e à viúva..., na
Babilônia, a cidade cuja dignidade realizaram Anum e Enlil. Que o
oprimido afetado num processo venha à frente de minha estátua de Rei
da Justiça e se faça ler a minha estela escrita. (EL 28).
Pode-se verificar nessas duas passagens a relevância que se dá à
proteção do fraco diante do mais forte, do desfavorecido diante do privilegiado,
colocando-se a não opressão de um pelo outro como condição “sine qua non”
para realização da justiça.
Entre essas duas “colunas culturais” estavam outros povos de menor
expressão, como os fenícios, púnicos, hebreus ou moabitas, os quais
absorviam parte da cultura egípcia e parte da mesopotâmica.
A terceira coluna cultural ergueu-se com a Índia, do rio Indo até o
Pendjab, desde 2500 a.C., ao passo que a quarta coluna firmou-se com a
China, ladeando o rio Amarelo, desde 2000 a.C., aproximadamente. Aquelas
civilizações estavam, todavia, distantes dos centros daquele sistema inter-
regional.
Naquela época, as civilizações originais do continente que virá depois a
ser chamado América também floresceram distante do eixo principal,
procedentes, defende Dussel, da Ásia desde mais de 50 mil anos, vindos pelo
estreito de Behring.
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A cultura meso-americana, Maia-Asteca, deve ser vista, entende o
filósofo, como a quinta coluna de alta cultura. A sexta é o mundo inca-quíchua,
firmado sobre três pilares éticos: não mentirás, não deixarás de trabalhar, não
roubarás.
Os Astecas, por sua vez, fundaram sua cultura no profundo humanismo,
conforme mostra Dussel ao citar o Códice Florentino, livro III, p. 67:
Mesmo que fosse pobre ou miserável
Mesmo que sua mãe e seu pai fossem os pobres dos pobres...
Não se via a sua linhagem,
Só se atendia ao seu gênero de vida,
À pureza de seu coração,
A seu coração bom e humano, firme,
Dizia-se que tinha o divino em seu coração,
Que era sábio nas coisas divinas. (EL 32).
Para eles, a vida advém de um sacrifício anterior, mas não em razão de
alguma falta, e sim de uma doação. Por isso aquele que vive tem o dever de
gratidão à comunidade em que vive:
Desta maneira, cada ser humano é um ‘merecido’ (macehual)... a
‘macehualidade’ é um ‘modo de existência’, o viver positivamente desde a
gratuidade não merecida e originada na ‘alteridade’. A justiça para com os
membros da comunidade é um ato de exigida gratificação. (EL 32).
Dussel destaca a importância para os Incas da vida terrena, a qual surge
a partir do Outro e por isso deve ser tida como uma dádiva pela qual nada se
fez para merecê-la. Por isso a comunidade deve ser respeitada e todos os seus
membros devem ser tratados com justiça, promovendo-se a vida de todos.
2.2 - O ESTÁGIO II: INDO-EUROPEU
O segundo estágio ocorreu a partir do séc. IV a.C. Foi a época dos
grandes impérios, como o hindu, o persa, o grego, o romano o budista e o
taoista e o confunciano na China.
A concepção sobre a vida passou a ser dualista, encerrando um sentido
negativo enquanto terrestre e positivo após a morte, nascimento para a vida
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verdadeira. Daí estabeleceu-se, por conseguinte, a negatividade do corpo e
a positividade da alma, a negação do valor do corpo e das suas sensações em
benefício da vida pós-morte. Tudo porque no horizonte racional está o Uno.
Os centros eram a região persa e o mundo helenístico, cujos valores
começaram a se impor diante das demais regiões. No extremo oriental está a
China; ao sul-oriental estão os reinos da Índia e no ocidente encontra-se o
mediterrâneo.
Num segundo estágio, o ‘sistema inter-regional’ cresceu,
abarcando desde o Mediterrâneo e o norte da África até o Oriente Médio,
a Índia e a China através das estepes eurasiáticas (as regiões
influenciadas pelo ‘indo-europeus’), hegemonizando ou tendo como
centro de ligação o mundo persa ou o helenístico dos Selêucidas ou dos
Ptolomeus. (EL 631).
Aquele período caracterizou-se pela sua grande complexidade e