UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
JAIR MARCOS GIACOMINI
A FOTOGRAFIA EM LAS BABAS DEL DIABLOE EM BLOW-UP: MARCA DE INDECISES
PORTO ALEGRE2004
JAIR MARCOS GIACOMINI
A FOTOGRAFIA EM LAS BABAS DEL DIABLOE EM BLOW-UP: MARCA DE INDECISES
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao do Instituto de Letras daUniversidade Federal do Rio Grande doSul como requisito parcial para a obtenodo ttulo de Mestre em Letras. rea deConcentrao: Literatura Comparada.
Orientadora: Prof Dr Maria Luiza Berwanger da Silva
Porto Alegre2004
Dedico este trabalho ao meu amigo-irmoMrcio Cervo Dutra (em memria). Ele amava ocinema e deve estar (quem saber?) assistindo aoque, por aqui, ainda protagonizamos: tragdias,romances, comdias...
Dedico tambm ao meu sobrinho e Afilhado,Matheus, que, neste 2004, sobreviveu a umaprova da Vida. Vivendo feliz, faz-me feliz.
Dedico ainda ao meu Outro Afilhado,Augusto. Aos trs anos de idade, ele construiu enomeou meu espelho. Nomeando meu Duplo,este me fere, sem ferir tanto.
AGRADEO
minha orientadora, Maria Luiza Berwanger da Silva, que entendeu,acolheu e disse siga em frente, a vela no vai se apagar!.
professora Jane Fraga Tutikian, que me incentivou a procurar aLiteratura Comparada.
Ao professor Ubiratan Paiva de Oliveira, que me apresentou Blow-Up eLas babas del diablo e, assim, propiciou-me repensar e reconfigurarminhas primeiras idias de projeto.
Aos professores e s professoras que ministraram as disciplinas quecursei; seus ensinamentos esto, de alguma forma, presentes nestetrabalho: Maria Luiza Berwanger da Silva, Rita Terezinha Schmidt,Gilda Neves da Silva Bittencourt, Mrcia Ivana de Lima e Silva,Ubiratan Paiva de Oliveira, Tania Franco Carvalhal e Michael Korfmann.
Aos fotgrafos Luiz Eduardo Robinson Achutti e Flvio Dutra que,gentilmente, permitiram a utilizao de suas fotografias neste trabalho.
A Andrea do Roccio Souto, pelas vrgulas e pelas no-vrgulas.Pelo Orvalho e pelas outras prazerosas descobertas.
minha famlia: Eledir, Gabriela e Zimmermann; Enedir, Srgio, Bruna eGiulia; Ivani, Jos e Matheus; Ivone e Serginho; tia Isolina, tia Zita e aoPaulo; e, especialmente, ao meu pai, Alcemiro, e minha me, Amlia.
Aos amigos que, de formas diferentes, me ajudaram a comear, aconcluir e a percorrer o caminho: Tarcsio Lara Puiati, Carla Rossa,Alberto Inda, Fernando Alvarenga; Rubens Melo, Luiz Carlos Susin,Augusto Melo Santos, Gustavo Melo Santos; Maria Luiza Bonorino,Tatiana Capaverde, Maria Regina Bettiol, Carlos Rizzon, RonaldoMachado, Paola Amaro, Eni Celidnio, Joana Bosak de Figueiredo,Adriana Dorfman, Constana Ritter, Semramis Bastos, Lcia Britto,Paulo Kralik, Elizamari Martins Rodrigues; Luiz Antonio de AssisBrasil, Orlando Fonseca, Beatriz Furtado; Duda Toralles, LucianoArrussul, Everton Massaia, Silvio Vitali Jr., Julio Bacchin, Sacha Passos,Edmundo Tojal Donato Jr., Paulo Srgio Irmo, Hlder Silveira, JandiraRosa, Andr Lima Rosa, Marilise Bind, Clnio Viegas, LucianoCarvalho, Eduardo Magalhes, Samuel Jr. e famlia; Ivone Cardoso,Srgio Meyer, Liliane Dias de Lima, Mafalda Panatieri;e Ana Luiza de Lara e J. Arlei Rodrigues Cardoso.
Ao PPG Letras. Ao Instituto de Letras. UFRGS.
Capes, pela concesso da bolsa.
A Fotografia uma evidncia intensificada.(Roland Barthes)
Entonces tengo que escribir.(Julio Cortzar)
Ler no tem fim.(Donaldo Schller)
i n f i n i t on f i n i t of i n i t oi n i t on i t oi t ot oo
o to t i
o t i no t i n i
o t i n i fo t i n i f n
o t i n i f n i(Pedro Xisto)
Infinito? 2(Jair Giacomini)
6RESUMO
Esta dissertao um estudo sobre o conto Las babas del diablo, de JulioCortzar, e do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni. Entre as inmeras portas deentrada para abordar essas duas obras, optamos por explor-las pelo caminho da fotografia,que , a um s tempo, eixo temtico ficcional do conto e do filme e tambm mola propulsorapara um debate terico sobre o fotogrfico. Inserida em uma perspectiva comparatista,lanamos mo da intertextualidade e da interdisciplinaridade, conceitos fundamentais daLiteratura Comparada.
Nesse sentido, abordamos inicialmente as relaes de produtividade entre osprprios textos e, depois, entre textos e imagens. Posteriormente, aproveitando uma propostade Cortzar de comparar a fotografia com o conto, passamos a explorar a fotografia no seumbito terico. Dois autores so basilares nesse ponto do trabalho: Roland Barthes e PhilippeDubois. O primeiro, na obra A cmara clara, coloca-se como mediador de toda anlise sobrea fotografia, procedendo, dentro de uma perspectiva terica, de forma semelhante aospersonagens de Las babas del diablo e de Blow-Up, estes no mundo da fico. J Dubois, emO ato fotogrfico, debate algumas das propostas de Barthes e faz um apanhado histricobastante produtivo na medida em que aborda as trs percepes da fotografia desde suainveno at os dias atuais.
Ao alarmos a fotografia como mediadora terica principal do corpus destetrabalho, realizamos um novo recorte, detendo-nos naqueles eixos levantados por Dubois epor Barthes que, na leitura de Las babas del diablo e de Blow-Up, nos pareceram exigir umaexplorao mais produtiva. Nesse momento, estaro presentes questes relacionadas tanto fotografia em si quanto s relaes que ela estabelece com o fotgrafo e com aquele que aobserva, sempre levando em conta as tentativas de traduo da imagem fotogrfica para otexto e para o filme.
RESUMEN
Esta disertacin es un estudio sobre el cuento Las babas del diablo, de JulioCortzar, y de la pelcula Blow-Up, de Michelangelo Antonioni. Entre las innmeras puertasde entrada para analizar esas dos obras, optamos por explorarlas por el camino de lafotografa, que es, a uno slo tiempo, eje temtico ficcional del cuento y de la pelcula ytambin resorte propulsor para un debate terico sobre lo fotogrfico. Inserida en unaperspectiva comparatista, echamos mano de la intertextualidad y de la interdisciplinaridad,conceptos fundamentales de la Literatura Comparada.
En ese sentido, analizamos inicialmente las relaciones de productividad entrelos propios textos y, despus, entre textos e imgenes. Posteriormente, aprovechando unapropuesta de Cortzar de comparar la fotografa con el cuento, pasamos a explorar lafotografa en su mbito terico. Dos autores son basilares en ese punto del trabajo: RolandBarthes y Philippe Dubois. El primero, en la obra A cmara clara (1984), se coloca comomediador de todo anlisis sobre la fotografa, procediendo, dentro de una perspectiva terica,de forma semejante a los personajes de Las babas del diablo y de Blow-Up, estos en el mundode la ficcin. Ya Dubois, en O ato fotogrfico (1994), debate algunas de las propuestas deBarthes y hace un cogido histrico bastante productivo en la medida en que trabaja las trespercepciones de la fotografa desde su invencin hacia los das actuales.
Al alzarse la fotografa como mediadora terica principal del corpus de estetrabajo, realizamos un nuevo recorte, detenindonos en aquellos ejes levantados por Dubois ypor Barthes que, en la lectura de Las babas del diablo y de Blow-Up, nos parecieron exigiruna exploracin ms productiva. En ese momento, estarn presentes cuestiones relacionadastanto a la fotografa en s cuanto a las relaciones que ella establece con el fotgrafo y conaquel que la observa, siempre llevando en cuenta las tentativas de traduccin de la imagenfotogrfica para el texto y para la pelcula.
ABSTRACT
This study is about the short story Las babas del diablo, by Julio Cortzar, andthe movie Blow-Up, by Michelangelo Antonioni. Among the several approaches to bothworks, photography was the chosen one, for it is both fictional thematic pivot in the shortstory and in the movie and also master spring for a theoretical debate about photography.Based on a comparative perspective, we made use of intertextuality and interdisciplinarity,two fundamental concepts in Comparative Literature Studies.
To do this, the subject approached first was the productivity relations betweenthe texts themselves and, afterwards, between texts and images. Secondly, making use of asuggestion made by Cortzar on comparing photography and short story, we dedicated toexploit photography in its theoretical boundaries. Two authors are essential here: RolandBarthes and Philippe Dubois. The first one, in A cmara clara (1984), appears as a mediatorin his analysis about photography, behaving, under a theoretical perspective, similarly to thecharacters in Las babas del diablo and Blow-Up, which are restricted to the fictional universe.Dubois, in his turn, in O ato fotogrfico (1994), discusses some of Barthess propositions andengenders an interesting and productive historical overview since it presents the threeperceptions of photography ranging from its invention to the present time.
When photography was chosen as the main theoretical mediator to the corpusin this study, a new direction was taken, driven by those pivotal questions mentioned byDubois and Barthes which, on reading Las babas del diablo and Blow-Up, appeared to claimfor a further and more detailed investigation. As a result, questions related both tophotography itself and the relations it establishes between photographer and observer will bepresent, always taking into consideration the attempts to translate the photographic image intotext and into cinema.
RSUM
Ce mmoire porte sur le conte Las babas del diablo, de Julio Cortzar, et sur lefilm Blow-Up, de Michelangelo Antonioni. Parmi les plusieurs entres pour aborder ces deuxoeuvres, nous avons choisi dexploiter le chemin de la photographie qui est, en mme temps,laxe thmatique fictionel du conte et du film et, cest aussi, le motif qui soulve un dbatthorique sur la protographie. Notre travail est insr dans une perspective comparatiste, nousemployons les concepts dintertextualit et dinterdisciplinarit , concepts fondamentaux de laLittrature Compare.
Dans ce sens, nous pensons dabord les relations de productivit entre lestextes, puis parmi les textes et les images. Ultrieurement, en profitant dune proposition deCortzar de comparer la photographie et le conte, nous passons explorer la photographiedans son champ thorique. Deux auteurs sont importants dans ce point du travail: RolandBarthes et Philippe Dubois. Le premier, dans son oeuvre A cmara clara (1984), se placecomme mdiateur de toute lanalyse sur la photographie, en procdant, dans une perspectivethorique, de faon semblable aux personnages de Las babas del diablo et de Blow-Up, ceux-l dans le monde de la fiction. En ce qui concerne Dubois, dans son oeuvre O ato fotogrfico(1994), il discute quelques propositions de Barthes et il fait un rsum historique assezproductif dans la mesure o il lanalyse ds son invention jusqu`aux jours actuels.
En lisant la photographie comme mdiatrice thorique principale du corpus dece travail, nous faisons un nouveau dcoupage, en ayant comme rfrence les axes soutenuspar Dubois et Barthes qui, dans la lecture de Las Babas del Diablo et de Blow-Up, noussemblent exiger une tude plus productive. Dans ce moment, les questions qui concernent laphotographie en soi quant aux relations qu`elle tablit avec le photographe et avec celui quilobserve seront points de discussion en prenant toujours en considration les tentatives detraduction de limage photographique pour le texte et pour le film.
SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................. 11
1 TEXTOS E IMAGENS: RELAES DE PRODUTIVIDADE............................. 151.1 As relaes entre os textos.............................................................................. 171.2 As relaes entre textos e imagens.................................................................. 211.3 Texto e fotografia: a proposta de Cortzar..................................................... 26
2 A FOTOGRAFIA: UM PERCURSO TERICO.................................................... 282.1 A fotografia segundo Roland Barthes............................................................. 29
2.1.1 Studium e punctum.............................................................................. 352.1.2 O referente fotogrfico: passado e presente em conflito..................... 41
2.2 Trs percepes sobre o fotogrfico propostas por Philippe Dubois.............. 442.2.1 A fotografia enquanto mimese........................................................ 452.2.2 A fotografia como codificao........................................................ 482.2.3 A fotografia enquanto trao de um real.......................................... 49
3 LAS BABAS DEL DIABLO E BLOW-UP: A FOTOGRAFIA E SEUSDESDOBRAMENTOS............................................................................................. 543.1 Da fotografia ao texto e ao filme: desejo de traduo e de movimento.......... 623.2 Do studium descoberta do punctum.............................................................. 743.3 Morte e vida na fotografia............................................................................... 793.4 Tempo: tenses entre passado e presente........................................................ 853.5 Foto-pose e foto-caa...................................................................................... 893.6 Enquadramento: limite e expanso................................................................. 94
CONCLUSO................................................................................................................ 101
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................ 109
REFERNCIAS FLMICAS.......................................................................................... 111
OBRAS BIBLIOGRFICAS CONSULTADAS........................................................... 112
INTRODUO
Todo trabalho de escrita comea com um trabalho de leitura. No caso desta
dissertao, o clique primeiro deu-se no contato com duas obras, o conto Las babas del
diablo, de Julio Cortzar, e o filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni. O filme foi
realizado a partir de uma adaptao do conto, melhor dizendo, foi construdo como um
trabalho de recriao artstica. A primeira leitura/assistncia que realizamos causou-nos
estranhamento e atrao. As seguintes provocaram outros sentimentos: inquietao,
perturbao. E questionamentos. Questionamentos de vrias ordens, principalmente
relacionados quele que evidenciava-se como eixo principal do conto e do filme: a fotografia.
Mas a fotografia no estava ali, naquele conto e naquele filme, apenas como um tema para as
narrativas ficcionais de Cortzar e de Antonioni. Aos poucos, vamos como que fascas de
propostas tericas sobre o fotogrfico, bem como sobre as relaes da fotografia com a
construo de um texto e com a realizao cinematogrfica. Ao mesmo tempo em que
tomvamos contato com essas obras ficcionais, e motivados por nosso interesse particular
pela fotografia, estvamos realizando uma releitura de A cmara clara, de Roland Barthes,
esta uma obra terica que, aps sua publicao em 1980, viria a reconfigurar o pensamento e
a produo de outros tericos da imagem fotogrfica. Verificamos, ento, que, em A cmara
clara, estavam presentes grande parte daqueles questionamentos em relao fotografia que
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nutriam Las babas del diablo e Blow-Up. A fotografia uma imagem que espelho do real ou
uma imagem que se submete aos cdigos culturais do fotgrafo e do observador? Como a
fotografia se relaciona com a questo espao? Qual o seu embate com a questo tempo?
Como, de um lado, o fotgrafo se comporta diante do mundo, como o recorta, como seleciona
o que vai fazer parte da imagem fotogrfica e por que exclui o que ficar fora dela? Como, de
outro lado, o observador age diante da fotografia? Ele apenas a reconhece como algo
belo/feio, como uma imagem que to-somente informa sobre alguma coisa do mundo? Ou
ser que a fotografia, de alguma forma, age sobre o observador quando este se dispe a
question-la? Todas essas indagaes, mais relacionadas fotografia, se desdobram num
outro nvel no conto e no filme entramos na questo da relao da fotografia com o texto e
da relao da fotografia com o filme. Novas perguntas surgiram, ento. Como se pode contar
uma foto, atravs de um encadeamento de palavras? Pode-se narrar uma fotografia? E como a
fotografia pode mover-se para se transformar em filme? Um filme apenas fotografia em
movimento? Esses questionamentos e muitos outros que ainda poderiam ser relatados
construram nossa motivao para seguir adiante.
Estvamos diante de um encontro: cinema, literatura e fotografia. Um encontro
entre trs modos de expresso artstica. Um desafio que nos propusemos a enfrentar, tendo
como base de sustentao dois conceitos basilares da Literatura Comparada: a
intertextualidade e a interdisciplinaridade, conceitos esses que so abordados no primeiro
captulo.
Mas como organizar esse encontro, por qual ponta comear, por onde andar e
aonde chegar? Ao mesmo tempo, sendo Las babas del diablo e Blow-Up obras to frteis e
que, por isso mesmo, j motivaram tantas outras investigaes, como proceder para no
reproduzir apenas o que j foi feito sem acrescentar pelo menos uma centelha de motivao
aos leitores desta dissertao? Todo trabalho acadmico, ao que se sabe, defronta-se com
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esses problemas, que, aos poucos, precisam ser solucionados. Muitos poetas e escritores j
disseram que escrever um misto de prazer e de sofrimento. A escrita de uma dissertao no
feita de sentimentos diferentes.
Que deciso tomamos, ento? Parecia-nos que uma possvel resposta estava
justamente no objeto que modulava o encontro das trs obras. Um conto e um filme cujo tema
a fotografia, mas que se expandem numa exploso de questionamentos tericos sobre o
fotogrfico. Uma obra terica A cmara clara , cujo autor age como mediador da
investigao sobre a fotografia e cuja escrita beira o ficcional. Nossa tentativa poderia, ento,
ser esta: alar a fotografia como uma espcie de mediador terico para reconfigurar nossa
leitura do conto e do filme.
Naturalmente, nem todos os questionamentos suscitados poderiam ser
includos nesta investigao. Ento, como num procedimento fotogrfico, fomos realizando
recortes, escolhendo ngulos e ajustando o foco, de modo a obter abordagens mais produtivas.
Assim, no segundo captulo, buscamos interpretar e explorar A cmara clara (tambm esta
uma obra to ou mais complexa quanto o conto e o filme em questo) em algumas de suas
propostas que pareciam estar sendo exigidas pelos questionamentos suscitados por Las babas
del diablo e por Blow-Up. Para aprofundar e alargar alguns desses pontos, recorremos, em
seguida, a outro terico da fotografia: Philippe Dubois.
Num trabalho de ida e volta entre o recorte terico e a amplido dos
questionamentos suscitados pelo corpus, fomos elegendo certos pontos para serem abordados
no terceiro captulo, quando, ento, defrontamos o conto Las babas del diablo e o filme Blow-
Up com o aporte da teoria fotogrfica.
Registramos ainda que, em relao ao projeto original desta dissertao,
optamos, ao longo do percurso, por realizar uma reduo no corpus. Tambm estavam
previstos para serem analisados o filme O fabuloso destino de Amlie Poulain, de Jean-Pierre
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Jeunet, e o conto A aventura de um fotgrafo, de Italo Calvino. Devido complexidade que se
revelava sempre maior a cada imerso nas obras de Cortzar e de Antonioni, optamos pela
restrio, lembrando das obras de Jeunet e de Calvino em pequenas passagens intertextuais.
Sobre a abrangncia deste trabalho, acreditamos que, diante do recorte que toda
pesquisa acadmica exige, ele se constitui, na soma e no confronto de suas partes, em um
conjunto coerente. Ao mesmo tempo, para dizer que a dvida companheira persistente num
percurso de leitura e escrita, gostaramos de nos valer das palavras de Roland Barthes, quando
se refere ao fato de estar confuso quanto terminologia de Prazer/Fruio:
[...] haver sempre uma margem de indeciso; a distino no dar origem aclassificaes certas, o paradigma ranger, o sentido ser precrio, revogvel,reversvel, o discurso ser incompleto. (BARTHES, 1973, p. 36)
Dessa forma, afirmamos que este um trabalho lacunar e em construo,
estando aberto a crticas e a sugestes. Parodiando um trecho de Las babas del diablo: melhor
escrever, quem sabe esta dissertao seja como uma resposta (ou como uma pergunta) para
algum que a leia.
1 TEXTOS E IMAGENS: RELAES DE PRODUTIVIDADE
Em uma entrevista concedida em 19791, Roland Barthes afirmou que sentia um
prazer intenso em legendar imagens. Experincia realizada anteriormente pelo autor em
O imprio dos signos e em Roland Barthes por Roland Barthes, a tarefa foi repetida no seu
livro derradeiro, lanado em 1980: A cmara clara. Legendar imagens fotografias, no caso
dessa obra uma atividade que pode ser vista, por um lado, como algo banal e corriqueiro,
haja vista a sua grande incidncia nos processos contemporneos de comunicao: basta
tomarmos um jornal ou uma revista e veremos ali dezenas ou centenas de fotografias
legendadas, seja em espaos jornalsticos, seja em espaos publicitrios; pode, de outra parte,
ser tomada como a fagulha ou o exemplo de algo maior, qual seja, as relaes entre textos e
imagens sob um ponto de vista artstico e/ou terico. Na entrevista, Barthes afirma:
De que gosto no fundo da relao entre imagem e a escritura, que uma relaomuito difcil, mas por isso mesmo gera autnticas alegrias criadoras, no mesmosentido em que os poetas, outrora, gostavam de trabalhar problemas difceis deversificao. Hoje em dia, o equivalente encontrar uma relao entre um texto eimagens. (BARTHES, 1995a, p. 392)
Alegrias criadoras no uma expresso que se poderia aplicar dentro do
rigor da anlise formal ou estrutural do texto literrio ou de qualquer produo artstica. Mas,
1 Organizada juntamente com uma entrevista anterior, realizada em 1977, as duas entrevistas foram publicadassob o ttulo Sobre a fotografia. In: O gro da voz, p. 385-392.
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de outra parte, torna-se coerente quando se relaciona tal expresso com uma abordagem mais
aberta, em que uma categoria como o prazer entra em consonncia com outras j
consolidadas, para se tornar fora de impulso na elaborao de propostas tericas.
justamente o que Barthes faz em pelo menos dois momentos de sua produo: toma o prazer
como guia para construir suas reflexes. E assim procede justamente para falar do texto, no
primeiro caso O prazer do texto e de imagens (fotogrficas), no segundo, com A cmara
clara. Trata-se em ambos os casos do prazer relacionado concepo de que todo trabalho de
escrita resulta em produtividade, conceito basilar deste nosso trabalho, fornecido pelo prprio
Barthes:
Le texte est une productivit. Cela ne veut pas dire quil est le produit duntravail (tel que pouvaient lexiger la techinque de la narration et la matrise du style),mais le thtre mme dune production o se rejoignent le producteur du texte et sonlecteur : le texte travaille, chaque moment et de quelque cte quon le prenne ;mme crit (fix), il narrte pas de travailler, dentretenir un processus deproduction. Le texte travaille quoi ? La langue. Il dconstruit la langue decommunication, de reprsentation ou dexpression (l o le sujet, individuel oucollectif, peut avoir lillusion quil imite ou sexprime) et reconstruit une autrelangue, volumineuse, sans fond ni surface, car son espace nest pas celui de lafigure, du tableau, du cadre, mais celui, strographique, du jeu combinatoire, infinids quon sort des limites de la communication courante (soumise lopinion, ladoxa) et de la vraisemblance narrative ou discursive. La productivit se dclenche, laredistribution sopre, le texte survient [...] (BARTHES, 1996, p. 998)
Essa definio de produtividade elaborada por Barthes relaciona-se, como se
v, ao texto, mas poderia, em princpio, ser expandida livremente por ns a qualquer sistema
de expresso comunicativo ou artstico, como por exemplo, o cinema e a fotografia.
As palavras de Barthes nessa definio de produtividade esto umbilicalmente
ligadas a todo um processo de modificaes na concepo do texto, que, por sua vez,
alteraram e continuam a influenciar os estudos literrios, especialmente aqueles realizados sob
o enfoque da Literatura Comparada. O texto passa a ser visto como um campo sem bordas ou
limites definidos, um vasto campo de produo de sentidos, amplia-se para alm da obra
literria, inclusive para a crtica e a teoria. Com as propostas de Barthes, o texto deixa de ser
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uma estrutura pronta sobre a qual caberia apenas um trabalho de identificao; agora ele
algo vivo, um campo que est sempre em processo, e sobre o qual incidem mltiplos saberes.
O pensamento barthesiano, a partir de O prazer do texto, tambm contribuiu para a percepo
de que leitura e escrita so instncias sempre imbricadas.
1.1 As relaes entre os textos
Nessa trajetria de derrubada da concepo do texto como algo esttico e
fechado, o lingista russo Mikhail Bakhtin um dos precursores. Para ele, uma estrutura
literria se constri a partir da relao estabelecida com outras estruturas, literrias e
extraliterrias, estando o discurso de um sempre marcado pelo discurso do outro. Ao analisar
a obra de Dostoivski, Bakhtin elaborou o conceito de dialogismo: o texto situa-se e insere-se
na sociedade e na histria, mas no as representa como espelho, pois o escritor l o contexto
social como texto e reescreve-o no texto que produz. O texto se constitui, para Bakhtin, no
dilogo entre diversas escrituras: a do escritor, a do destinatrio, a do contexto atual e a do
contexto anterior.
A partir das teorias de Bakhtin, Julia Kristeva elaborou, em 1969, o conceito de
intertextualidade, fomentando a discusso sobre o processo de produo do texto literrio e
renovando os estudos comparatistas. Assim, se pronuncia a autora: [...] todo texto absoro
e transformao de outro texto. Em lugar da noo de intersubjetividade, se instala a de
intertextualidade, e a linguagem potica se l, pelo menos, como dupla. (KRISTEVA. Apud
CARVALHAL, 1999, p. 50)
Com Kristeva, o texto passa a ser entendido na sua relao com os textos que o
precederam, compondo-se como interconexo de textos, ligaes essas que acontecem em
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vrias direes, em uma espcie de teia intertextual, uma teia que atravessa as fronteiras
espaciais e temporais. Embora no fosse o objetivo de Kristeva, a noo de fonte e influncia,
que orientara durante pelo menos meio sculo os estudos comparatistas, retomada, s que,
agora, no mais pela noo de dvida com o texto anterior, mas como assimilao e
transformao de textos anteriores em textos novos. Assim esclarece Tania Franco Carvalhal
(1999, p. 51): [...] o que antes era entendido como uma relao de dependncia, a dvida que
um texto adquiria com seu antecessor, passa a ser compreendido como um procedimento
natural e contnuo de reescrita dos textos.
Alguns escritores-crticos2 tambm elaboraram propostas, que, em consonncia
com as j citadas, fornecem um conjunto de conceitos que se configuram relevantes para a
Literatura Comparada e, por conseguinte, para o nosso trabalho. o caso de Jorge Luis
Borges, que realizou diversas incurses sobre o processo criador. Ele colocou em debate as
noes clssicas de originalidade, filiao e hierarquia cronolgica na produo literria,
dizendo que, em muitos casos, um texto novo redescobre e d sentido ao texto anterior. Desse
modo, Borges subverte a noo de dvida: se for o caso de estabelec-la, ento textos mais
antigos ficariam em dbito para com o texto novo que, ao revisit-los, conferem-lhe novo
valor. Em Kafka e seus precursores, Borges afirma que cada escritor cria seus precursores.
Esse processo dialtico entre os textos, proposto por Borges, faz com que uns iluminem,
resgatem e valorizem os outros.
No conto Pierre Menard, autor do Quixote, o autor argentino diz que um texto
idntico lanado em momentos histricos diferentes pode ser original em ambos os
momentos, pois o contexto temporal altera completamente o sentido de cada um dos textos.
No conto, o narrador relata a aventura do amigo Pierre Menard de reescrever alguns captulos
do clssico romance de Cervantes. A proposta de Menard no fazer uma adaptao do texto
2 Expresso cunhada por Leyla Perrone-Moiss (1993) para referir-se queles escritores que se dedicam, em suasobras, a refletir sobre o fazer literrio.
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primeiro para o tempo em que vivia, mas reescrev-lo fielmente, palavra por palavra. Os dois
textos eram, portanto, exatamente iguais, mas na confrontao do narrador eles so
considerados totalmente diferentes. Ocorre que o peso temporal modifica completamente o
significado dos textos. A linguagem utilizada por Cervantes, por exemplo, era perfeitamente
compatvel com a utilizada em sua poca. J ao ser reescrito por Menard, as mesmas palavras
conferem ao texto mais recente um tom ultrapassado. Esse conto levanta ainda a questo do
local e do tempo em que o leitor realiza a leitura. Como diz Carvalhal (1999, p. 69), o leitor
torna-se uma espcie de co-autor se entendermos a leitura tambm como uma forma de
reescrita interminvel.
Amante devotado da literatura, Borges legou-nos outros textos, que como o
citado Pierre Menard, autor do Quixote, dobram-se sobre si mesmos para refletir acerca do
labirinto desenhado pela escrita (e pela leitura) no tempo e no espao. Um caso exemplar o
conto A Biblioteca de Babel, em que a reflexo se d justamente atravs da construo da
imagem de uma biblioteca fictcia, descrita, alis, como sinnimo de universo: O universo
(que outros chamam a Biblioteca) compe-se de um nmero indefinido, e talvez infinito, de
galerias hexagonais, com vastos poos de ventilao no centro, cercados por balaustradas
baixssimas (BORGES, 1991, p. 516).
As galerias, compostas de estantes repletas de livros, esclarece o texto de
Borges, unem-se umas s outras; horizontalmente, atravs de um estreito vestbulo e,
verticalmente, para cima e para baixo, atravs de escadas espirais. Percorrer as galerias da
Biblioteca, alimentando-se dos livros, o destino do homem (o imperfeito bibliotecrio).
Tarefa que consumir toda uma vida, e todas as vidas, sem que homem algum consiga
percorrer a totalidade das galerias, ler todos os livros, decifrar todos os seus segredos.
Afirmo que a Biblioteca interminvel (BORGES, 1991, p. 517), avisa-nos o texto; assim,
ser impossvel abarc-la, apreend-la em sua totalidade. Por outro lado, embora se admita
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que a Biblioteca seja infinita, no se poder confirmar tal afirmao. Os homens-leitores
estaro sempre dentro da Biblioteca, no lhes possvel embarcar em uma astronave para
visualiz-la de fora, como fazem os homens-astronautas com a Terra quando vo para o
espao sideral. Para Borges, o homem , pois, um bibliotecrio imperfeito, em virtude de
sua limitao diante da Biblioteca infinita. Embora a Biblioteca seja total e embora suas
prateleiras registrem todas as possveis combinaes dos smbolos ortogrficos, ou seja, tudo
o que dado expressar em todos os idiomas (BORGES, 1991, p. 519), essa totalidade jamais
ser alcanada pelo homem. o que faz o homem ser homem e no Deus. A qualidade de
Deus, isto , aquela originada do conhecimento de todos os livros da Biblioteca, essa
qualidade s alcanada, como sugere o texto, num plano mtico: Em alguma estante de
algum hexgono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o
compndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecrio o consultou e anlogo a um
deus. (BORGES, 1991, p. 521) [grifo do autor]
Podemos inferir ainda que cada bibliotecrio imperfeito (leitor) far um traado
nico pela Biblioteca durante a sua vida intelectual. Um bibliotecrio X jamais ler os
mesmos livros que um bibliotecrio Y leu. E mesmo que os dois leiam exatamente as mesmas
obras, as tero lido em tempos diferentes e, provavelmente, em hexgonos diferentes, e ainda
em uma ordem cronolgica diferente. Essas variantes conferem o carter singular a cada
trajeto de leitura realizado pelos leitores.
A noo de Biblioteca em Borges no a de um acervo esttico de livros.
Sendo sinnimo de universo, , ao contrrio, dinmica, espao e tempo de trabalho e de
prazer, como o texto para Barthes. Em Le Propre du langage, Jean-Christophe Bailly dedica
um dos seus verbetes biblioteca, comparando-a a uma adega e os livros, aos vinhos,
concepo essa que parece aproximar-se das idias borgianas. A exemplo dos bons vinhos,
tambm os livros devem esperar, serenamente, o trabalho dos anos. O tempo vai conferir o
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gosto especial e particular de cada um. Escreve Bailly:
Si les bibliothques sont littralement les caves du savoir humain (dans lobscuritdes livres ferms le sens travaille continment), les livres prsentent toutefois sur lesbouteilles lavantage de pouvoir tre bus (lus) tout moment et de se conserver sanslimitation, ainsi que celui dtre inpuisables : mme bue dun trait, la bouteille restepleine. (1997, p. 23)
Os livros, os textos so, portanto, fontes inesgotveis para o trabalho de leitura.
A noo de trabalho do texto, apontada por Bailly, nos remete imediatamente ao pensamento
barthesiano no tocante ao conceito de produtividade, que, por sua vez, est relacionada ao
conceito de intertextualidade. A intertextualidade acaba por modificar o prprio conceito de
texto. Este, como j foi dito, no pode mais ser visto como estrutura fechada, mas como
trnsito de e para outros textos. Atualmente, se entende que a intertextualidade no pode ser
reduzida apenas idia de teia ou cadeia de textos. Tampouco se pode pensar que sempre
poderemos reconhecer claramente a presena dos outros textos que formam um determinado
texto. Pensa-se agora no texto enquanto intertextualidade generalizada e no mais como
relaes de parentesco entre os textos. Mais uma vez recorremos a Barthes:
Lintertextualit, condition de tout texte, quel quil soit, ne se rduitvidemment pas un problme de sources ou dinfluences; lintertexte est un champgnral de formules anonymes, dont lorigine est raremente reprable, de citationsinconscientes ou automatiques, donnes sans guillements. pistmologiquement, leconcept dintertext est ce qui apporte la thorie du texte le volume de la socialit:cest tout le langage, antrieur et contemporain, qui vient au texte, non selon la voiedun filiation reprable, dune imitation volontaire, mais selon celle dunedissmination image qui assure au texte le statut, non dune reproduction, maisdune productivit. (BARTHES, 1996, p. 998) [grifo do autor]
1.2 As relaes entre textos e imagens
Abordagem semelhante que efetuamos sobre a questo texto pode ser
elaborada para o mundo das imagens, propondo-se que um trnsito semelhante ao que
reconhecido entre os textos possa ser estendido para o campo das imagens e, da mesma forma,
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para pensarmos sobre a relao entre mundo visual e mundo de textos.
Para tratarmos dessa questo, recorremos inicialmente a uma citao:
Que se veja o ar escuro, nebuloso, aoitado pelo mpeto de ventos contrriosentrelaados com a chuva incessante e o granizo, carregando para l e para c umavasta rede de galhos de rvores quebrados, misturados com um nmero infinito defolhas.
Que se vejam, em torno, rvores antigas desenraizadas e feitas em pedaospela fria dos ventos. [...]
, quantas pessoas podem ser vistas tampando os ouvidos com as mos paracalar o rugido feroz lanado atravs do ar obscuro pela fria dos ventos misturadoscom a chuva, pelo estrpito dos cus e pelo chispar dos relmpagos!
Outras no se contentavam em fechar os olhos, mas, tapando-os com asmos, uma em cima da outra, os cobriam, ainda mais apertados, para no ver omassacre impiedoso da raa humana pela ira de Deus.
Ai de mim! quantos lamentos! [...]Ai! Quantas mes choravam os filhos afogados, segurando-os sobre os
joelhos, erguendo os braos abertos para o cu, e com diversos gritos e guinchos,clamando contra a ira dos deuses? [...]
E, acima desses horrores, a atmosfera se via coberta de nuvens lgubresrasgadas pela chispa serpenteante dos terrveis raios do cus, que refulgiam, oraaqui, ora ali, em meio densa escurido. (Leonardo da Vinci. Apud EISENSTEIN,1990, p. 24-25)
Entre as inmeras atividades desenvolvidas por Leonardo da Vinci (1452-
1519), citam-se facilmente as de pintor, escultor, inventor, matemtico, mdico, bilogo,
anatomista, engenheiro, arquiteto, msico, cientista... Mas, a julgar pela fora potica dos
trechos acima citados, talvez tenhamos que incluir a escrita potica como mais uma das
facetas do gnio italiano. Os pargrafos transcritos so parte das notas de Leonardo para uma
representao do Dilvio pela pintura, projeto que no foi realizado. As notas constam da
Trattata della Pittura, em cuja edio francesa o organizador diz que o quadro nunca
realizado teria sido uma insupervel chef doeuvre da paisagem e da representao das
foras da natureza (PELADAN. Apud EISENSTEIN, 1990, p. 26). Mas encontramos as
referidas notas por outro caminho. Esto citadas no texto Palavra e Imagem, que faz parte
do livro O sentido do filme, de Sergei Eisenstein. O cineasta russo utiliza o texto de Leonardo
da Vinci para dizer que se constitui em um exemplo notvel de roteiro de filmagem.
Vejamos:
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Nele, atravs de uma acumulao crescente de detalhes e cenas, uma imagempalpvel surge diante de ns. No foi escrito como uma obra literria acabada, masapenas como uma nota de um grande mestre que tentou colocar no papel, para simesmo, sua visualizao do Dilvio. (EISENSTEIN, 1990, p. 24)
E mais adiante:
Sem analisar em detalhes a estrutura desse extraordinrio roteiro defilmagem, devemos salientar porm o fato de que a descrio segue um movimentobastante definido. Alm disso, o curso deste movimento de modo algum fortuito. Omovimento segue uma ordem definida, e depois, na correspondente ordem inversa,volta aos fenmenos do incio. [...] Com absoluta nitidez emergem os elementostpicos de uma composio de montagem. (EISENSTEIN, 1990, p. 26) [grifo doautor]
Alm das notas, Leonardo tambm desenhou alguns esboos, que serviriam de
orientao para o momento de realizar a pintura planejada. Esses esboos, num total de onze,
encontram-se atualmente na Royal Library of Windsor Castle. Em 1989, utilizando os
desenhos e as notas de Leonardo, o videomaker Mark Whitney dirigiu a realizao de um
pequeno vdeo de 14 minutos chamado Leonardos Deluge. Whitney e sua equipe escanearam
os esboos de Leonardo; depois, utilizando tcnicas de animao e cenas captadas em
paisagens ao redor do rio Arno, produziram o referido vdeo.3 Realizaram, assim, uma leitura
particular do material deixado por da Vinci, transformando o dilvio imaginado pelo pintor
em uma animao em vdeo.
Com o exemplo que relatamos, queremos mostrar, em primeiro lugar, os
caminhos errantes percorridos pelas diferentes manifestaes artsticas ao longo do tempo.
Em segundo, que o conceito de produtividade pode ser estendido para o campo das imagens e
ainda para a relao das imagens com os textos. A imagem mental de Leonardo sobre o
Dilvio transformou-se em notas escritas e em onze esboos. A leitura crtica realizada por
Eisenstein trouxe a escrita do pintor italiano aos domnios do cinema, ao identificar no texto
de Leonardo as caractersticas do roteiro e da montagem cinematogrficos. E, finalmente, os
3 Informaes obtidas no site www.artfilm.org. Acesso em 20 de dezembro de 2002.
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desenhos e as notas do pintor italiano e, certamente, as noes tericas sobre montagem
cinematogrfica formuladas pelo cineasta russo, concorreram para proporcionar equipe do
diretor Mark Whitney a realizao de uma nova obra, esta no campo da recente arte
videogrfica. Como diz Claude Lvi-Strauss (1997, p. 139), o nico meio de a obra de arte
perpetuar-se dar origem a outras obras de arte, que, para seus contemporneos, parecero
mais vivas do que aquelas que as precederam imediatamente. O percurso realizado pela arte,
desde a mente de Leonardo at os pixels do vdeo de Whitney, demonstram, assim, que,
mesmo escritos (os textos) e mesmo filmadas, desenhadas, pintadas, esboadas, fotografadas
(as imagens) no cessam de trabalhar, no param de se relacionar, num jogo combinatrio e
quase sempre imprevisvel. Outros percursos devem existir a partir desse mesmo ponto inicial
que aqui estabelecemos a ttulo de exemplo, sendo que esse comeo sempre arbitrrio.
Antes do texto de Leonardo ser escrito, etapas anteriores existiram, como, por exemplo, a
leitura que o pintor certamente fez do Dilvio descrito pela Bblia.
Um caso semelhante ao que traamos aqui citado por Alberto Manguel:
O romancista argentino Adolfo Bioy Casares sugeriu, certa vez, uma cadeia infinitade obras de arte e de seus comentrios, a comear por um nico poema do sculoXV, do poeta espanhol Jorge Manrique. Bioy sugeriu a construo de uma esttuapara o compositor de uma sinfonia baseada em uma pea sugerida pelo retrato de umtradutor dos Dsticos sobre a morte de seu pai, de Manrique. (MANGUEL, 2001,p. 30)
Como diz ainda Manguel (2000, p. 30-32): Cada obra de arte se expande
mediante incontveis camadas de leituras, e cada leitor remove essas camadas a fim de ter
acesso obra nos termos do prprio leitor. Talvez possamos interpretar os exemplos do
Dilvio e o traado por Bioy Casares como uma ampliao da noo de intertextualidade, isto
, uma ampliao para alm dos limites do verbal. Alm de considerar a intertextualidade
como a presena disseminada de textos em outros textos, agregaramos a leitura que se faz de
qualquer imagem nessa cadeia infinita. Ao transformarmos uma imagem em palavra (escrita
25
ou oral), estamos trazendo-a ao campo do texto.
Quando lemos imagens de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas,fotografadas, edificadas ou encenadas , atribumos a elas o carter temporal danarrativa. Ampliamos o que limitado por uma moldura para um antes e um depoise, por meio da arte de narrar histrias, conferimos imagem imutvel uma vidainfinita e inesgotvel. (MANGUEL, 2000, p. 27)
Nesse contexto, Manguel lembra ainda o conceito de museu imaginrio de
Andr Malraux patrimnio de imagens reproduzidas que est nossa disposio para que
desenhemos dilogos entre as obras produzidas em diferentes tempos e culturas. Percebemos
aqui uma profunda relao com o conceito de intertextualidade. No seria despropositado,
portanto, pensarmos em uma interconexo entre os conceitos de museu imaginrio e de
Biblioteca de Borges, projetando-se, assim, um processo de leitura que percorra
indistintamente obras de cunho visual e de ordem verbal.
Quando se fala em trazer uma imagem ao campo do texto (e vice-versa), no se
pensa, claro, em uma transposio direta, mas, antes, em uma tentativa de traduo, como
veremos mais adiante, ao aproximarmos texto, fotografia e filme. Trata-se de um processo em
que entram em tenso as possibilidades e as retraes de uma e de outra parte texto e
imagem testam seus limites e experimentam a produtividade de um entre-lugar.
Ao preconizarmos a aproximao de um texto literrio com uma obra de cunho
visual, como o cinema, estamos inserindo nosso estudo comparativo dentro da
interdisciplinaridade. Para Tania Franco Carvalhal (1999, p.74), os estudos interdisciplinares
em Literatura Comparada instigam a uma ampliao dos campos de pesquisa e aquisio de
competncias. Assim, vista pelo ngulo da interdisciplinaridade, ainda nas palavras de
Carvalhal (1999, p.74), a literatura comparada uma forma especfica de interrogar textos
literrios na sua interao com outros textos, literrios ou no, e outras formas de expresso
cultural e artstica. (CARVALHAL, 1999, p. 74)
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1.3 Texto e fotografia: a proposta de Cortzar
Julio Cortzar realizou um paralelo entre conto e fotografia no texto Alguns
aspectos do conto (1993), que ele apresentou em uma conferncia em Havana, Cuba, na
dcada de 1970. Embora a abordagem de Cortzar esteja voltada para definir o conto
enquanto gnero literrio diferenciado dos demais, especialmente o romance, no queremos
aqui explorar essa questo do gnero, mas aproveitar o paralelo estabelecido pelo autor em
alguns pontos relevantes, atravs dos quais podemos legitimar, inicialmente, as aproximaes
e tentativas de traduo entre fotografia e texto, bem como, posteriormente, dessas instncias
com o filme. O paralelo estabelecido inicialmente por Cortzar est relacionado concepo
de limite, que inerente tanto ao conto quanto fotografia. A seleo de um recorte espacial e
temporal definido e bastante restrito em relao ao romance e ao filme cinematogrfico o
primeiro marco que fomenta a comparao de Cortzar. Outro ponto abordado por ele o que
em fotografia chamamos enquadramento e que no conto seria a escolha de um elemento
significativo, que reside no fato de se escolher um acontecimento real ou fictcio que possua
essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para alm dele mesmo. (CORTZAR,
1993, p. 152)
Referindo-se aos contos que considera inesquecveis para ele como leitor e
convidando-nos a rememorar os nossos contos inesquecveis, Cortzar afirma que eles tm
uma caracterstica em comum: [...] so aglutinantes de uma realidade infinitamente mais
vasta que a do seu mero argumento, e por isso influram em ns com uma fora que nos faria
suspeitar da modstia do seu contedo aparente, da brevidade do seu texto. (CORTZAR,
1993, p. 155)
Cortzar recorre ainda definio que fotgrafos como Hernri Cartier-Bresson
e Gyula Halsz Brassa do fotografia para caracteriz-la como um aparente paradoxo:
27
[...] o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, masde tal modo que esse recorte atue como uma exploso que abra de par em par umarealidade muito mais ampla, como uma viso dinmica que transcendeespiritualmente o campo abrangido pela cmara. (CORTZAR, 1993, p. 151)
Todos esses conceitos limite, enquadramento e expanso , presentes mais ou
menos explicitamente na teorizao de Cortzar, so prprios do campo da fotografia, que,
entretanto, so livremente tomadas de emprstimo por Cortzar para pensar o conto. A
fotografia uma categoria bastante particular dentro do universo das imagens, dotada de uma
elaborao terica que, se por um lado, tem seus pontos de interconexo com as outras
manifestaes visuais, tambm guarda suas peculiaridades. Dessa forma, nosso prximo
passo, no segundo captulo deste trabalho, ser aprofundarmos alguns aspectos relevantes da
teoria da fotografia, para que possamos aproveit-los na anlise que faremos do conto Las
babas del diablo e do filme Blow-Up.
2 A FOTOGRAFIA: UM PERCURSO TERICO
O conto Las babas del diablo e o filme Blow-Up, que compem o corpus deste
trabalho, tm na fotografia no apenas um tema, mas tambm um material de especulao
terico-reflexiva que se articula e se confunde com a dimenso artstica (literria e flmica)
das duas obras. Cortzar daqueles escritores que, na nomenclatura de Leyla Perrone-Moiss,
pode ser classificado como um escritor-crtico, pois dissemina em seus textos
questionamentos de ordem terica os mais variados. Em Las babas del diablo, parece colocar
na forma de texto literrio o que aborda no j citado Alguns aspectos do conto, em que
discorre sobre as semelhanas entre esse gnero e fotografia. Mas, como j apontamos, para
este nosso trabalho interessa menos a correspondncia desta ltima com o conto enquanto
gnero literrio; importa mais a ampliao aberta pelo autor para explorarmos as
possibilidades e impossibilidades da traduo da imagem fotogrfica para a escritura de um
texto.
Algo semelhante ao que se disse de Cortzar pode-se afirmar sobre
Michelangelo Antonioni. No seria ele, adaptando a expresso de Perrone-Moiss, um
diretor-crtico, uma vez que tambm ele reconhecido por ter disseminado em seus filmes
reflexes sobre o prprio fazer cinematogrfico?
A fotografia constitui-se, portanto, a um s tempo, eixo temtico das duas
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obras abordadas e parte do suporte terico deste nosso trabalho. preciso, pois, que nos
dediquemos, agora, a estabelecer alguns conceitos acerca da imagem fotogrfica, para que,
mais adiante, possamos coloc-los em contato com a explorao do nosso corpus. Nessa
perspectiva, voltamo-nos, basicamente, para as propostas de dois nomes: Roland Barthes e
Philippe Dubois.
2.1 A fotografia segundo Roland Barthes
A obra A cmara clara, de Roland Barthes, constitui-se em um texto fundador
para o nosso trabalho. Devemos destacar dois aspectos presentes nessa obra que justificam
determo-nos, por algumas pginas, a explor-la, buscando sistematizar alguns dos pontos nela
abordados. O primeiro aspecto o fato de A cmara clara ter apresentado certas propostas
tericas que motivaram uma reciclagem no modo de anlise da fotografia. Na esteira de
Barthes, pelo menos trs obras consideradas fundamentais para os estudos atuais da fotografia
foram escritas: Lacte photographique, de Philippe Dubois, Philosophie de la photographie,
de Henri Van Lier, e Limage prcaire, de Jean-Marie Schaeffer.4 O segundo e mais
importante aspecto que refora nossa dedicao a uma leitura detalhada de A cmara clara
est relacionado ao modo como Barthes realiza suas especulaes tericas: o autor coloca-se
efetivamente como mediador da fotografia. Eis-me assim, eu prprio, como medida do
saber fotogrfico, declara Barthes (1984, p. 20). Todo seu texto construdo a partir da
observao de certas fotografias, as quais ele selecionara, seguindo, principalmente, o critrio
4 A cmara clara (La chambre claire, em francs) foi escrita em 1979 e publicada na Frana em 1980, poucotempo antes da morte de Roland Barthes. No Brasil, foi publicada pela primeira vez em 1984. Lactephotographique foi publicado pela ditions Labor, de Bruxelas, em 1983. Em 1990, esse texto foi retomado epublicado juntamente com outros ensaios, sob o ttulo de Lacte photographique e autres essais, pela ditionsNathan. No Brasil, a edio da Papirus de 1994. Philosophie de la photographie, de Van Lier, tambm de1983, e Limage prcaire, de Jean-Marie Schaeffer, de 1987 (ditions du Seuil). No Brasil, a obra de Schaefferfoi publicada em 1996, pela Papirus.
30
de possurem elas a capacidade de provocar algum prazer ou emoo. Barthes situa-se,
assim, entre duas linguagens, como ele mesmo explica: a expressiva e a crtica. Esse
entre-lugar, no qual ele provavelmente sempre se situou na produo textual, ficou ainda mais
evidenciado pela sua vontade de escrever sobre fotografia (BARTHES, 1984, p. 20). Do
lado da linguagem crtica se posicionam solidariamente os discursos da sociologia, da
semiologia e da psicanlise. Ao mesmo tempo, afirma que, diante de certas fotos, desejaria ser
selvagem, sem cultura. Ou seja, gostaria de poder abord-las sem estar marcado pelos
cdigos culturais. Declarando-se insatisfeito diante da situao de ter de escolher entre uma
das duas linguagens, Barthes (1984, p. 19) manifesta sua postura: uma resistncia
apaixonada a qualquer sistema redutor. dessa forma que Barthes, sem deixar de avanar
em propostas bastante produtivas sobre o fotogrfico, no se furta de faz-lo tendo a si
prprio como intermedirio. Torna-se, ao longo da obra, sujeito ativo das formulaes
tericas, que, a seu turno, estaro marcadas umbilicalmente pela presena desse sujeito.
O que Barthes procura, inicialmente, na fotografia, no diferente do que
outros pensadores buscam, seja na prpria fotografia, seja em outras manifestaes do mundo
artstico e comunicativo, seja na reflexo filosfica sobre a realidade e a existncia de um
modo mais amplo. Ele pretende destacar a fotografia da comunidade de imagens, buscando o
que ela em si. Quer descobrir qual o elemento caracterstico sem o qual a fotografia no
existiria, ou seja, a essncia da fotografia. Mas talvez seja bom dizer, j de antemo, que a
busca por um trao fundamental torna-se ao longo da obra apenas um pretexto para identificar
que a fotografia no passvel de uma definio fechada e que uma situao de
indecidibilidade que vai compor a formulao mais honesta para caracteriz-la.
Esse constante dizer e desdizer5 de Barthes identifica-se j nas primeiras
pginas de Acmara clara, quando em contraponto idia de busca de uma essncia, o autor
5 A propsito disso, o livro composto por dois captulos, sendo que, ao final do primeiro, Barthes diz quechegou a hora de fazer sua palindia. A palindia um poema que desdiz aquilo que se disse em outro.
31
diz que a fotografia contingncia e que por isso no se pode dizer a foto, mas apenas tal
foto. O que a Fotografia reproduz ao infinito s ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente
o que nunca mais poder repetir-se existencialmente (BARTHES, 1984, p. 13).
Identificamos, na fala barthesiana, um ponto primordial da fotografia, que ser desenvolvido
com mais nfase por Philippe Dubois, que a marca indelvel do referente na concretizao
da imagem fotogrfica.
De acordo com sua estratgia de mesclar a linguagem crtica e a expressiva,
Barthes no se abstm de usar categorias que, de certa forma, so pouco cientficas, como, por
exemplo, o afeto, que ser o guia de sua busca, pelo menos na primeira parte do livro.
[...] o afeto era o que eu no queria reduzir; sendo irredutvel, ele era, exatamentepor isso, aquilo a que eu queria, devia reduzir a Foto; mas seria possvel reter umaintencionalidade afetiva, um intento do objeto que fosse imediatamente penetrado dedesejo, de repulsa, de nostalgia, de euforia? (BARTHES, 1984, p. 38)
A propsito da desconstituio de uma essncia nica da fotografia, Barthes
(1984, p. 39) diz identificar uma rede de essncias. De um lado, essncias materiais que
se relacionam pesquisa dos aspectos fsicos, qumicos e ticos da fotografia. De outro,
essncias regionais, que esto ligadas a questes de ordem sociolgicas, estticas e da
Histria. E, ao tentar deter-se na identificao da essncia da Fotografia6 em geral, v diante
de si um caminho que se bifurca:
[...] em vez de seguir o caminho de uma Ontologia formal (de uma Lgica), eu medetinha, guardando comigo, como um tesouro, meu desejo ou meu desgosto; aessncia prevista na Foto no podia, em meu esprito, separar-se do pattico deque ela feita, desde o primeiro olhar. (BARTHES, 1984, p. 39)
A fotografia, observa Barthes, pode ser objeto de trs prticas: fazer, suportar e
6 Nota-se que a palavra fotografia est grafada ora com a letra inicial maiscula e ora, minscula. Optamos porutilizar em nosso texto fotografia, com f minsculo, para no hierarquiz-la, por exemplo, na sua relao com aliteratura ou com o cinema. Mas mantivemos a palavra com F maisculo nas citaes quando assim foi grafadapor seus autores. O mesmo vale para palavras como Referncia e Morte, entre outras, grafadas com suas iniciaisora em maiscula, ora em minscula por Barthes.
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olhar. So, grosso modo, a descrio de elementos fundamentais de qualquer sistema de
comunicao: o emissor, a mensagem e o receptor. Mas, para ns, importante destacar tal
sistematizao realizada pelo autor, em virtude, principalmente, da nomeao particularizada
que Barthes realiza para os trs agentes do processo fotogrfico: 1) o operator define o
fotgrafo, aquele que est presente diante da cena apreendida pela cmera, aquele que opera,
que manipula a mquina; 2) o spectator aquele que olha para a(s) fotografia(s); 3) o
spectrum aquele que fotografado. A palavra spectrum duplamente pertinente para
designar o referente, ressalta Barthes (1984, p. 20), pois, em sua raiz, tem relao com
espetculo e com essa coisa um pouco terrvel que h em toda fotografia: o retorno do
morto. A fotografia contm, portanto, ao mesmo tempo espetculo (encenao) e fantasma
(morte).
O trabalho de Barthes consiste basicamente em agir/escrever como spectator.
Um spectator que no se detm, entretanto, na tarefa da observncia, um spectator que, ao
mesmo tempo em que observa fotografias, escreve sobre as fotografias observadas. Como se
ver, ser uma estratgia semelhante executada por Roberto Michel, o personagem-narrador
do conto Las babas del diablo. Acreditamos, assim, no ser equivocado dizer que este
trabalho de Barthes se constitui tambm numa espcie de fico na medida em que ele prprio
se posta como um personagem. sintomtico, nesse sentido, que Barthes utilize o tempo
verbal no pretrito, como em uma narrativa clssica, como se contasse uma histria: sua
grande aventura em busca da fotografia. Destaquemos, a ttulo de exemplificao, alguns
trechos em que esse estilo ficcional fica evidenciado. Assim inicia o primeiro captulo:
Um dia, h muito tempo, dei com uma fotografia do ltimo irmo deNapoleo, Jernimo (1852). Eu me disse ento, com um espanto que jamais pudereduzir: Vejo os olhos que viram o Imperador. Vez ou outra eu falava desseespanto, mas como ningum parecia compartilh-lo, nem mesmo compreend-lo (avida , assim, feita a golpes de pequenas solides), eu o esqueci. (BARTHES, 1984,p. 11)
33
E mais adiante: A cada vez que eu lia algo sobre a Fotografia, eu pensava em
tal foto amada, e isso me deixava furioso (BARTHES, 1984, p. 17). A prpria trajetria
temporal de escrita7 motivo para ficcionalizar: Na poca (no incio deste livro: j est
longe) em que me interrogava sobre minha ligao com certas fotos, eu julgava poder
distinguir [...] (BARTHES, 1984, p. 141). Em outro momento, analisando e apresentando a
foto de um menino, assim escreve: possvel que Ernest ainda viva hoje em dia: mas onde?
Como? Que romance! (BARTHES, 1984, p.126). Nessa legenda, fica evidenciado o trnsito
para o ficcional que habita a fotografia desde que seja mediada por um spectator que se
disponha a escrever, a produzir um texto.
Um aspecto relevante para se destacar no processo executado por Barthes diz
respeito ainda a seu critrio de escolha das fotos que analisa. Seu guia , como j dissemos,
bastante subjetivo, e tem a ver com a atrao que sente por certas fotos. Mas essa atrao no
se confunde com fascinao esse critrio, acreditamos, levaria a uma condio passiva
apenas um encantamento diante da fotografia. O que as fotos produzem nele , nas suas
palavras, uma agitao interior, uma festa, um trabalho tambm, a presso do indizvel que
quer se dizer (BARTHES, 1984, p. 35) [grifo nosso]. Na ordem, portanto, e em outras
palavras, a fotografia deve, em primeiro lugar, incomodar e, em seguida, proporcionar a
participao ativa do spectator, que tentar produzir uma traduo para o que, em princpio,
intraduzvel. Duas outras palavras so utilizadas por Barthes para tentar nomear mais
adequadamente a atrao pelas fotos. A primeira aventura. A segunda, animao. A
prpria foto no em nada animada [...] mas ela me anima: o que toda aventura produz.
(BARTHES, 1984, p. 37). Animar tem pelo menos dois sentidos: estimular a foto para ser
escolhida por Barthes tem que impulsion-lo para a aventura e dar vida a a fotografia,
sendo a morte pelo congelamento da imagem, precisa ser abastecida com vida pelo trabalho
7 Conforme registrado ao final do livro, o texto foi escrito entre 15 de abril e 3 de junho de 1979.
34
do spectator. , assim, um trabalho de duas vias, como bem explicita Barthes (1984, p. 37):
[...] ela me anima e eu a animo.
Barthes discorre, em momentos diferentes do texto, sobre dois tipos de
fotografia: a obtida mediante o conhecimento de algum que posa e a capturada sem o
conhecimento do objeto que se transforma em spectrum. Embora o autor no faa claramente
uma distino, para ns ser importante que realizemos uma classificao. Assim,
nomearemos, neste trabalho, o primeiro tipo de fotografia como foto-pose e, o segundo, como
foto-caa8. Em ambos os casos, o tema da morte recorrente.
Na foto posada, quem fotografado, explica o autor, dispe-se a fazer parte do
jogo social.
Quatro imaginrios a se cruzam, a se afrontam, a se deformam. Diante da objetiva,sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que mejulgassem, aquele que o fotgrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibirsua arte. (BARTHES, 1984, p. 27)
Trata-se, como se deduz, de mltiplas encenaes, protagonizadas tanto por
quem se deixa fotografar quanto por quem fotografa. O fotografado, consciente de que alvo
da cmera, vive nesse instante a experincia de transformar-se em objeto.
Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a inteno) representa essemomento muito sutil em que, para dizer a verdade, no sou nem um sujeito nem umobjeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo ento umamicroexperincia da morte (do parntese): torno-me verdadeiramente espectro.(BARTHES, 1984, p. 27)
J, no momento seguinte, quando o fotografado se v diante de sua imagem, a
morte se concretiza.
[...] quando me descubro no produto dessa operao, o que vejo que me torneiTodo-Imagem, isto , a Morte em pessoa; os outros o Outro desapropriam-me demim mesmo, fazem de mim, com ferocidade, um objeto, mantm-me merc, disposio, arrumado em um fichrio. (BARTHES, 1984, p. 29)
35
Se a foto-pose exige uma interao de pelo menos dois atores (o operator e o
spectrum) para que a encenao ocorra, o que aqui chamamos de foto-caa tem a ver muito
mais com a ao do operator. Essa no , como j dito, a instncia da qual Barthes se prope
a falar sobre a fotografia. O autor diz que, no sendo fotgrafo, pode falar somente como
spectator e como spectrum. Mas, mesmo assim, ele chega a propor algumas caractersticas
que norteiam o trabalho do operator.
Imagino ( tudo o que posso fazer, j que no sou fotgrafo) que o gestoessencial do Operator o de surpreender alguma coisa ou algum (pelo pequenoorifcio da cmara) e que esse gesto , portanto, perfeito quando se realiza sem que osujeito fotografado tenha conhecimento dele. (BARTHES, 1984, p. 54)
Barthes aqui parece alar o ato de fotografar ao campo da caa: ao fotgrafo-
caador cabe surpreender a presa, aprisionando-a (ou matando-a, se pensarmos na idia
recorrente de fotografia como morte). Tal ao se desenvolve sem que a vtima se aperceba; a
captura de sua imagem leva o fotografado dupla condio de vivo e morto; morto pela
imagem; vivo, entretanto, pois continua a mover-se no mundo extra-fotogrfico. Do gesto de
surpreender o referente, derivam, prope Barthes, todas as fotos cujo princpio o choque,
que consiste em revelar aquilo que estava to bem oculto, que o prprio ator dele estava
ignorante ou inconsciente. (BARTHES, 1984, p. 54-55)
2.1.1 Studium e punctum
Uma das propostas mais relevantes de A cmara clara identificada em nossa
leitura o reconhecimento de dois elementos co-presentes da fotografia, nomeados por
8 No uma nomenclatura utilizada por Barthes. Vamos assim destacar esses dois tipos de procedimento, para,mais tarde, nos referirmos a eles, na anlise do filme Blow-Up e do conto Las babas del diablo.
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Barthes como studium e punctum. A definio de ambos os elementos no estabelecida de
forma categrica, definitiva, mas vai sendo refeita a cada instante e de uma forma
diferenciada ao longo do texto barthesiano.
O studium descrito, inicialmente, assim:
uma vastido, ele tem a extenso de um campo, que percebo com bastantefamiliaridade em funo de meu saber, de minha cultura; esse campo pode ser maisou menos estilizado, mais ou menos bem-sucedido, segundo a arte ou aoportunidade do fotgrafo, mas remete sempre a uma informao clssica [...](BARTHES, 1984, p. 44-45)
Em relao s fotos feitas unicamente desse campo, Barthes (1984, p. 45) diz
que ele, enquanto spectator, pode ter uma espcie de interesse geral e o que experimenta
tem a ver com um afeto mdio, quase com um amestramento. (BARTHES, 1984, loc.cit)
[grifo do autor]
J o segundo elemento o punctum, que vem quebrar (ou escandir) o
studium (BARTHES, 1984, p. 46). Vrias palavras e expresses so utilizadas pelo autor
para tentar definir o punctum, entre elas: ferida, picada, marca feita por um instrumento
pontudo, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte, lance de dados
(BARTHES, 1984, p. 46) [grifo negrito nosso], olho que pensa (BARTHES, 1984, p. 73). E
ainda: O punctum de uma foto esse acaso que, nela, me punge (mas tambm me mortifica,
me fere). (BARTHES, 1984, p. 46)
Barthes diz que no existe uma regra de ligao entre studium e punctum,
quando este est presente em uma fotografia. Trata-se de uma co-presena (BARTHES,
1984, p. 68). Ou ainda, trata-se de um suplemento: o que acrescento foto e que todavia j
est nela (BARTHES, 1984, p. 85) [grifo do autor]. A existncia de punctum numa
fotografia no resulta necessariamente de uma inteno. Ele se encontra no campo da coisa
fotografada como um suplemento ao mesmo tempo inevitvel e gracioso; ele no atesta
obrigatoriamente a arte do fotgrafo [...] (BARTHES, 1984, p. 76). E basta a presena e o
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reconhecimento do punctum pelo spectator para mudar a leitura que este faz da fotografia.
Para perceber o punctum, nenhuma anlise, portanto, me seria til (mas talvez, comoveremos, s vezes, a lembrana): basta que a imagem seja suficientemente grande,que eu no tenha de escrut-la (isso no serviria para nada), que, dada em plenapgina, eu a receba em pleno rosto. (BARTHES, 1984, p. 69)
Aqui cabe uma observao. O punctum no se confunde com o que se costuma
designar, na rea de planejamento grfico, CIV (centro de interesse visual), que intencional
e previsto por quem realiza a pea grfica, seja ela uma fotografia, uma pgina de jornal, um
out-door, um anncio em uma revista. O fotgrafo, por exemplo, ao olhar o mundo pelo
recorte estabelecido pela cmera, secciona mentalmente o retngulo com duas linhas
horizontais e duas verticais, sabedor de que o motivo principal do que vai fotografar, deve,
para resultar em uma foto mais interessante, estar localizado, normalmente, no encontro
dessas linhas.
O punctum tem ainda, explica Barthes (1984, p. 73), uma fora de expanso,
que se desdobra em dois tipos. A primeira uma expanso metonmica. A presena do
punctum leva o spectator a acrescentar alguma coisa foto, de acordo com sua memria
afetiva, mobilizando normalmente os outros sentidos alm da viso. isso que se depreende
do exemplo dado por Barthes. Ele observa uma fotografia de Kertsz, que mostra, segundo
explica o texto, um rabequista cigano, cego, conduzido por um garoto. Escreve:
[...] ora, o que vejo, por esse olho que pensa e me faz acrescentar algumacoisa foto, a rua de terra batida; o gro dessa rua terrosa me d a certeza de estarna Europa central; [...] reconheo, com todo meu corpo, as cidadezinhas queatravessei por ocasio de antigas viagens pela Hungria e Romnia. (BARTHES,1984, p. 73) [grifo nosso]
A outra forma de expanso se constitui em paradoxo: acontece quando o
detalhe, mesmo permanecendo detalhe, acaba, ao ser descoberto, preenchendo toda a
fotografia. Ou seja, o todo da fotografia s pode ser visto, a partir de agora, por esse detalhe,
que passa a dominar toda a imagem. Isso em Las babas del diablo ser bem relevante. Depois
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que descobre os olhos do garoto, Michel s consegue ver a imagem a partir deles, os olhos
dominam todo o resto, reconfigurando o que est dentro e tambm o que est fora.
Nem toda fotografia composta de punctum aos olhos de um determinado
spectator. A esse tipo de fotografia, composta apenas de studium, Barthes (1984, p. 66) d o
nome de foto unria. Destituda de punctum, a foto unria no palco de nenhum duelo,
nenhum distrbio (BARTHES, 1984, p. 66). Na foto unria, o interesse do spectator se funde
com o interesse que ele tem pelo mundo, ou seja, a fotografia unria nada acrescenta alm do
que o spectator sentiria vendo a imagem diretamente no mundo. Barthes fornece dois
exemplos que, na sua avaliao, constituem casos de fotos unrias. O primeiro formado por
parte das fotos de reportagem via de regra, reiteram uma informao do texto, so apenas
informativas ou ilustrativas. Essas fotos de reportagem so recebidas (de uma s vez), eis
tudo. Eu as folheio, no as rememoro; nelas, nunca um detalhe (em tal canto) vem cortar
minha leitura [...] (BARTHES, 1984, p. 67). O segundo exemplo o das fotos pornogrficas,
que mostram tudo, o sexo como objeto, sem espao para a imaginao, como ocorre na foto
ertica.
A leitura do punctum faz com que uma fotografia deixe de ser uma foto
qualquer. O detalhe que conquista a leitura do spectator provoca, nas palavras de Barthes
(1984, p.77), um estalo, um satori, a passagem de um vazio. Ao longo do livro, Barthes d
vrios exemplos de punctum. Mas, sendo uma leitura pessoal, subjetiva, que muda de
spectator a spectator, diz que dar exemplos de punctum entregar-se. Escrever sobre um
punctum , pois, para o spectator-que-escreve, revelar o que pensa e sente, revelar um pouco
do seu repertrio e da sua histria.
Barthes recorrente em expressar sua vontade de fazer uma leitura livre,
destituda dos cdigos culturais, ele gostaria de fazer uma leitura pura. [...] Sou um
selvagem, uma criana ou um manaco; mando embora todo saber, toda cultura, abstenho-
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me de herdar de um outro olhar (BARTHES, 1984, p. 78,80). Essa leitura descodificada, se
que possvel, ocorre somente sobre o punctum. Pois o studium est, em definitivo, sempre
codificado, o punctum no [...] (BARTHES, 1984, p. 80). Assim, O que posso nomear no
pode, na realidade, me ferir. A impotncia para nomear um bom sintoma de distrbio
(BARTHES, 1984, p. 80). Conclumos, portanto, que o punctum no passvel de nomeao,
exceto de forma provisria, de forma precria.
Barthes afirma que descobrir o punctum no est ligado diretamente ao ato de
estar olhando a fotografia, pois a viso direta pode orientar equivocadamente. A foto trabalha
no spectator mesmo quando ele no a olha. Dessa forma, s vezes, preciso deixar de olhar
para que ocorra esse trabalho que leve descoberta do punctum. Como escreve Barthes
(1984, p. 84), fechar os olhos fazer a imagem falar no silncio.
Na primeira parte do livro, a preocupao de Barthes , basicamente, com a
identificao e a tentativa de definio de um punctum que um detalhe no todo da imagem,
ou seja, um punctum de ordem espacial. J na segunda parte, a ateno do autor desloca-se
para temas como Histria, memria, morte e tenses entre presente e passado, levando-o
descoberta de um segundo tipo de punctum, este de ordem temporal.
Se na primeira parte do livro, Barthes perambula de foto em foto, todas
pblicas, agora ele vai utilizar fotos de seu arquivo pessoal, que retratam sua famlia. Pouco
tempo depois da morte de sua me, Barthes, ao organizar as fotos dela, questiona-se se a
reconheceria nas imagens perpetuadas sobre o papel fotogrfico. E responde:
Ao sabor dessas fotos, s vezes eu reconhecia uma regio de sua face, tal relao donariz e da testa, o movimento de seus braos, de suas mos. Eu sempre a reconheciapor pedaos, ou seja, no alcanava seu ser e, portanto, toda ela me escapava.(BARTHES, 1984, p. 99)
Barthes diz ainda que reconhece sua me sempre pela diferena sabia que era
a imagem de sua me, porque no era a imagem de outras mulheres mas no encontrava a
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essncia de sua me, portanto no a reencontrava. Fica bastante evidenciada uma vontade
em Barthes de trabalhar seu luto atravs da busca da imagem fotogrfica capaz de restabelecer
a presena de sua me ou, melhor dizendo, a presena de uma imagem em que possa
reconhec-la. Curiosamente, isso no acontece em nenhuma foto recente, cuja imagem
correspondesse que ele conhecera diretamente na convivncia com sua me. Barthes s
consegue reconhec-la numa fotografia da infncia dela era sua me-criana. Ele elege,
assim, a Fotografia do Jardim de Inverno, a nica foto que com segurana existiu para mim
(BARTHES, 1984, p. 109), como guia da sua ltima busca em direo natureza da
fotografia. Pois algo como uma essncia da Fotografia flutuava nessa foto particular
(BARTHES, 1984, loc. cit.). Afirma, ainda, que todas as fotografias do mundo compunham
um labirinto e que no meio desse labirinto nada encontraria alm dessa nica foto, como
cumprindo Nietzsche: Um homem labirntico jamais busca a verdade, mas unicamente sua
Ariadne (NIETZSCHE. Apud BARTHES, 1984, p. 109-110). Na mitologia, Ariadne a
personagem que d a Teseu, seu amado, o fio que lhe permitiria sair do labirinto onde vivia o
minotauro.
A Fotografia do Jardim de Inverno era a Ariadne de Barthes e ele passaria a
interrog-la no mais sob o critrio do prazer, como fizera at ento com as fotografias
pblicas, mas, a partir de agora, do ponto de vista do amor e da morte. A morte um
tema intrinsecamente relacionado questo tempo, a seu bloqueio e a sua passagem.
Devemos observar ainda quo intrigante o fato de Barthes dispor em seu livro
mais de vinte fotografias e, no entanto, privar o leitor justamente da foto que considera a mais
importante. Justifica que para o leitor a fotografia interessaria apenas como studium: [...]
nela, para vocs, no h nenhuma ferida (BARTHES, 1984, p. 110). Assim, o que Barthes d
ao leitor somente a escrita sobre essa fotografia.
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2.1.2 O referente fotogrfico: passado e presente em conflito
Para Barthes, o referente da foto no o mesmo dos outros sistemas de
representao. E define assim o que chama de referente fotogrfico:
[...] no a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas acoisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual nohaveria fotografia. (BARTHES, 1984, p. 114-115) [grifo do autor]
Para dizer que o referente fotogrfico diferenciado, Barthes compara com a
referncia em pintura, que pode simular a realidade sem t-la visto, e com a referncia no
discurso, o qual combina signos que certamente tm referentes, mas esses referentes podem
ser e na maior parte das vezes so quimeras. (BARTHES, 1984, p. 115)
Na fotografia, entretanto, o referente fica impregnado:
[...] na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve l. H dupla posioconjunta: de realidade e de passado. E j que essa coero s existe para ela,devemos t-la, por reduo, como a prpria essncia, o noema da fotografia. [...]
O nome do noema da Fotografia ser ento: Isso-foi, ou ainda: o Intratvel.(BARTHES, 1984, p. 115) [grifo itlico do autor; grifo negrito nosso]
Para Barthes, a referncia a ordem fundadora da fotografia e, assim, cunha a
expresso isso foi como melhor definio da essncia da foto.9 Sendo isso foi, o referente
da fotografia entra em tenso com a imagem presentificada no papel que a iluso de que o
referente ainda . Isso que identificamos como uma tenso, assim explanado por Barthes:
[...] isso que vejo encontrou-se l, nesse lugar que se estende entre o infinito e osujeito (operator ou spectator), ele esteve l, e todavia de sbito foi separado; eleesteve absolutamente, irrecusavelmente presente, e no entanto j diferido.(BARTHES, 1984, p. 115- 116)
9 O tradutor para o portugus, Jlio Castaon Guimares, observa que na traduo o isso-foi perde auniformidade, pois o verbo francs tre corresponde ora a ser, ora a estar, ora a existir. Registramosainda que na obra a expresso isso-foi/isso foi est, ora, grafada com hfen, ora, sem.
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Na pintura, ou num retrato pintado, nada garante que seu referente tenha
realmente existido, enquanto na fotografia, essa relao inseparvel.10 Por isso, Barthes
(1984, p. 116) diz que confundira verdade da imagem e a realidade de sua origem em uma
emoo nica na qual colocava, a partir de ento, a natureza da fotografia. A natureza, a
essncia da fotografia est, portanto, de acordo com o pensamento de Barthes, no fato de ela
amalgamar verdade e realidade na mesma imagem. Portanto, verdade parece estar ligada, na
nossa avaliao, apenas imagem fotogrfica na sua concretude atual, no presente, enquanto
a realidade est relacionada referncia, ou seja, ao que a fotografia representaria no passado
(e no mais no presente). Por essa razo, a expresso de Barthes isso foi e no isto .
A seguir, Barthes realiza um debate sobre a confuso entre os conceitos de
Real e de Vivo, que, para ns, ser bastante produtivo na anlise do conto Las babas del
diablo, quanto do filme Blow-Up, j que essa confrontao recorrente em ambos os casos.
Pois a imobilidade da foto como o resultado de uma confuso perversa entre doisconceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz sub-repticiamente a acreditar que ele est vivo, por causa desse logro que nos faz atribuirao Real um valor absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar essereal para o passado (isso foi), ela sugere que ele j est morto. Assim, mais valedizer que o trao inimitvel da Fotografia (seu noema) que algum viu o referente(mesmo que se trate de objetos) em carne e osso, ou ainda em pessoa. (BARTHES,1984, p. 118) [grifo do autor]
Portanto, desse trecho, podemos chegar j de imediato ao seguinte: o real da
fotografia s pode ser pensado em termos de passado. O referente foi real, naquele nfimo
instante de sua apreenso pela cmera, no mais real no presente. H instantes de real, no
h um real permanente, mesmo que a fotografia teime em fazer parecer que o real
perpetuado pelo congelamento da imagem.
Finalmente, o punctum relacionado ao tempo descrito por Barthes quando ele
observa a foto, de 1865, de um preso condenado morte. Em seguida, realiza a mesma
10Devem excluir-se dessa relao, obviamente, as imagens resultantes de manipulaes sobre fotografias.Particularmente, com o avano da fotografia digital, pessoas ou objetos podem ser includos ou excludos, sem
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interpretao para a Foto do Jardim de Inverno.
A foto bela, o jovem tambm: trata-se do studium. Mas o punctum : ele vaimorrer. Leio ao mesmo tempo: isso ser e isso foi; observo com horror um futuroanterior cuja aposta a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), afotografia me diz a morte no futuro. O que me punge a descoberta dessaequivalncia. Diante da foto de minha me criana, eu me digo: ela vai morrer:estremeo, tal como o psictico de Winnicott, por uma catstrofe que j ocorreu.Que o sujeito j esteja morto ou no, qualquer fotografia essa catstrofe.(BARTHES, 1984, p. 142) [grifo do autor]
Ao final desse item em que abordamos alguns pontos de A cmara clara,
abrimos um parntese para observar que as definies de studium e de punctum guardam
profundas semelhanas com as definies de texto de prazer e texto de fruio, que Barthes
realiza no citado O prazer do texto, abordado no primeiro captulo. Lembremos a distino
entre os dois tipos de texto: o texto de prazer aquele que contenta, enche, d euforia; aquele
que vem da cultura, no rompe com ela, est ligado a uma prtica confortvel de leitura
(BARTHES, 1973, p. 49); e o texto de fruio (ou o prazer do texto)11 aquele que coloca
em situao de perda, aquele que desconforta (talvez at a chegar a um aborrecimento) faz
vacilar as bases histricas, culturais, psicolgicas, do leitor, a consistncia dos seus gostos,
dos seus valores e das suas recordaes, faz entrar em crise a sua relao com a linguagem
(BARTHES, 1973, loc. cit.). Assim, sem ter o objetivo de realizar correlaes fechadas,
podemos dizer que o conceito de studium tem muito a ver com o conceito de texto de prazer e
que o conceito de punctum tem semelhanas com o conceito de texto de fruio. Essa
constatao refora nossa avaliao de que alguns conceitos podem ser considerados e
aproveitados tanto para o campo do texto quanto para o das imagens.
que a edio seja percebida pelo spectator. Nesse caso, a certeza da referncia no mais a mesma, exigindouma reflexo diferenciada, que j est sendo construda por alguns pesquisadores.11 Em O prazer do texto, Barthes usa a expresso texto de prazer em oposio a texto de fruio; mas usaprazer do texto como sinnimo de fruio (jouissance, em francs). Ele explica que no h uma palavrafrancesa que recubra simultaneamente o prazer (o contentamento) e a fruio (o desfalecimento). Ao fazer essaobservao, Barthes refora mais uma vez a impossibilidade dos sentidos fechados na escrita de um texto. JLeyla Perrone-Moiss, no posfcio que faz para a traduo brasileira de Aula, diz que a melhor traduo parajouissance no seria fruio, mas gozo, pois esta palavra remeteria imediatamente idia de erotismo conceito que permeia no s O prazer do texto como tambm A cmara clara.
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2.2 Trs percepes sobre o fotogrfico propostas por Philippe Dubois
Philippe Dubois, em O ato fotogrfico, traa um percurso histrico sobre a
percepo da fotografia, desde sua inveno at a contemporaneidade. Sua sistematizao
leva em conta, declaradamente, as idias presentes em A cmara clara; assim, muitas vezes,
estaremos atualizando ou tornando mais precisos alguns pontos levantados por Roland
Barthes.
A proposta de Philippe Dubois em relao a uma teorizao da fotografia
bastante abrangente e adquire um carter epistemolgico. Isto , apreender, deste modo, o
fotogrfico como uma categoria que no se limitaria aos nicos objetos-imagens, entender o
fotogrfico como uma definio possvel de uma maneira de ser no mundo, como um estado
do olhar e do pensamento (DUBOIS. Apud SAMAIN, 1998, p. 11) [grifo no original]. Ver,
ler, analisar um texto literrio e um filme pelo olhar e pelo pensamento que advm de um
suporte terico e conceitual do fotogrfico , pois, nossa tentativa aqui. Obviamente, no
existe um nico olhar fotogrfico, uma vez que a fotografia tambm alvo de discursos os
mais diversos possveis, de ordem sociolgica, histrica, tcnica, esttica, filosfica,
antropolgica e assim por diante. Esse olhar/pensamento fotogrfico, que j abordamos via
Barthes, ser agora pontuado em alguns aspectos. O caminho de Philippe Dubois marcado
pela nomenclatura da Semitica, tambm esse um campo bastante amplo. Dubois traa um
percurso histrico para identificar a existncia de trs momentos distintos na apreenso do
fotogrfico, ou seja, trs formas diferenciadas de pensar a fotografia, desde a sua inveno at
os dias atuais. So elas: a fotografia como mimese, a fotografia como conveno/codificao
e a fotografia como trao ou ndice. Mais ou menos nessa mesma ordem, dentro de uma linha
cronolgica, tiveram cada uma delas sua vigncia histrica. Isso no quer dizer, entretanto,
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que haja uma diviso estanque na linha do tempo; ao contrrio, em muitos momentos, houve
(e h) a sobreposio de percepes. A terceira (a fotografia como ndice) a mais
contempornea e parece, pelo menos provisoriamente, ser a mais produtiva no apenas para
abordar o fotogrfico como tal, mas tambm para confront-lo, de modo promissor, com o
literrio e com o flmico. Vamos detalhar um pouco mais a reflexo de Philippe Dubois.
A questo do realismo fotogrfico, ou seja, a relao da imagem fixada no
papel com a situao do mundo que a originou (a questo da referncia abordada por
Barthes), o conceito utilizado pelo autor para organizar o percurso histrico do pensamento
sobre o fotogrfico. Poderemos identificar aqui, novamente, que o pensamento reflexivo sobre
a fotografia encontra similitudes com aqueles que se dobram sobre o texto literrio, sobre o
cinema e sobre as artes em geral.
Dubois (1994, p. 26) identifica, portanto, trs momentos (ou discursos)
distintos sobre a questo do realismo fotogrfico, os quais reiteramos: a fotografia como
espelho do real (o discurso da mimese); a fotografia como transformao do real (o discurso
do cdigo e da desconstruo); e a fotografia como trao de um real (o discurso do ndice e da
referncia).
2.2.1 A fotografia enquanto mimese
O surgimento da fotografia foi acompanhado, como esclarece Dubois (1994, p.
27), pelo estabelecimento imediato de um nmero impressionante de discursos de escolta.
Duas vises opostas se digladiaram pelo menos at o final do sculo XIX. De um lado,
defensores da nova tecnologia como a evoluo natural das artes e, de outro, os que viam na
fotografia uma ameaa mo do artista e, mais amplamente, prpria arte, em especial, a
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pintura. Em ambos os casos, quer se seja contra, quer seja a favor, a fotografia [...]
considerada como a imitao mais perfeita da realidade. (DUBOIS, 1994, p. 27) [grifo do
autor]
E, de acordo com os discursos da poca, essa capacidade mimtica procede de suaprpria natureza tcnica, de seu procedimento mecnico, que permite fazer apareceruma imagem de maneira automtica, objetiva, quase natural (segundo to-somente as leis da tica e da qumica), sem que a mo do artista intervenhadiretamente. (DUBOIS, 1994, p. 27) [grifo do autor]
Nesse embate entre fotografia e arte, sempre tomada como exemplificao
eminente a posio de Charles Baudelaire, que reagiu fotografia por reconhecer na maioria
das produes fotogrficas de sua poca a forte influncia da ideologia naturalista (DUBOIS,
1994, p. 30). Vale a pena citar a passagem singular de Baudelaire:
Em matria de pintura e estaturia, o Credo atual das pessoas de sociedade,principalmente na Frana (e no acredito que algum ouse afirmar o contrrio) oseguinte: Acredito na natureza e s acredito na natureza (h boas razes para isso).Acho que a arte e s pode